Guiné-Bissau > Bafatá > 2001: Busto do fundador do PAIGC, Engº. Amílcar Cabral (Bafatá, 1924 - Conacri, 1973). A velha cidade colonial de Bafatá está muita degradada. © David J. Guimarães.
1. "África, 30 anos depois" é um excelente documento, publicado pela revista semanal Visão, que acompanha a sua edição de 16 de Junho (240 pp, 14.9 euros). O pretexto é o de revisitar as ex-colónias portuguesas (Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe), trinta anos depois da sua independência. A não perder.
2. No que diz respeito à Guiné-Bissau, há várias (excelentes) reportagens assinadas por Pedro Rosa Mendes: (i) Guiné-Bissau: Cabral morreu (pp. 146-153); (ii) Guiné-Bissau: 'um país de traições' (pp. 154-155); e (iii) Guiné-Bissau: Braima, o menino de Amílcar (pp. 156-159). A introduação e a cronografia é de Luís Almeida Martins e a fotografia de Luís Barra.
É um olhar extremamente lúcido, cruel e quiçá desesperado sobre a herança de Cabral. A conclusão (brutal) é que Cabral morreu, contrariamente ao slogan repetido até à exaustão, pela propaganda oficial e pelos ex-combatentes e militanets do PAIGC, de que Cabral ka mori (Cabral não morreu).
A conclusão do jornalista e escritor é que Cabral definitivamente. Morreu duas vezes: fisicamente (assassinado em 20 de Janeiro de 1973, em Conacri, às mãos de jagunços do próprio PAIGC); e depois politica, ideologica e espiritualmente, ao longo destes trinta e tal anos de independência em que o próprio PAIGC e a elite guineense entraram num processo de autofagia. A sua cidade-natal e a sua casa estão votadas ao abandono.
Há, no entanto, algum branqueamento das razões profundas por que a Guiné-Bissau não conseguiu erigir-se em verdadeiro Estado moderno e sobretudo na Nação com que sonhou Amílcar Cabral. A nossa quota-parte de responsabilidade (histórica) é posta entre parêntesis. A nossa, de portugueses e de ocidentais.
De qualquer modo o propósito do balanço era outro: o que fizeram os africanos, e neste caso concreto, os guinéus, com o poder que conquistaram, duramente, heroicamente ? Há sempre o risco de etnocentrismo neste tipo de jornalismo de investigação, pese embora a superior qualidade da observação, da efabulação e da escrita de Pedro Rosa Mendes, o talentoso escritor de A Baía dos Tigres (Lisboa: D. Quixote, 1999), romance já traduzido em mais de duas dezenas de línguas.
Recorde-se que o livro de estreia do jovem Pedro Rosa Mendes, então com 31 anos, é uma mistura de livro de viagens e de ficção. Em 4 meses, o autor fez 10 mil quilómetros, viajando por terra, de Angola à Contracosta, e seguindo o mesmo percurso encetado há mais de um século por Roberto Ivens e Brito Capelo. O livro obteve o Prémio Pen Club 2000.
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Fonte: Visão.online.pt (16.06.2005)
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 16 de junho de 2005
Guiné 63/74 - P59: Esquecer a Guiné...por uma noite! (Luís Graça)
Excertos do Diário de um Tuga. L.G.
Bambadinca,13.2.1971
Esquecer a Guiné
Esquecer a Guiné... por uma noite!
As bombas de napalm
Carbonizando cada quadrado de vida,
Lá longe, em Sinchã Jobel,
Na ZI do Com-Chefe (1).
As insónias às três da manhã,
A hora mortal da madrugada.
Os famélicos cães vadios africanos
Que um dia abatemos a tiro,
Um a um,
Depois de loucas correrias de jipe
À volta da parada.
Uma a um,
Às tantas da madrugada.
Com tiros de pistola Walther na cabeça.
Sem dó nem piedade.
Pela simples razão
De não nos deixavam dormir.
A mim, a ti, ao major.
Chamei-lhe a Operação
Da Noite das Facas Longas.
Esquecer a Guiné... por uma noite!
A matilha de bulldogs (ou cães grandes) (2)
Gozando as delícias do sistema
No ar condicionado de Bissau.
O pobre do Pastilhas (3)
Que, à hora do lusco-fusco,
Se torna um animal acossado pelo medo,
Rondando os abrigos subterrâneos.
Os olhos de gazela morta
Dos putos
Que andam à cata de comida
Nos bidões do lixo da tropa.
A bela futa-fula (4)
Fugida do harém
Do cornudo comandante de milícias.
Os milhões de unidades de penicilina
Que um gajo paga
Em troca do corpo quente de uma bajuda (5)
Que fode com um batalhão inteiro.
Os páras (6)
Que matam à queima roupa,
E ainda se dão ao luxo
De contar os impates,
Fotografar
E armadilhar os cadáveres do IN.
A histeria do Major Eléctrico (7):
"Ah, se sto fosse uma fábrica,
Seus sacanas!...
Eu despedia-vos a todos,
Cambada de malandros!"...
(Referia-se ao meu grupo de nharros
Que abriam trincheiras
No perímetro do aquartelamento de Bambadinca.
De tronco nu.
Com cinquenta graus ao sol
E 100% de humidade!...
Para o filho da puta
Poder dormir descansado,
À noite, na cama,
Sem o pesadelo de um turra
A entrar-lhe pelo quarto adentro,
Armado de Kalashnikov!).
Esquecer a Guiné... por uma noite!
O Escriturário que toca acordeão
E faz tatuagens
Em troca de umas bazucas(8).
O terror das crianças balantas (9),
Nascidas no mato (10),
Ao ouvirem pela primeira vez
O roncar das GMC (11).
O soro correndo nas veias exangues,
Aos borbotões,
Enquanto a gente aguarda a evacuação Y
E o helicóptero
Com um anjo salvador, lá dentro,
Que tem um rosto de mulher (12).
A Jocasta que vem reclamar os seus filhos,
Os feridos, não os mortos.
O médico que manda receitar Valium 10
Para os cacimbados (13)
E aspirina
Para os pretos.
As lâminas de aço dos rockets (14),
Esventrando os corpos.
O braço decepado, com a tatuagem
Em que ainda se podia ler
... Amor de mãe.
O nosso cabo, casado e pai de filhos,
Que há meses enfia no bucho,
Ao mato-bicho,
Uma bazuca e uma banana
Com a secreta esperança de,
Um dias destes,
Ainda poder ser evacuado a tempo,
Para Lisboa
Com uma hepatite qualquer
(A, B, C ou Z, tanto faz).
E quanto mais amarelo melhor,
Desde que apanhes uma doença,
Transmissível,
Infecto-contagiosa,
Irreversível,
Horrível,
Daquelas que vêm no cardápio
Dos serviços de saúde militar.
Que o hospital militar
De doenças infecto-contagiosas,
Em Lisboa,
E coisa boa,
É a melhor estância de férias do mundo!,
Garante o safado
Do nosso cabo enfermeiro Faleiro,
Num postal ilustrado da capital do Império.
Foi a nossa primeira baixa oficial,
Se não me engano.
Um herói, pouco ortodoxo,
Vítima da hepatite!
Esquecer a Guiné... por uma noite!
O sabor a sangue e a merda
Que a vida aqui tem,
Aos vinte e três anos.
A merda da Guiné.
A merda que te cobre o corpo e a alma.
É mais do que a merda toda
Das bolanhas, das lalas e do tarrafo.
Podes lavar-te todos os dias
Que essa merda
Nunca mais te sai.
Nunca mais te sairá do corpo e da alma.
Mas aos catorze anos
Tu já sabias desta guerra;
Aos dezasseis, que não havia escapatória;
E, aos dezoito,
Que já estavas apanhado na rede
Como um cão...
Tudo somado vais fazer
Trinta e três meses (!)
De vida militar
(Vinte e dois na Guiné!),
Se é que chegas são e salvo
Ao próximo mês de Março
De mil novecentos
E setenta e um.
E que até lá chega finalmente,
O teu salvador,
O teu periquito (15),
O desgraçado que te vem render.
Esquece a Guiné, meu tuga.
A guerra.
A aprendizagem da morte.
A inocência
Que se perde para sempre
Ao ver morrer pela primeira vez
Um homem,
Ao nosso lado.
E a fria e calculista resignação
Com que se juntam e amortalham
Os cadáveres seguintes.
Os restos dos cadáveres humanos.
Descansa em paz,
Ieró Jaló,
Soldado atirador nº 812117869,
Da 3ª secção do 1º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
(Mais tarde CCAÇ 12).
Descansa em paz, djubi,
Debaixo do poilão da tua tabanca,
No chão fula....
Belíssimo poilão
De uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Oito de Setembro
De mil novecentos
E sessenta e nove.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia.
Morreste em linha.
Organizado.
No assalto a um aquartelamento do IN.
Estupidamente.
Morto por um dilagrama.
Por um dos nossos.
Um dilagrama nosso
Que explodiu na tua cara.
Nunca soube a tua idade.
Mas eu levei-te a enterrar
Na tua aldeia.
Com honras militares,
Tiros de salva,
Discursos patrioterios
E a bandeira verde-rubra
Dos tugas
Por cima do teu caixão.
Chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
O Malan Mané,
Que também ficou gravemente ferido.
Tu, que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Eras apenas um soldado-atirador
De 2ª classe.
Não eras turra, eras uma nharro.
Mas, para mim, eras apenas um homem.
O que primeiro que vi morrer a meu lado.
De morte matada.
Nunca mais chorei por mais ninguém.
Chorei por ti, Ieró Jaló.
De raiva.
Esquecer, ao menos por uma noite...
Se há uma via de libertação
É através do álcool
Que climatiza os pesadelos
Dos homens que nasceram meninos,
Que não nasceram soldados.
Entre duas bebedeiras e um duche
Ganha-se tempo,
Enquanto os obuses (16) batem os trilhos
Das matas do Xime
E o quarteleiro abre os caixotes de munições
Para a operação
Do dia seguinte...
O capim.
O capim alto.
A seara da savana arbustiva.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue
Na mata.
Os panfletos de acção psicológica
Que não chegaram ao seu destinatário.
Espalhados pelo pânico de uma emboscada.
Um velho recorte de jornal,
Encontrado num acampamento do IN,
Com a fotografia de Che Guevara
Na Guiné em 1965.
A propaganda revolucionária.
Multiplicar as Guinés e os Vietnames.
Um lenço de pescoço,
Desbotado, pelo sol, no ramo de uma árvore.
Um homem, um picador (17),
Que se desintegrou com uma mina à cabeça.
Uma mina anticarro.
Sobrou o lenço, vermelho,
Que ficou pendurado no alto de uma árvore.
Na estrada para Mansambo.
Eu costumava olhar para o teu lenço,
Picador e guia das nossas tropas,
Sempre que fazia segurança
Às colunas de reabastecimento
Que se dirigiam a Mansambo, Xitole e Saltinho.
Nunca soube o teu nome.
Nunca perguntei pelo teu nome.
Nunca me interessei por saber o teu nome.
Sei apenas que nesse dia
Ias ganhar manga de patacão (18)
Por detectares e desmontares
Uma mina anticarro.
Esquecer a Guiné... por umas horas!
O jogo da roleta russa de ir e voltar,
De Bambandica ao Xime.
Numa lata de uma autometralhadora Daimler.
Só tu e o condutor.
Desenfiados.
Mais o Tchombé,
A mascote da companhia, o puto.
Sem escolta nem picagem.
Sem conhecimento de ninguém.
Só para ires beber uma cerveja.
Só para matares o tédio.
Só para desafiares o medo.
Ou para exorcizares os teus fantasmas.
Por pura estupidez.
Ou por simples bravata.
Esquecer a Guiné...
O Básico (19)
Que tem alucinações
E vê elefantes à noite
Junto ao arame farpado.
A história que te contaram,
Do tipo de Guileje (20)
Que deu em doido,
A pescar peixes dentro de uma tina.
O proxeneta do Vermelhinha (21)
Que comprou uma bajuda
E pô-la a render.
As alfaces que crescem, viçosas,
No antigo cemitério (22) de Bambadinca.
O furriel felupe (23), caçador de cabeças.
O Uloma, coma s trinta e tal cabeças,
Conservadas em frascos de álcool.
O negócio que o nosso barbeiro e fotógrafo fez
Com a horrível foto de uma cabeça,
Cortada à catana.
A cabeça de um pobre camponês
Que lavrava a sua lala.
No sítio errado, à hora errada.
A derradeira salada de atum, cebola e tomate
E o derradeiro copo de vinho verde
Que se partilha com um camarada e um amigo.
Um homem que vai morrer.
À hor marcada.
Dentro de três ou quatro horas.
Em vinte e seis de Novembro
De mil novecentos e setenta.
Qualquer um de nós,
Que está aqui à volta da mesa,
Pode vir a morrer
Na próxima hora.
Na próxima operação.
Por que há sempre uma hora
Para morrer.
De um tiro no coração,
De um roquetada,
De uma mina antipessoal,
Da explosão de uma granada de morteiro...
O jovem capitão de artilharia,
Vinte e quatro anos,
Acabado de sair da Academia Militar,
Que se recusa a sair com os seus homens
Para a Ponta do Inglês (24),
[Depois do desastre
De 26 de Novembro de 1970] (25).
O filho da puta do segundo comandante
Que lhe manda dizer, alto e som:
"O nosso capitão vai e torna a ir,
Nem que seja a reboque de uma GMC!"...
Meu Deus,
Que pedaço de inferno foi este
Que me coube em vida, na terra ?
__________
Notas (L.G. / Lisboa. 25 de Abril de 2005):
(1) Sinchã Jobel, Zona de intervenção do Comandante-Chefe, a norte do Rio Geba, sob controlo da guerrilha (ou IN, abreviatura de inimigo)
(2) Designação depreciativa do pessoal militar afecto ao Comandante-Chefe, em Bissau.
(3) Referência à figura do enfermeiro militar.
(4) Uma das etnias da Guiné, aparentada com os fulas. Em geral, as mulheres futa-fulas eram de uma grande beleza.
(5) Rapariga, mulher solteira (por oposição a mulher grande, casada).
(6) Diminuitivo de tropas paraquedistas
(7) Alcunha de um célebre major, segundo comandante do Batalhão sedeado em Bambadinca (BCAÇ 2852, 1968/70) (se a memória me não falha).
(8) Garrafa de cerveja de litro. A sua forma cónica na parte superior sugeria uma granada de RPG (bazuca).
(9) Uma das principais etnias da Guiné de onde eram recrutados muitos dos combatentes do PAIGC.
(10) Em linguagem de caserna, mato significava território fora do controlo das NT (nossas tropas). Também possou a quer dizer "muito", "bué"...
(11) Viaturas de transporte militar, de fabrico norte-americano (General Motors Company), de grande potência e de elevado consumo de combustível.
(12) Enfermeira paraquedista.
(13) Vítimas do stresse de guerra. Também conhecidos por "cacimbados" "apanhados do clima". O termo stresse ainda não fazia parte, na época, do nosso vocabulário (e muito menos a expressão stresse pós-traumático de guerra).
(14) Granadas-foguetes. Os RPG (rocket-propelled grenades), de fabrico russo ou chinês, eram uma das armas mais timídas pelas NT, em situações de combate como as emboscadas.
(15) Alusão à farda, novinha em folha, dos novatos que nos vinham render (A generalidade dos quadros da CCAÇ 12 eram de origem metropolitana e de rendição individual).
(16) Fogo de artilharia lançado a partir dos aquartelamentos das NT (ou unidades de quadrícula). Em geral os obuses eram de calibre 105 mm (de 140 mm, os de maior alcance).
(17) O picador tinha a difícil tarefa de detectar minas (antipessoais ou anticarro) nos trilhos e nos caminhos utilizados pelas NT. Não havia detectores de minas com sensores electrónicos. Apenas um pau com um prego de ferro aguçado na extremidade. Os picadores, tal como os guias, pertenciam, em geral, às milícias africanas. A sua taxa de mortalidade era altíssima.
(18) Muito (manga) dinheiro (patacão).
(19) Soldado afecto apenas às actividades de apoio logístico (por ex., cozinha, faxina), por oposição ao operacional (soldado-atirador).
(20) Tristemente famoso aquartelamento no sul, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, que acabaria por ser evacuado e abandonado pelas NT, tal como Gadamael, em meados de 1973. Já no meu tempo estes dois nomes eram míticos, a par de Madina do Boé, entretanto abandonada.
(21) Soldado que era especialista em jogar à vermelhinha (jogo de azar, com três cartas).
(22) Alusão a uma vala comum do cemitério do posto administrativo de Bambadinca onde terá havido muitas execuções sumárias, de balantas, beafadas e outros, no início da guerra (1963/64, segundo relatos dos mais velhos dos meus insuspeitos soldados fulas).
(23) Felupe, uma das muitas etnias da Guiné, da zona de Constava-se, no meu tempo, que os felupes ainda praticavam a necrofagia, uma forma de canibalismo ritual. Este tristemente famoso furriel (Uloma, de seu nome, se a memória me não falha) pertencia à 1ª Companhia de Comandos Africanos.
(24) Local sito na confluência dos Rios Geba e Corubal, na região do Xime.
(25) Referência ao Capitão da CART 2714 (unidade de quadrícula do Xime, envolvida na trágica Op Abencerragem Candente).
Post scriptum
Amigos e camaradas:
Já tinha publicado isto em 25 de Abril último… Mas agora republico-o, com alterações. Há dados novos, como por exemplo, a chegada do nosso camarada A. Marques Lopes… Como vêem, a famigerada Sinchã Jobel do Alferes Lopes (CART 1690, Geba, 1967) era terra de ninguém no nosso tempo... Três anos depois de ele ter passado uma noite, perdido, na toca do lobo (Operação Jigajoga. 24 de Junho de 1967).
Alguns de vocês vão-se reconhecer neste texto, escrito já quase no final da minha/nossa comissão, em Fevereiro de 1971... O Humberto Reis e o Tony Levezinho vão, decerto, rever-se nesta espécie de poema e reconhecer tipos e lugares... A começar pela Op Noite das Facas Longas cuja missão era abater todos os cães de Bambadinca até o desgraçado do nosso animal de estimação (esqueci-me do nome do bicho)... Embora eu não tenha dado um tiro, confesso que ia no jipe com os executantes do massacre... Os malditos cães, esfomeados, não nos deixavam dormir... Como vêem, o stresse físico e psíquico era muito e desta vez deu-nos para isto...
Mas podia ter acontecido um outro Wiriamu (o massacre perpretado pelas NT, em Moçambique, em 1973, contra a população da aldeia de Wiriamu), é assim muitas vezes que acontecem estas coisas no teatro de operações...
Felizmente que sempre fomos militares correctos e ponderados (refiro-me aos quadros e soldados das CCAÇ 12, no período de 1969/71). Tirando este gesto de crueldade para com os pobres dos animais, julgo que nenhum de nós tem a consciência pesada, como tuga, como homem, como militar...
O Humberto e o Tony vão de certo reconhecer o Vemelhinha, o Fotógrafo, o Básico, o Pastilhas, o Cabo Faleiro, o Escriturário do acordeão e das tatuagens, o Iero Jaló (o nosso primeiro morto, se bem que eu não refira o apontador do dilagrama que o matou e que era um dos nossos...), o jovem Capitão do Xime, o 2º comandante (esse mesmo de outras merdas grossas, como a do macaréu, em que morreram três camaradas no Geba, referidas pelo Sousa de Castro e pelo Luís Carvalhido…).. Mas havia outras figuras que ainda hoje figuram no meu museu dos horrores e da comédia humana: o Major Eléctrico, o Furriel Felupe Uloma, e outras personagens trágico-cómicas que eu refiro no texto...
De qualquer modo, façam como eu: esqueçam a Guiné...por uma noite!
quarta-feira, 15 de junho de 2005
Guiné 63/74 - P58: Homenagem a três homens excepcionais que partiram (Marques Lopes)
Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968):
Caros amigos:
Permitam-me que deixe aqui, perante vós, a minha homenagem, consideração e admiração, bem como a saudade, sentidas por três homens excepcionais que partiram: Vasco Gonçalves, Eugénio de Andrade e Álvaro Cunhal.
Conheci os três em circunstâncias diferentes, mas guardo de todos a melhor recordação. Tive o privilégio de conhecer Eugénio de Andrade quando tive, mais de uma vez, de me deslocar a sua casa para com ele tratar de livros (fui um dos fundadores da editora portuense Campo das Letras); foi um homem de grande simpatia e amabilidade e um poeta dos maiores.
Conheci Vasco Gonçalves nos idos tempos da revolução, dei o seu nome ao meu filho, que nasceu em Junho de 1975, e ele deu-me a honra de o receber em sua casa; foi um revolucionário convicto, um homem sincero e honesto com um coração bom onde todos cabiam.
Conheci Álvaro Cunhal em certas situações durante o período revolucionário; uma inteligência excepcional, de uma objectividade e coerência como poucos, um revolucionário convicto e amigo do povo português.
Três perdas grandes, que quero lembrar, no dia em que o último foi a enterrar. A memória deles ficará, com toda a certeza, ligada àquilo que somos, ao país que queremos construir.
Grande abraço.
Marques Lopes
Caros amigos:
Permitam-me que deixe aqui, perante vós, a minha homenagem, consideração e admiração, bem como a saudade, sentidas por três homens excepcionais que partiram: Vasco Gonçalves, Eugénio de Andrade e Álvaro Cunhal.
Conheci os três em circunstâncias diferentes, mas guardo de todos a melhor recordação. Tive o privilégio de conhecer Eugénio de Andrade quando tive, mais de uma vez, de me deslocar a sua casa para com ele tratar de livros (fui um dos fundadores da editora portuense Campo das Letras); foi um homem de grande simpatia e amabilidade e um poeta dos maiores.
Conheci Vasco Gonçalves nos idos tempos da revolução, dei o seu nome ao meu filho, que nasceu em Junho de 1975, e ele deu-me a honra de o receber em sua casa; foi um revolucionário convicto, um homem sincero e honesto com um coração bom onde todos cabiam.
Conheci Álvaro Cunhal em certas situações durante o período revolucionário; uma inteligência excepcional, de uma objectividade e coerência como poucos, um revolucionário convicto e amigo do povo português.
Três perdas grandes, que quero lembrar, no dia em que o último foi a enterrar. A memória deles ficará, com toda a certeza, ligada àquilo que somos, ao país que queremos construir.
Grande abraço.
Marques Lopes
Guiné 63/74 - P57: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo) (Luís Graça)
Excertos do diário de um tuga. L.G.
Bambadinca. 1 de Dezembro de 1969
Registam-se agora as temperaturas mais baixas do ano nestas paragens tropicais. Eu próprio não imaginaria que iria tiritar de frio nesta terra, emboscado, à noite, com os meus homens, sob um temperatura de 15º.
À noite, os africanos acendem fogueiras à porta ou no interior das suas pobres tabancas de colmo. A chuva dá lugar ao cacimbo. É o início da estação seca.
Entretanto, os negros islamizados (fulas, futa-fulas, mandingas, beafadas...) acabaram de celebrar o Ramadã. Um mês de jejum e oração culmina na grande festa colectiva em que o batque é a expressão viva do ritmo interior, da alegria física e do sentido lúdico do homem africano. Reconheço que não foi um mês fácil para os meus soldados.
Bambadinca. 10 de Janeiro de 1970
O Cherno Rachid é a autoridade máxima do Islão na Guiné. De etnia futa-fula, vive em Aldeia Formosa [Quebo], rodeado duma auréola de lenda e santidade: a sua simples presença, asseguram os meus soldados, faz malograr qualquer ataque dos guerrilheiros àquela povoação onde aliás esta sedeado urn batalhão, e os seus mezinhos (amuletos ou talismãs) imunizam os homens-grandes, quer dizer, aqueles que praticam os preceitos do Alcorão, contra as balas do inimigo.
0 ascendente que ele tem sobre a população islamizada da Guiné, confere uma dimensão política à sua personalidade de mauro (sábio). E o general Spínola reconhece-o, chegando ao ponto de ir expressamente a Aldeia Formosa para visitar o Cherno Rachid e consultá-lo sobre problemas que obviamente nada terão a ver com a exegese do Déftere (Alcorão).
Pode dizer-se que ele é o chefe ideológico (e não apenas religioso e espiritual) da casta feudal que se aliou ao colonialismo português contra o movimento nacionalista de libertação.
Tive hoje, aliás, a oportunidade de conhecer pessoalmente o Cherno Rachid e constatar o seu carisma e o poder de atracção que ele exerce sobre os africanos islamizados. Esteve vários dias em Bambadinca, de visita ao chão fula. Com avioneta ou helicóptero, às ordens, claro!
Sentado numa esteira, de pernas trançadas, recebia nos seus aposentos privativos os fiéis que, descalços como na mesquita, o iam cumprimentar, trazendo-lhe presentes, sobretudo em dinheiro (às vezes mesmo somas importantes!) em troca duma oração, dum conselho ou dum objecto cabalístico.
Como seria de esperar, o Cherno Rachid, acompanhado da sua comitiva de servos e discípulos, foi depois por seu turno apresentar cumprimentos às autoridades militares locais (comando do batalhão)... Noblesse oblige!
Post scriptum
Lisboa, 16 de Junho de 2005
Amigos e camaradas:
Nunca fui a Aldeia Formosa (aliás, Quebo, para os guinéus). No nosso tempo não dava para fazer ecoturismo, como vocês muito bem sabem... Mesmo assim cheguei a conhecer o famoso Cherno Rachid, de acordo com os papéis que desenterrei do baú…
Falei pelo telefone com o José Carlos Mussá Biai… Tem estado fora, a fazer trabalho de campo. Ele trabalha em cartografia, no Instituto Geográfico Português. Teve irmãos na tropa em Farim. Vai mandar-nos documentação para a nossa página. Já falou com o seu professor do Xime, o Carvalhido da Ponte. Mas nunca mais teve notícias dos outros professores que vieram a seguir, o furriel Osório da CCAÇ 12 (que estava no Xime em 1973) e da esposa. Alguém tem notícias desta malta ?
O José Carlos, o djubi do Xime (como lhe chama carinhosamente o Sousa de Castro), e que é mandinga pelo lado do pai, diz-me que cherno em fula quer dizer tio… Eu tinha ideia que cherno era o termo usado para designar um chefe religioso muçulmano… Mas a verdade é que há nomes próprios, fulas, que começam por Cherno: nós próprios, na CCAÇ 12 (1969/71), tínhamos dois soldados de nome Cherno Baldé…
Em conclusão, o Cherno Rachid, de Quebo (que já deve ter morrido, pela ordem natural das coisas,não me tendo constado que tivesse tido problemas com as novas autoridades saídas da independência, apesar de não gozar das simpatias do PAIGC), não era mais do que o Tio Rachid...
Bambadinca. 1 de Dezembro de 1969
Registam-se agora as temperaturas mais baixas do ano nestas paragens tropicais. Eu próprio não imaginaria que iria tiritar de frio nesta terra, emboscado, à noite, com os meus homens, sob um temperatura de 15º.
À noite, os africanos acendem fogueiras à porta ou no interior das suas pobres tabancas de colmo. A chuva dá lugar ao cacimbo. É o início da estação seca.
Entretanto, os negros islamizados (fulas, futa-fulas, mandingas, beafadas...) acabaram de celebrar o Ramadã. Um mês de jejum e oração culmina na grande festa colectiva em que o batque é a expressão viva do ritmo interior, da alegria física e do sentido lúdico do homem africano. Reconheço que não foi um mês fácil para os meus soldados.
Bambadinca. 10 de Janeiro de 1970
O Cherno Rachid é a autoridade máxima do Islão na Guiné. De etnia futa-fula, vive em Aldeia Formosa [Quebo], rodeado duma auréola de lenda e santidade: a sua simples presença, asseguram os meus soldados, faz malograr qualquer ataque dos guerrilheiros àquela povoação onde aliás esta sedeado urn batalhão, e os seus mezinhos (amuletos ou talismãs) imunizam os homens-grandes, quer dizer, aqueles que praticam os preceitos do Alcorão, contra as balas do inimigo.
0 ascendente que ele tem sobre a população islamizada da Guiné, confere uma dimensão política à sua personalidade de mauro (sábio). E o general Spínola reconhece-o, chegando ao ponto de ir expressamente a Aldeia Formosa para visitar o Cherno Rachid e consultá-lo sobre problemas que obviamente nada terão a ver com a exegese do Déftere (Alcorão).
Pode dizer-se que ele é o chefe ideológico (e não apenas religioso e espiritual) da casta feudal que se aliou ao colonialismo português contra o movimento nacionalista de libertação.
Tive hoje, aliás, a oportunidade de conhecer pessoalmente o Cherno Rachid e constatar o seu carisma e o poder de atracção que ele exerce sobre os africanos islamizados. Esteve vários dias em Bambadinca, de visita ao chão fula. Com avioneta ou helicóptero, às ordens, claro!
Sentado numa esteira, de pernas trançadas, recebia nos seus aposentos privativos os fiéis que, descalços como na mesquita, o iam cumprimentar, trazendo-lhe presentes, sobretudo em dinheiro (às vezes mesmo somas importantes!) em troca duma oração, dum conselho ou dum objecto cabalístico.
Como seria de esperar, o Cherno Rachid, acompanhado da sua comitiva de servos e discípulos, foi depois por seu turno apresentar cumprimentos às autoridades militares locais (comando do batalhão)... Noblesse oblige!
Post scriptum
Lisboa, 16 de Junho de 2005
Amigos e camaradas:
Nunca fui a Aldeia Formosa (aliás, Quebo, para os guinéus). No nosso tempo não dava para fazer ecoturismo, como vocês muito bem sabem... Mesmo assim cheguei a conhecer o famoso Cherno Rachid, de acordo com os papéis que desenterrei do baú…
Falei pelo telefone com o José Carlos Mussá Biai… Tem estado fora, a fazer trabalho de campo. Ele trabalha em cartografia, no Instituto Geográfico Português. Teve irmãos na tropa em Farim. Vai mandar-nos documentação para a nossa página. Já falou com o seu professor do Xime, o Carvalhido da Ponte. Mas nunca mais teve notícias dos outros professores que vieram a seguir, o furriel Osório da CCAÇ 12 (que estava no Xime em 1973) e da esposa. Alguém tem notícias desta malta ?
O José Carlos, o djubi do Xime (como lhe chama carinhosamente o Sousa de Castro), e que é mandinga pelo lado do pai, diz-me que cherno em fula quer dizer tio… Eu tinha ideia que cherno era o termo usado para designar um chefe religioso muçulmano… Mas a verdade é que há nomes próprios, fulas, que começam por Cherno: nós próprios, na CCAÇ 12 (1969/71), tínhamos dois soldados de nome Cherno Baldé…
Em conclusão, o Cherno Rachid, de Quebo (que já deve ter morrido, pela ordem natural das coisas,não me tendo constado que tivesse tido problemas com as novas autoridades saídas da independência, apesar de não gozar das simpatias do PAIGC), não era mais do que o Tio Rachid...
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