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quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23676: Agenda cultural (817): doclisboa'22- festival internacional de cinema, 6-16/10/2022: Retrospectiva - A questão colonial: 35 filmes - Parte I: Lugares: Guiné-Bissau, Senegal, Argélia, Angola, dias 6 e 7


Fotograma do filme "J'ai huit ans" (França, 1969, 10'). Cortesia de doclisboa2022


1. Aí está o nosso querido e aclamado doclisboa, na sua 20ª edição. Um  slogan que já se tornou um ícone: "Em Outubro todo o mundo cabe em Lisboa"... É uma referência a nível mundial este festival do cinema (documental). Organização notável da Apordoc - Associação pelo Documentário. Palmas para eles e elas que fazem estas coisas acontecer na nossa terra. 20 edições é obra. E a continuidade sem quebra da qualidade...

Das diversas secções (são 12), destacamos, para os leitores do nosso blogue, a Retrospectiva > A Questão Colonial. 

Vão passar, só nesta secção 35 filmes de curta, média e longa metragem.  Todos os filmes são legendados em português. Com a devida vénia, selecionámos os filmes que vão ser exibidos hoje e amanhã, na Cinemateca Portuguesa e no Cinema São Jorge.   

Eu, que sou fã do doclisboa, desgraçadamente, vou estar, durante a semana, na Lourinhã, a fazer fisioterapia... Espero que alguns dos nossos cinéfilos possam lá dar um salto e escrever duas linhas (críticas) sobre um ou mais destes filmes... Alguns, seguramente, serão polémicos...

Vamos apresentando, ao longo dos dias, a programação relativa a esta secção. Destaque para o filme "Mortu Nega" do realizador Flora Gomes (Guiné Bissau, 1988, 93’), considerado o filme "fundacional" da cinematografia guineense. Passa hoje, dia 6 de outubro, às 15:30, na Cinemateca Portuguesa,  Sala M. Félix Ribeiro.

Quem não puder vê-lo na sala de cinema, tem-no aqui, no You Tube. Falado em crioulo, com legendas em inglês e em português. Versão integral. 

Flora Gomes nasceu em Cadique, em 1949. Ver aqui sinopse, enquadramento histórico, ficha artística e técnica do filme "Mortu Nega", que em português quer dizer "morte  negada"). 

2. O texto  e as imagens, a seguir, são extraídos do programa do doclisboa'22, incluindo as sinopses dos filmes que aqui se reproduzem para mera informação dos nossos leitores. Como não os vimos, a não ser alguns excertos do "Mortu Nega", não podemos ter opinião sobre eles:

Parafraseando Sartre, algumas reflexões sobre a questão colonial… no cinema. No caso, cingimo-nos à história recente, ao continente africano e às antigas colónias portuguesas e francesas. 

O ponto de partida é o fim da Guerra da Argélia – simbolizando o fim das colónias francesas, habilmente mantidas sob o jugo neocolonial – que coincide com a decisão do Estado Novo de avançar para a guerra colonial. 

Rapidamente, a revisitação dos materiais das “colecções coloniais” revela-se desajustada, condicionada à recontextualização, que reduz o cinema ao documento. 

A viagem deriva, então, para os cineastas solidários e sobretudo o nascimento dos cinemas africanos. Resta saber se, como Ousmane perguntava a Rouch, quando houver muitos cineastas africanos, os cineastas europeus deixarão de fazer filmes sobre África.

Dois momentos fundacionais do cinema guineense e da colaboração de Flora Gomes e Sana na N’Hada, gestos híbridos entre ficção e reconstrução, em busca da imagem de um país e de um povo. O funeral de Amílcar Cabral, finalmente realizado com honras de Estado após a independência, simboliza o nascimento da nação e "Mortu Nega" o seu nascimento cinematográfico.

06 Out — 15:30 / 117’
Cinemateca Portuguesa Sala M. Félix Ribeiro




O Regresso de Amílcar Cabral
Djalma Fettermann, Flora Gomes, José Bolama, Josefina Crato, Sana na N'Hada
1976/Guiné Bissau, Suécia/32’

Primeira produção de cineastas guineenses após a libertação do colonialismo português em 1974, O Regresso de Amílcar Cabral documenta a transferência dos restos de Amílcar Cabral de Conacri (onde foi assassinado em Janeiro de 1973) para Bissau em 1976. Uma cobertura intrigante do evento solene, gravações de canções guineenses e [...]

Mortu Nega

Mortu Nega
Flora Gomes
1988/Guiné Bissau/93’

Mortu Nega cobre o período entre Janeiro de 1973, durante os meses finais da guerra contra os portugueses, até à consolidação de uma Guiné-Bissau independente, em 1974 e 1975. O filme começa no mato com um transporte na rota de abastecimento de Conacri para a frente. A heroína, Diminga, e [...]

06 Out — 19:00 / 86’
Cinemateca Portuguesa Sala M. Félix Ribeiro



Africa on the Seine

Afrique sur Seine
Mamadou Sarr, Paulin Soumanou Vieyra
1955/Senegal/21’

De acordo com o Decreto Laval dos anos 1930, os projectos de filmes estavam sujeitos a censura prévia. Neste contexto, os realizadores não obtiveram autorização para filmar em África e, em vez disso, fizeram esta curta sobre as vidas de africanos em Paris. O filme revela questões de estudantes sobre [...]


La Noire…
Ousmane Sembène
1966/França, Senegal/65’
Diouana, uma jovem de uma aldeia senegalesa, deambula por Dacar todos os dias à procura de trabalho. Apesar da enorme oferta de mulheres desempregadas, dada a sua subserviência, é “escolhida” para ama de uma família francesa rica. Quando tem autorização para se mudar para França para viver com eles, parece [...]



07 Out — 16:45 / 68’
Cinema São Jorge Sala 3

Nestes filmes, rodados por cineastas militantes e solidários que desafiaram a censura em França, condensam-se os anos de violência da Guerra da Argélia – vividos no presente e na frente de combate em Algérie en flammes ou nas imagens que dela trazem as crianças exiladas na vizinha Tunísia em J’ai huit ans – e a força de esperança do país no Ano Zero da independência.


J'ai huit ans

J'ai huit ans
Olga Baïdar-Poliakoff, Yann Le Masson
1962/França/10’

Crianças argelinas, sobreviventes da Guerra da Argélia e refugiadas em campos tunisinos, mostram os acontecimentos trágicos que viveram através de desenhos que elas próprias fizeram. Banido em França durante 12 anos e apreendido 17 vezes, o filme foi sobretudo exibido clandestinamente.


Algérie en flammes

Algérie en flammes
René Vautier
1958/França/23’

Primeiro filme rodado no maqui do Exército de Libertação Nacional em 1956-57. O objectivo destas imagens da guerra, filmadas na zona de Aurès-Nementcha, era manifestar apoio popular à organização armada e encorajar o diálogo para a paz. O filme circulou imediatamente pelo munto inteiro, excepto em França, onde foi exibido [...]

Algérie, année zéro

Algérie, année zéro
Jean-Pierre Sergent, Marceline Loridan-Ivens
1962/França/35’

Seis meses após o fim da guerra, o filme esboça um retrato comprometido de uma Argélia recém-independente a braços com a enorme tarefa de reconstrução social e económica. O país é retratado pelas suas vozes rurais e urbanas, carregando as cicatrizes do colonialismo e a ameaça do terrorismo da OAS [...]


07 Out — 19:30 / 68’
Cinemateca Portuguesa Sala Luís de Pina

Uma sessão no limiar da história de Angola, entre a independência duramente conquistada e a ameaça da guerra civil, num breve momento de esperança no futuro da jovem nação. A passagem da câmara das mãos dos camaradas cineastas europeus para os jovens cineastas angolanos acontece também neste momento que o futuro não concretizou.


Nascidos na Luta, vivendo na Vitória
Asdrúbal Rebelo
1978/Angola/18’
Retrato das crianças nascidas ainda durante a guerra, membros dos Pioneiros – a organização juvenil do MPLA. Como o título prenuncia, o filme é feito num momento em que, no rescaldo do trauma da Guerra de Independência, se vive um momento de esperança no futuro de Angola e da revolução.


Guerre du peuple en Angola

Guerre du peuple en Angola
Antoine Bonfanti, Bruno Muel, Marcel Trillat
1975/França/51’´

O filme centra-se na situação vivida em Angola em Junho de 1975, quando a declaração de independência desencadeia uma guerra civil. Os cineastas, que aí se deslocaram para formar jovens angolanos, regressam com este filme, apresentando de forma inequívoca a guerra como a luta das pessoas e do seu movimento [...]

(Continua)

[Seleção / revisão / fixação de texto / subtítulos / negritos / itálicos, para efeitos de edição deste poste: LG. ]
_________

Notas do editor:

Último poste da série > 5 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 – P23675: Agenda cultural (816): "Despojos de Guerra", mini-série da SIC, a ir para o ar nos próximos dias 6; 13; 20 e 27 de Outubro, no fim do Jornal de Noite. No dia 20, o episódio é dedicado aos nossos camaradas Giselda e Miguel Pessoa, "o casal mais strelado do mundo"

terça-feira, 13 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23613: In Memoriam: Cadetes da Escola do Exército e da Escola de Guerra (actual Academia Militar), mortos em combate na 1ª Guerra Mundial (França, Angola e Moçambique, 1914-1918) (cor art ref António Carlos Morais Silva) - Parte XXXV: Pedro Carrazedo Campos Viana de Andrade, alf art (Portalegre, 1897 - França, CEP, 1918)


Pedro Carrazedo Campos Viana de Andrade (1897 - 1918)


Nome: Pedro Carrazedo Campos Viana de Andrade
Posto: Alferes de Artilharia
Naturalidade: Portalegre
Data de nascimento: 10 de Fevereiro de 1897
Incorporação: 1916 na Escola de Guerra (nº 85 do Corpo de Alunos)
Unidade: 6º Grupo de Baterias de Artilharia
Condecorações
TO da morte em combate: França (CEP)
Data de Embarque: 22 de Agosto de 1917
Data da morte: 11 de Abril de 1918
Sepultura: França, Cemitério Civil de Gondecourt, Jazigo da famíla Vendame
Circunstâncias da morte: Na batalha de 9 de Abril foi feito prisioneiro vindo a falecer em 11 de Abril, numa ambulância alemã em Lazarette, vítima de intoxicação por gases. Foi sepultado no
cemitério alemão de Gondecourt Nord. Em 1919 foi exumado e reconhecido por seu pai
que o trasladou para jazigo particular.




António Carlos Morais da Silva, hoje e ontem


1. Continuação da publicação da série respeitante à biografia (breve) de cada um dos oficiais oriundos da Escola do Exército e da Escola de Guerra que morreram em combate, na I Guerra Mundial, nos teatros de operações de Angola, Moçambique e França (*).

Trabalho de pesquisa do cor art ref António Carlos Morais da Silva, cadete-aluno nº 45/63 do Corpo de Alunos da Academia Militar e depois professor da AM, durante cerca de 3 décadas; é membro da nossa Tabanca Grande, tendo sido, no CTIG, instrutor da 1ª CCmds Africanos, em Fá Mandinga, adjunto do COP 6, em Mansabá, e comandante da CCAÇ 2796, em Gadamael, entre 1970 e 1972.

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quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23532: A galeria dos meus heróis (47): O tio Ortiz (1906-1944) (Luís Graça)


Luís Graça, ilustração gráfica, Entropias (1999)


Outubro de 1941 > Execução, pelo exército alemão, de prisioneiros civis sérvios... Na sequência da morte de 22 soldados alemães, atribuída à resistência sérvia, foram executados, em represália, 2100 (!) sérvios (na maior parte, judeus, comunistas e ciganos)...


1945 > Campo de concentração de Bergen-Belsen > 19 de abril de 1945 > Guardas femininas das SS, feitas prisioneiras pelo exército britânico... Três delas serão depois condenadas à morte e executadas.

Berlim > 21 de março de 2015 > Centro de Documentação "Topografia do Terror". Localização: Niederkirchnerstraße 8 10963 Berlin, metro: Potsdamer Platz ou Kochstraße. 

Fotos: Luís Graça (2015)


A galeria dos meus heróis > 

O tio Ortiz (1906-1944)

por Luís Graça (*)


1. Partimos de Lisboa para Berlim no mesmo avião. Eu e a Manuela. E, com a boa vontade de um passageiro (que aceitou trocar comigo  de lugar, um lugar à janela sempre é mais apetecível do que o do meio), conseguimos fazer a viagem juntos, pondo a conversa em dia.

Já não nos víamos há muito tempo. E íamos estar juntos em Berlim numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho. A Manuela, por sua vez, viera do Porto, tinha lá estado uns dias na festa dos 100 anos do seu pai e aproveitara para rever o mano mais novo (que dirigia a empresa da família) e demais parentes e amigos.

Inevitavelmente a história da família veio à baila. Tinha uma vaga ideia que a Manuela já me falara em tempos da sua “costela francesa e basca”. E na época, a ETA, a Euskadi Ta Askatasuna (em português, “Pátria Basca e Liberdade”) ainda estava ativa, sendo notícia, de quando em vez, em títulos de caixa alta, nos jornais, na sequência dos seus atentados ou da prisão de alguns dos seus operacionais e/ou dirigentes.

Em 1981 eu tinha andado no  coração do país basco, do lado cá  dos Pirinéus. Fui  de férias, tendo feito campismo  e passado por sítios icónicos mas ainda “sitiados”, e de algum modo "desaconselhados" pelas polícias e agências de turismo, na transição do franquismo para a democracia espanhola. Alguns desses sítios “tocaram-me” muito, de forma ambivalente, por uma razão ou outra, como foi o caso de  Guernica e Amorebieta-Echano. As placas toponímicas  estavam todas grafitadas, com os nomes das localidades, então ainda  em castelhano, a serem  sobrepostos pelos nomes em basco: Gernika, Amorebieta-Etxano...

Era uma época em que ainda poucos turistas, espanhóis, franceses ou portuguesas, se atreviam a andar de carro, por aquelas bandas. Os de Madrid eram tratados por "perros", os "perros castellanos".  Os franceses também eram hostilizados, a menos que fossem bascos do outro lado dos Pirinéus. Os portugueses, apesar de tudo, eram melhor acolhidos. O meu amigo V... (que infelizmente já morreu) andava de boina basca e ainda tinha uma visão romântica sobre os "etarras" e todos os antifranquistas radicais...

Parece que é preciso a gente ir  lá fora, ou lá para fora, para o "estrangeiro", para ganhar a suficiente distância e sentir a tal "saudade" e perder-se no  "labirinto" de que fala o Eduardo Lourenço... Como eu e o V..., mais as nossas caras-metade, que uma noite de verão e de tempestade, já em finais de agosto ou talvez princípios de setembro, chegámos a um parque de campismo perto de Guernica / Gernika, e quando estávamos a montar a tenda, começámos a ouvir, no altifalante, a voz da Amália em a "Estranha Forma de Vida"... E, depois a seguir, o "Grândola, vila morena"... Hà emoções sentidas fora da nossa terra, que são indescritíveis e que nos marcam para sempre... Eu, pessoalmente,  que gostava da Amália q.b., passei a ouvi-la com emoção, desde que ela morreu...  Para o V..., a Amália era uma "reaça". E o fado uma "desgraça"...

− Morreu na Flandres, na I Grande Guerra.

− Quem,  o seu avô ?!

− Sim, o meu avô materno. Na Flandres. Teria 33 anos, a idade de Jesus Cristo quando foi crucificado.

− Ah!, a Flandres, o grande matadouro da Europa.

− O meu avô Ortiz… Sou de origem basca e francesa, pelo lado da minha mãe.

− Daí o apelido Ortiz, não ?!…E quando é que vocês vieram para Portugal ?

− A minha mãe e os irmãos vieram como refugiados de guerra… Fugidos da guerra civil espanhola.

− Em 1936 ?!...

− Não, já em meados de 1937, depois do bombardeamento de Gernika (com K).

E esclareceu a minha interlocutora:

− Claro, eu ainda não era nascida, nem os meus irmãos. A minha mãe teria então 24 anos…

− Pelo que vejo, Manuela, é uma história comprida, a da vossa família. Comprida e dramáticamente cumprida.

− E trágica, pode acrescentar. Pelo caminho ficaram alguns dos meus familiares, do lado materno, os Ortiz. Todos vítimas da guerra.

E depois de um curto silêncio, enquanto bebia o seu sumo, a Manuel repetiu enfaticamente:

− Vítimas da guerra, da violência, da intolerância, da estupidez humana…

− Sei do que fala, também eu fui obrigado a vestir uma farda, a pegar numa arma e a fazer uma guerra, a guerra colonial, na Guiné. Contra a minha consciência, contra os meus valores...

− Uma tia, a mana mais velha da minha mãe, morreu no antigo Congo Belga, por altura da independência, em 1960 ou 1961, já não posso precisar . Barbaramente assassinada, à catanada. (Catanada, é assim que se diz ?)... Era enfermeira numa missão católica.

Adiantou depois, a Manuela, que conhecera a tia quando ela veio de férias a Portugal. Teria então  os seus cinquenta anos, creio que nascera em 1908. Lembrava-se do ano, 1958, porque fora na altura da “campanha do Humberto Delgado para a presidência da República”. Mas a tragédia da família , que começara na Flandres, em 1918, não acabava aqui.

− O meu tio Ortiz, o único rapaz,  filho do meu avô,  já antes, em 1944, tinha sido morto num campo de concentração nazi. Aos 38 anos anos. Era o mais velho.

E depois confidenciou-me:

− Vou conhecer Berlim, é a minha primeira vez, acho que vou tirar uns dias de licença para poder viajar até à fronteira da Alemanha com a Polónia. Pode ser que eu descubra o sítio onde o meu tio Ortiz foi assassinado. Pelo menos quero conhecer Auschwitz. Vou ver se arranjo coragem para ir, pelo menos, até Auschwitz.

Uma colega alemã, de origem polaca, já tinha dado à Manuela umas dicas sobre a região e a localização de alguns dos antigos campos de concentração nazis, na Alemanha e na Polónia.

− O alemão não é o meu forte. Só sei uns rudimentos. Formei-me em línguas românicas. E, na realidade, nem  sei para onde foi enviado o meu tio. Como vocês dizem em Lisboa, não fiz o meu TPC, não tive tempo com a ida ao Porto.

2. A Manuela Ortiz Fernandes era, pois, neta do “soldado desconhecido”. Uma barragem de artilharia alemã – é fácil de imaginar − tê-lo-á apanhado a conduzir a sua ambulância quando evacuava feridos graves, perto da  linha da frente.

− A família nunca soube pormenores. Difícil de imaginar é o horror desta cena da morte do avô. Os seus restos mortais  nunca foram encontrados, o que de alguma modo adensa o mistério das circunstâncias da sua morte.

− Não repousam por isso – esclareci eu – em nenhum dos cemitérios militares da Flandres, com direito a lápide de pedra, placa com identificação (nome, posto e data da morte)… Nem à cruz dos cristãos.

O avô da Manuela, infelizmente, teria  ficado numa pilha de restos humanos, numa vala comum, no próprio campo de batalha… Pulverizado. Mas, a pior de todas ainda era a vala comum do esquecimento,  como é costume dizer-se a propósito dos  milhões de combatentes de todas as guerras da História. 

A Manuela pegou nesta minha observação, trivial, para ir buscar um exemplo ao seu passado em Portugal:

− Ah!, sim, infelizmente, no colégio de freiras, no Porto, onde eu andei, só se falava dos heróis, dos reis e dos generais, sobretudo como vencedores das nossas guerras. Fazia-me sempre confusão. Muito menos se falava da guerra do ultramar. Eu tinha 15 anos, ia fazer 16, quando rebentou a guerra de Angola. Ainda andava no 5º ano, e ainda estávamos chocados, lá em casa, com a morte da tia no Congo.

Em boa verdade, não se falava das guerras, não fossem as pobres criancinhas, suscetíveis, indefesas, ficaram para sempre traumatizadas… Os rapazes, esses, teriam a oportunidade, única, de conheceram uma guerra a cores e ao vivo, dentro de alguns anos, pensei eu... Em Angola, Guiné ou Moçambique...

− Não se esqueça – recordou-me ela – que eu ainda apanhei a “escolinha” do Estado Novo.

− Também eu, Manuela… E em boa verdade, ainda tenho saudades do bibe e do pião... Mas diga-me uma coisa: há fotos, ao menos, desse seu avô?

− Vi,  uma vez, uma foto dele, no dia em que terá sido promovido a sargento, presumo eu. Era um garboso militar do serviço de saúde. Bonitão, de bigode farfalhudo, como se usava na época. Era basco, do sul de França. Depois da tropa seguira a carreira militar.

E acrescentou:

− Havia uma outra foto, com os filhos e a mulher. A minha mãe, que devia ter dois anos, estava sentada ao seu colo. Ao lado, dos pais, cada um dos outros filhos, a irmã e o irmão da minha mãe, que eram mais velhos.  Deve ter sido tirada em 1913 ou 1914, pouco antes do início daquela maldita guerra.

− Esses filhos, a sua mãe e os seus irmãos, os seus tios,  o que lhes terá acontecido depois?

Tentando delicadamente, mas algo a  contragosto,  satisfazer a minha curiosidade intrusiva,  a Manuela disse-me que  só sabia, por alto, o que se tinha passado, no pós-guerra. Aos três irmãos, tendo ficado órfãos, e sendo menores, foi-lhes atribuído uma pensão de sangue do Ministério da Guerra.  Pôs-se, ao que  parece, a hipótese de serem “institucionalizados”: como filhos de militar falecido (ou desaparecido)  em combate, poderiam ser internados num orfanato. O mais velho teria 12 ou 13 anos. A mãe, essa, já estava internada num hospício. Mas em vez de irem parar a um orfanato, foram acolhidos por uma outra família basca, do outro lado da fronteira, que tinha sido poupada aos horrores da guerra.

− Como vim, mais tarde, a descobrir, as duas famílias ainda eram aparentadas, com um trisavô comum. Daí nos tratarmos por primos… 

E aproveitou para me dizer que dava muita importância aos “laços de sangue” e que esse seria um traço forte da cultura basca… O que não me convenceu, mesmo sabendo pouco ou nada da cultura basca:

− Mais do que aos laços de sangue, eu dou importância à língua, à partilha de afetos, às memórias, às vivências comuns… A sua mãe falava basco?

− Infelizmente, não. A minha mãe e os seus irmãos só falavam o francês e o espanhol. A minha avó materna não era basca, são as mães, no país basco (e em toda a parte, julgo eu) que transmitem a língua (materna) aos filhos.

− E depois o português, claro?!

− Ah!, sim, mas só mais tarde. Todos aprenderam o português, exceto o meu tio Ortiz que, esse, havia regressado a França, em 1936,  já homem feito, na altura do “Front Populaire”.  Em Bilbau, já era  um bom cozinheiro. Tirou depois um curso de “chef de cuisine”.

Sobrevoávamos já a França, quando ela me começou a falar, surpreendentemente com grande ternura, desse tio que ela nunca conhecera, a não ser de fotografia e das conversas, esparsas, com a mãe. 

Cozinheiro de profissão, militante comunista, membro da Resistência Francesa, o tio Ortiz teria sido preso,  em 1941,   logo a seguir ao armistício, numa cidade da Côte Azur pela milícia do Governo de Vichy, e mais tarde “miseravelmente” entregue à Gestapo. 

Terá passado primeiro pelo campo de Gurs, nos Pirinéus Atlânticos, originalmente criado pelos franceses para acolher os refugiados republicanos, espanhóis e internacionalistas, fugidos do terror franquista, e que, depois, com o governo de Vichy, fora transformado em campo de detenção para os membros da resistência francesa, judeus e outros… 

Uns meses a seguir, o tio Ortiz terá sido transferido, com outros detidos considerados perigosos (com destaque para os comunistas) para o campo de Royallieu, na comuna de Compiègne, a nordeste de Paris. E aqui perdeu-se o seu rastro. Sabe-se que mais de cinquenta mil presos  deste campo (incluindo judeus) foram depois deportados para campos de concentração e de extermínio fora da França: Auschwitz, Ravensbrück, Buchenwald, Dachau, Sachsenhausen, Mauthausen, Neuengamme… Qual deles terá sido a  "última morada" do tio Ortiz ?

− A Manuela, então, não sabe em qual deles morreu o tio…

− Infelizmente, não sei, ou ainda não sei. Quando quis voltar a falar com a minha mãe sobre o passado da família e o destino trágico dos seus dois irmãos, já ela estava mal, com idas frequentes ao IPO, no Porto. E em 1975, também não tínhamos cabeça para nada, muito menos  para recordar o passado. Eu ia fazer 30 anos, já estava a dar aulas como professora de  francês, e o verão quente de 75 também mexeu muito comigo. Houve saneamentos de pessoas, a política estava ao rubro, havia conflitualidade por todo o lado, nos quartéis, nas ruas, nas empresas, nos campos, nas escolas... 

− Foi um ano difícil para todos.

− A minha mãe, ainda lúcida, foi assaltada pelos fantasmas da guerra civil espanhol. Mas procurámos poupá-la, ocultando-lhe a situação social, politica e militar que se estava a viver, incluindo os problemas da empresa do pai… Morreu em paz, na véspera de Natal. E ficou sepultada na terra onde fora muito feliz.

− Se é que se pode morrer em paz – comentário meu, desastrado.

Procurei emendar, desviando o rumo da conversa e perguntando-lhe pela avó materna. Resposta algo evasiva e sobretudo seca e ríspida:

− Não sei nada dela. Pouco ou nada me contaram  sobre ela em criança. Era um assunto tabu na família.

A Manuela viria, mais tarde, a descobrir, pelo álbum da família e da pouca correspondência que se salvara, das andanças de terra em terra, que a avó francesa (ela disse-me o nome, que não fixei) enlouquecera na sequência do trágico desaparecimento do marido. Vestira-se de luto, como as mulheres dos pescadores da nossa costa, mas não acreditava  na sua morte. Tinha a secreta esperança que ele tivesse sido feito prisioneiro pelos alemães.  

– Morreria cedo, a avó, num manicómio. Mas, como disse,  não era de origem basca.

− Uma família destroçada – comentei eu.

− A minha mãe também morreria cedo, como já lhe contei. Em 1975, aos 63 anos, no Porto. De cancro da mama, doença que na altura era quase incurável. O meu pai ainda a quis mandar para Londres, mas os médicos desencorajaram-no. E ele, já com 78 anos,  também estava com pouca força anímica.

− A Manuela fala basco?

− Nunca falei. Nem a minha mãe. Como já expliquei, só o meu avô materno é que era basco,   Em Bilbau, comecei agora a aprender, já sou capaz de ler e compreender alguma coisa. Mas é uma língua tramada para os nossos ouvidos, indo-europeus. E, depois, verdadeiramente não me sinto basca. Sou muito mais portuguesa, e tripeira, se quiser... embora também goste de Lisboa, onde fiz o meu curso. A minha mãe, essa, sim, tinha as melhores recordações do país basco, da sua adolescência e juventude passadas na província de Biscaia, perto de Bilbau… O basco falava-se sobretudo nas zonas rurais e havia (e ainda há) vários dialectos.

– Mas tem material genético basco no seu ADN...

– Apenas uma pequena parte, nem sequer metade... E mesmo que fosse metade basca e metade portuguesa, o que é que isso queria significar?

– Nada!... Mas há a lotaria genética... Qual a metade boa, qual a metade má?

– Só me preocupo com os "defeitos de fabrico"... Olhe, por exemplo, o cancro da mama... Quanto ao resto, é puro racismo... Será que os bascos são mais "violentos" ou "truculentos" que os portugueses?

– Oh!, Manuela, não quis dizer isso nem sequer insinuar...

– A ETA não é um  fenómeno exclusivamente basco, nem eu me identifico com a violência revolucionária seja da ETA ou de qualquer outra organização nacionalista radical...

– Outros dirão terrorismo...

– Não entro por essas diferenças semânticas e conceptuais. Poupem-me! Violência é violência. Mas quem quis destruir a identidade, a cultura, a língua bascas ? Mais recentemente o Franco... que proibiu os bascos de falarem a sua língua e transmiti-la aos seus filhos... Mas no passado, os bascos também  foram discriminados, tal como outras minorias...

– Desculpe, Manuela, se  involuntariamente  a ofendi ou melindrei. Também temos. na nossa história comum, como portugueses, períodos de grande violência, físicq e simbólica.

– Pelo que sei de História (e sei pouco, confesso), Portugal está longe de ser o tal país de brandos costumes que a propaganda de Salazar contrapunha ao resto da Europa do seu tempo...  Embora a minha mãezinha estivesse grata ao Portugal de Salazar, diga-se de passagem...

A família que acolhera (e depois adotara, legalmente) a mãe da Manuela e os seus irmãos, no início dos anos 20,  teve meios de se refugiar em Portugal. Eram nacionalistas e republicanos, mas católicos, como muitos bascos. Beneficiaram das boas relações comerciais e até de  amizade que mantinham no Porto. Era gente com tradição no negócio do vinho, com filial no Porto. Gente de “classe média alta”, segundo a Manuela.

− Foram os nossos “avós”. Infelizmente já morreram. Regressaram, no final dos anos 50,  aos arredores de  Bilbau onde sempre tiveram a casa e a quinta, a “baserri”, que entretanto fora transmitida ao filho varão, o mais velho, o equivalente à figura do nosso morgado.  E que cuidou do património. Nunca saíra de Bilbau, apesar das grandes dificuldades do pós-guerra. Também nunca mais o vi, a esse meu primo, que fomos visitar uma vez, teria eu os meus 10 anos.

− Portugal  tornou-se assim  a terceira pátria da vossa família.

−Sim, a minha mãe conheceu aqui o meu pai, também ele negociante de vinhos, amigo dos meus avós adotivos… Na Praia da Granja, no início dos anos 40… Era quinze anos mais velho que a minha mãe. E daí a razão de eu ter nascido, em 1945, no Porto, já depois do fim da guerra. Sou filha do pós-guerra, faço sempre questão de o dizer. Mas, em contrapartida, o meu nascimento foi saudado com a bomba atómica de  Hiroshima e Nagasaqui, nasci  poucos dias depois, em agosto de 45.

O senhor Fernandes era um conceituado comerciante de vinhos e espirituosas, grossista, importador e exportador, da praça do Porto, com armazéns em Vila Nova de Gaia, na margem esquerda do rio Douro.

Sabia-se (alguns amigos mais íntimos e a família) que tinha uma ascendência cristã-nova, com raízes provavelmente na medieva comunidade judaica sefardita da cidade do Porto. A família deve ter tido, em finais do séc. XVII, problemas com a Inquisição,  razão por que se mudou, na totalidade ou em parte, para o Brasil onde prosperou. Alguns terão regressado com a corte de Dom João VI, em 1821.

O patriarca da família não tinha pretensões a títulos nobiliárquicos como o futuro apoiante da causa de D. Pedro IV e da sua filha Dona Maria II, o José Ferreira, que num dia será sido feito cavaleiro, no outro barão, e depois visconde, e por fim, conde... O conde Ferreira, o grande benemérito do nosso liberalismo.

Apesar de ter conhecido e até convivido, ao que parece,  com o capitão Barros Basto, o senhor Fernandes nunca se aproximou da comunidade israelita do Porto. Punha os seus negócios acima de outros interesses. Mas sempre foi um homem do seu tempo, “laico, republicano, liberal… e tolerante”.  Foi o retrato que me fez a sua filha, já depois de chegarmos a Berlim.

3. Mas quem era afinal a Manuela Ortiz Fernandes? 

Eu já conhecida de Lisboa, das “lides profissionais”. Se não erro, desde o ano da adesão de Portugal e da Espanha à CEE, a Comunidade Económica Europeia. Ainda não havia a União Europeia nem o euro. Estamos a falar de 1986.

O meio profissional ligado à saúde e segurança no trabalho (ainda se dizia por cá “higiene e segurança no trabalho”, por um lado, e “medicina do trabalho”, por outro…) era então pequeno e toda a gente se conhecia, daqui ou de acolá (ministério do trabalho, que tutelava a área, empresas, médicos do trabalho, técnicos de higiene e segurança, Escola Nacional de Saúde Pública, etc.).

Devo ter conhecido a Manuela nalgum encontro ou fórum internacional. Sei que ela na altura trabalhava em Barcelona, e estava cá com uma representação catalã. E ficámos em contacto. Reencontrávamo-nos agora, no aeroporto a caminho de Berlim, uns anos depois da queda do muro e da reunificação da Alemanha. Continuávamos a tratarmo-nos por você. Sentia que ela gostava de guardar alguma distância e, como toda a gente, tinha as suas defesas. Mas era uma pessoa agradável, uma boa companhia sobretudo quando se está no estrangeiro, por uns dias, em trabalho.

Estávamos os dois a participar numa conferência internacional sobre saúde e segurança no trabalho (“health and safety at work”). Eu, como académico, ela como tradutora-intérprete da Agência Europeia de Segurança e Saúde no Trabalho, com sede em Bilbao, criada em 1994, responsável pelo evento em parceria com a autoridade alemã para as condições de trabalho, se bem recordo.

Por sorte, estávamos alojados no mesmo hotel, de três estrelas, confortável, barato, e com bons acessos, perto da estação de metro que nos levava ao centro de conferências onde se realizava o nosso encontro.

O edifício, embora totalmente remodelado, ainda tinha traços da arquitetura “estalinista” do pós-guerra. A zona oriental de Berlim ainda era um mundo à parte, embora já sem o muro (ou com apenas alguns restos dele, todos grafitados). Era muito procurada pelos turistas, até porque os preços da hotelaria e restauração eram mais baixos do que do “outro lado”, ocidental… E depois ainda era um “museu vivo” da antiga RDA – República Democrática Alemã…

Para a Manuela e para mim,  era uma sensação estranha: o muro estivera de pé entre 1961 e 1989, dividindo não só os berlinenses e os alemães, como os próprios europeus. Era o “muro da vergonha” de todos nós, europeus, e não só dos alemães...

Se é verdade que a reunificação da Alemanha, há sete anos atrás, em 1990, marcara o fim da chamada guerra fria (opondo a União Soviética aos seus antigos aliados ocidentais da II Guerra Mundial), demo-nos conta, já em 1997, que infelizmente outros muros, invisíveis (ou menos visíveis a olho nu), se estavam a erguer na nossa velha e adorada Europa de então. E que a Rússia afinal era um urso ferido e humilhado, o que não era bom para ninguém, a começar pelos europeus, tanto do leste como do oeste.

A decadência urbanística ainda era evidente. Mas Berlim já era então um estaleiro de obras públicas, estava em marcha a segunda reconstrução da cidade, depois da terrível destruição da II Guerra Mundial. (Quem não se lembra do filme "Alemanha, Ano Zero", de Roberto Rosselinni, de 1948?)

Ainda era verão, mas as noites de Berlim não convidavam a grandes passeatas à noite. Depois do jantar, ficávamos à conversa sempre que não havia “programa social”, e tínhamos o tempo por nossa conta. Já tínhamos feito um “city tour” pela Berlim leste, e "canibalizado" um bocadinho do muro como "recuerdo", como toda a gente fazia.

Havia mais três ou quatro portugueses, participantes no encontro, representando a administração do trabalho e os parceiros sociais, mais um ou outro médico do trabalho. Mas estavam alojados noutro hotel, dos selecionados pela organização, e que ficava no mesmo quarteirão, não longe do nosso.

Na época a Manuela ainda fumava muito, e queixava-se que o tabaco prejudicava o seu desempenho profissional: às vezes ficava rouca, ou com tosse, e até sem voz.

− Queria muito poder deixar de fumar – confidenciou-me ela, a mim, ex-fumador, mas tolerante.

Na época havia uma “cruzada fundamentalista” contra o tabaco e os tabagistas. A Manuela ficava “piursa” (sic) quando tinha que ouvir o discurso dos nórdicos (a que os latinos ainda faziam orelhas moucas)… O "fascismo sanitário", dizia ela, começara nos EUA e nos países nórdicos...

Mas foi a propósito da história da família que retomámos a nossa já longa conversa sobre o tio Ortiz, inacabada, quando o avião aterrara.

Ela própria reconhecia que era “muito conversadeira”, saindo nisso à mãe. Por outro lado, aos seus olhos, eu teria a qualidade de ser uma boa companhia, senão mesmo um discreto confidente. Além disso, “sabia ouvir”, sem estar sempre a interromper, com perguntas ou apartes. Muito menos fazia críticas ou juízos de valor. E sobretudo inspirava-lhe confiança. E nada como o “hall” de um hotel estrangeiro, convidativo ao “dolce far niente”, à conversa mole e também à má língua… sobre colegas, organizações e países.

−Auschwitz?... Poucos alemães lá devem ter ido. Havia o muro da vergonha, mas também antes os campos da vergonha – atalhei eu.

− É como o Vale de los Caídos, em Espanha, onde tiveram a lata de sepultar o Franco. Recuso-me terminantemente a lá ir.

−Manuela,eu também não... Mas como vamos explicar aos nossos filhos e netos toda esta barbárie do nosso século?

Da sua vida privada, nunca me falou ou só muito por alto. Tinha mais dois irmãos, sendo ela a mais velha. Do do meio, disse-me que não lhe apetecia sequer falar. Saíra do país antes de fazer os 18 anos, para escapar à tropa. Radicara-se em Andorra onde tinha um “hotel de charme”. Empresário, diretor turístico, pouco ou nada queria saber da família e de Portugal. Antes do 25 de Abril não podia sequer lá pôr os pés, sendo considerado faltoso ou refractário. O mais novo, esse, ficara à frente dos negócios do clã, para descanso e tranquilidade do velho pai que não queria ver morrer a empresa da família.

Ela, por sua vez, saíra de Portugal em 1976, no final do ano lectivo.

− Não gostei do rumo político que tomou a revolução dos cravos… Também achei que fora um sonho lindo que acabara como todas as utopias… E cada um queria ver realizada a sua!... E muito menos gostei da minha curta e frustrante experiência de professora de francês. Na minha escola havia quase tantos grupúsculos políticos quantos os professores...

Foi para Barcelona onde fez um curso de pós-gradução de tradutora-intérprete. E arranjou a seguir trabalho como tradutora. Poliglota, falava fluentemente ou lia quase todas as principais línguas latinas ou românicas (o castelhano, o catalão, o francês, o português, exceto o romeno). Não desgostava do que fazia, embora não morresse de amores pela área da saúde e segurança no trabalho. E viajava, que era uma coisa que lhe agradava. E sobretudo não ganhava mal (“ganhava muito mais do que em Portugal”). Nunca soube se tinha filhos, relacionamentos, etc. Nem ela alguma vez me perguntou pela minha família. Era uma mulher atraente-

4. Só uns dois ou três anos mais tarde, no virar do século, é que a Manuela me contou o desfecho da história (trágica) do tio Ortiz. Desta vez, fora em Bilbau, quando nos voltámos a encontrar. Já existia o Museu Guggenheim e a cidade já nada tinha a ver com a decadência urbana e industrial  que eu conhecera em 1981, quando a visitara pela primeira vez.

− Ah!,  sim, Berlim, 1997 ! − recordou ela.

E eu comecei por ficar feliz ao ver que ela tinha deixado de fumar... 

Afinal não fora na Polónia  nem na fronteira da Alemanha com a Polónia, como ela imaginara:

− O meu tio Ortiz morreu em Dachau.

− Em Dachau?!

− Sim, em Dachau, na Baviera, no sul da Alemanha, a escassos quilómetros de Munique...

Acabou por saber, mais tarde, de fonte francesa, que o tio Ortiz fora levado de Royallieu para Dachau. Por incrível que possa parecer, os SS (Schutzstaffel) que administravam o campo, c0nstruído pelos nazis para internar presos políticos e inaugurado pelo próprio Heinrich Himmler, em 1933, aproveitaram as competências profissionais do tio Ortiz. Por sorte ou por azar dele, puseram-no a cozinhar para os carrascos. Por sorte, porque foi poupado aos duros e infames trabalhos que eram reservados aos prisioneiros; por azar, porque não podia cometer erros. Nunca lhe poderia, por exemplo, passar pela cabeça envenenar a comida: ele era o primeiro a ter que a provar...

Ganhara as boas graças dos carrascos, que até o tratavam, à francesa, por "chef", em tom de chalaça, com um toque do humor, alarve, bávaro.

− No inferno, a cozinha é inglesa, a gestão italiana e o humor alemão... Nunca ouviu dizer? − perguntei eu à Manuela. − É uma variante da anedota  que os idiotas dos europeus contam uns sobre os outros...

Havia várias células, clandestinas, da resistência francesa em Dachau.  O tio Ortiz fazia parte  de uma. E, depois de ganha a confiança dos SS, começou a guardar as sobras das refeições  e reparti-las pelos seus camaradas que por sua vez também as faziam chegar aos mais fracos e doentes.

− A imaginação, a capacidade de resistência e  abnegação do ser humano, mesmo em situações-limite como a guerra, a prisão, o campo de concentração, o terminal da morte, levam-me a pensar que às vezes nós, homens, que nunca seremos seremos deuses, também somos capazes de nos transcender e atingir, mesmo que por breves instantes, o estatuto do herói grego...

E conclui o meu pensamento:

−  O seu tio Ortiz foi um herói.

O esquema funcionou até meados de 1944. Quando foi descoberto (ou denunciado?), o tio Ortiz foi sentenciada com a pena capital, sem apelo nem agravo, pelo comandante do campo. Foi executado no dia seguinte para exemplo dos outros presos. Deram-lhe apenas a escolher (!)... entre a forca e o fuzilamento.

− Resistiu até ao fim, no limite das suas forças, da sua inteligência, da sua coragem. E, apesar da tortura, não terá denunciado ninguém... Morreu com grande dignidade, como poucos, gritando perante o pelotão de fuzilamento: Vive la liberté, l'égalité et la fraternité!... Vive la... France! [Viva a liberdade, a igualdade e a fraternidade!... Viva a... França!]

E, emocionada, a Manuela concluiu:

− Tenho orgulho no meu tio Ortiz!

[Por razões óbvias, o nome da minha interlocutora, que ainda está viva,  é fictício. LG]

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Nota do editor:

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23481: A nossa guerra em números (20): Meios e operações da FAP - Parte II: Armamento das aeronaves: o papel da OGMA e outras empresas portuguesas


Guiné > Região de Gabu > Nova Lamego > c. 1972/74 > A avioneta Dornier  DO-27 que o ex-ten pilav António Martins de Matos (BA 12, Bissalanca, 1972/74) (nome de guerra, "Batata") também pilotou muitas vezes, sobretudo no primeiro ano da comissão. 
A Alemanha forneceu à FAP  147 avionetas Dornier DO-27, ao abrigo do acordo da Base Aérea de Beja. Algumas eram novas, outras usadas, todas as revisões foram feitas na OGMA. 

Foto (e legenda): © António Martins de Matos (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Devido ao boicote internacional (e às pressões políticas dos nossos aliados da NATO, a par das proibições dos EUA no que dizia respeito ao uso de certas aeronaves como, por exemplo, o F-86, cedidos no âmbito do Programa de Assistência Militar), não foi fácil garantir o armamento e as munições necessárias aos helicópteros e aviões da FAP durante a guerra do ultramar / guerra de África / guerra colonial. 

A nossa indústria de guerra  teve de encontrar "soluções criativas" (sic), tendo chegado a usar "munições de artilharia do exército, para fabricar bombas para os aviões" (Pedro Marquês de Sousa, "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pág. 229).

Segundo esta fonte, uma das bombas mais usadas terá sido a bomba de fragmentação FR M/62, de 20 kg., adaptada da granada da peça de artilharia 11,4 cm, britânica.

"Na fábrica de Barcarena, foram retiradas as cargas explosivas dessas granadas de artilharia para serem adaptadas na empresa Precix e serem novamente  carregadas em Barcarena" (ibidem, pág. 229). 

O mesmo terá acontecido, mas com outras empresas ligadas à indústria da defesa,  com as bombas FG M761, de 50 kg, FR M/64, de 200 kg, e ainda as bombas incendiárias IN M/65, de 100 litros. A Precix, uma empresa metalúrgica,  especializou-se também no fabrico de espoletas.


2. No que diz respeito ao armamento, usado pela FAP, é de destacar o canhão  MG-151, de 20 mm,  que equipava os AL III (helicanhão ou "Lobo Mau").  

Foram também utilizadas metralhadoras Browning, de calibre 7,7 mm e 12,7 mm, bombas gerais e de fragmentação de 500 libras e de 750 libras, e de 15, 50 ou 200 kg; foguetes FFAR 2,75, SNEB 37 mm, etc.. Tratava-se de adaptações da indústria nacional. 

As munições de 20 cm para o helicanhão eram as únicas que se adquiriam, diretamente aos fabricantes estrangeiros, usando os circuitos normais do mercado.

A OGMA (Oficinas Gerais de Material Aeronáutico), com instalações em Alverca, fez milagres nesta época. 

Foi a OGMA que fez "as grandes adaptações nacionais para a guerra em África" (Ibidem, pág. 231):  podiam-se citar, a título meramente exemplificativo:

  • os aviões Harpoon (P2V5 Neptune), aviões de luta antissubmarina, transformados logo em 1961 em  bombardeiros adaptados às condições dos trópicos; 
  • os T-6 G Texan (um avião monomotor, originalmemte de treino e instrução), provenientes de várias origens (EUA, França, RFA, África do Sul); 
  • os sete aviões B-26 Invader, comprados clandestinamente e usados em Angola e na Guiné;
  • os 147 aviões ligeiros Auster fabricados sob autorização da empresa inglesa, e dos quais 60 foram  atribuídos à FAP e enviados para o ultramar.

A Alemanha também forneceu 147 avionetas Dornier DO-27, "ao abrigo do acordo da Base Aérea de Beja". Algumas eram novas, outras usadas, todas as revisões foram feitas na OGMA. 

Estas avionetas tiveram um papel fundamental durante a guerra de África, devido à sua flexibilidade e capacidade para operar em pistas de mato,  improvisadas.  Tiveram papel fundamental em missões como o transporte de correio, frescos epassageiros, a  evacução de feridos, a observação e ligação, etc.).

Os aviões de transporte mais usados foram o C-47 Dakota e o Nordatlas, também de diferentes origens e fornecedores. 

Já os helicópteros (AL II, AL III e SA-330 Puma) eram todos de origem francesa. Entre 1963 e 1975, a FAP adquiriu 142 Alouettes III e,  entre 1969 e 1971,  13 Pumas. (Ibidem, pág. 232).

Nem a Fábrica da Pólvora da Barcarena, nem a Fábrica Braço de Prata nem a empresa metalúrgica Precix existem hoje... Resta a OGMA, ciada em 1918, e agora integrada no grupo brasileiro Embraer.

Ainda quanto a armamento, refira-se ainda o de mais três, a par do heli AL III,  das aeronaves que conhecemos bem no TO da Guiné:

  • T-6 Harvard2 + 2 metradlhadoras Btrowning 7,7 mm | foguetes 37 mm e 68 mm | lança-granada m/64 | bombas de 15 kg,, 50 kg e inendiárias de 80 kg / 100 l e 300 kg / 350 l;
  •  Fiat G-91: metradlhadoras Btrowning 12,7 mm | foguetes 75'' | bombas de 50 kg, FR 200 kg, 250 lbs, 500 lbs e 750 lbs;
  • Dornier DO 27: foguetes 37 mm | foguetes fumígenos 70 mm / 27 | Fitting L19 (Ibidem, pp. 232/233)

3. Resumem-se aqui, por anos, algumas das principais aquisições de aeronaves pela FAP, entre 1960 e 1974 (entre parênteses, a quantidade) 

  • 1960 - Nordatlas (8);
  • 1961 - T-6 G Texan (56) (+ 130,  mais tarde) | Dakota (8) (+15, mais tarde) | Nordatlas (6)| Auster (ligeiro) (99) | Dornier DO 27 (133) ( + 14,  mais tarde) | Douglas D-6 (transporte) (10) (...);
  • 1962 - Nordatlas (3);
  • 1963 - Helicópteros AL III (142)  entre 1963 e 1975) | Cessna T-37 (instrução) (30);
  • 1965 - T-6 (74) | B-26 Invader (7) | Nordatlas (14) (entre 1965 e 1970);
  • 1966 - Fiat G-91 (caça) (40) | Douglas B-26 (bombardeiro) (7);
  • 1969/71 - Helicóptero SA-330 Puma (13);
  • 1970 - T-6 (69);
  • 1971 - Boeing 707 - 3F5C (transporte, TAM) (2). 

Fonte: Ibidem, pág. 233.

Esperemos que os camaradas da FAP possam acrescentar algo mais sobre esta matéria (ou corrigir o que está escrito, se for caso disso).

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Nota do editor:

Último poste da série > 26 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23462: A nossa guerra em números (19): Meios e operações da FAP - Parte I: número e tipo de aeronaves: helicópteros, aviões de combate, de transporte e outros

Guiné 61/74 - P23480: Nota de leitura (1470): Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É bem interessante o contexto histórico em que ocorreu a definição das fronteiras da Guiné. A presença portuguesa era praticamente inexpressiva, a diplomacia portuguesa queria o apoio de Paris para reconhecer a legitimidade dos nossos interesses nos territórios entre Angola e Moçambique. Foi dolorosa a perda do Casamansa, nem os comerciantes nem os autóctones desejaram o domínio francês, e ninguém na época ia supor que todo o Casamansa seria um pomo de discórdia quando se fundou o Senegal. Já aqui se divulgaram as notas de um brioso oficial da Marinha que foi até à região de Cacine e Kandiafará, nesta região havia mercado e não havia autoridades portuguesas. O artigo de Armando Tavares da Silva, que anda muito próximo do conteúdo do seu livro "A presença portuguesa na Guiné", descreve todas as peripécias que levarão à fixação das fronteiras, fazendo ver a todos esses apóstolos de hoje que batem a mão no peito sobre a nossa presença de cinco séculos a grande ilusão que se montou para se falar numa Guiné onde mal existiu o sopro de um verdadeiro colonialismo.

Um abraço do
Mário



Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Armando Tavares da Silva, autor do livro "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, assina no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa aqui referido, o artigo A fixação das fronteiras da Guiné pela Convenção Luso-Francesa, texto que acompanha com grande proximidade o que ele publica no seu livro entre as páginas 127 e 148. Tratando-se de matéria de elevado interesse histórico, intenta-se um resumo das várias questões tratadas, visto que a partir de maio de 1886 houve em definitivo a definição de um território que até então conhecera inúmeras designações e de que se desconheciam todos os contornos.

A questão ganha premência com a crescente presença francesa na região do Casamansa, a Norte, e na região de Compony, a Sul, os franceses queriam alargar os seus domínios, não estavam satisfeitos em ficar à entrada do rio Casamansa, e queriam fazer recuar a presença portuguesa para lá de Cacine. Quem representava os interesses portugueses agia lentamente, num vai-e-vem de exposições e respostas diplomáticas que só nos prejudicava. Honório Pereira Barreto assistia ao perigo crescente e informou o Governador de Cabo Verde em maio de 1837. Novo vai-e-vem diplomático, a França invocava razões históricas para ali estar. É então que o visconde da Carreira se dirige ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da França com as nossas provas históricas, dando ênfase à Crónica da Conquista da Guiné, de Zurara.

Armando Tavares da Silva repertoria um conjunto de incidentes na região do Casamansa, ora tira ora põe bandeira portuguesa ou francesa, caso dos incidentes de Adiana e Sindão. Recorde-se que a região Sul também estava sob cobiça, os franceses pretendiam comprimir a presença portuguesa para cima do rio Cacine, resta dizer que a presença de autoridades portuguesas era nula na região.

Depois de várias pressões da diplomacia francesa, e tendo já terminado a Conferência de Berlim, o governo de Paris manifesta disposição para negociar fronteiras não só na Senegâmbia como também sobre o litoral do Congo. O governo de Lisboa tenta separar a questão do Casamansa e de Cacine com a pretensão francesa da posse do território de Massabi. Certo e seguro, as negociações entre Portugal e a França irão ter lugar em 1885, a França insiste então não nos seus direitos históricos e utiliza uma expressão subtil: “em nós penetra a ideia que a solução para ser prática deve ser procurada mais nos factos do que nos arquivos”, evitando-se complicar a obtenção do acordo “por discussões onde cada um se acharia a produzir títulos históricos sem que eles possam conduzir a comissão a qualquer conclusão, uma vez que nós não teríamos qualidade para concluir, o que é desde já uma razão para os pôr de parte”.

Seguem-se propostas e contrapropostas, a diplomacia portuguesa dá sinais de transigência quanto às fronteiras da Guiné desde que se retire qualquer reivindicação francesa sobre o Massabi. E chega-se a uma sessão em 11 de janeiro de 1886 em que a questão dos rios Cacine e Compony vem à baila, a França não esconde que pretende um recuo da fronteira da possessão portuguesa para lá de Cacine, está muito interessada em conservar a posse da ilha Tristão na embocadura do Compony.

O governo de Lisboa, e continuamos em janeiro de 1886, declara abertamente que não pode aceitar o abandono dos territórios na margem esquerda do Massabi (ou Loema). No mês seguinte, a França insiste na posse da margem esquerda do Loema. Depois de algumas vicissitudes, entre elas a queda do governo de Lisboa, Portugal sacrifica o seu direito histórico no Casamansa e no rio Nuno. O político Barros Gomes escreve: “Para nenhuma das regiões além-mar poderia Portugal ostentar melhores títulos de posse do que para as regiões banhadas pelo Casamansa. Descoberta, conquista, ocupação efetiva, tratados celebrados com os potentados indígenas, convénios diplomáticos com as nações da Europa, remontando alguns ao século XV, tudo quanto pode constituir um direito e justificar a soberania, tudo pode ser alegado em favor do domínio de Portugal naqueles territórios, tudo tende a acentuar o sacrifício consumado com o seu abandono".

Perdia-se o Casamansa, lutava-se por uma fronteira mais folgada no Sul. A França deixa de insistir na sua presença no Massabi. E assim se chega ao projeto de convenção apresentado pela França, onde esta faz o reconhecimento do direito de Portugal exercer a sua influência nos territórios que separavam as possessões portuguesas de Angola e Moçambique, era uma vaga e inconsequente declaração formal, não terá qualquer peso face ao Ultimato. Durante as negociações, Portugal pretendeu que se mencionassem os limites dos territórios entre Angola e Moçambique, a França opôs-se liminarmente, fez reconhecimento “sob reserva dos direitos anteriormente adquiridos por outras potências”. A Convenção Luso-Francesa foi aprovada na Câmara dos Deputados a 2 de julho de 1887 e aprovada na Câmara dos Pares a 18 seguinte.

Em 25 de agosto de 1887 a Convenção foi assinada pelo rei D. Luís. Armando Tavares da Silva regista a extensa apreciação que a comissão de negócios externos da Câmara fez do projeto de lei, dava-se como as cedências no Casamansa compensadas tanto pelo rio Cacine como pelo reconhecimento que a França fazia de quase todo o território do Massabi e o da zona de exploração entre a província de Angola e Moçambique: “O rio Cacine e os territórios de uma e outra margem foram com efeito uma cessão a troca de outra, porque, embora as nossas descobertas e as nossas pretensões a domínio se estendessem ainda mais para o Sul, é certo que a posse efetiva pertencia à França”.

Estavam consumadas as fronteiras. Segue-se um período de tentativas de ocupação que só serão coroadas de êxito com as campanhas de Teixeira Pinto, é a partir daí que a administração portuguesa, de forma mínima, se irá internando até ao Gabú, descendo à península de Cacine e ao arquipélago dos Bijagós, finalmente submetido em 1936, com a capitulação do régulo de Canhambaque.

Monumento alusivo às campanhas do Canhambaque, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra "Bijagós, Património Arquitetónico", Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23470: Nota de leitura (1469): Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (Mário Beja Santos)