O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.
AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU
Libaneses
Desafiando a distância no tempo, proponho-me embarcar com suavidade no repto lançado pelo nosso camarada e editor do blogue, Luís Graça, trazendo à opinião pública a questão dos libaneses que viviam na Guiné na época em que cada um de nós cumprimos a nossa comissão militar naquela antiga província ultramarina.
Nomes? Não sei! Sei, e disso tenho absoluta certeza, que em Nova Lamego, urbe onde cumpri a minha comissão, os libaneses detinham maioritariamente o poder comercial. Afáveis, como era costume, prontificavam-se em servir com gentileza a tropa branca.
Recordo que o recheio de uma loja libanesa oferecia imensas opções de compra. Naquele espaço existiam qualificáveis objetos que colocavam infinitos desejos num mancebo sem medo que vivia num mundo de arriscados sonhos, sendo absolutamente previsível que a sua bagagem de regresso à metrópole fosse recheada de muitas ofertas para as namoradas, família e amigos.
Tudo era novidade. E os libaneses eram perfeitos sabichões na arte de aliciar o cliente que vivia um momento eufórico e vislumbrando no horizonte o fim da guerra na Guiné.
Eu fui um desses clientes que se predispôs a comprar não só ilusões mas outros bens que se assumiram como essenciais ao longo da minha comissão por terras guineenses.
Neste contexto, cito a exemplaridade que a máquina fotográfica comprada quando cheguei a Nova Lamego, e numa loja de libaneses, me facultou para a minha última obra denominada GUINÉ-BISSAU AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU.
Eis a narrativa quando cito no livro a sua afetividade para um camarada que conheceu a guerra e a paz.
A minha máquina fotográfica Olympus
Obrigado pelas tuas imagens
Olho, hoje, para ti e relembro os momentos em que foste, para mim, uma insofismável companheira! Comprei-te numa loja de libaneses, em Nova Lamego. A aquisição baseou-se, essencialmente, sobre uma carência pressupostamente sentida quando ostentava, ainda, a alcunha de piriquito. Optei, no ato compra, pela marca que já conhecia e fiz menção que o seu manuseamento fosse o mais simples possível. Vislumbrava no horizonte que poderias, em momentos crucias, debitares imagens capitais para mais tarde recordar.
Seguias viagem no bolso do camuflado e a tua humilde ação apresentou-se, a espaços, importante para a reposição de reproduções que nos leva a viajar nas asas do vento e trazer à memória pedaços de indeléveis recordações. O seu aspeto simples, e de mecânica sumária, jamais me deu o mínimo de problemas ou/e de preocupações. Ou seja, a minha Olympus era uma máquina divinal. Não recordo o seu custo exato. Talvez uns quinhentos ou setecentos e cinquenta mil réis.
Afirmo, por outro lado, que a generalidade dos documentos visualizados nesta obra, tiveram como base aquele pequeno brinquedo que teimosamente acostou junto a este combatente - sem nome - que prestou serviço militar em território da Guiné.
O clique não obedecia a cuidados antecipados. A visualização do objetivo não apresentava dificuldades pré concebidas. Colocava a máquina na posição de automática e saía, normalmente, uma imagem de se lhe tirar o chapéu. Com ela, a minha Olympus, recolhi pormenores de gentes que viviam no meio de duas frentes de guerra que impunham leis horrendas no terreno.
Recolhi imagens de crianças que muito cedo se habituaram a ouvir os sons horripilantes das armas de fogo que serviam simplesmente para matar outros homens considerados inimigos. Imagens de homens e de mulheres grandes que serviam, por vezes, de fúteis objetos. Em prol da sobrevivência tudo se aceitavam.
A guerra, a tal maldita guerra, traçava horizontes deveras débeis. Melhor, medonhos.
Gentes que caminhavam para o campo com uma aparente ligeireza. Pareciam conhecer, e bem, os trilhos do medo. E tudo se conjugava numa irreverente certeza: a população era um alvo apetecível para as duas frentes de guerra no terreno. E o povo sabia que eram seres importantes num xadrez de incertezas.
A minha Olympus acumulava, pausadamente, registos que nos fazem recuar no tempo e trazer à estampa nacos de memórias inesquecíveis. Fomos combatentes na Guiné.
Convivemos, no meu caso, com a guerra e a paz. Conhecemos o odor da desgraça. Vimos companheiros perderem a vida em plena juventude e a defenderem interesses alheios.
Estropiados que sempre reclamaram uma maior justiça social. Outros que ainda coabitam com traumas psíquicos de um conflito que lhes quebrou uma vida saudável. Outros que tentam passar imunes a problemas mentais que sistematicamente lhes causam problemas no seio familiar ou na comunidade.
Enfim, um rol de odores de um tempo sem tempo que desafiou gerações transversais e que nos obrigou a combater num conflito sem rumo.
À minha Olympus, que continuo a guardar devotamente no baú da saudade, vai o meu muito obrigado.
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em: