Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > 2005 > "No Saltinho, as bajudas continuam lindas, ontem, como hoje", escreveu o José Teixeira, quando lá voltou em Abril de 2005. Mas esta é (ou era, no nosso tempo) também uma região palúdica, devido à existência de rios e charcos de água, acrescenta o nosso David Guimarães, vítima do paludismo, como quase todos nós...
Foto: © José Teixeira (2005).Todos os direitos reseravdos
1. Texto do David Guimarães (ex-fur mul, at inf, minas e armadilhas, da CART 2716,
Xitole, 1970/1972), um dos primeiros camaradas a aparecer, a dar cara, a escrever no nosso blogue, nos idos anos de 2005. O primeiro poste que temos dele é de
17 de maio de 2005, e era o nº 20 (Foi você que pediu uma Kalash ?). Este que reproduzimos a seguir foi o 480 (*). É mais uma das suas estórias do Xitole, escritas no seu português castiço, e que retratam bem o quotidiano de um operacional de uma unidade de quadrícula (**).
Nós sabemos o que era uma coluna logística, uma operação de reabastecimento, mas outros nem calculam o que seja... O vai haver coluna já era uma grande chatice... Andar até ao Jagarajá, à
Ponte do Rio Jagarajá, a pé e a picar, não era pera doce... E depois? Se acaso acontecia mais algo a seguir?
Claro que não vou explicar o que é picar - não será necessário, antes fosse... O picar na tabanca era bem melhor, maravilha mesmo... Agora picar aquela estrada toda até ao Jagarajá, porra, que grande merda!... Na tabanca sempre era melhor, era pelo menos algo bem diferente do que ir a servir de rebenta minas...
Pois é, a grande operação, a saída da rotina. Depois havia que manter a guarda de manhã até à noite... É que, quando a coluna vinha para o Xitole, então também se ia ao Saltinho. Ufa, que grande merda, mas tinha que ser...
O Quaresma, o Santos e eu vivíamos os três na altura no mesmo apartamento do Xitole - um à esquerda, outro à direita e eu ao centro... Sempre simples e amigo da brincadeira, eu via os dois desgraçados com uma camada de paludismo a vomitarem e eu lá no meio a acalmá-los:
- Vocês são uns merdas, não valem nada... Pois, não fazem o que eu digo!.. Apanham isto por que não bebem. Quem bebe bem, safa-se!
E eles, coitados, riam e choravam ao mesmo tempo, e seguir lá vomitavam o que não tinham no estômago. O paludismo era assim... Bem, lá me levantava eu de manhã e lá ficavam eles na cama... Eles já tinham o cu como um crivo, só das injecções.
- Porra!, - dizia eu - quem dera nunca me dê esta merda...
Bem, mas eles melhoravam e eu estava bom, antes assim. São meus amigos, faço-lhes companhia e trago-lhes o correio... É verdade e lá parto de manhã, um belo dia, para a dita operação de segurança à coluna que vinha de Bambadinca...
- Ai, que bom não ser eu a picar, ainda bem!
Nos revezávamo-nos entre os três grupos de combate em cada coluna: ia um até ao Jagarajá, outro ficava no ponto intermédio e o outro adiante da Ponte dos Fulas, aquela ponte a 3 Km do Xitole onde estava sempre um grupo de combate. Esse limitava-se a ver passar o comboio... e a tomar conta da ponte, claro...
Bem, lá fomos nós por ali adiante, os três grupos, o meu no meio. Eu, como sempre levei duas Fantas -cerveja só no Xitole - enfim uma ou outra coisita da ração de reserva e doces, nem vê-los... É que aquelas geleias e coisas mais doces da ração atraía a nós uns mosquitos chatos e sobretudo umas formigas que ferravam e não nos largavam. Quantas vezes tivemos que as tirar das zonas púbicas - que bem que está a falar um ex-militar!... Quantas vezes tivemos que arrear as calças, para essa aflitiva operação!... Mas essa era outra guerra, paralela à coluna...
Lá progredimos e começámos a instalarmo-nos, ao lado da estrada, metidos uns 20 a 30 metros dentro do mato... Depois ali era esperar, esperar que os motores se começassem a ouvir e as viaturas a surgir, envoltas em nuvens de poeira:
- Aí vem a coluna!...
Já tínhamos morto umas centenas de moscas pequeninas que vinham fazer cócegas onde havia mais suor. O pulso era um dos seus alvos preferidos, mesmo na zona da correia do relógio...
Uma vez instalado, eis que me deu sede... Bebi uma Fanta, quase de um só gole. Ao mesmo tempo deu-me um frio danado, vomitei a bebida de imediato e tiveram que me cobrir com um camuflado. Comecei a tremer como varas verdes - não, dessa vez não era com medo, era com frio, arrepios de frio, no meio de um calor do caraças... Tive ainda forças para dizer:
- Lopes (era um cabo da minha secção), comande esta merda e meta-me na primeira viatura que aparecer... Estou com paludismo...
Porra, que eu nem forças tinha para me pôr de pé. Lá vim para a estrada, apoiado no cabo, até que enfim se ouve o trabalhar dos motores, as viaturas das colunas... O cabo mete-me na primeira...
- Sobe, diz o oficial.
Guiné > Zona Leste >Ector L1 >Xitole > 1970 > A coluna logística mensal de Bambadinca chega ao Xitole... Em cima da Daimler, ao centro o alferes miliciano de cavalaria Vacas de Carvalho, comandante do pelotão Pel Rec Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/71); à sua direita, o furrriel miliciano Reis, da CCAÇ 12, à sua esquerda o furriel miliciano enfermeiro Godinho, da CCS do BART 2917, mais o furriel miliciano Roda, da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados
E lá fui eu a tremer até ao Xitole, a bordo o de uma viatura... de Cavalaria, a autometralhadora Daimler do Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler... Esse mesmo, o da fotografia, espero que não tenha sido nesse dia mesmo que eu fiquei doente; julgo que na altura lhe agradeci a boleia, mas se o não fiz, devido ao estado febril em que eu me encontrava, ainda vou a tempo, trinta e seis anos depois:
- Obrigado, meu alferes! Foi a melhor boleia, a mais oportuna, a mais rápida, que eu apanhei na puta da vida! Mesmo à justa!...
Bom, o resto da estória é fácil de imaginar: enfermaria, uns comprimidos e cama - uma semana de baixa!... Ai que bom, nem precisei de injecções... Aí naquele quarto de hotel de cinco estrelas, o que o Santos e o Quaresma - falecido pouco depois, uma história negra que hei-de aqui contar - me disseram!
- Então, seu caralho, tu é que eras o bom!...
- Por favor, deixem-me em paz! - pedia-lhes eu...
A guerra naquela zona sempre foi tremendamente difícil. Sei que o Xitole era das zonas da Guiné que mais problemas tinha com o caraças do paludismo: tínhamos muito charcos de água e dois rios bem perto, o Corubal e o Poulom, aquele da ponte dos Fulas... Chegámos a ter muita gente acamada ao mesmo tempo e não dávamos descanso à enfermaria...
Como estão a ver na guerra apanhava-se de tudo: boleias de Daimler, picadas de formigas, moscas e mosquitos, paludismo, além da porrada... Em matéria de picadas, também as fiz, picadas à pista de aviação de Bambadinca... Mas isso é outra estória, que fica para uma próxima...