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terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Guiné 61/74 - P21839: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (2): "Pira desenfiado"; "A praxe" e "Os Ray-Ban"


1. Recomeçamos hoje a publicação das Memórias do nosso camarada José João Domingos (ex-Fur Mil At Inf da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516 (Colibuía, Ilondé e Canquelifá, 1973/74), interrompidas em 2015, e reenviadas ao Blogue em mensagem do dia 29 de Janeiro de 2021.
Trata-se de uma série de curtas estórias que culminam com a independência da Guiné.



4 - PIRA DESENFIADO

Saídos de Bolama, aportámos a Buba com destino a Aldeia Formosa (Quebo). A coluna partiu pela picada de ligação que estava em péssimo estado pois corria a época das chuvas. Após largas horas de caminho, chegámos a Mampatá onde demorámos pouco tempo para deixar o que era para lá ficar e também alguém que não era para ficar.

Evoluindo para Aldeia, que era relativamente perto, ninguém se apercebeu que faltava um soldado da CCS, cuja especialidade não recordo, mas cuja silhueta a esta distância me lembra um jovem alto, magro, sempre com um livro ou caderno debaixo do braço e um semblante ausente.
Após a chegada ao aquartelamento, onde habitava o BCAÇ 4513, alguém deu pela sua ausência e, após uma rápida inspeção ao pessoal, concluiu-se que teria ficado em Mampatá.

Pôs-se a hipótese de ir uma viatura buscá-lo a Mampatá mas, confesso, não me recordo se chegou a partir e o encontrou no caminho ou se, entretanto, ele teria chegado ao quartel pelos seus pés.
Nunca mais o vi e chegou-me aos ouvidos que teria sido evacuado para a Metrópole.

Esperteza? Talvez. Mas, do que não tenho dúvida é que bastava olhar para ele para se perceber que não devia estar ali.

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5 - A PRAXE

A primeira noite que passamos em Aldeia Formosa foi difícil em termos logísticos pois, além de estarmos a ração de combate, dormimos 11 furriéis num pequeno quarto deitados em colchões de ar,  que em poucas horas ficavam vazios, após uma cansativa viagem desde Bolama.

Cansados e famintos, deitámo-nos, vestidos, no nosso canto. Pouco passava das 23 horas apareceu um camarada do Batalhão residente, também furriel, com a finalidade de aplicar uma praxe aos periquitos que consistia, grosso modo, numa chuveirada. O pessoal, chateado, não achou piada à situação mas o cavalheiro argumentava que era tradição e o enfermeiro, chegado dias antes, já tinha sido submetido à tal praxe o qual, aliás, confirmou.

A coisa estava a azedar e, alguns berros depois, o dito cujo meteu a viola no saco e foi praxar para outro lado.

O que ele não percebeu é que a sorte dele e o azar do enfermeiro foi este ter chegado antes e sozinho.


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6 - OS RAY-BAN

Estava o BCAÇ 4516 estacionado na zona de Aldeia Formosa, em sobreposição com o BCAÇ 4513, quando foi convocado para uma operação de 4 dias, com o nome de código “Operação Pertinente”, juntamente com outras forças, com o objetivo de chegar ao Unal que era área frequentada pelo inimigo (IN).

A deslocação fez-se de véspera para Buba e, aí chegados, a ração de combate, dormimos pelos cantos nessa noite.

Dos locais onde passei Buba constituía para mim o ideal para fazer o serviço militar na Guiné: bons banhos e peixe fresco. Como invejava aqueles camaradas.

A meio da manhã iniciou-se a operação com a presença do oficial de operações do meu Batalhão, protegendo os olhos do sol por uns óculos Ray-Ban, dando palpites sobre a deslocação do pessoal que foi feita de viatura até ao ponto de entrada na mata.

Quando o pessoal se apercebeu de que o solista ficava a banhos em Buba, começou a “cuspir fininho” de dentro das viaturas e a coisa tornou-se desagradável mas o homem fez-se de desentendido.

Creio que foi por aí que ouvi (ou disse) pela primeira vez: “vai para o mato, malandro!”


Textos: © José João Domingos
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Nota do editor:

Poste anterior de 27 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14935: Memórias de José João Braga Domingos, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4516/73 (1): Bolama, chegada e primeiros contactos com a população

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20912: 16 anos a blogar (5): O barbeiro dos bifes (António Carvalho, ex-Fur Mil Enf)


Região de Tombali > Mampatá > Uma foto aérea de povoação e aquartelamento.
Foto: © José Manuel Lopes (2008)


1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com data de 20 de Abril de 2020, trazendo-nos uma história a que deu o título de O barbeiro dos bifes.


O BARBEIRO DOS BIFES

Nem sempre as diferentes especialidades se ajustavam ao perfil de cada militar, fosse por imperfeições do próprio sistema de avaliação, que nós conhecíamos por testes psicotécnicos, fosse pela viciação dos resultados sob a mão de uma oportuna cunha, viesse ela do padre da aldeia, do regedor ou até de um coronel reformado.

Certo é que, para preencher a especialidade de atirador, nunca havia pedidos, e poucos eram os que sorriam quando, no fim dos três meses de recruta, lhes era comunicado que lhes tinha cabido em sorte a G3. Na ingenuidade de muitos mancebos não lhes calharia mal a especialidade de condutor, sendo que alguns até almejavam essa profissão, logo que regressados à vida civil. Não sabiam eles ainda quão perigoso era conduzir um camião nas matas de África, sujeitos ao primeiro tiro ou ao rebentamento de uma mina anticarro.

Ao Simão, de Oliveira de Azeméis,  foi-lhe atribuída precisamente a especialidade de condutor-auto, a contragosto, mas se assim tinha sido o resultado dos testes, assim tinha que ser. A grossa maioria dos recrutados, entre 1961 e 1974, bem sabia da sua condenação à guerra do Ultramar, ao fim de meia dúzia de meses, mas o Simão sempre admitia que pudesse ter sorte, até porque era já casado. Podia ser que escapasse e ficasse por cá, julgava até que, com mais sorte ainda, poderia ficar ao serviço de um oficial superior, conduzindo-o num “Carocha” verde azeitona ou num Mercedes da mesma cor, entre quartéis e a sua residência. Bem tentou, pediu até a uma senhora de Oliveira de Azeméis que tinha trabalhado em casa de um general, mas, azar dele, a senhora tinha saído de lá zangada, quando ainda jovem, por lhe não ter aceitado uma proposta indecente.

Foi azarado o Simão, porque se tinha pouco jeito para aquela profissão, muito menos se imaginava a conduzir uma Berliet carregada de cerveja e sacos de arroz, em picadas cheias de buracos camuflados por água. Ao fim de seis meses de tropa estava já escalado para o pior sítio da guerra de África, ainda por cima obrigado a integrar colunas de reabastecimento, com um qualquer camião, a que havia de faltar sempre alguma peça, a transportar água e lenha das imediações do aquartelamento e outros serviços que lhe fossem atribuídos. Estava o Simão metido numa camisa de sete mangas, mas havia de se safar, o espertalhão.

De vez em quando, de propósito, quando ia à lenha, ali por perto, arranjava maneira de fazer de conta que não via e passava por cima da ponta aguda do pé de uma árvore e lá ia mais um pneu à vida. Também daria resultado arranhar a caixa de velocidades, de vez em quando, sempre que o Furriel Mecânico ou o Capitão estivessem por perto. Só por si estes argumentos não seriam suficientes para o Capitão o tirar da condução, mas iriam ajudar muito, poucos dias depois. O Simão tinha um plano bem urdido. Quando, antes do embarque, ainda em casa, a mulher lhe punha na mala, entre outras roupas, um casaco, ele disse-lhe, num riso forçado, antes da triste despedida:

"Tira daí, mulher, o casaco que lá só há calor de rachar e mete mas é, no lugar dele, a minha ferramenta de barbeiro, que para alguma coisa me há de servir."

Nas horas vagas ia cortando o cabelo a um ou dois por dia, daqueles seus amigos, que mais lhe não pagavam que uma simples cerveja. Longe de cogitar que o Simão montava a “oficina” propositadamente em sítio que o visse, o Capitão, apreciando-lhe a destreza com a máquina e a tesoura, logo quis tirar proveito da situação. Foi, pois, o que fez, no dia seguinte quando o mandou chamar ao seu gabinete:
- Então Simão, já que tem andado a cortar o cabelo a alguns militares, trabalho que vejo bem que já fazia na vida civil, vai, a partir de agora, ser o barbeiro da companhia.

O Simão não teria disfarçado o agrado daquela ordem emitida pelo seu Capitão, caso se tratasse de uma proposta susceptível de negociação. Agora uma ordem! Ele bem sabia que na tropa não havia a especialidade de barbeiro, logo, sendo ele condutor, só aceitaria esse encargo de tosquiar aquelas quase duas centenas de militares, se a ordem viesse condimentada com algo mais apelativo. Mas ele, a parte mais fraca, não havia, naquele dia, de recusar, definitivamente, obedecer à ordem do Capitão, ainda que ilegal. Por isso, só lhe disse, condoído, que lhe seria quase impossível acumular a função de condutor com a de barbeiro.
- Se o meu Capitão me arranjasse uma outra função, dentro do arame farpado, libertando-me da condução, seria mais fácil, assim vai ser quase impossível eu dar conta do recado, que são muitas cabeças!

Havia mais condutores do que viaturas na companhia, por isso, dois ou três deles tinham sido colocados noutros sectores onde o Capitão notava necessidade. Ainda nem um mês tinha decorrido desde a nossa chegada a Mampatá, o nosso homem, em conversa com o Ferraz, seu colega de especialidade, que trabalhava contrariado na cozinha, propôs-lhe a troca, para ambos benfazeja . Faltava agora essa permuta merecer o aval do Capitão, porque, quanto ao Furriel Mecânico esse estava morto por o ver pelas costas, acabando-se assim a sua permanente aflição sempre que o via pegar numa viatura.

Assim, havia condições para todas as partes saírem satisfeitas. Por isso, os dois condutores, depois de apresentada a pretensão ao Furriel Mecânico, Nina de seu nome, correram ao gabinete do Capitão para a celebração daquela permuta de geral consolação. Agora já podia tratar do cabelo e da barba de toda agente, liberto das viaturas, embora com a acumulação de ajudante de cozinha e cantineiro.

Estava como queria, o nosso barbeiro Simão. Apareceu por lá outro, um alentejano, que também cortava o cabelo a alguns, mas embora mais barateiro, era mais fraquinho. Bom mesmo, esse, era no mato, com a “bazooca”, arma da 2.ª Guerra Mundial que manejava com mestria.

Um barbeiro na tropa
O Simão era um espertalhão, mas tinha sentido de justiça e consciência de classe. Cada um dava-lhe de gorjeta o que quisesse, mas ele, mesmo não dispondo de tabela fixada na árvore onde encostava a cadeira, tinha na sua mente, o valor justo para cada posto, e rogava, por entre dentes, as maiores pragas ao alferes que lhe desse menos do que um furriel ou quando um destes lhe desse tanto como um soldado.

Terá beneficiado da influência das lavadeiras fulas que estabeleciam os preços pelos seus serviços de lavagem das nossas fardas em função dos nossos vencimentos? Julgo que sim, porque, na nossa cultura europeia, o preço de um bem é aferido pelo seu valor objectivo, independentemente do ordenado da pessoa que o adquire.

Era perito a pregar partidas e, num sítio onde era difícil encontrar um espelho, muito menos dois, como podíamos mirar a parte da nuca? Era aí que ele, às vezes, engenhava as suas maldades, deixando uma ou outra escada. A um, que veio de férias ao fim de dezasseis meses, desactualizado em relação à evolução da moda, fez-lhe um corte tão apalhaçado que até a namorada dele galhofou.

O Simão, no seu trabalho de cantineiro, passava a vida a servir cervejas, latas de coca-cola e whisky no bar comum aos oficiais e sargentos, onde comprávamos também tabaco, pilhas para o rádio e pouco mais. Tinha ainda um outro serviço que ele desempenhava com tanta habilidade como se estivesse a cortar cabelo. Por volta do meio dia, era sua atribuição, limpar a mesa, usada para algum jogo de sueca ou crapô, para agora nela ser servido o almoço ao Capitão e a mais três ou quatro Alferes. Não parava de sorrir o Simão enquanto, metodicamente, esticava as pontas da toalha e de seguida a enfeitava com pratos, copos e talheres que, um por um, abrilhantava com um paninho branco que trazia sempre consigo.

Depois vinha o melhor da peça, provavelmente o que lhe alimentava aquele permanente sorriso que se lhe não descolava do rosto magro e esbranquiçado, enquanto se ocupava daquele trabalho rotineiro de preparar a mesa e servir o almoço aos oficiais. Um deles, o Alferes Estuques, tinha embirrado com dois ou três militares, porque ao passar na árvore dos passarinhos, a nossa mítica árvore, a maior da tabanca, tinha-os repreendido por achar que os mesmos não o teriam cumprimentado de acordo com as normas rígidas da corporação militar. Ora, desse grupo de incumpridores fazia parte o Simão deste conto verdadeiro, que sorria enquanto pensava como havia de trambicar o exigente Estuques.

Para além de instalar a mesa para a refeição, ele tinha que trazer, da cozinha, uma travessa onde coubessem as quatro ou cinco refeições e competia-lhe servir o prato de cada um dos oficiais. Nos dias de massa ou arroz com rodelas de chouriço ou salsichas não tinha o Simão modo de prejudicar o Estuques, mas quando a nossa companhia comprava uma vaca, o sorriso do Simão era bem mais explícito, algumas vezes gargalhava até com os cozinheiros dentro da cozinha. Era lá que ele preparava, com a colaboração de um cozinheiro, a nicada. Trazia os bifes, de diferentes tamanhos, sobrepostos, mas na hora de servir os oficiais havia de arranjar maneira de o mais pequeno calhar sempre ao Estuques.

Aquilo já era de mais, ao ponto de o Alferes se queixar ao Capitão. Chamado à atenção sempre se defendeu o Simão que não o fazia por mal, que assim acontecia por mero acaso, mas que se iria esmerar, de futuro, de modo a que o Estuques não tivesse mais razão de queixa. O Simão havia de sair bem daquela situação, o Estuques é que continuou prejudicado, porque, em vez de lhe calhar o bife mais pequeno, ninguém sabe porquê, passou a ser para ele sempre o mais rijo.

Quando, na chegada a Lisboa, se despediram, por entre risos e abraços, o Estuques disse-lhe isto ou algo pior :
- Tu lixaste-me!

O Simão, senhor Aníbal da Costa Santos Simão, é hoje proprietário da Barbearia Barber Shop Elvis Museu, em Oliveira de Azeméis, onde continua a trabalhar, mas já não prega partidas aos clientes.
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20902: 16 anos a blogar (4): Os dias de Abril, mês “de águas mil”, de Constituições, de Revoltas e de Revoluções, que mudaram Portugal (1) (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav)

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18506: Convívios (848): XXVIII Encontro do pessoal da CCAÇ 2381 - "Os Maiorais", dia 5 de Maio de 2018, em Abrantes (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381, Buba, QueboMampatá e Empada, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2018, com a notícia do XXVIII convívio dos Maiorais, coincidente com os 50 anos da partida da Companhia para a Guiné.

Carlos, boa noite, 

A Companhia de Caçadores 2381 - Os Maiorais, embarcou no Niassa no dia 1 de Maio de 1968 com destino à Guiné, ou seja, vai fazer cinquenta anos de embarque. 
No dia anterior, os militares da Companhia receberam a farda de camuflado, assistiram à Missa, ouviram um sermão carregado de patriotismo e desfilaram pela cidade de Abrantes ao som da fanfarra, tendo como companheiros o pessoal da C.Caç 2382 e C.Caç 2383. Tiveram direito a almoço melhorado e partiram ao principio da noite para a estação do Comboio com destino a Lisboa, onde chegaram no outro dia de manhã. O comboio foi parando pelo caminho para receber mais carne para canhão. 
O Niassa estava à nossa espera e depois de mais um desfilo e um discurso inflamado de um militar de gordos amarelos nos ombros, o barco, pelas 10 da manhã, arrotou violentamente. Levantou ferro, carregado como um burro e só parou às portas de Bissau. 
Felizmente, cerca de dois anos depois não se esqueceu de voltar a Bissau para trazer o pessoal que restava. Agora somos poucos. Três ficaram lá a regar aquela terra inóspita, trinta e cinco foram feridos e muitos deles anteciparam o regresso. Os que restam e tem saúde e condições físicas e monetárias encontram-se todos os anos desde 1990 para comemorar. Muitos já ficaram pelo caminho, outros não conseguimos localizá-los, outros nem querem ouvir falar da Guiné e ainda há os que por razões monetárias, falta de apoio familiar ou por razões profissionais perderam o rasto e não aparecem. 
Seria um prazer imenso para os Maiorais encontrarem-se todos este ano em Abrantes no quartel. Aqui deixamos o apelo. 
Venham daí.
José Teixeira

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CCAÇ 2381 "OS MAIORAIS"


Chegou à Guiné a 6 de Maio de 1968, proveniente de Abrantes.
Seguiu directamente para Ingoré, no norte, onde se instalou até meados de Julho, tendo efectuado aí o treino operacional.
Foi deslocada para Aldeia Formosa no sul da Guiné, onde teve, como missão, fazer escoltas de segurança às colunas-auto com mantimentos entre Aldeia Formosa, Buba e Aldeia Formosa, Gandembel, ao mesmo tempo que garantia a auto defesa de Aldeia formosa, Mampatá e Chamarra.

Em Janeiro de 1969 seguiu para Buba. 
A sua missão desdobrou-se na protecção ao pelotão de Engenharia que procedia aos trabalhos de abertura da nova estrada entre Buba e Aldeia Formosa e os trabalhos de combate à penetração do inimigo na área de defesa local.

Completou a sua missão na Guiné, a partir de Maio de 1969 até ao regresso em Maio de 1970, no Sub-sector de Empada, por cujo comando foi responsabilizada, tendo mantido dois grupos de combate em Buba até Dezembro do mesmo ano.

Os principais objectivos globais da actividade desenvolvida em teatro de guerra foram:
- Evitar o alastramento da subversão e atrair as populações à defesa comum dos objectivos por que se lutava em nome da Pátria.
- Garantir a protecção necessária às populações. Verificar e ajudar na sua auto defesa.
- Escorraçar o inimigo, criando-lhe um clima de insegurança e enfraquecê-lo nas suas capacidades, quer morais, quer operacionais e anímicas.
- Garantir o reabastecimento com segurança e eficiência a Aldeia Formosa, Gandembel, Mampatá e Chamarra, através de colunas auto e ou protecção às mesmas.
- Garantir a segurança aos homens e máquinas que dinamizavam o projecto de abertura da nova estrada de Buba para Aldeia Formosa, não permitindo nesta sua acção, que o Inimigo contrariasse o espírito de incrementar melhoramentos no modo de vida das populações, que o governo da Colónia estava a desenvolver.

Aplicou-se com garra e dinamismo para atingir as missões que lhe foram atribuídas, com o cuidado necessário para regressar completa, como era o seu sonho e compromisso de partida.

Recebeu várias referências honrosas dos comandos a cujas ordens serviu, das quais se salienta o seguinte louvor:

"Louvo a CCAÇ 2381 pela sua actuação no sub-sector de Empada, o qual mantém devidamente controlado pela persistente tenacidade do seu Comandante. E não é de estranhar o valioso contributo que deu à luta por uma GUINÉ MELHOR, no período em que esteve dependente do BCAÇ 2892, uma vez que antes disso, sempre demonstrou nas inúmeras acções em que esteve empenhada, desde o início da sua Comissão na Província, em 6 de Maio de 1968, possuir em alto grau espírito de missão. Tendo actuado no Norte da Guiné e depois na Zona Sul, na maioria dos sub-sectores do “S- 2” e em Gandembel, evidenciou através dos seus valiosos combatente, sacrifício, coragem e muita abnegação em todas as missões em que foi incumbida.
Por tudo isto e na hora da sua partida para a Metróple, bem merecem Oficiais, Sargentos e Praças da CCAÇ 2381, serem lembrados como exemplo, aos camaradas que depois deles continuam a luta pela causa comum".

O.S. nº 37 de 11de Fev./70 do BCAÇ 2892

Infelizmente não foi possível cumprir o objectivo principal que se propunham atingir – o de voltarem todos à mãe Pátria. 
Lamenta-se a morte de dois combatentes em missão e um por acidente, para além de 35 feridos, alguns dos quais tiveram de ser evacuados para Lisboa.

Do seu historial de combate, regista-se:
- Montou 405 emboscadas
- Fez 93 escoltas a colunas auto com mantimentos ou de construção da estrada de Buba.
- Participou em 479 Patrulhas e em 15 Operações de Guerra.
- Capturou cerca de meia tonelada de diverso material de guerra.

O Inimigo também não deu tréguas:
- Sofreu 50 ataques a aquartelamentos e 16 emboscadas, dos quais resultaram os mortos e feridos acima mencionados.

“OS MAIORAIS”,  totem com que se identificavam os seus homens, durante a Missão na Guiné, tinham como lema “Pela Lei e pela Grei”, o qual reflectia o espírito que os animava – Fazer cumprir a Lei, sem esquecer nunca que os autóctones com quem se cruzavam e que procuravam viver em paz com Portugal, eram pessoas, independentemente da raça ou cor e como tal teriam de ser respeitadas.

Regressou a Lisboa em Maio de 1970 consciente de ter cumprido a missão que lhe tinha sido atribuída.

(Extraído da História da Companhia)


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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE ABRIL DE 2018 > Guiné 61/74 - P18479: Convívios (847): XXXV Encontro do pessoal da CCAÇ 2317, dia 9 de Junho de 2018, no Restaurante Santa Luzia - Fátima (Joaquim Gomes Soares, ex-1.º Cabo At Inf)

terça-feira, 6 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18383: Estórias do Zé Teixeira (46): Uma chapelada de piolhos (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)



1. Em mensagem do dia 26 de Fevereiro de 2018, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais uma das suas estórias, esta metendo parasitas difíceis de controlar.


ESTÓRIAS DO ZÉ TEIXEIRA

46 - Uma chapelada de piolhos

O Dionísio era um rapaz alegre e camaradão. Onde houvesse sinais de festa, lá estava ele para dar duas de conversa, beber uns copos, contar umas anedotas e dar umas sonoras gargalhadas. Não era de admirar a sua paixão em passear pela tabanca, sobretudo à noite, onde se sentia bem e por vezes conseguia dar “um pézinho de dança”, nas festas familiares de aniversário, casamento ou qualquer outra, conforme as raízes culturais de cada etnia.

Um belo dia de Novembro de 1969, apareceu, manhã cedo, no refeitório para o “mata bicho” com um frondoso chapéu de palha, tipo brasileiro que se via muito nas fotografias do carnaval do Rio. Não faltaram os mirones à volta dele, com dichotes e piadas. Insensível, mas orgulhoso, o Dionísio comentava alegremente, enquanto comia as sopas de pão envolvidas em leite com borras de café: "dores de cotovelo é o que vocês têm!"

Durante dois ou três dias pavoneou-se pelo quartel e pela tabanca todo ufano, de chapéu na cabeça, como um brasileiro. De noite fechava o chapéu a sete chaves no seu cacifo, para que ninguém ousasse pô-lo na sua cabeça ou fazê-lo desaparecer. Consta que até tentou sair para o mato com o chapéu a substituir o quico.

Um dia, estava eu a ler pela undécima vez uma fotonovela, deviam ser umas dez horas da manhã, quando vejo o Dionísio, vir na minha direção, sem o chapéu e com cara de poucos amigos.
- Que se passa Dionísio? Parece que viste um fantasma!
- Um fantasma, não! Os filhos da puta são aos milhões. Cabrões! Mas vou dar cabo deles!
- Vá! Tem calma. Isso passa.
- Há de passar, há de! Arranja-me um frasco de DDT!
- Tás maluco?! Para que queres o DDT?
- Anda lá! Só preciso de umas gotas. Não demores que eu não aguento mais!

Nem me passou pela cabeça que ele queria o produto químico para matar piolhos que trazia escondidos debaixo do cabelo. Fui buscar o frasco de DDT, que ele me arrancou logo das mãos, e para meu espanto vejo o Dionísio encher a cova de uma mão com o produto e esfrega-la com todo o vigor na cabeça.

Numa fração de segundos, mais parecia um macaco cão a guinchar e a gritar. Ai que eu morro! Ai que eu morro! Acudam-me, estou a arder! Acudam-me... Acudam-me...

Nunca tinha visto tamanha aflição. A respiração tornou-se ofegante, o corpo tornou-se avermelhado, os olhos parece que queriam saltar-lhe das órbitas e ele gritava, gritava de dor e de pavor. E eu tremia de angústia.

Meti-o debaixo do chuveiro, que havia ali na enfermaria (felizmente o depósito tinha água). Baixei-lhe a cabeça e deixei correr o precioso líquido durante longos minutos. Ensaboei-o umas cinco ou seis vezes e ele foi acalmando. Até que o ardor lentamente desapareceu e o perigo passou.

- Se apanho aquele sacana espeto-lhe um tiro nos cornos! Comentou.
- Bem! Conta lá o que se passou que estou em pulgas para saber o que te levou a cometer tão grande disparate. Puseste a tua vida em perigo e pregaste-me um grande susto - disse-lhe com ar de zangado.
- Na quarta feira à noite fui até à tabanca dos manjacos. Estava lá uma garina meu! Nem te passas. Com um corpo escultural e de mama mais que firme. Linda como o sol! Com ela estava um grupo de rapazes da nossa idade que eu nunca os tinha visto em Empada. O grupo dançava, dançava, e eu aproveitei para dar duas de dança e de conversa à catraia. Um dos mancebos trazia o chapéu de palha e comprei-lho por vinte pesos. Nem sonhei que o chapéu trazia uma carripana de piolhos. Eram às toneladas a embrenharem-se por entre o meu cabelo. Olha, nestas duas noites não dormi, com a puta da comichão. Agora de manhã, pus-me a olhar para o chapéu e é que descobri de onde vinha a piolheira. Queimei-o logo, mas a comichão era tanta que... nem te passas!
- Por que não falaste comigo antes? Temos ali remédio para piolhos. Merecias quatro sopapos, meu.
- Pois! E a vergonha que eu sentia? Foda-se pá! Toda a gente me cobiçou o chapéu... e ele estava cheio de piolhos.

O tal grupo não mais apareceu na tabanca. Se foi coincidência eu não sei. Só sei que, três dias depois, os nossos amigos vieram visitar-nos ao cair da noite junto ao arame e voltaram de madrugada para chatear, matando-nos o Conceição Caixeiro.
Encontrei há tempos o Dionísio. Velho como eu, de cabelos brancos como eu, mas de farta cabeleira.
- Tás a ver - diz-me ele com o seu velho olhar de gozão - se tivesses usado o DDT talvez hoje tivesses mais cabelo!

Zé Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17598: Estórias do Zé Teixeira (45): O Valente, um homenzarrão, com um coração tão grande quanto o seu físico (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

sábado, 27 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18259: O cancioneiro da nossa guerra (3): mais quatro letras, ao gosto popular alentejano, do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71)

CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71) > A bordo do T/T Uíge que levou o pessoal até Bissau, em maio de 1969: os fur mil  Edmundo Santos, à esquerda, e o Mário Pinto, à direita. Foto do álbum do Mário Pinto, reproduzido aqui com a devida vénia.


Foto: © Mário Pinto (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].




A comissão na Guiné


A comissão na Guiné,
tão custosa e dolorida,
nunca nos faltou a fé
de regressarmos com vida.


Graças à nossa unidade,
transpondo qualquer maré,
não se esquece, na verdade,
a comissão na Guiné.

Deixar a vida civil
foi difícil à partida
entrar numa guerra hostil,
tão custosa e dolorida.

Ter firmeza no andar,
saber onde pôr o pé,
pensar em poder voltar,
nunca nos faltou a fé.

Lutar no mato foi duro,
não havia outra saída,
senão pensar no futuro,
de regressarmos com vida.


Saídos de Bissau, com rumo ao sul


Saídos de Bissau, com rumo ao sul,
embarcámos numa lancha da marinha,
sulcámos águas calmas, céu azul
e chegámos a Buba já noitinha.

Assentou-se arraial nesse quartel
e algum tempo tivemos de ficar,
foi-nos dada a missão e o papel
de fazer segurança e patrulhar.

Depois de Buba, a nossa companhia
foi destacada para ir p´ra Mampatá,
a coluna militar onde seguia,
sofreu vários ataques até lá.

Nesse local estivemos vinte meses
até findar a nossa comissão,
lutámos e sofremos muitas vezes
em nome de um país, de uma nação.

O regresso a Lisboa já não tarda,
deixámos a Guiné, missão cumprida,
é a esperança no futuro que se aguarda
e que nos faz voltar de novo á vida.


Quem me dera que esta guerra

Quem me dera que esta guerra,
Por que estamos a passar,
Pois todo o mal que ela encerra,
Faz-nos sofrer e pensar.
Quem me dera que esta guerra
Pudesse um dia acabar.

Quem me dera não ser alvo
Do perigo que nos espreita,
Procuro estar são e salvo
E de saúde perfeita.
Quem me dera não ser alvo
De apanhar qualquer maleita.

Quem me dera regressar
na posse dos meus sentidos
e o futuro desenhar
em vários tons coloridos.
Quem me dera regressar
p´ra abraçar os entes queridos.
Quem me dera que acabasse
o regime em Portugal
e um governo se instalasse
de salvação nacional.
Quem me dera que acabasse
a guerra colonial.

Quando saímos p'ro mato


Quando saímos p´ro mato,
Há uma tristeza,
É sempre um momento ingrato
E de incerteza,
O perigo espreita
E a malta suspeita
Que haja emboscada.
Devemos estar atentos,
Ver os movimentos
Em toda a picada.

É em Mampatá
que fica o quartel,
dá-nos confiança,
também segurança
e um certo bem estar.

A malta dirá
de modo fiel
que não te esquecemos,
decerto teremos
algo a recordar.

Toda a nossa companhia
foi destemida,
não nos faltou valentia,
logo á partida
não mostrar receio

Talvez fosse o meio,
eficaz e forte,
e reconhecer
p´ra sobreviver
foi preciso sorte



Texto: © Edmundo Santos (2017). Todos os direitos reservados. [ Edição / revisão / fixação de texto: .Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Mário [Gaulter Rodrigues] Pinto:

Data: 18 de novembro de 2017 às 13:45
Assunto: Novos versos alusivos à nossa comissão na Guiné

Caro Luis:

Recebi este e-mail do meu camarada e amigo Edmundo, com  uns versos recentes que fez,  como explica. Uma vez que fala de um telefonema que com ele tiveste, e não sabendo se os mesmos te foram enviados,  aqui os envio com a aprovação do Edmundo.

Um abraço

Mário Pinto
_______________

Mensagem do Edemundo Santos, [novembro de 2017]

Amigo Mário Pinto;

Votos sinceros de melhorias na tua saúde e na da tua esposa. Felizmente eu e a minha mulher cá vamos andando bem.

Estou a escrever-te e a enviar-te uns versos que fiz, antes do almoço que eu e o José Ramos organizámos em Benavente. Um deles foi cantado depois do almoço, para além daqueles dois que tu já fizeste o favor de publicar no Blogue dos Morcegos de Mampatá ( "Fado da Metralha" e " Estou farto deles tirem-me daqui" ).

Há um indivíduo que me telefonou na semana passada, que é o [Luís] Graça,  e me perguntou se eu tinha versos para publicar e eu disse-lhe que tinha feito estes, que te estou a enviar, por ocasião do último almoço em Benavente.

São letras simples que eu adaptei a algumas músicas de fado. Vão em primeira mão e espero que sejam do teu agrado.

Um abraço do Edmundo


2. Nota do editor LG:

Mais um contributo para "o cancioneiro da nossa guerra"...  Já aqui falámos do Edmundo Santos, fur mil da CART 2519, "Os Morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosda e Mampatá, 1969/71) (*).  Estive, em novembro último, à fala com ele, através do telemóvel.  Mandou-me, por intermédio  do seu amigo e camarada Mário Pinto, mais uns versos, ao gosto popular alentejano, que ficam bem no "cancioneiro de Mampatá".  Os versos não traziam título. O Edmundo e o Mário têm sido alguns dos dinamizadores dos convívios anuais do pessoal da CART 2519, também conhecidos por "Os Coirões de Mampatá".

Reforço aqui o meu convite para o Edmundo passar a integrar a nossa Tabanca Grande. Lisboeta, reformado, vive em Pedrógão Grande. O nosso obrigado ao Mário Pinto.

 _____________

Nota do editor:

(*) Vd. os dois primeirso postes da nova série:

8 de novembro de  2017> Guiné 61/74 - P17944: O cancioneiro da nossa guerra (2): três letras do Edmundo Santos, ex-fur mil, CART 2519, Os Morcegos de Mampatá (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá, 1969/71): (i) Os Morcegos; (ii) Estou farto deles, tirem-me daqui; (iii) Fado da Metralha

30 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17811: O cancioneiro da nossa guerra (1): "Asssim fui tendo fé, pedindo a Deus que me ajude"... 4 dezenas de quadras populares, do açoriano Eduardo Manuel Simas, ex-sold at inf, CCAÇ 4740, Cufar, 1972/74


quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18251: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (47): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (2)

Paisagem duriense, Património da Humanidade


1. Em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2018, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos um trabalho que consideramos uma homenagem ao outro nosso camarada Zé Manel - "O poeta da Régua", um transmontano dos quatro costados que na região duriense desbrava o xisto donde extrai o seu famoso Pedro Milanos.
Aqui deixamos a segunda parte desta Memória Boa do Zé Ferreira.


MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA

47 - Zé Manel de Mampatá – Poeta da Régua (2)


A razão de um nome… 
Porquê Pedro Milanos?

Por José Manuel Lopes 

PEDRO MILANOS é o anagrama de ARMINDO LOPES, o autor do poema que estava nos contra rótulos. (Ambos os nomes têm as mesmas letras, só que por ordem diferente).
Por trás de um nome está sempre uma história e esta é a de um homem que viveu sempre apaixonado pela sua região. No fim da década cinquenta, passava na tv um programa sobre as 7 maravilhas do mundo… 
Com cerca de 8 anos a grandeza de tais obras me deixaram encantado, particularmente as Pirâmides do Egipto e perguntei a meu pai: 
- Qual das sete maravilhas é a de Portugal? 
- Nenhuma. 
- Pois, nós somos um País muito pobre! 
- Achas!? Anda daí comigo. 

Subimos ao mirante da casa, abriu a janela e disse. 
- Que vês rapaz? 
- Vejo montes. 
- E nos montes o que é que há? 
- Vinhas. 
- E as vinhas são feitas de quê? 
-Videiras e folhas. 
- E essas videiras estão onde? 
- Na terra. 
- E a terra como está segura? 
- Bem!?...não sei como. 
- Pelos muros de pedra meu filho. Consegues contar todos os que vês? 
- Não, eles são tantos. 
- Agora imagina, quantos não haverá pelo Douro fora… Todos juntos, são uma obra muito maior que as Pirâmides do Egipto. Passam é despercebidos. 

E foram passando, até que um dia em 2001, dez anos depois da morte de meu pai, recebo a notícia pela TV de que o Douro, as suas vinhas e os seus muros, passavam a ser Património da Humanidade. 
Como ele teria adorado ter tido conhecimento disso! 

Decidi dar o nome de Pedro Milanos ao primeiro vinho feito pelo meu filho Vasco, que é enólogo e neto de Armindo Lopes.

Um brinde de camaradas ex-Combatentes da Guiné, com Reserva Pedro Milanos, na Tabanca de Matosinhos. 

************

 (Outros poemas do Zé Manel) 

Heróis que a história não narra 

Por José Manuel Lopes

“Quinze dias após a nossa chegada à Guiné estávamos em Bolama a fazer o treino operacional (IAO) que duraria cerca de um mês, após o que partiríamos para o Sul da Guiné, Mampatá Forreá que seria o nosso lar nos próximos 2 anos. 
Naquele dia, fazia-se fogo real com o dilagrama e foram escolhidos os soldados para utilizar esse tipo de arma. O Instrutor do Batalão, onde fomos anexados pontualmente, que era o Alferes Figueiredo, estava a ensinar o instruendo,o Soldado António Mata da minha Companhia. 
Após o Mata ter retirado a cavilha da granada defensiva, a alavanca desta saltou imediatamente, pois a anilha de segurança tinha caído e ninguém se apercebeu disso. Instintivamente o Alferes deitou as mãos à granada que menos de 4 segundos depois lhe rebentou nas mãos. Ambos foram atingidos em cheio tendo morte imediata. Os seus corpos receberam a grande maioria dos estilhaços e protegeram todos que à volta assistiam ao lançamento do dilagrama. Houve alguns atingidos por um ou outro estilhaço, mas sem gravidade. 
O Mata era casado. A mulher quando se despediu dele já estava grávida. Meses depois nasceu uma menina que nunca conheceu o Pai, nem por foto, pois a mãe casou novamente pouco tempo depois.

Trinta anos passados, fomos à procura daquela jovem emigrante em Paris. Tal como o vínhamos fazendo com outros camaradas mortos, colocando no túmulo uma placa com um poema dos meus, queríamos fazer uma homenagem ao António Mata, sepultado em Pinhel. 
Fomos lá no verão, quando a mãe estava cá de férias. Porém, a filha ficara em Paris e sem qualquer interesse em vir a Portugal. E contacto telefónico com ela, a partir de Pinhel, ela manifestou-se sensibilizada com a nossa atitude mas confessou que não possuía qualquer ligação com o seu pai, de quem nem foto conhecia. 
Viemos a saber que o padrasto não permitiu nunca essa ligação. Manifestámos-lhe a nossa intenção na homenagem e prontificámo-nos a pagar-lhe a viagem, se necessário. 
Efectivamente, a filha do Mata acabou por aceder ao nosso desejo. Veio cá, assistiu à homenagem e viu colocarmos a placa de mármore, sobre a campa do seu pai, onde se destacava a sua foto de Combatente a encimar um poema. 
Sensibilizada com a nossa atitude, recebemos a sua emocionante mensagem: 
- “Nunca conheci meu pai, vosso camarada, mas hoje pelo menos, tive um pai em cada um devocês. Muito obrigado." 
Presentes nessa homenagem estiveram cerca de 12 elementos dos Unidos de Mampatá (Cart 6250).

Gostava de vos falar 
dos esquecidos 
dos heróis que a história 
não narra 
que as viúvas choraram 
mas já não recordam 
daqueles 
que nem tempo tiveram 
para ter filhos 
que os amassem 
descendentes 
que os lembrassem 
daqueles que nunca 
tiveram o dia do pai 
vítimas de guerras 
que não inventaram 
em tempo que já lá vai 
falar deles é prevenir 
se bem que de nada 
lhes valha 
de guerras que possam vir 
geradas pela ambição 
dos 
que nunca morrerão 
num campo de batalha."

Assistência aos feridos 
 
Puseste o pé em sítio errado

Por José Manuel Lopes

“Março de 1973. A construção da estrada alcatroada havia começado em Aldeia Formosa, 7 Km depois atravessava Mampatá e seguia na direcção da Fonte de Iroel, como uma gigantesca jibóia negra lá ia até Colibuia, seguindo paraNhacobá e um dia havia de chegar ao Cumbijã. Era como uma faca encravada nas zonas até ai controladas pelo PAIGC, atravessava o corredor de Uane, virava para Sul ao Cumbijã e facilitaria o controlo pelas nossas tropas de toda aquela área. 

A todo o custo o PAIGC tentava evitar a sua progressão e para tal plantavam minas por todo o lado a fim de destruir viaturas e máquinas de desaterro que trabalhavam na abertura da estrada. Logo ai o trabalho para detectar as minas era importantíssimo. 

Todos os dias se fazia a picagem até à frente dos trabalhos e depois fazia-se a segurança à engenharia e aos operadores das máquinas. O trabalho dos Furriéis de Minas e Armadilhas era importantíssimo e o Vilas Boas distinguiu-se nisso. Perdi a conta às minas que ele levantou. 

Um dia na rotina habitual os picadores da frente gritam:mina!. Todos param. O Albuquerque repete a mensagem (mina!) e dá um passo atrás. Pisou uma mina antipessoal.

Puseste o pé em sítio errado 
um som violento, o pó levantado 
escondeu por algum tempo 
o teu corpo violentado 
sem pensar em outras minas 
correram em teu socorro 
o sangue fugia do teu corpo 
e o "hélio" não chegava 
 tua cara, ainda de criança 
ficava cada vez mais pálida 
tudo num silêncio angustiado 
Apesar dos teus vinte anos a 
vida fugia-te em golfadas 
porquê tanto sangue derramado?”

Minas 

Parece inofensiva a maldita 

Por José Manuel Lopes

“Desde o início da construção da estrada que as picagens se tornaram um cenário diário e hoje mesmo me surpreendo, como só tivemos uma vítima nesse trabalho perigoso que se tornou numa rotina. Só um trabalho muito responsável e competente dos picadores e dos Furriéis de Minas e Armadilhas explica tudo isso. Grande Vilas Boas e Fernandes! 

"Estradas amarelas corpos 
cobertos de pó 
pica na mão à procura delas 
o polegar ferrado num pau 
tac,tac,tac,tac,tac,tac 
tacteando por sons diferentes 
o Fernandes com cara de mau 
espeta no solo 
o ferrão da pica 
tac,tac,tac,tac,tac,toc... 
o calafrio... 
depois o grito 
anunciando o perigo 
o grupo é mandado parar 
chega o Vilas à frente 
e todos manda afastar 
de joelhos no chão 
numa simulada carícia 
afasta a terra com a mão 
com gestos simples e perícia 
vai cavando devagar 
ei-la... está aqui 
parece inofensiva a maldita 
deita-lhe a mão e grita 
és minha, já te tenho 
tira-lhe o detonador 
e entre dentes diz... 
esta não 
esta não causará dor.”


Cheira a emboscada

Por José Manuel Lopes

"Em fila indiana 
vai o grupo pela picada 
um silêncio pesado 
de natureza estranha 
deixa os sentidos alerta 
cheira... a emboscada 
aos primeiros tiros 
todos caem no chão 
há avisos e gritos 
e reina o palavrão 
responde-se de pronto 
com a arma na mão 
subitamente, de lá 
as armas se calam 
enquanto por cá 
elas ainda falam 
e eis que 
o silêncio volta 
e chega a segurança 
regressa a confiança 
olha-se em volta 
há um corpo caído 
que não grita nem mexe 
se adivinha razão 
engole-se em seco 
se desvia o olhar 
se esconde a emoção."

************

Não pode haver melhor prenda 

Por José Manuel Lopes

 
Em dia de correio, o grupo de serviço ia levantá-lo à Aldeia Formosa. Uma secção montava-se num Unimog, lá ia em busca das boas novas, aproveitando para levar as cartas que os militares escreviam aos familiares e madrinhas de guerra. 

Eu raramente escrevia. A minha mãe queixou-se disso na primeira vez que vim de férias. Eu dizia-lhe que pouco havia para contar e que não se preocupasse, pois no nosso caso, a falta de notícias era a melhor das notícias, se algo corresse mal, a má nova chegava rápido. 
Havia um Furriel já casado que todos os dias escrevia à mulher e numerava as cartas. Quando após o almoço passava junto à tabanca dele, lá estava o Santos sentado a escrever. Eu perguntava: 
- Oh Santos quantos dias já levamos disto? 
Ele olhava para a parte superior da primeira folha da carta e dizia: 
-184, não falha. 

Quando o correio chegava, ele recebia 7,8,10 cartas, pois a mulher também lhe escrevia todos os dias, mas nós não recebíamos o correio com muita regularidade. 

Um dia foi a minha vez de ir buscar o correio a Aldeia Formosa e fiz uma maldade. Retirei do saco todas as cartas endereçadas ao Santos e guardei-as no bolso lateral das calças. 
Ainda hoje recordo o olhar angustiado daquele Furriel a assistir à distribuição do correio. Entretanto, eu já tinha passado pela tabanca dele e deixado 6 cartas em cima da cama. Depois, assisti ao caminhar pesaroso do Santos, da cantina até à sua tabanca. 

De seguida, ouve-se um grito de surpresa. Ele sai e diz: 
- AH SEU FILHO DUMA PUTA, ISSO NÃO SE FAZ!... NA PRÓXIMA, DOU-TE UM TIRO NOS CORNOS!"

"Um ruído vem do céu 
e há cabeças no ar é que 
é dia de correio 
há novas para chegar 
faz-se a distribuição 
com chamada frente ao bar 
para o Santos, nada veio! 
será que vai desmaiar? 
p'ró Zé Manel veio a Bola 
com notícias do Benfica 
p'ró Nelson uma encomenda 
e há quem lhe mande uma dica 
fazendo-se para a merenda 
sim, de correio foi o dia 
não pode haver melhor prenda 
é tempo de alegria 
retiram-se os felizardos 
procuram privacidade 
relêem a mesma carta 
até afogar a saudade." 

************

Ao Santos de Leça 

 "Um dia nunca passava 
sem que escrevesse uma carta 
à mulher que tanto amava 
como se fosse promessa 
e todas elas numeradas 
como que a testemunharem 
a grande paixão do Leça"

____________

Nota do editor

Vd. poste anterior de 24 de janeiro de 2018 > Guiné 61/74 - P18249: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (46): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (1)

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Guiné 61/74 - P18249: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (46): O Zé Manel de Mampatá - Poeta da Régua (1)


Quinta da Senhora da Graça (a cerca de 3km da cidade do Peso da Régua e 4km de Santa Marta de Penaguião, em pleno Douro Património da Humanidade). Desde 1994, aqui se produz o famoso vinho Pedro Milanos. Funciona também como uma excelente unidade de Turismo Rural.


1. Em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2018, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos um trabalho que consideramos uma homenagem ao outro nosso camarada Zé Manel - "O poeta da Régua", um transmontano dos quatro costados que na região duriense desbrava o xisto donde extrai o seu famoso Pedro Milanos.

Aqui deixamos a primeira parte desta Memória Boa do Zé Ferreira.


MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA

46 - Zé Manel de Mampatá – Poeta da Régua (1)

Tive o prazer de conhecer o Zé Manel numa patuscada, em casa do “Mano Novo” (António Carvalho), Presidente “vitalício” de Medas – Gondomar.

Este, havia-me convidado, depois de termos estado juntos, pela primeira vez, numa “lampreiada” em casa de seu “Mano Velho” (Manuel Carvalho).

Logo ali, verifiquei que o Zé Manel era um camarada bem conhecido dos demais e que gozava de grande simpatia. Além disso, era notória uma relação especial com o António Carvalho, fruto do “convívio forçado” de mais de 2 anos, na guerra da Guiné.


Com a minha aproximação aos convívios dos grupos de ex-combatentes, passei a encontrar amiúde o Zé Manel. Daí, ter passado a conhecer/observar o seu passado, os seus poemas e as suas histórias. 


Joaquim Peixoto e José Teixeira brincam com o Zé Manel na Tabanca de Matosinhos

Nasceu no Peso da Régua (Nov 1950), onde frequentou a Escola Primária e o Colégio da Régua até ao 5.º ano. Fez 6.º e 7.º ano no Liceu de Lamego e depois seguiu para o INEF, no Porto. Zangado com os chumbos que ali conseguira, foi a Lamego oferecer-se como voluntário, para o Serviço Militar.
Meio ano depois, foi chamado para as Caldas da Rainha, onde fez a recruta. Seguiu para Tavira, especializar-se em Armas Pesadas. Ainda foi prestar provas aos “Rangers”, mas não ficou lá. Lesionou-se…

Seguiu para Elvas, para dar recrutas. Ali, apanhou uma “porrada” e teve que ir para os Açores. Quatro dias depois de lá chegar, e já com 20 meses de tropa, recebeu notificação para se apresentar no RAP 2, em V. N. de Gaia.

Quando foi gozar os 12 dias de licença antes do embarque, informou os pais de que estava mobilizado para a Guiné. Por essa altura, vivia-se na Régua um ambiente bastante pesado. Precisamente na Guiné, havia falecido o Valdemar, o “Quarenta”, que ficara sem uma perna e o José António encontrava-se prisioneiro. Eram três jovens bem conhecidos na Régua.

Uns anos antes, um vizinho havia escapado da tropa por intermédio de um médico de Viseu, quando da sua Inspecção Médica em Vila Real. Atestou-lhe uma doença rara. Consta-se que este favor foi sendo pago em cabritos, durante vários anos, até à morte do avô do rapaz. Diga-se de passagem, que este procedimento não é bem aceite entre os transmontanos. É que, normalmente, ele identificava uma atitude de medricas, de cobardia ou de falta de patriotismo.

Alguns dias depois, o Zé Manel apercebeu-se de que os seus pais tinham discutido. Coisa raríssima entre eles. Veio a saber que a mãe,  preocupada, havia procurado esses bons conhecimentos para salvar o filho de ir para a Guiné. E que tinha ido ter com um médico que a informara de que já era tarde para evitar a sua mobilização.
- Zé Manel, amanhã vamos a Lisboa. Vamos visitar a tua tia, para te despedires dela. Ela sempre te acarinhou, apesar de não teres querido ficar junto dela, logo de menino. És quase o filho que ela nunca teve.

Fizeram a viagem, quase sempre calados. O ambiente pesado em que se vivia não era nada favorável para conversas. Saídos do comboio em Santa Apolónia, seguiram de táxi com rumo a Alvalade, onde vivia a tia. Mas, quando o táxi parou no largo do Rato, o pai do Zé Manel informou-o:
- Vamos aqui entregar o envelope que o Doutor Marques deu à tua mãe. Ele disse que já era tarde para te desmobilizar mas que este General te pode arranjar um impedimento em Bissau, para não correres perigo.

Meio atordoado pela surpresa, o Zé Manel perguntou:
- Mas eu pedi-lhes alguma coisa?
- Ó rapaz, sabes bem que o teu pai é contra estas coisas de cunhas e de fugas aos deveres de cada um. Mas a tua mãe não sossegou sem me obrigar a isto. É verdade que queremos o melhor para ti… mas tu é que sabes o que queres.
- Ó pai, mostra cá isso. - disse o Zé Manel.

Estendeu a mão, agarrou no envelope da mão do pai e, sem o abrir, dobrou-o e meteu-o no bolso interior do casaco do pai.
- Olha, vamos embora e a mãe não precisa de saber nada disto.
- Meu filho, não imaginas a alegria que me estás a dar. - Aproximou-se, abraçou-o e beijou-o. Coisa de que o Zé Manel já não se lembrava.

Depois de visitarem a tia, voltaram para a estação de Santa Apolónia, mas, desta vez, no comboio, conversaram como nunca durante toda a viagem.

O avião que transportou a CART 6250, “Os Unidos”, chegou a Bissau ao meio da manhã de 27 de Junho de 1972. À espera do Zé Manel estava o seu amigo guineense Vasco, que com ele estudara na Régua e jogara futebol. Nessa altura estudava na Faculdade do Porto e se encontrava ali de férias.
Foi uma noitada “à maneira”. Já era alta madrugada quando o Vasco deixou o Zé Manel no Quartel dos Adidos, num estado bastante entorpecido. Sem cama, nem tino para a procurar, tirou o blusão para servir de travesseiro, descalçou-se e deitou-se no chão,vindo a rodar para debaixo de um beliche.
Quando acordou, a meio da manhã estava só, sem sacos da viagem, sem boina e sem sapatos. Mal apareceu na parada, ouviu gargalhadas e apupos ao “periquito” desorientado. Dirigiu-se então para o Oficial de Dia dessa unidade, perguntando pela sua CART 6250.
- Ó Furriel, você está fodido. A sua Companhia já está em Bolama e você ainda aqui. Venha comigo, vou arranjar-lhe uns sapatos e vamos ali à Força Aérea a ver se se arranja uma boleia.

Curioso foi que, quando lá chegou logo encontrou o Mesquita, Furriel da Força Aérea, seu vizinho reguense e ex-colega no clube de futebol, que o “meteu” num Dornier que ia levantar voo para Bolama, com a distribuição do correio.

************

A CART 6250 fez o IAO em Bolama antes de seguir para Mampatá.


O amigo António Carvalho, bem conhecido por Dôtô Carvalho 

No IAO desenvolvido em Bolama, aconteceram duas mortes. A CART 6250 foi integrada, pontualmente, no Batalhão de Artilharia 6520, em que o seu Alferes Figueiredo, de Operações Especiais, chefiava a instrução de uso dos Dilagramas em combate. Naquele momento, era o soldado Mata, da CART 6250 que ia fazer fogo real com dilagrama. Tirou a cavilha da granada, mas como o anel de segurança se tinha soltado, a alavanca saltou logo.

O Alferes, apercebendo-se disso, num impulso de suicídio heróico, aproximou-se e agarrou a granada com as duas mãos, cobrindo a explosão e protegendo os outros militares presentes. Faleceram ambos.

Isto aconteceu no 13.º dia de Guiné. Terminara a sua missão o Soldado António Mata, de Pinhel, que estava emigrado em França. Saíra de lá recém-casado e com a mulher grávida, para cumprir o seu dever militar e de patriota.

Quando falávamos deste episódio, o Zé Manel confessou-me:
- Foi dos momentos mais difíceis e mais marcantes que vi na guerra. O Carvalho pediu para o ajudar a limpar os corpos despedaçados, a fim de os meter nos caixões. Ninguém o ajudou. Eu até me afastei porque nem a ele conseguia olhar. É que ele chorava copiosamente, enquanto ia fazendo o serviço sozinho e as suas lágrimas iam caindo sobre os corpos mutilados.

Nesta parte da narrativa e após uma sentida pausa, o Zé Manel acrescentou:
- O Carvalho foi a pessoa que mais admirei durante a tropa. Não imaginas o trabalho dedicado que desenvolvia a curar e a apoiar as pessoas doentes e carenciadas. Ele queria atender toda a gente e não tinha medicamentos nem condições para isso. Então inventava. Partia os comprimidos e distribuía-os àqueles que não largavam a Enfermaria.
- Olha que aquela história que se conta sobre o facto de a sua equipa de enfermeiros, colarem o comprimido na testa com um adesivo, é verdadeira. Diziam que, assim, o comprimido fazia efeito durante uma semana…

Devido a essa carência, o Carvalho [ fur mil enfermeiro,] deslocava-se amiúde a outros quartéis e destacamentos para arranjar mais medicamentos.


O Zé Manel e o António Carvalho mantêm a sua grande amizade desde os tempos de Mampatá (1972-74).

************

Os piores momentos de combate foram vividos nas emboscadas no percurso onde se estava a abrir a estrada de Aldeia Formosa para Nhacubá e Cumbijã. A zona era perigosa mas, segundo os camaradas que foram substituídos, se se evitasse o embate com IN, este também não chateava muito.


Despojos de guerra 

Por José Manuel Lopes 

“Após um contacto com o IN, regressámos a Colibuia e depois, de Berlietaté Mampatá, com muito material que o PAIGC abandonou no terreno. Fiquei surpreendido com a quantidade de material escolar que ficou espalhado pela picada.


Eu trouxe alguns livros e cadernos (que despertaram imenso a minha curiosidade), além de uma Kalash, uma pistola, um cantil e uma faca de mato. O Gomes, do pelotão de nativos é o 1.º da foto, depois o Amadu, que está carregado com roupa e umas botas que tirou a um guerrilheiro abatido. Do lado direito, um soldado com um ferimento na mão direita, já tratado pelos nossos competentes enfermeiros. 

Quando chamei a atenção do Amadu, que não devia ter tirado as botas ao guerrilheiro IN, o Amadu respondeu-me: 
- Oh Furriel, ele já não precisa mais delas e estas botas de couro são muito melhores do que aquelas que a tropa me deu. 

 Fiquei sem argumentos e limitei-me a encolher os ombros". 


A Fonte de Iroel era local de inspiração poética do Zé Manel 

Normalmente, o Zé Manel não se embebedava. Era muito solidário. Chegava a fazer serviços e operações no lugar de outros camaradas. Nos tempos mais livres, procurava ajudar o Furriel Simões no ensino escolar, convivia com os jovens no desporto e gostava muito de se envolver nos contactos com a população indígena.

Conta o amigo Carvalho que após uma Operação, em que foram mortos dois guerrilheiros do PAIGC, o Zé Manel teve uma crise emocional. Foi ter com ele à Enfermaria, abraçou-me a chorar, enquanto balbuciava:
- Já imaginaste o que os seus familiares vão sentir dentro de dias? É o mesmo que se passaria com os nossos. Meu Deus, para quê esta guerra!?
Já depois do 25 de Abril, o Zé Manel relacionou-se bem com a malta do PAIGC 

O Zé Manel regressou da Guiné em 28 de Agosto de 1974. Do Porto, seguiu de táxi para Esmoriz, onde os pais estavam de férias. Ali, esteve poucos dias. Queria ir para a Régua. Encontrou lá o avô, já com dificuldade de visão. Ele reconheceu o neto pela voz e pelo abraço que lhe deu.
- Calha bem, rapaz, és tu que ficas já com a minha melhor arma de caça. Toda a família a quer, mas eu quero que fique para ti.
- Desculpe, avô, mas não a posso aceitar. Fiz uma jura em como não pegaria em mais nenhuma arma. Só quero paz e recuperar a normalidade.
- Ó rapaz, estou a ver que a coisa foi mesmo má. Alegra-te, cumpriste o teu dever e já passou tudo. Dá cá mais um abraço.

Emocionado, o Zé Manel, lembrou-se de prometer:
- Avô, hei-de recuperar a Quinta da Senhora da Graça. Vou reconstruir a casa que ardeu (em 1952), custe o que custar. Vai ser esse o maior objectivo da minha vida.
- Deus te ajude,  rapaz. Não calculas a alegria que me dás.

O Zé Manel não imaginava o dinheiro que o pai amealhara com as suas transferências. Ainda pensou fazer como era hábito: comprar um carro. Pôs-se a pensar na oportunidade única de conhecer o Mundo, especialmente a Europa. Foi à estação da Régua e informou-se de um programa chamado InterRail Passes que lhe proporcionaria as viagens internacionais que desejava. Queria avançar já, mas a mãe chamou-o à atenção de que ele não passara o Natal em casa, nos últimos dois anos. Então, ele prometeu que só sairia depois do Natal.

Saiu da Régua em 28 de Dezembro de 74. Correu a Europa por onde lhe foi possível. Claro que não pode passar a cortina de ferro. Seis meses depois, encontrava-se na Suíça,  “teso como um carapau”, a pedir trabalho para ganhar para comer e para a viagem de regresso. E foi no Jardim Zoológico de Zurique que se desenrascou.

No regresso, parou em San Sebastian. Subiu ao Monte Igueldo, olhou para a Baía de la Concha e ficou fascinado ao ver três indivíduos de pé sobre umas pranchas de fibra e agarrados a uma vela, que deslizavam sobre as águas com grande destreza e velocidade, entre a praia e a Isla de Santa Clara. Foi o primeiro contacto com essa nova modalidade desportiva, o Windsurf. Abeirou-se deles e manifestou-lhes interesse em comprar uma das pranchas. Eram dois ingleses e um brasileiro. Funcionavam ali como instrutores de novos aderentes, acharam graça à pretensão do Zé Manel, a quem informaram ser preciso aprender primeiro.

Como costumavam deixar lá as pranchas, o Zé Manel aventurou-se a aprender sozinho, durante o início das manhãs, enquanto os instrutores não chegavam. Uns dias depois, verificou que as pranchas estavam à venda, porque os surfistas se iam embora. Afixaram lá o preço em Libras para cada uma. O Zé Manel ofereceu 500 Pesetas. Não tinha possibilidades para pagar mais, mas eles não lhe ligaram. Porém, venderam logo as primeiras, mas demoravam a vender a última. Como tinham que abalar, acabaram por entregar a prancha ao transmontano da Régua pelas tais 500 Pesetas. Despachou a prancha em Vitória e veio a recebê-la na Régua, onde já havia chegado em finais de Outubro de 1975.

Em pouco tempo, o Clube de Caça e Pesca da Régua tornou-se no clube mais activo do norte na promoção da Vela. A escola, sob a orientação e dinamismo do Zé Manel, chegou a funcionar com cerca de 80 entusiastas jovens velejadores.

Hoje, tal como prometera ao seu avô, e graças à grande colaboração de sua mulher Luísa e apoio técnico de seu filho, ocupa e explora a lindíssima Quinta da Senhora. da Graça, desde 1994, Ali se produz o famoso vinho Pedro Milanos. Funciona também como uma excelente unidade de Turismo Rural.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17840: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (45): Questões de sangue

terça-feira, 18 de julho de 2017

Guiné 61/74 - P17598: Estórias do Zé Teixeira (45): O Valente, um homenzarrão, com um coração tão grande quanto o seu físico (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)

Levantamento de mina antipessoal. Foto: © António Inverno (2010).


1. Em mensagem do dia 13 de Julho de 2017, o nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Aux Enf da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70), enviou-nos mais uma das suas estórias com dois protagonistas, o Jorge e o Valente, com sortes diferentes na guerra e na paz.


ESTÓRIAS DO ZÉ TEIXEIRA

45 - O Valente

Mina! - Gritou. - Mina!
Ouve-se quase em simultâneo.

Os picadores aninham e aguardam. O resto do pessoal da coluna, uns deitam-se na berma da estrada em construção, outros, baixam-se expectantes. Numa fração de segundos, o inimigo abre fogo cerrado sobre a frente da coluna. Estava acoitado na mata esperando que uma A.P. que tinha colocado no terreno, um pouco mais atrás bem dissimulada, junto a um tronco de palmeira na berma da estrada, desse sinal de vida. Era junto a ela que iam passar os soldados de proteção à coluna. Seria o momento mais oportuno para abrir as hostilidades, dada a confusão que provocaria. O Inimigo sabia que esta mina facilmente escaparia ao apertado controlo dos picadores pelo local onde fora colocada, no topo do tronco ali perdido, desde que fora arrancado à terra para dar lugar à estrada. Esta maldita esperava silenciosa, enquanto o matraquear das armas e os rebentamentos das granadas se faziam sentir. Os “picadores” como que voaram por cima do campo de minas e estatelaram-se na berma. Tiveram sorte.

De repente fez-se silêncio. Aquele silêncio angustiante para o enfermeiro que aguarda temerosamente ser chamado para acudir aos feridos. Basta um eco de dor e lá vai ele em passo ligeiro, na sua missão de salva vidas, sem olhar a riscos. É o sangue que o chama. É o seu sangue que o impele. Não pensa, corre. Age de forma um tanto inconsciente. Sabe que pode salvar uma vida, duas... esquece a sua própria vida.

Não. Não havia feridos. Apenas silêncios e ouvidos atentos. Olhares cruzados assustavam os medos, enquanto o furriel sapador iniciava o seu trabalho de localização e levantamento das assassinas, ali espalhadas no terreno e eram sete.

Um pouco à frente, nota-se a terra remexida. Centram-se aí os olhares, enquanto se espera a ordem do sapador para avançar. Que será? Talvez um cemitério. Quatro cruzes artesanais estavam bem à vista em plena estrada, por onde se tinha passado no regresso do dia anterior. Não era um cemitério, não. Era um simulacro de cemitério com uma mensagem – Branco vai embora se não queres que te aconteça isto!

O tempo passa lentamente, irritantemente. Nada sucede. Apenas o silêncio daqueles olhos focados no sapador que nunca mais acaba de desenterrar a morte escondida. Era um homem calmo e sereno, nervos de aço, olhar de águia, dedos de sensibilidade extrema. Tinha o seu destino na ponta dos dedos. Lentamente, seguramente, uma a uma... queria vencer mais esta batalha com a morte. É então que o Jorge se levanta do seu lugar e palmilha o troco da palmeira, chegando-se um pouco à frente para ver melhor. Não havia perigo. O inimigo afastara-se. As minas estavam no meio da estrada, bem localizadas...

Mas aquela, oculta mesmo no topo da palmeira mantinha-se silenciosamente expectante. Arreganhou os dentes quando o Jorge a pisou fazendo estremecer os corações dos homens, tanto quanto a terra que a acolheu. Pum!!!!!!!

O Jorge foi atirado para o meio da estrada deixando uma perna pelo caminho. Não gritou. Apenas ficou atónito a olhar para si, todo sujo de pó, sem saber o que lhe aconteceu. O sangue, esse escorria pela perna fora e perdia-se na terra remexida de fresco.

Corre enfermeiro que a uma vida está em perigo! Estava ele tão bem recostado no tronco de uma árvore à espera que o tempo passasse, de olho atento ao sapador.
- Só me faltava esta. - Comentou o enfermeiro e aproximou-se do ferido.

O Jorge, no meio da estrada, agora sim, a gemer de dor, não da perna, mas na alma, ao verificar que algo lhe faltava para ser o Jorge. Veio-lhe à mente, ainda confusa, a imagem da Catarina, a noiva a quem prometera fidelidade. Eram uns românticos que o afastamento da guerra não conseguia vencer. Escrevia-lhe todos os dias e recebia “toneladas” de aerogramas no dia do correio. Agora, já não era o seu Jorge. A guerra apossara-se dele de forma inglória. Ela não ia aceitar um Jorge estropiado. Para quê viver. E o Jorge chorou de mágoa.

O enfermeiro chegou num ápice. Viu o Jorge no meio da estrada, mesmo ao lado das minas que o sapador teimava em levantar. O Jorge, as minas e o enfermeiro travaram um diálogo surdo.
- Vou buscá-lo, arrastá-lo para a berma?! Não haverá mais minas?! Trato-o mesmo ali?! - Interrogava-se o enfermeiro enquanto abria a bolsa e procurava o material de apoio. E o Jorge gemia. Gemia na alma e no corpo dorido, esfacelado...

Foi então que o Valente, um homenzarrão, com um coração tão grande quanto o seu físico, agarrou no enfermeiro pelo braço e disse com voz de comando.
- Vamos buscá-lo!
E foram. E trouxeram-no para a berma.

Este Valente, já não está entre nós, a morte apossou-se dele há menos de um ano.
O Jorge casou com a Catarina e ainda hoje são um casal feliz.

José Teixeira
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Nota do editor

Último poste da série de 3 de janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16914: Estórias do Zé Teixeira (44): A “puta” passa o seu tempo à sombra do cajueiro, junto à porta do Comando (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)