Meu Caro Carlos Vinhal
O Silêncio dizem ser de ouro. Vale muito e se o ouro tem subido de cotação.
Certo, certo é que nada tenho dito. Não me apetece necessito de um viagra para contadores de "estórias". Também estive engripado. Mais gripado do que en.
Assim fui vendo as novas modas. Um ou outro comentário. Mesmo assim deve arrepiar ...será? Creio que não.
Ouvia o Benfica ao longe, som de fundo, bonito o som e arrumei umas letras... e por que não um dos meus amuletos??? Pois, meu caro Carlos aí vai, e eu te ofereço a estória deste amuleto. Está ali. Um dia mostro-te. É bonita.
O escrito é teu, é vosso, e dele farão o que entenderem.
Um abraço do Torcato (se recebeste e disseres OK, agradeço)
Torcato Mendonça
2.º GCOMB/CART 2339
ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 25
AMULETO
Soou, quase como um clarim, a voz estridente e ríspida do Furriel, ainda a manhã dormia.
- Está a levantar… está a levantar.
Tudo ainda era silêncio, todos se entregavam nos braços de Morfeu.
Ele não, ele já estava levantado, barbeado, aprumado, pronto. Até o quico estava impecavelmente colocado.
- Está a levantar…fod…
Olhou-o a um só olho. Manteve o outro de reserva, fechado e a resguardar-se, ainda, das lâmpadas alimentadas aos soluços pelos “Lister”.
Que tipo este. Uma máquina, sempre pronto e sem falhas. A continuar assim ainda vai a Sargento. Era isso. O tipo tinha ares de Sargento. Mas dos porreiros, claro.
Abriu então os olhos, aconchegou o material nos calções e espreguiçou-se urrando. Só depois, ainda devagar, se foi levantando.
Todas as gentes do abrigo se aprontavam rápidas, gestos mecânicos, conversas brejeiras, risos jovens, corpos a deixarem a nudez e a sentirem o desconforto dos camuflados duros e envelhecidos. A seguir vinham cinturões e cartucheiras, granadas e outro material. Curiosamente, à medida que se aprontavam, a alegria ia desaparecendo. Iam endurecendo as faces jovens de meninos soldados.
Aprontou-se ele, mais rápido agora, dando um olhar final pelo material preparado de véspera e, agarrando nas armas e no bornal, saiu.
Enquanto comia, ouvia o Capitão. Recebia ordens, papeis, e tomava uma ou outra nota. A rotina habitual.
- Quanto tempo tem disto?
- Eu? Para aí ano e meio, sei lá. Tenho tempo demais, tempo demais.
Saiu e dirigiu-se à coluna já pronta. Um simples menear de cabeça e tudo estava a andar. A pé claro. A pé até perto de Samba Juli, cerca de uma dúzia de quilómetros picando cuidadosamente a estrada, dura e seca naquela época do ano. Não facilitavam nada, nem ele nem os outros. Mantinham as rotinas habituais e a máxima “o suor poupa sangue”.
O olhar a tentar tudo ver, tudo sentir que dessa rotina fugisse.
Iam devagar, um quilómetro e mais outro, a picada de Candamã para a direita.
- Não vamos por Candamã?
-Não.
- Então ainda hoje vamos a Bafatá.
- Se der tempo, se der tempo. Vão vocês e voltam logo. Logo se vê.
O Pontão do Almami aparece e os cuidados redobram. A subida suave, a zona à volta da estrada desmatada. Abre o campo de tiro ao IN ou facilita a manobra das NT? Uma dúvida que se manteve e controversa.
A frente da coluna faz uma paragem breve. O cão, Geba, farejou algo. Picam mais forte e segue a coluna. Redobram os cuidados, ouvidos mais atentos, olhares a entrarem mata adentro.
De repente tudo pára. São décimas ou milésimas de segundo, são o breve instante, a paragem de tudo, o inexplicável, a separação entre a vida e a morte.
De repente tudo parece desabar, acaba o silêncio e tudo explode em sons de morte, de loucura, sons de rebentamentos, tiros, granadas, gritos, berros e a violência extrema está presente. Todos sabem o que fazer, como fazer e, quais autómatos, reagem na explosão máxima, na máxima força.
- O rádio, o rádio….
- Estamos a embrulhar a seguir ao Pontão. Quebec x a Quebec Y varre tudo com os 10.5. O 81 na picada de Candamã. Deviam estar lá. Fogo nesta merda toda.
E o som lindo dos 10,5 e 81 ouvem-se e outro som aparece vindo das garganta daqueles homens. Riem e reagem mais forte, com mais alegria.
Lindo, lindo aquele som e chegam os camaradas vindos do aquartelamento.
Os sons vão perdendo força, a alegria está presente pela ausência de feridos e o rescaldo começa a ser feito por quem veio do aquartelamento.
Emboscada curta, vinte minutos talvez.
Encosta-se a uma árvore e ouve as explicações, o pedido de reforço de granadas e os preparativos de nova partida.
- Olhe aí. Os tipos acertaram em cheio na árvore. Olhe aí. Dia de sorte.
Viu os orifícios das balas. Uma, curiosamente mais saída. Puxou da “Zézinha”, a faca de mato, e extraiu a bala quase intacta. Mirou e remirou. Será de que arma?
- Da sorte. Da sorte que você teve.
- Merda. Merda para a sorte.
Guardou a bala no bolso e a coluna seguiu.
Vinte anos depois, menos. Talvez muito menos mandou-a banhar em prata e colocar uma argola na parte mais grossa.
Desde aquele dia acompanhou-o sempre. Virou amuleto.
Está aqui a olhar-me ou sou eu que para ela olho. Certo é que ainda consigo sorrir, talvez com menos alegria do que outrora.
Seria impossível e faltavam os sons.
Fica só a “sodade, sodade… da Cesária Évora…
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 26 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7505: Blogoterapia (170): A Casa da Praia (Torcato Mendonça)
Vd. último poste da série de 2 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 – P7214: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (24): Cabrais