segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3335: Controvérsias (6): O acidente aéreo de 25 de Julho de 1970 (Carlos Ayala Botto)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Março de 1969 > Op Lança Afiada > Um Helicóptero Allouette III. Em primeiro plano, o nosso camarada e amigo Paulo Raposo, na altura Alf Mil da CCAÇ 2405 (Mansoa e Dulombi, 1968/70) uma unidade que dois meses antes tinha perdido 17 dos seus homens no desastre de Cheche, no Rio Corubal, na retirada de Madina do Boé, em 6 de Fevereiro de 1969.

Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados .

1. Mensagem, com data de hoje, do Cor Cav Ref Carlos Ayala Botto, prezado membro da nossa Tabanca Grande desde Janeiro de 2007 (*):


Caro Luís Graça:

Na semana passada enviei um mail com mais alguns pormenores do acidente de helicóptero na Guiné e onde morreram os deputados e os militares que os acompanhavam. Devo ter enviado para um endereço errado, pois ele nunca foi publicado no nosso blogue e eu penso que tem interesse (**).

O acidente ocorreu no dia 25 de Julho de 1970, quando os deputados regressavam a Bissau, onde o avião da TAP já os esperava no aeroporto para virem para Lisboa. O tempo estava péssimo, mas foi decidido fazerem a viagem.

Eram 3 helicópteros e, quando se viram no meio de grande borrasca, 2 ainda conseguiram aterrar numa pequena ilha no meio do rio Mansoa, mas o 3º não o fez e despenhou-se, morrendo não só os deputados, o piloto e o mecânico como também o Capitão de Cavalaria José Carvalho de Andrade (era do meu curso) que os acompanhava.

Sei que o Comandante da esquadrilha e piloto de um dos helicópteros era o hoje Coronel Cubas a quem, se o localizarem, poderão pedir mais esclarecimentos.

Um abraço

Carlos Ayala Botto

2. Comentário de L.G.:

Obrigado, coronel, pelo seu contributo. Confirmo que não recebi o seu mail anterior. Continua a haver, entre nós, uma pequena divergência quanto às datas. Na Liga dos Combatentes, na lista dos Mortos no Utramar, consta o nome do Cap Cav José Carvalho de Andrade, morto, por acidente, na Guiné, em 25/7/70. O nosso pesar pela perda deste seu camarada de curso e nosso camarada da Guiné, e que até agora ninguém referira.

3. Em data posterior a este poste, em 20 de Outubro de 2008,e em resposta ao meu comentário, Ayalla Botto mandou o seguinte mail:

Caro Luis Graça:

Não tenho dúvidas que a data certa foi 25 de Julho. Lembro-me perfeitamente que na manhã desse dia tentei contactar telefonicamente o Cap Carvalho de Andrade e fui informado de Bissau que ele estava fora acompanhando os deputados. Se calhar àquela hora já tinha morrido…

Ele estava de fim de comissão e tinha-me pedido para receber em Lisboa o carro dele que estava a chegar a Lisboa. E eu fui de propósito nesse sábado ao Regimento de Lanceiros 2, onde estava colocado... Nessa mesma tarde fui informado do acidente.

São coisas que não esquecem pois ele era muito meu amigo.

Um grande abraço

Carlos Ayala Botto

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 6 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1407: Tertúlia: apresenta-se o Coronel de Cavalaria Carlos Ayala Botto, ajudante de campo do General Spínola

(**) Vd. postes de:

11 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3296: Controvérsias (4): O acidente aéreo de 26 de Julho de 1970 (Jorge Picado)

10 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3292: Controvérsias (3): O acidente de helicóptero que vitimou Pinto Leite (J. Martins / J. Félix / C. Vinhal / C. Dias)

domingo, 19 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3334: O meu baptismo de fogo (14): Cachil, Ilha do Como, meia-noite, 25 ou 26 de Janeiro de 1964 (José Colaço)

Guiné > Região de Tombali > Ilha do Como > Cachil > 1964 > CCAÇ 557 (1963/64) > Quartel do Cachil > O José Colaço no seu "posto rádio fixo que era meu posto de trabalho. Todos os dias tinha 12 horas de serviço e o meu camarada Dias outras 12. Este posto rádio, como se pode vêr era protegido por terra pelos camaradas de armas e pelo ar por todas as estrelas do céu" (JC) (*).

Foto e legenda: © José Colaço (2008). Direitos reservados.

1. O meu baptismo de fogo
(**)

por José Colaço, ex-soldado de transmissões, Ilha do Como, Operação Tridente

Os factos são de memória porque os apontamentos que tinha foram destruídos num daqueles momentos em que o pensamento deve estar bloqueado e só consegue assimilar o presente.

Como fui destacado para Ilha do Como, tinha que ser no Como. Desculpem o empata, mas tenho que fazer um pequeno preâmbulo.

Nós chegámos à ilha do Como na tarde de 23/01/1964, nessa noite acampámos numa zona onde o capim tinha sido queimado pelo inimigo para dificultar a nossa progressão. No dia seguinte mudaámos de local e assentámos praça na pequena mata do Cachil e que nós crismámos por mata Chata, distava aí cerca de duzentos a trezentos metros da grande mata do Cachil.

Na noite de 25 ou 26 aí por volta da meia-noite começa a festa, o inimigo instalado na grande mata do Cachil e nós na pequena mata do Cachil (mata Chata).

O inimigo com as celebres costureirinhas, possivelmente uma ou duas metralhadoras e os cartuxos luminosos, estes não matam mas criam um estado psicológico que não é possível descrever... Estar metido num buraco em que não se vê um metro de distância e de momento tudo iluminado por segundos com várias cores que quase faziam lembrar o arco-íris.

Nós: as munições que dispúnhamos era o normal que um militar leva, num máximo sete carregadores de G3 e já vai bem carregado.

Havia de facto mais uns dois ou três cunhetes de munições, umas poucas granadas de morteiro 60 e bazuca. Material que era transportado por secção de carregadores negros, (os desgraçados chamados burros de carga).

O meu receio (ou mais correcto, medo) era que com tanto fogo as munições se esgotassem. E nós éramos apanhados a mão numa luta de corpo a corpo.

Fugir, como? Numa ilha com um rio juncado de jacarés nem o Baptista Pereira conseguia sair de lá com vida.

Recordo vozes que se ouviam à meia língua: Estamos cercados de fogo por todos os lados.

Nessa noite não sofremos nenhum ferido, porque as nossas amigas palmeiras protegeram-nos bem.

Passado cerca de uma hora mais ou menos, o inimigo deve-se ter cansado ou esgotou as munições e seguiu para a mata do Cassacá, porque quando rompesse a manhã já ele tinha que estar à defesa porque o ataque das nossas forças tanto do lado de Caiar como do Cachil era constante.

Eis aquele que eu considero o meu baptismo de fogo, porque desde o desembarque da LDM até ao Cachil já tinha apanhado uns salpicos de água benta, quer dizer uns tirinhos isolados de aviso e também uma ou duas rajadas isoladas.

Mas nessa noite foi mesmo a sério.

Um alfa bravo

Colaço

PS - Ao ler a homenagem do Vírginio Briote, ao batalhão 490, onde se lê "e tinham razão aqueles que, já naqueles primeiros anos de guerra, diziam abertamente que estávamos a travar uma guerra errada e sem sentido"... Subscrevo e assino.

Mas isto relembra-me uma pequena estória passada na minha companhia, a CCAÇ 557.

O furriel Abreu, vago mestre que para tal especialidade não tinha vocação e acabou por fazer uma troca com o furriel Estrela.

Mas o Abreu tinha o bichinho da representação teatral e naquela pequena mata do Cachil, Mata Chata, tendo por fundo o pé do Poilão ou embondeiro do Cachil, representava para um núcleo restrito de militares de confiança, (não fosse o diabo tecê-las): O Salazar a fazer através da RTP a última comunicação ao País, porque já tinha perdido todo o império colonial.

E terminava mais ou menos assim, imitando a vós do Salazar:
- Portugueses, nesta hora dramática uni-vos todos e vamos defender as Berlengas!

As Berlengas naquele tempo nem no valor turístico que têm hoje se falava.

E assim se passavam uma parte dos dias no isolamento do Cachil.

_________

Notas de L.G.:

(*) José Colaço, ex-Sold de Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65:

Vd. postes de:


2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2912: Tabanca Grande (73): José Botelho Colaço, ex-Soldado de Trms da CCAÇ 557 (Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65)

20 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2970: Ilha do Como, Cachil, Cassacá, 1964: O pós-Operação Tridente (José Colaço)

29 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3099: Os Nossos Regressos (13): Fundeámos ao largo, com as luzes de Cascais...(José Colaço, Cachil, Bissau, Bafatá, 1963/65))

9 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3287: Controvérsias (2): Repor a realidade vivida, CCAÇ 557, Cachil, Como, Janeiro-Novembro de 1964 (José Colaço)

(**) Vd, últimpo poste da série:

18 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3327: O meu baptismo de fogo (13): Tite, 1964 (Santos Oliveira)

Guiné 63/74 - P3333: Controvérsias (5): Fimes e Constantes: era possível dois batalhões terem mesmo lema ? (Júlio César)

1. Mensagem do nosso camarada Júlio César. membro da nossa Tabanca Grande desde Julho de 2007, ex-1º Cabo, CCAÇ 2659 / BCAÇ 2905 (Cacheu, 1970/71) (*):

Caro amigo Luís Graça
Estou a ler o Poste P3330, em que se dá a conhecer à tertúlia um novo camarada da Guiné, no casa Arménio Vitória, que esteve em Cacine integrado na CCAÇ 799 (**).

Já fiz um print para o meu amigo Boaventura Videira (**), para que saiba que o pedido dele não foi em vão, embora, como é dito, não foi propriamente em Cacine que ele tinha estado, mas sim em Buba, que era a sede o batalhão e seria com os elementos deste, com quem ele mais gostaria de privar.

Feita esta introdução, a minha questão é a seguinte: Verifico que o lema deste batalhão 1861 era: FIRMES E CONSTANTES. Era possível que um outro batalhão formado posteriormente, pudesse usar o mesmo lema? É que, como se pode verificar, o Batalhão 2905, ao qual pertenci, também tem como lema: FIRMES E CONSTANTES.

Esclarece-me... se for possível
Muito obrigado

Um Alfa Bravo a toda a Tertúlia
Júlio César


2. Comentário de L.G:

Amigo e camarada Júlio, tu mesmo deste a resposta a esta intrigante questão (***): duas unidades podiam ter, de facto, o mesmo lema... A prova disso são os exemplos que tu apresentas, os BCAÇ 1861 e 2905, ambos... Firmes e Constantes. Afinal, quem controlava a criação de brasões e lemas das nossas unidades ? A máquina burocrática do exército não era, afinal, tão eficiente quanto nós a julgávamos... Mais difícil era um mancebo, no nosso tempo, escapar à malha da apertada rede dos recrutadores militares... Tu não escapaste, eu não escapei... Obrigado pela pertinência e opotunidades da tua pergunta. Pode ser que alguém, mais conceituado e melhor informado do que eu sobre estas matérias militares, te possa dar uma resposta convincente.
__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1931: Tabanca Grande (24): Júlio César, ex-1º Cabo, CCAÇ 2659 do BCAÇ 2905 (Cacheu, 1970/71

(**) Vd. poste de 13 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3309: Em busca de... (44): Camaradas do BCAÇ 1861, Buba, 1965/67 (Boaventura Alves Videira)

(***) O último poste desta série Controvérsias foi o de 11 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3296: Controvérsias (4): O acidente aéreo de 26 de Julho de 1970 (Jorge Picado)

sábado, 18 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3332: O meu baptismo de fogo (13): Tite, 1964 (Santos Oliveira)


1. Mensagem de Santos Oliveira, ex-2.º Sarg Mil Armas Pesadas Inf do Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66 (*), com data de 16 de Outubro de 2008, com a sua contribuição para a série O meu baptismo de fogo:

Vinhal

Não sei se o meu ou os meus baptismos de fogo interessarão a alguém. Estão encadeados noutros episódios e isso (ainda bem) parece ter diminuído todo o impacto que a cada um de nós causou (ou causava).

Se bem te parecer não tenhas qualquer relutância em fazeres censura. Eu entendo. Talvez por isso não tenha escrito nada.
Não estou distraído com o Blogue nem com o que por lá se vai passando. Quando tiver de intervir, bem sabes que o farei.

Um abraço a esse nosso Mundo
Santos Oliveira

PS: Depois dá uma qualquer dica sobre o que se te oferecer dizer

2. Comentário de CV

Peço ao Santos Oliveira e a todos os camaradas que não usem a palavra censura. É ofensiva a quem, por carolice, mantém o Blogue activo, dando voz a quem talvez não tenha outro meio para poder trasvazar os seus recalcamentos, desabafar e criar amizade com aqueles que sentiram os mesmos problemas, que melhor os compreendem, os seus camaradas.

Volto a repetir o que tantas vezes já disse. Se não dermos seguimento a alguma mensagem portadora de textos ou fotos para publicação, mandem outras de protesto, de lembrança, mas não nos acusem de censura. O que não publicarmos não é por motivo de censura, mas por esquecimento ou incompetência.

OBS:-Sublinhados da responsabilidade do co-editor


3. O meu baptismo de fogo
por Santos Oliveira

Se der para sorrir, já é um grande serviço prestado à nossa Comunidade de Veteranos.

Cheguei a Bissau a Bordo do N/M Manuel Alfredo, no dia 19 de Setembro de 1964.
Após a transmissão de poderes de Comando das mais de 60 Praças (como eu, em Rendição Individual), lá fui encaminhado, com o meu assessor, Fur Mil At Infª Carlos A.S. Costa Brito (Pel Ind Caç 956) paro o QG, a fim de fazer as Apresentações da praxe.



Próximo, como foi, da hora de jantar, lá me apressei, com as condicionantes ridículas de ainda não poder ser contemplado com o devido repasto. Depois de algumas fricções lá tive direito à minha refeição de... muitas espinhas e pouco bacalhau.
Novo problema surgiu quando me foi comunicado que só pelas 6 horas da manhã do dia imediato é que teria maré e barco, para me levar na travessia do Geba, até ao Enxudé (mais ou menos 14 Km).

Do mesmo modo também não havia alojamento para nos receber por uma noite.
Puxa para aqui, puxa para ali e lá nos foi disponibilizado um colchão para que pudéssemos encostar a um qualquer canto. Isto demorou imenso e a noite já começava a ser longa.

O primeiro ataque, o grande ataque, foi dos mosquitos, que nos mantinha, obrigatoriamente alerta; é que nem dava para se ter a cabeça debaixo do lençol, pelo calor e pela inabituação climática.

Eis que se começam o ouvir os primeiros rebentamentos e tiros isolados, depois umas quantas rajadas, toda a gente a correr numa desordem mais que caótica, mais uns rebentamentos e... o silêncio.

Parece que os Camaradas do BCAÇ 600, ou da Companhia que lá estava (agora não recordo) já estavam habituados a estas recriações.
No final, quase na hora de ter que vir para o barco, fiquei a saber que as Tropas Nativas levavam para a Tabanca as suas armas e munições e o Copilão não era um local muito sossegado pela noite.

E estive eu a interrogar-me que se o IN era assim no QG e em Bissau, como seria quando chegasse ao Mato?

Lá embarquei para Tite, cheguei ao Enxudé e logo tive contacto com os que seriam os meus Companheiros do Pel Mort 912 que aí estavam em Destacamento; mas havia que fazer as formalidades de apresentação ao CMDT do BCAÇ 237/599, Ten Cor Hipólito e Maj D Gama. Para isso teria que aguardar a coluna que, diariamente, fazia aquela ligação.

Tite > Na foto, a messe de Sargentos reporta a 1964, ainda com o BCAÇ 599.

Apresentado em Tite, logo se me deparou o mesmo improviso tanto na alimentação como no alojamento. Desta feita, nem tive direito a um colchão, mas a uma maca de enfermaria.

Lembro-me que me valeram os Fur Mils Miguel Silva e José Manuel Concha, ao improvisarem um mosquiteiro para que não fosse mais comido por esses malfadados amigos picadores e zumbidores.

Quando, finalmente tudo parecia ir dar uma boa noite de sono, o IN fez a rebentar, a festa do costume.

Lembro ter dito ao Miguel:

- O que fazemos, pá? Eu nem tenho arma distribuída!

Ele disse para o seguir e ficar próximo.

Lá corremos para trás dos bidões cheios de terra até tudo terminar.
Ou não tive medo ou não tive consciência da gravidade do que se passava.
Mas foi extremamente útil para mim ver que a impreparação militar e psicológica das NT e, isso, eu teria de corrigir. Até se me tornou muito positivo.

Tite > Foi por trás destes Bidões que me fiquei com o Miguel.

Fotos: © Santos Oliveira (2008). Direitos reservados.


E foi assim que entendo ter sido um (ou dois?) baptismo de fogo, onde outros factos mais marcantes, apagaram toda a expectativa desse momento solene.
_______________

Nota de CV:

Vd. poste de 15 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2352: Ilha do Como: os bravos de um Pelotão de Morteiros, o 912, que nunca existiu... (Santos Oliveira)

Guiné 63/74 - P3331: O meu baptismo de fogo (12): Aldeia Formosa, 23 de Abril de 1970: realiza-se a premonição de um furriel enfermeiro (Manuel Amaro)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf, CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71 (*)

Caro Luís Graça,

Com o meu pedido de desculpas por ocupar este espaço, que estará mais adequado às histórias dos nossos camaradas operacionais, atrevo-me a relatar à Tabanca, o meu baptismo de fogo (**).

É o baptismo de fogo de um furriel enfermeiro, destacado no Posto Escolar.

No final de 1969, Aldeia Formosa era um lugar pacífico. Situação que se manteve até 20 de Março de 1970. Por vezes, à noite, ouviam-se uns rebentamentos, mas sempre à distância, mais para sul.

Até que um dia, há sempre uma primeira vez para tudo, o Pelotão do Alf Martins sofreu três emboscadas de que resultou um milícia morto (roquetada no tórax) e cinco feridos ligeiros.

Terminei as aulas mais cedo para que os alunos não assistissem à chegada do pelotão com os feridos e o morto e dirigi-me para o posto médico. Enquanto a equipa de saúde tratava dos feridos, o Keba Sanhá entregou-me o morto que tinha transportado às costas, embalado num pano de tenda. Missão: utilizar uma maca como suporte para recolocar cada órgão no seu lugar, de forma que o corpo fosse entregue à familia para efectuar o funeral.

Duas horas depois, com muito trabalho, silêncio absoluto, algumas lágrimas, a missão estava cumprida.

A vida continuou e passadas quatro semanas, a 18 de Abril [de 1969], nova emboscada: dois soldados mortos. (Os primeiros e únicos mortos em combate, da CCaç 2615).

Desta vez fui "poupado" pela equipa de saúde e fiquei livre para dar apoio moral ao meu amigo Jorge Leitão, furriel de Operações Especiais, a imagem da raiva e do desespero, sem encontrar explicação para o que lhe tinha acontecido.

O ambiente ficou pesado. As conversas na messe e nos quartos giravam sempre à volta do mesmo assunto. Finalmente, aos seis meses de comissão, tinha começado a guerra.

(Na noite de 22 para 23 de Abril, tive um sonho/pesadelo. Eu, que dormia sempre tranquilamente, acordei em sobressalto. Nesse sonho, surgia um avião IN, voando baixo, com um foco de luz para localizar os alvos. E onde é que eu me protegi contra o avião? Nos abrigos de Aldeia Formosa? Não. O meu esconderijo era um tanque/piscina, protegido por uma frondosa nogueira, numa quintinha, com uma casa amarela, que ainda hoje existe, perto do antigo CISMI, na estrada Tavira/Santa Luzia, onde eu passei as férias de verão de 1962.)

Entretanto, a vida no quartel de Aldeia Formosa continuava com uma rotina de paz. Até o corneteiro tocava para o almoço. E no dia 23 de Abril de 1970, poucos minutos depois das 11h30 começou o toque para o primeiro turno ir almoçar. Quase em simultâneo o IN inicia o ataque ao quartel, com armas ligeiras e pesadas, muito perto do início da pista de aviação.

Corri para o abrigo com uma turma de cerca de trinta alunos, previamente treinados.
A resposta das NT foi um pouco lenta, pois naquele momento, mais de metade do efectivo estava de marmita e não de G3.

Lembro-me de ouvir o Alferes do Pelotão FOX gritar: Vou fazer tiro directo... e pensei que com o Obus a disparar, a situação estava controlada. E assim aconteceu...

Foi um baptismo duro. Senti alguma raiva por saber que o IN estava ali tão perto, mas já estava preparado... e depois, aquele sonho/pesadelo alertou-me ainda mais para a possibilidade de acontecer algo semelhante...

Concluindo, o baptismo foi a única vez que estive debaixo de fogo. Durante toda a comissão, não tive oportunidade de disparar um único tiro. A última vez que disparei a minha G3 foi, algures, nos arredores de Évora, um tiro certeiro, como deve fazer um bom atirador, para destruir o prato que tinha utilizado na semana de treino.
A minha missão nesta guerra... foi de paz.

Um dia destes eu escrevo mais um capítulo.

Um Abraço
Manuel Amaro
Fur Mil Enf
CCAÇ 2615
___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de 22 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3223: Convívios (85): Pessoal da CCAÇ 2615, no dia 18 de Setembro de 2008 em Benavente (Manuel Amaro)

29 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2895: Tabanca Grande (72): Manuel Amaro, ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2895 (Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71)

(**) Vd. poste de 16 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3325: O meu baptismo de fogo (11): Mampatá, 20 de Fevereiro de 1973 (António Carvalho)

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3330: O Nosso Livro de Visitas (37): Arménio Vitória, CCAÇ 799/BCAÇ 1861, Cacine, 1965/67


Mensagem, com data de 14 de Outubro, do nosso camarada Arménio Vitória (*) para o tertuliano Júlio César, com conhecimento ao nosso Blogue:

Caro amigo:

Estive na Guiné, em Cacine, no período 1965/67, integrado na CCAÇ 799, que pertencia ao Batalhão que refere: 1861.

No entanto:

1 - Não fui com a Companhia; só me integrei nela indo em rendição individual (acho que era assim que se dizia) para substituir um militar que pisou uma mina e..., não participando portanto no processo de formação da Companhia;

2 - Entretanto e recentemente, por alguma pesquisa que fiz, soube que a Companhia 799 era independente, formada no RI 15, e foi já na Guiné que foi mandada para Cacine, integrando-se então no Batalhão 1861;

3 - Não havia portanto grande ligação entre a CCAÇ 799 e o BCAÇ 1861, embora obviamente dele dependesse;

4 - Aliás nem grande nem pequena; a única coisa de relevante de que me recordo do BCAÇ 1861 é do seu Comandante (Ten Cor ?) e do desejo imediato que todos tínhamos de sair em patrulha para o mato quando, em duas ou três vezes, visitou Cacine. Preferíamos arriscar... do que aturá-lo. Tinha um conceito muito especial da disciplina e qualquer porradita, como se lembra, lixava a vinda de férias. Chamavam-lhe D. Dinis, julgo. Preocupava-se mais com as couves do que com o resto;

5 - Portanto nunca tive qualquer ligação com pessoal desse Batalhão, a não ser claro com o da minha Companhia, não o podendo ajudar;

6 - Para terminar: organizo regularmente o encontro do pessoal da minha Companhia, que aconteceu no sábado passado, e é com essa experiência que o incentivo fortemente a empenhar-se no seu objectivo que, como se diz militarmente, é muito remunerador.

Em termos de ajuda aconselho um contacto com o Jornal ELO [jornal.elo@adfa-portugal.com]; por vezes fazem também a ponte nestas situações.

Por mim fico à sua inteira disposição. Já agora e como incentivo anexo uma foto do pessoal da minha Companhia que se reuniu no sábado passado.

Abraço
Arménio Vitória

2. Mensagem enviada no dia 16 de Outubro de 2008 a Arménio Vitória

Caro Arménio:

Após este segundo contacto, não podemos deixar de te pedir para te juntares a nós.

Já deves ter percebido quais os nossos objectivos e os nossos princípios. Se quiseres pertencer ao nosso Blogue, também conhecido por Tabanca Grande, manda uma foto do teu tempo de tropa e outra actual, para a nossa fotogaleria, e para acompanhar os teus trabalhos a publicar na nossa página.

Estamos receptivos às tuas histórias e às tuas fotografias.

Por uma questão de registo, diz-nos qual foi o teu posto militar e a tua especialidade. Por falar em postos, aqui não se fazem distinções entre antigos postos militares, posições sociais actuais e até idade. Pisámos o mesmo chão, passámos as mesmas dificuldades e isso é suficiente para nos tornarmo-nos verdadeiros camaradas e tratarmo-nos por tu.

Se estiveres de acordo, a porta está aberta à tua espera.

Recebe um abraço dos camaradas da Tabanca Grande.
Carlos Vinhal
Co-editor

Nota de L.G.:

Arménio, sê bem vindo a esta Tabanca Grande. Já trocámos mails sobre Cacine. Em tua honra e dos teus/nossos camaradas da CCAÇ 799, hei-de publicar mais umas fotos de Cacine que tirei em Março de 2008, quando lá estive. Hoje o rio e as suas margens têm outra beleza que era difícil de descortinar no teu tempo.

Certamente por lapso, mandaste-nos não a foto do pessoal da tua companhia, mas sim a do galhardete. Ficamos a saber que vocês eram Firmes e Constantes, era rapaziada fixa, com a excepção da ovelha ranhosa que há em todos os rebanhos, e que tu acima referiste...

Cá no nosso blogue evitamos fazer juízos de valor sobre o comportamento (nomeadamente operacional) dos nossos camaradas, e inclusive sobre a liderança dos nossos antigos superiores hierárquicos... Mas, eu estou de acordo contigo: esta regra não nos deve inibir de chamar os bois pelos cornos... E depois Deus manda ser bom, mas não ser parvo, manda perdoar mas não pode mandar esquecer...

Na volta do correio, mandas então a foto do grupo... LG
_____________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3020: Notícias da CCAÇ 799 (Cacine, Cameconde, 1965/67) (Arménio Vitória)

Guiné 63/74 - P3329: Breve resumo da História do BCav 490 (1963/65) (Virgínio Briote)

Batalhão de Cavalaria 490 (II)

Sempre em Frente




4. Actividades no CTIG

Não é vocação do nosso blogue enumerar em detalhe todas as actividades desenvolvidas pelas unidades que operaram no território da Guiné. Para além de ser fastidioso, nem a própria História do BCav 490 as descreve na totalidade. Assinalarei, assim, as que o Batalhão considerou:

- Após o desembarque foi-lhe atribuída a missão de intervenção à ordem do Com-Chefe.
- Manteve-se em Bissau até 2Agosto 1963, escoltando embarcações e efectuando patrulhamentos.
- A região do Oio, na altura, uma das zonas sob maior pressão da guerrilha estava à responsabilidade do BCaç 512, com a sede em Mansoa. A partir de 2 Agosto e até 29 Dezembro de 1963, duas Companhias do BCav 490 passaram a colaborar em permanência nesta região. Eram rendidas uma de cada vez pela outra Companhia estacionada em Bissau.
Bissorã e Mansabá, principalmente, foram as zonas onde as Companjias mais actuaram, levando a cabo patrulhamentos, emboscadas, remoção de abatizes e operações de maior envergadura.

Entre estas, destacam-se:

27 Setembro, op “Adónis”, na zona compreendida entre as povoações de Mindodo-Sansabato-Iracunda-Fajonquito-Maca, efectuada pela CCaç 487.

Depois da divisão das forças executantes, foi cercada, ainda de noite, a povoação de Sansabato. Capturados diversos elementos que estabeleciam a ligação à guerrilha. O chefe da tabanca de Sansabato era um dos guias. População e sentinelas fugiam à aproximação das tropas.
À entrada da mata de Mindodo foram recebidas com fogo nutrido e a curta distância (o relatório refere a cerca de dez metros). Os prisioneiros não amarrados escaparam-se no meio da confusão. As tropas recuaram para a orla da mata, espalhando toalhas brancas para assinalar a posição ao apoio aéreo que tardava. Deficiências da ligação rádio impediram a comunicação com uma Auster que sobrevoava a área.
Às 11h15, sem apoio aéreo, foi decidido pelo Cmdt das forças, o Cap Cav Romeiras da CCav 487, retirar em direcção ao Olossato. Durante a retirada manteve-se a troca de tiros. Dois quilómetros andados apareceu uma parelha de T-6. Assinaladas as posições, foi decidido regressar. Sob fogo intermitente do IN as NT entraram na mata. Emboscadas à queima roupa, reagiram, abatendo quatro guerrilheiros e capturaram uma PM e uma pistola. Nesse mesmo local foi encontrado morto o chefe da tabanca de Sansabato.

2 Novembro 1963, op “Adónis B-3”. Zona de Morés, a cargo da CCav 489, sob o comando do Cap Cav Pais do Amaral, participando ainda na acção o Cmdt do BCav 490. Trata-se de um relatório com 8 páginas.
Saída de Mansabá às 23h00 de 2 Novembro. Repartidas as forças, enquanto umas emboscavam, as outras marchavam em busca do acampamento de Morés. Cerca das 04h30 os dois homens da frente da força atacante abriram fogo de G-3. Progredindo encontraram um ferido armado com uma PM. À medida que lhe prestavam os primeiros socorros sacavam-lhe informações. Avistado outro guerrilheiro ferido em fuga, a uma distância que não foi possível tentar a perseguição.
Na progressão foram encontradas várias munições e carregadores. Debaixo de fogo intermitente as tropas penetraram na tabanca de Morés às 08h30. Encontrado um casal idoso, ele acamado e a mulher ao lado. Informações obtidas no momento confirmaram as anteriormente recolhidas. O acampamento situava-se junto ao caminho que de Morés conduzia a Talicó, a meio de duas bolanhas. Às 10h00 um heli recolheu o guerrilheiro ferido. Uma hora depois chegou também de heli o Com-Chefe.


A Bandeira Portuguesa subiu em Morés pelas mãos da CCav 489

Na presença do Comandante-Chefe fez-se uma pequena cerimónia, foi hasteada a bandeira portuguesa e alguns militares aproveitaram para tirar chapas. Foram destruídas cerca de 60 barracas nas imediações.

Com a prisioneira como guia as tropas continuaram a progredir em direcção à casa de mato que se pensava ser o QG dos grupos que nos últimos tempos têm desencadeado acções sobre a tropa e população. O IN aguardava-os pacientemente. Atacados pelos flancos as tropas atacantes reagiram com tiros de bazuca trazendo acalmia momentânea. A cada passo reacendia-se a refrega. Momentos houve, que o relatório minuciosamente descreve, em que quase se combateu tiro a tiro, individualmente. As nossas tropas tinham feridos e corpos de guerrilheiros espalhavam-se pela mata. O 1.º Cabo Enf Carvalho de Brito foi atingido quando estava a socorrer um soldado ferido. Os alf mil Rui Ferreira e furr mil Covas transportaram para a retaguarda um dos feridos mais graves.

45 minutos de inferno de fogo e sangue, é desta forma que o relator resume estes acontecimentos.

Morés foi atingida às 16h00 e foi a esta hora que chegaram os helis para procederem à evacuação dos feridos. Evacuação inútil para a vida do 1.º Cabo Enfº Carvalho de Brito.
O TCor. Cavaleiro decidiu que se devia permanecer em Morés até ao dia seguinte. Preparou-se a noite. Escolheram-se os locais para as sentinelas, limparam-se alguns arbustos e improvisaram-se abrigos.
Às 19h00 recomeçou o tiroteio, interrompido pela reacção das NT e recomeçando às 22h00. Elementos INs, ao abrigo da escuridão, aproximaram-se do improvisado aquartelamento e arremessaram granadas de mão. Às 01h00, 2h00 e 3h00 os ataques foram feitos com mais força e as flagelações vinham de vários lados. Ouviam-se claramente palavras de incentivo, “por aqui”… ”vamos”.. ”vamos embora”…
Uma noite que o relator diz ter sido interminável.

Pela manhã mais dois feridos foram levados pelo heli que trouxe água, munições e alimentação.
Foram rendidos cerca das 12h00 por 2 GrComb, um da CCav 489 e outro da CCaç 461. Estes grupos tiveram a marcha atrasada pelo rebentamento de um fornilho com flagelação de tiros de PM e remoção de abatizes.

A CCav 489 (-) retirou então, não sem se deparar com 24 abatizes no trajecto Morés-estrada de Bissorã e ter sofrido uma emboscada nesse local. O condutor de uma das GMCs foi atingido nas pernas por estilhaços de GM (oito furos foram contados na porta da GMC). Por várias vezes a fuzilaria interrompia-se subitamente e da mesma forma se reacendia, causando mais dois feridos às NT. Foi abatido de uma árvore um elemento In. Eram 16h30 quando viram finalmente Mansabá.

A constante actividade das Companhias do BCav 490 obrigou o IN a nunca pernoitar noites seguidas no mesmo local. A operação realizada em 2 Novembro pela CCav 489, que se manteve no local duas noites seguidas, deu os frutos no imediato. A actividade IN reduziu-se significativamente, ao ponto de em Dezembro, as escoltas nos principais itinerários do Sector, Mansoa-Mansabá e Mansoa-Bissorã, passarem a ser feitas com efectivos de secção.


As baixas do BCav 490 no Oio
Mortos: 2
Feridos: 19

As baixas do IN
Mortos: 36
Feridos: 80
Prisioneiros: 12

Material Capturado
2 PM
1 Pist
2 Longas
3 Minas A/C
10 GM
1 Armadilha com 3 petardos de trotil
2 Fornilhos
2.000 munições e
Documentação vária
__________

Notas:

1. Artigo extraído da História do BCav 490

2. Artigo relacionado em 16 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3326: Breve resumo da História do BCav 490 (1963/65).

Guiné 63/74 - P3328: Memórias literárias da guerra colonial (7): O baptismo de fogo de A. Graça de Abreu, em Cufar, aos 17 meses (Luís Graça)

Guiné >Região de Tombali > Cufar> O António Graça de Abreu, no aeroporto de Cufar, em Dezembro de 1973, posando junto a umn heli, Allouette III. No mês anterior, o aquartelamento de Cufar tinha sofrido uma flagelação com foguetões 122, e um ataque com RPG [lança-granadas foguete] e armas automáticas, nas proximidades dos arame farpado... Dezete meses depois do início da comissão, o António recebia finalmente o tão desejado quanto temido baptismo de fogo. Recorde-se que o António Graça de Abreu foi Alf Mil, CAOP 1,Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar (1972/74)

Foto: © António Graça de Abreu (2008). Direitos reservados.


1. Com muita graça e alguma ironia, dizia há dias o Graça de Abreu que ele, na Guiné, tinha pertencido à "sacrossanta administração militar" (*) ... Tudo isto por que nunca se ter considerado "propriamente um operacional", muito embora estivesse integrado num comando de agrupamento operacional (CAOP1, localizado sucessivanente em Canchungo, Mansoa e depois Cufar, 1972/74).

Escrever um diário (secreto) aos 25 anos e decidir depois publicá-lo aos 60, é um acto de coragem mas também de grande maturidade humana e de honestidade intelectual. Não se trata de memórias, reconstituídas (e reconstruídas) muitos anos depois. Aqui é-se confrontado com factos e emoções em primeira mão. Aqui um homem faz strip-tease, desnuda-se, expõe-se em público... Não dá para fazer maquilhagem.

No seu livro Diário da Guiné: Lama, Sangue e Águi Pura (Lisboa: Guerra e Paz. 2007. 220 pp), o António revela e revela-se. Os seus leitores passam a saber muito mais coisas dele e sobre ele, relativos ao período da sua vida entre os 25 e os 27 anos, incluindo aspectos da sua vida íntima, para além da sorte e do azar na guerra e da sua vida e da vida dos seus camaradas, no dia-a-dia, no TO da Guiné, entre 22 de Junho de 1972 (quando chegou a Bissau) e 17 de Abril de 1974 (último dia em que escreveu o seu diário, na véspera do regresso a Lisboa, uma vez finda a comissão).

Na realidade, o António era um aspirante a oficial miliciano, com a especialidade de atirador de infantaria, e curso de dois meses de minas e armadilhas, que chegara a estar mobilizado para a Guiné (CCAÇ 3460 / BCAÇ 3863)... Só que à última hora teve de ser operado a "uma velha luxação crómio-clavicular no ombro direito" (pp. 53/54). Como consequência, foi reclassificado, por razões médicas, em "Secretariado, Serviço de Pessoal"... e desmobilizado. Nunca mais pensou no raio do Ultramar! Na época, era a Sorte Grande, a Taluda, o Euromilhões, para jovens como nós!...

Ficou, entretanto, como alferes amanuense, no Regimento de Infantaria 1, na Amadora, no batalhão de mobilização... Mas não há bela sem senão: acontece que o nosso camarada, ao fim de 2 anos de tropa, na Metrópole (tinha entrado em Outubro de 1970), tem o azar de voltar a ser mobilizado... e novamente para a Guiné... E desta vez para um CAOP.

Não ficou em Bissau, na guerra do ar condicionado - como dizíamos nós, operacionais, com desprezo, por quem ficava no back office, no bem-bom, "longe do Vietname" - foi para o mato, "um mato mais dócil, mas mato" (p. 16), chefiar uma secretaria... E ei-lo, em 26 de Junho de 1972, "sentado à minha santa secretária de guerra, com uma ventoínha por cima a refrescar"...
- E quanto a 'embrulhanço' ? - pergunta o leitor, curioso e já algo impaciente e incrédulo.

O tempo flui, corre, escoa-se, enquanto tudo, à volta, parece embrulhar (um termo que é,de resto, caro ao nosso autor), e o homem lá se vai prepando psicológica, mental, fisica e logisticamente para o inevitável baptismo de fogo ...

Passa o tempo de Cachungo (até 1 de Fevereiro de 1973) bem como o tempo de Mansoa (de 3 de Fevereiro até 19 de Junho de 1973)... Passam-se os meses e até o primeiro ano, e nada de baptismo de fogo. Claro, há a guerra ali tão próxima, os camaradas feridos e mortos... no mato. O nosso catecúmeno veio, ainda virgem, à Metrópole, de férias (sortudo, por duas vezes, primeiro em Novembro/Dezembro de 1972 e depois em Abril de 1973), até ser mudado, de armas e bagagens, para o temível sul... Ele e o seu CAOP1.

Cufar... "É melhor do que eu imaginava. Em termos de guerra, segurança pessoal, companheiros de armas e instalações" (25 de Junho de 1973, p. 121)... E foi verdade: passaram-se os meses, aproximava-se o ano da peluda (1974), e nada! O nosso alferes já se resignava a voltar para casa, sem o retemperador, iniciático, imprescindível baptismo de fogo... Até que... a coisa aconteceu (p. 159)...

Fica aqui o relato dessa cena - a sua primeira vez, debaixo de fogo - na primeira pessoa do singular. Espero que o António me perdoe o atrevimento, quiçá o abuso. Quis-lhe fazer uma pequena surpresa e, de certo modo, um homenagem, uma pequena homenagem.

Ele merece: além de ser actor, foi um observador participante, disciplinado, atento, informado e honesto da realidade político-militar do TO da Guiné, na fase terminal da guerra (estará em Cufar, no sul, até ao início de Abril de 1974)... Mesmo em condiçõs adversas, soube manter e escrever regularmente o seu diário e sobretudo conseguiu transmitir-nos (até agora, como ninguém, com grande riqueza de detalhes) o quotidiano, intra-muros, de três importantes aquartelamentos, em três regiões distintas - Canchungo (norte), Mansoa (centro) e Cufar (sul), que foram sede de comando de agrupamento operacional (CAOP).

Fá-lo com talento literário, mas também - e não menos importante - com sensibilidade, solidariedade, portugalidade, compaixão e sentido de humor. Embora situando-se, na época, politicamente à esquerda, o António não permite que as suas observações sobre a Guiné, a guerra, o PAIGC e as NT sejam deturpadas pelo viés ideológico... Recusa o estereótipo e o preconceito. É crítico em relação às suas fontes de informação. Não embandeira em arco (seja a favor do PAIGC, seja das NT).

Depois de viajar pelo mundo (e sobretudo pela China, que é a sua segunda pátria), o António regressou um dia, "lavando a alma na espuma das lágrimas", e em boa hora decidiu "desenterrar" o seu diário e os seus aerogramas, para fazer contas com o passado e partilhar connosco "o quotidiano da guerra da Guiné", numa época em que o PAIGC já usa contra nós meios tecnológicos da guerra convencional (morteiros 120, foguetões 122, mísseis terra-ar...).

De referir, ainda, que em Cufar o António conviveu (e fala desse convívio com apreço e amizade) com gente de outras unidades, de que destaco o Pel Int 9288 (representado na nossa Tabanca Grande pelo ex-1º Cabo António Baia) (**) e a açoriana CCAÇ 4740 (também muito bem representada, entre nós, pelo António Manuel Salvador, igualmente ex-1º Cabo Enfermeiro).

Mas demos à palavra ao nosso autor:

Cufar, 14 de Novembro de 1973

Vieram os 'jactos do povo', como os guerrilheiros lhes chamam. Gostei, desta vez não apontaram aos vizinhos do lado, era connosco e, como costuma acontecer, tivemos sorte. Foram disparados oito foguetões 122 e só rebentaram três, a mais de quinhentos metros de Cufar.

Eram oito da noite, eu estava no gabinete do capitão a jogar xadrez com o Eiriz, o alferes das transmissões, quando ouvimos o silvo de um foguetão e um primeiro rebentamento. Saltámos rapidamente para a vala situada ao lado do edifício onde já havia gente abrigada, caímos uns por cima dos outros e ficámos quietinhos, à espera. Uns dez minutos depois, porque não havia mais foguetões, saímos da vala, não muito assustados. Foi um ataque pequeno, daqueles que só servem para criar insegurança e medo.

O médico, o Bastos [, um antigo condiscípulo do Porto, no tempo do Liceu D. Manuel II], ficou por baixo de uma molhada de alferes e saiu da vala zangadíssimo, agastado com o Miguel Champalimaud (sobrinho do António Champalimaud, o 'tio Patinhas' português). O rapaz caíra-lhe em cima e, com os foguetões a rebentar, o Miguel peidara-se, cagara-se como um rei por cima da cabeça do Bastos. Uma cena de antologia digna do Chaplin, do 'Charlot nas Trincheiras da Guiné'.


Feitas as contas, nos últimos oito meses, o IN havia flagelado vários aquartelamentos na região, por diversas vezes. Retomando o diário do António(15 de Novembro de 1973, p. 159), "Catió 'embrulhou' seis vezes, o Chugué vinte, Cobumba doze, Caboxanque quatro, Cadique dez, Cafal quinze, Cafine catorze, Bedanda onze e Cufar apenas três".

Comparado com os vizinhos, os de Cufar podem dar-se por felizes, resume o António: "Não nos podemos queixar, somos uns privilegiados, vivemos no buraco mais seguro do sul da Guiné".

O António não perdeu o sentido do humor, depois desta primeira (ao que parece, se bem li o seu diário com atenção) experiência de contacto com o IN, na realidade, uma vulgar flagelação, à distância. Mas que metia respeito, metia... E por que não medo, como o António admnite explicitamente ? Se não sentíssemos medo, nunca poderíamos avaliar, correctamente, as situações de perigo, e decidir em conformidade "lutar ou fugir"...Foi o medo (e não a temeridade) que nos transformou em espécie biológica bem sucedida, em termos evolutivos. Foi o "flight or fight" que nos deu as competências para lidar com as situações de vida ou de morte, de risco, de perigo...

O nosso escritor aproveita, então, a seguir, a oportunidade para descrever, com muito humor, os apuros em que andou o "meu tenente-coronel B", periquito, aquando da flagelação a Cufar. Ele não assistiu à cena, mas socorre-se do relato, divertidíssimo, em primeira mão, dos "meus soldados" [do CAOP1] que foram testemunhas presenciais (pp. 159-160).

Cufar, 15 de Novembro de 1973

(...) Aos primeiros rebentamentos, o tenente-coronel atirou-se para a vala mais próxima do seu quarto. Vinha em tronco nu, só tivera tempo de vestir as calças. Já havia soldados abrigados e chegaram mais nuns tantos que se atiraram de cabeça para dentro da vala caindo aos molhos em cima do tenente-coronel.

A vala, além de enlameada, albergava um formigueiro de formigas baga-baga, uns bichos quase do tamanho de um dedo que trepam pelo corpo e mordem, têm umas pinças tipo caranguejo que espetam na carne e fazem sangue. Ora no fim do ataque, o pessoal começou a sair da vala, o tenente-coronel foi um dos últimos e guinchava de dor. Caíra e permancera mais de um quarto de hora em cima do formigueiro das baga-baga. As formigas haviam-lhe entrado pelas calças, subido até aos testículos e mordiam-no todo. Tinha ainda formigas espetadas nas costas. O nosso Chefe de Estado Maior metia pena. Tirara as calças em frente aos soldados e, em cuecas, com gritos de dor, uma a uma, ia arrancando as formigas que estavam cravadas no seu corpo. Tratou-se de uma cena nunca vista nos aerópagos da guerra" (...).


São cenas de guerra como estas que ficaram na memória daqueles homens e que eles um dia contaram (ou hão-de contar) aos seus netos...

Mas, depois disso, houve mais embrulhanços em Cufar, no tempo em que ele lá esteve (pp. 164-165):

Cufar, 26 de Novembro de 1973


" 'Embrulhámos' outra vez e hoje foi mais teso, mais duro. Os guerrilheiros atacaram apenas a um quilómetro de distância, a coisa foi rápida, uns dez minutos de fogo, a típica flagelação, o dispara e foge, mas palavra, desta vez tive mais medo, até porque me estreei a ver as granadas de RPG deixando o rasto luminoso, voando não para um qualquer aquartelamento nosso vizinho, mas em direcção a mim e rebentando não muito longe da minha cabeça. Não dá conforto nenhum" (...). (Negritos meus, LG).

O António consulta o calendário e conta os riscos que faltam para a peluda:

(...) "Faltam-me três meses e vinte e oito dias para terminar oficialmente a comissão. Agora, nestes últimos quinze dias, fomos flagelados por duas vezes. Não estou a gostar. Quantos ataques me esperam ainda ? É aguentar e cara alegre! Os guerrilheiros não me vão propriamente dar um enorme pontapé no cú e fazer com que eu entre de jacto pelas bocarras do inferno" (...)

Houve uma terceira flagelação a Cufar, de novo com foguetões 122, em 4 de Dezembro de 1973, às 9h15 da noite (p. 166)... Até que chegou o ano da peluda.

A 4ª flagelação a Cufar foi no dia 20 de Janeiro de 1974, às 10h da noite... O PAIGC fez questão de assinalar, em toda a região sul, o 1º aniversário do assassinato de Amílcar Cabral, atacando Gadamael, Cafal, Cafine, Cadique, Cobumba, Bedanda, Chugué e Catió, além de Cufar. O António lia a revista Vida Mundial e ouvia uma cassete com o Concerto de Aranjuez, do espanhol Joaquim Rodrigo. No momento do ataque, teve a brilhante ideia de gravar, por cima, outra música, esta de guerra, como ele nos conta no seu diário (21 de Janeiro de 1974, pp. 186-189) (***).

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 7 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3276: Memórias literárias da guerra colonial (3): O poder na ponta das espingardas, segundo A. Graça de Abreu (Parte I) (Luís Graça)

(**) Vd. poste de 16 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1284: A Intendência também foi à guerra (Fernando Franco / António Baia)

(***) Vd. poste de 6 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1499: A guerra em directo em Cufar: 'Porra, estamos a embrulhar' (António Graça de Abreu)

Ficheiro áudio com ataque a Cufar, 20 de Janeiro de 1974

Junto envio também uma transcrição de um ataque no dia 20 de Janeiro de 1974 e também um link com o ficheiro audio com o respectivo ataque.

http://pwp.netcabo.pt/0240632001/ataqueguine.mp3

Gostava muito de ver estes meus (nossos) textos no seu blogue da Guiné.
Abraço, António.

Cufar, 20 de Janeiro de 1974

(…)
Boum, boum, pum, catrapum, pum.
- Aí está, um ataque!...Caralho! Um ataque, foda-se!
Tá, tá, tá, tá, tá.
-Um ataque, caralho! Venham mais. Aí vêm elas!...
Boum, boum…
-Tumba, um foguetão, caralho!...
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, pum.
- Dá mais, Manel! Estamos a levar no coco, estamos a embrulhar, caralho!
Pum, catrapum, tá, tá, tá, tá, tá, tá…
-Espera aí um bocadinho!
Boum…
-Espera aí que me eu vou-me já vestir, espera aí um bocadinho!
-Tumba, aí vem outra… Toma lá mais!...Espera aí um bocadinho, João…
Boum, boum…
-Estou-me a vestir, é preciso é calma!
Boum, pum, pum…
-Espera aí um bocadinho, estou-me a vestir, é preciso é calma.
Boum, boum…
-Estamos a embrulhar, caralho! É preciso ter calma. Estou no meu quarto. Hoje é o dia…
Boum, boum…
-Tumba, tumba, tumba!...
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, pum, catrapum, pum...
-Espera aí. Eh, com um filha da mãe!
Boum, boum…
-Ah, grande embrulhanço! Manda mais, João!
Boum, boum…
-Toma lá mais!...
Tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, catrapum, pum, pum, boum, boum...
-Isto é a sério, isto não é a brincar.
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, pum, pum…
-Olha p’rá aquilo! Porra, estamos a embrulhar, o que é preciso é calma!... Estou-me a vestir…
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, pum, pum…
-Já estou vestido.
Boum, boum…
-Porra! Tumba, tumba, aí vem outra, aí vai outra!...
Pum, pum, pum, pum, boum, boum…
-Caralho!
Boum, boum, pum, catrapum, pum, pum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, boum, boum…
-Porra, estão todas a cair p’ra ali, caralho!...
Tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá…
-Aí vêm outras. Eh, eh, eh! Já estou vestido.
Boum, pum, pum, tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, boum, boum…
-Aí vem outra!
Pum, pum…
- Tumba! Devem vir mais.
Boum, boum…
- A lógica da guerra, pá, é impressionante! Eu estava aqui sossegadinho, pá, elas começaram a cair… Aí vêm mais, aí vêm mais!...
Boum, boum, tá, tá, tá, tá, tá tá, tá, tá, tá, tá, pum, pum, catrapum, pum, pum…
- Deixei-me estar sozinho aqui no quarto, mas estou nervoso! Os nossos amigos estão a lembrar-se de nós!
Pum, pum…
- Tumba, tumba!
Boum…
- Ah, Cufar de um caraças!... Eh, eh! Guiné, Guiné, 20 de Janeiro de 1974!.. Ah, caraças!...
Boum…
- Isto é morteirada! Ora bem, deixa lá apagar a ventoinha. Só mandaram estas?...
Boum, pum…
- Aí vai outra! Aí vem mais! Isto agora são morteiradas nossas. Aí vai outra!
Boum…
- Já acabou o ataque?... Vamos embora, já estou cá fora!
(Meti o gravador ligado a gravar no bolso da perna direita do camuflado e fui ter com os meus soldados.)
Boum, pum, pum…
- Toma, toma, porra! Aí está!...
Estão bem?...
Boum, pum, pum…
(Voz de soldado):
- Se calhar a minha tabanca deve estar mas é toda fodida!
Boum…
(Confusão de vozes).
- Foda-se. São nossas ou são deles, caralho? Já acabou, os gajos?...
(Voz):
- São nossas.
Boum…
(Voz de soldado)
- Não gravou isto, meu alferes?
- Está a gravar, oh, homem, está a gravar esta merda!
Boum…
- Já acabou. Aí vai mais, caralho! Quem é que está aí metido na vala, deitado no buraco?
Boum…
(Confusão de vozes)
- Aí vai mais uma, toma lá mais fartura!
(Voz de soldado):
- Isto é RPG que rebenta no ar e rebentou uma canhoada.
Boum…
(Voz de soldado):
- A minha chinela, perdi a puta da sapatilha.
(…)
- Os gajos já pararam. Agora são só nossas. Os gajos já não estão a mandar nada, agora é o obus de Catió.
(Voz de soldado):
- Carrega-lhe, é o primeiro ataque do ano. Os cabrões atacam até acabarem as munições. Mas cuidado com os gajos no fim do ataque…
(…)
(Confusão de vozes)
(Voz de soldado):
- Vê se encontram a minha sapatilha.
Boum…
- Oh, Loureiro (soldado condutor do nosso CAOP1), o que é que você está a fazer deitado no buraco?
(Soldado Loureiro):
- Estava entretido…
(Voz de soldado):
- Agora já acabou, mas pode vir ainda uma retardada, mas isso é pouca coisa.
(Voz de soldado):
- Eu vi o very-light no ar e depois, foda-se, foi sempre fogachal.
(Confusão de vozes)
(Voz de soldado ):
- Olha se eu estivesse na minha tabanca lá em baixo, deve estar toda fodida…
(…)
(Voz de soldado):
- Alguém viu a minha sapatilha?...
Boum…
(…)
- Espera aí que eu vou mijar, estou a precisar!
(Voz de soldado)
- Oh, meu alferes, não mije para dentro da vala, caralho!
- Oh, pá, não faz mal.
(Voz de outro soldado):
- Ora, um gajo, num ataque, mesmo com merda e mijo, e tudo, vai!
Boum…
(Voz de soldado):
- Eu perdi a minha sapatilha, isso é que foi o caralho!

Guiné 63/74 - P3327: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (48): O adeus a Bambadinca


Texto de Mário Beja Santos
ex-Alf Mil,
Comandante do Pel Caç Nat 52,
Missirá e Bambadinca,
1968/70

Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.



Operação Macaréu à vista

Episódio XLVIII

O ADEUS A BAMBADINCA

Beja Santos

Um novo encontro com Cherno Suane na Pérola de São Paulo

São nove horas de uma manhã ensolarada de Junho de 2008, apresento-me na Rua de São Paulo num armazém de electrodomésticos e daqui parto com Cherno Suane para conversarmos numa mesa de café ali ao lado. Tinha-lhe pedido ajuda para rever os episódios da nossa vida entre Julho e Agosto de 1970. Estamos já a beberricar o café quando Cherno tira do bolso uma folha onde posso ler: emboscadas em Samba Silate, Ponte de Udunduma e patrulhamentos em direcção a Taibatá, noites na missão do sono, visitas às tabancas em autodefesa, colunas ao Xitole, aulas, relação do equipamento e armamento com o novo alferes. Decididamente, Cherno recorda o essencial: do amanhecer até ao entardecer na estrada alcatroada entre Amedalai, Ponta Coli e Xime, as emboscadas nocturnas na missão do sono, os recenseamentos de armas e os apoios às tabancas em autodefesa em Badora e no Cossé, as aulas... Mas havia pormenores difusos, pedi mais esclarecimentos. Cherno, como é seu hábito, vai do muito antes até ao muito depois, deixa-me a incumbência de filtrar o que pertence rigorosamente ao período que nos interessa analisar. Começou assim a sua lembrança: “Saíamos de burrinho de Bambadinca até aos Nhabijões, no último mês que estiveste connosco fomos três vezes à procura de canoas, uma vez encontrámos três, foram rebentadas à bala. As obras na estrada alcatroada eram uma canseira diária, com a chuva íamos e vínhamos lentamente, sempre à espera de emboscada, mas tivemos sempre sorte. A última patrulha que fizemos contigo e já com o alferes Reis foi em Cadamã, a tabanca de Ussumane Baldé. Não nos davas descanso, quase todos os dias tivemos aulas junto à escola não com a professora que te dava os livros mas com Dauda Bari, o cabo fula que viera de Gandembel, e Fodé Sani, de Bafatá. Havia pessoal chateado, Sadjo Seidi disse uma vez que era bom que te fosses embora, já não tínhamos idade para aprender mais letras enquanto tínhamos vida operacional. O menino filho de Quebá de Missirá, Mamadu Soncó, também ajudava nas aulas. Nessa altura chegou Demba Trilene, aquele milícia que te disse noutro dia que foi fuzilado depois da independência, gritou que não tinha feito mal nenhum, mas foi abatido”. Já não consigo extrair mais dados sobre a nossa vadiagem naqueles últimos dias. Afinal, correu tudo dentro da rotina, fizemos a verificação do material, analisámos os equipamentos, tudo correu bem e depressa, o fardamento novo tinha chegado há poucas semanas. Quando estou a comunicar a Cherno que o livro está praticamente pronto, foi a vez de ele me fazer perguntas: Tinha eu falado no ferimento de Quebá Soncó, o filho primogénito do régulo Malã, que viera de Madina, em 1965, com uma rótula desfeita? Escreverei eu no livro que Serifo Candé fizera parte da 3ª Companhia de Comandos? Ficara claro que Bacari Djassi, o nosso único beafada no pelotão, substituíra nas férias Mamadu Djau e Adulai Djaló? Ficava-se a perceber no meu livro que os barcos eram atacados em Mato de Cão até eu ir para Missirá e que depois nunca mais houve ataques, os que aconteceram tiveram lugar perto de Enxalé e Ponta Varela? Procurei explicar ao Cherno que eram impossível tanto detalhe, este livro não era propriamente a história do Pel Caç Nat 52 mas o que eu podia recordar de dois anos de Guiné. Com serenidade, sem qualquer azedume, ele observou: “Pensava que tu querias que toda a gente soubesse que nós lutámos sem nos negarmos ao trabalho, todos nós devíamos constar da história que vem no teu livro”. Já não tive resposta para lhe dar. Peguei na mochila com o equipamento de ginástica, guardei o caderno na minha pasta, abracei-o cheio de ternura, cada um foi para o seu trabalho. Ele ainda gritou: “Não te esqueças de escrever que tivemos muita sorte, muita ajuda de Deus”.

O último jantar em Bambadinca

O Nelson Reis e eu recebemos a indicação de que não iríamos naquela noite para a emboscada no Bambadincazinho, teríamos de permanecer no quartel. Para mim, o que aconteceu depois comoveu-me. Quando entrámos pelas 20h na messe, sentimos uma atmosfera de jantar de festa. Esperava que o novo batalhão me tributasse alguma gentileza na hora da despedida, mas um jantar daqueles estava muito além das minhas expectativas. Houve brindes e votos de felicidades e no termo do jantar, Domingos Magalhães Filipe, o comandante, sugeriu que passássemos para a messe, estavam ainda todos de pé quando o major Anjos de Carvalho leu uma proposta de louvor que fora enviada para Bissau. Como é usual nos louvores da tropa, invocaram-se as qualidades de comando deste alferes, a inteligência, a cultura, a sensatez e a extrema devoção à missão, atributos que para mim eram triviais, achava aquilo tudo sem sentido. Onde verdadeiramente me comovi foi nas referências à ligação a Missirá e à estima granjeada junto da população. Depois, a proposta de louvor voltou ao discurso que tanto agrada à tropa, como a referência à resistência física e moral, ao fino trato e às qualidades de comando e ao respeito e admiração dos subordinados. Por último, eu era dado como credor de estima e confiança de quem me iria louvar já que a minha acção na Guiné era digna de ser apontada como exemplo. E pela segunda vez fui louvado por quem me tinha punido. Tudo começara com um desacerto, já era tarde para se remediar aquela pequena injustiça e aquela desmedida incompreensão. Agradeci, pedi a todos que ajudassem o meu substituto, paguei o que devia no bar, pedi licença para ir arrumar os tarecos já que partiria na manhã seguinte para o Xime, e daqui para Bissau.

Durante a tarde, sempre acompanhado pelo Reis e pelo Pires, despedi-me nos estancos do Zé Maria e do Rendeiro, visitei as famílias dos soldados, fui aos CTT agradecer todas as amabilidades de D. Leontina, embaracei-me em casa de D. Violete quando a vi de lágrima no olho: “O Sr. alferes vai-nos fazer muita falta. Graças a si, tivemos que discutir o passado da Guiné, andámos à procura de papéis, tenho amigos intrigados com a sua pesquisa, ninguém percebe o seu interesse por Infali Soncó, Abdul Indjai e Mamadu Sissé, emprestaram as coisas que tinham, espero que um dia publique tudo. À minha mãe e a mim vai-nos fazer falta a sua companhia, o chá que tomávamos juntos, consigo pusemos entre parêntesis o que esta guerra mudou. Por favor, não se esqueça de nos escrever e de nos visitar quando a paz voltar à Guiné. Amanhã de manhã, espero dizer-lhe adeus na varanda”.


Cheguei a Bambadinca em 2 de Agosto de 1968, parti 2 anos depois. O jantar promovido pelo tenente-coronel Domingos Magalhães Filipe, comandante do Bart 2917, sensibilizou-me profundamente. Foi lida a proposta de um louvor que referia "inteligência, cultura, sensatez, sólida formação moral ( só nos louvores da tropa!)" e depois foram ditas coisas que me comoveram. Não as mereci ver escritas, mas traduziram toda a minha atitude.

No quarto, enquanto arrumava os últimos trastes, Mamadu Soncó insistia que queria vir comigo, tinha aprendido, insistia ele, o suficiente para ser bom aluno em Lisboa. Esgotei todos os meus argumentos, garanti-lhe que ia ver se era possível uma bolsa de estudo, ensaiei todas as promessas plausíveis. Ele respondia sempre: “Não, eu quero mesmo ir contigo, era tudo mais fácil, temos visto chegar e partir os militares que também prometem levar-nos e nada acontece. Não dou trabalho durante a viagem, leva-me que eu quero estudar e ter uma vida diferente da dos meus irmãos”. Estava cansado, garanti-lhe pela última vez que tudo faria para que ele tivesse uma vida diferente da dos seus irmãos.

As leituras inesquecíveis da última semana em Bambadinca

Nos últimos quinze dias, andámos praticamente a monte, o importante era deixar o Nelson Reis informado sobre o que era a intervenção na área de Bambadinca. Por pura casualidade, li do bom e do melhor. Primeiro, de Robert Merle, de quem já tinha lido “Fim de Semana em Zuydcoote”, devorei o empolgante “A Morte é o meu Ofício”. Trata-se de uma ficção acerca de uma figura fundamental do Holocausto, o chefe do Campo de Auschwitz, Rudolf Lang, nascido em 1900. Educado com disciplina severa e na ascese por um pai em estado de culpa, com dezasseis anos foge de casa e combate heroicamente na Turquia, de onde regressa humilhado e sentindo-se sem futuro. Irá entrar mais tarde na máquina nazi, devotar-se à missão que Himmler lhe confiou na tarefa de exterminar os judeus. Revelou-se zeloso, procurou a todo o transe os melhores resultados do assassínio em massa. Descoberto pelos americanos, respondeu sempre com naturalidade que obedecia a ordens, nunca se preocupou com o que pensava, o seu dever era obedecer. Dirá mesmo num interrogatório: “Compreende, pensei nos judeus como se fossem unidades, nunca como seres humanos. Refugiei-me no aspecto técnico da tarefa. Não tenho de que ter remorsos. O extermínio era talvez um erro. Mas não fui eu que o ordenei”. Será executado sem ter percebido o alcance do seu ofício de matar. Merle escreve sempre na primeira pessoa, não defende nem acusa, circunscreve-se a um estudo psicológico, como se estivesse a incarnar o indiscutível espírito de missão que Rudolf Lang aceitara. Enquanto lia este livro de Robert Merle, no meio das andanças, no meio das esperas e dos naturais tempos mortos,

Este livro de Robert Merle foi publicado na prestigiada Colecção Século XX, das Publicações Europa-América (que acolheu obras de Remarque, Hellmut Kirst, Pratolini, Sartre, Silone, entre outros). Tradução de Ana da Luz, capa de Jardim Portela, Publicações Europa-América, 1960. Logo a dedicatória: "A quem posso dedicar este livro senão às vítimas daqueles para quem a morte é um ofício?". Robert Merle, laureado com o Goncourt pelo livro "Fim de semana em Zuydcoote", levanta em "A morte é o meu ofício" questões dolorosas sobre o cumprimento de ordens como as das práticas do Holocausto. Vamos acompanhar a evolução de Rudolf Lang, o pretenso comandante de Auschwitz. Rudolf é produto de um educação severa, dominada pelos princípios de uma incontestada ortodoxia religiosa. Combate na frente turca ainda adolescente, vê a Alemanha espezinhada, assiste à ascensão do nazismo que irá servir incondicionalmente. Terá a missão de pôr de pé o assassínio em massa e irá cumprir sem hesitações, só preocupado com a eficiência dos resultados. Nunca admitirá a monstruosidade da máquina de chacina que montou, para cumprir as ordens de Himmler: "Não tenho de ter remorsos. O extermínio era talvez um erro. Mas não fui eu que o ordenei". Sim, até que ponto não somos solidários com a bestialidade dos outros? Quais os limites da disciplina e da ética? Para quem estava na guerra como eu, a pergunta provocava muita inquietação.


Li “Defesa sem controle”, de Mickey Spillane e “Cuidado com as curvas “, de A. A. Fair. O primeiro é seguramente o mais bem conseguido livro de Spillane, um livro de espionagem talhado para o mais americano e anti-comunista dos justiceiros, Tiger Mann. Um engenheiro de electrónica, um perito em mísseis intercontinentais balísticos, Louis Agrounsky, desaparece sem deixar rasto, mas suspeita-se que montou um sistema pessoal para controlar o uso desses mísseis. Agrounsky é um sabotador que tem um circuito secundário que pode virar do avesso o sistema defensivo dos EUA. O que há significativo neste livro é a estrutura da obra, fluída e plausível, emocionante do princípio ao fim, na trama da caçada, nos ardis utilizados pelos grupos de espionagem envolvidos. Inevitavelmente, Tiger Mann deixará um rasto de morte e irá surpreender-nos quando denunciar o chefe da quadrilha a soldo de Moscovo. Spillane é um escritor excepcional.


Número 241 da Colecção Vampiro, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, capa de Lima de Freitas. É um dos mais prodigiosos e bem arquitectados livros de Spillane. É mais do género de espionagem do que policial. Estamos na Guerra Fria, um cérebro doente, Louis Agrounski, viciou o sistema dos mísseis intercontinentais balísticos, pode criar uma inferioridade para os EUA. No livro alguém diz: "O Agrounski tem nas suas mãos algo que pode virar o mundo inteiro do avesso. Sabotou o nosso sistema de ICBMs, com um circuito secundário que lhe dá a possibilidade de o activar ou desactivar. Se não o encontrarmos antes de ele tomar uma decisão, perdemos, arriscamo-nos a ir todos desta para melhor. O herói chama-se Tiger Mann. Ele será confrontado com um dos atiradores mais expeditos ao serviço de Moscovo, haverá histórias de ocasião com algumas beldades deslumbrantes, a perseguição estará prestes a falhar, mas Tiger não só salvará a América e o mundo livre como destruirá uma tenebrosa rede de espionagem que esteve à beira de escravizar os democratas desse mundo livre. É uma boçalidade o que Spillane escrevia, só que ele era exímio e não teve grandes substitutos à altura.



A obra da A. A. Fair não tem esses méritos mas tem outros que empolgam a leitura. Bertha Cool e Donald Lam formam a parelha mais bizarra da literatura policial: ela nada sabe do ofício de detective mas é hábil a espremer os clientes; ele vive indiferente às rotinas burocráticas e ao deve e haver da empresa, só quer casos sofisticados. Desta vez um cliente procura alguém que só conhece pelo nome de Karl, que viu há seis anos em Paris, sabe que morava numa determinada localidade, era rico e estava a fazer a sua viagem de núpcias. O cliente pretendia reencontrar essa pessoa para obter o direito exclusivo de utilizar a sua história. Assim vai começar uma investigação rocambolesca, apura-se que houvera um crime, o cliente de Bertha e Donald aparece envolvido nesse homicídio, o júri decidirá pela sua condenação por homicídio sem premeditação, o crime fora cometido há mais de três anos, prescrevera, o acusado saiu em liberdade. É uma investigação cheia de artifícios, o verdadeiro homicida terá sido outro que, por ironia do destino, e graças a um plano maquiavélico de uma especialista em violações forjadas, será condenado a prisão perpétua.



Número 160 da Colecção Vampiro, tradução de Mascarenhas Barreto, capa original de Lima de Freitas. A. A. Fair era um pseudónimo de Erle Stanley Gardner. Isto para dizer que os crimes e as suas investigações passam sempre por tribunais onde se desafiam inteligências do foro criminal. A dupla Bertha Cool e Donald Lam é confrontada por um pedido de localização de uma pessoa que o cliente viu em Paris há muitos anos. A localização é quase imediata mas a seguir vem uma investigação prodigiosa, houvera um crime, desaparecera e reaparecera a arma, o júri considerou ter havido homicídio sem premeditação, o acusado saiu em liberdade. O par de advogados ganhou uma grossa maquia, uma senhora especialista em casos chantagistas de pseudo-violações consegue atirar o verdadeiro criminoso para uma prisão perpétua. Não é uma obra fulgurante, mas cumpriu a função de me ter entretido já não sei se na Ponte de Udunduma, nos Nhabijões ou ao ar fresco, enquanto se alcatroava a estrada entre Amedalai e o Xime.



O grande prato de substância das minhas leituras foi “Uma noite na toca do lobo”. Eu tinha admirado o livro anterior de Tomaz de Figueiredo, pedi que me enviassem este, li-o duas vezes cheio de emoção. Considero Tomaz de Figueiredo um dos maiores escritores portugueses, usa o castiço, as referências culturais e a construção dos monólogos-diálogos com genialidade. Diogo Coutinho, o senhor da Toca o Lobo, volta às suas recordações da meninice e juventude, oferece-nos um dos patifórios mais simpáticos da nossa literatura, Zé Cesteiro, tudo começa num serão à volta de um cosmorama em que duas amigas atraem os fantasmas de Diogo Coutinho. Logo no início: “Vinha assim, às vezes, ao pingar das Trindades, a prima D. Maria do Socorro, sequinha e combalida, mas a aparentar de grã-duquesa viúva, sob a tradicional capa alvadia de romeira encanunada e vivos de veludo roxo amortecido pelo tempo, herdanço de outra prima que a deixara no trinque, a prima D. Maria da Purificação, morgada e senhora de sete casas torrejadas no termo de três concelhos”. Naquela noite de serão participamos na cumplicidade entre D. Maria do Socorro e a tia Francisquinha, é aqui que assaltam as primeiras memórias, fala-se do Rei D. Miguel, dos passeios, das festas, de paixões inconsoláveis, de gente morta no auge do romantismo, de padres foliões, do grande traste que é o Zé Cesteiro, é uma galopada toda aquela noite na Toca do Lobo, o passado triunfal de muita gente do Alto Minho vem até à ribalta, dentro e fora do que se vê no cosmorama. Diogo Coutinho reaviva as lembranças, chama agora pelos mortos, eles engrandecem, do princípio ao fim, esta obra esplendorosa de Tomaz de Figueiredo.




4.ª Edição, 1985, Capa de Carlos Leitão, Editorial Verbo. Li a edição com capa de Sebastião Rodrigues, talvez o nosso maior designer gráfico so século passado, edição do princípio dos anos 60. Tomaz de Figueiredo pertence ao rol dos grandes escritores portugueses injustamente esquecidos. É um autor do castiço, dos valores da ruralidade perdida do Alto Minho, onde se fala do miguelismo, música, amores inconsequentes, memórias queridas trabalhadas em densos monólogos onde a reconstrução das possíveis conversas que são um ponto alto da literatura portuguesa. Diogo Coutinho, o herói da Toca do Lobo, volta à sua infância e juventude. Este livro alberga uma das nossas maiores criações literárias, o Zé Cesteiro, patifório simpático que nos deslumbrará com façanhas, seguramente aldrabadas, mas muito boas patranhas. Para mim, há uma outra doce memória, suplementar: foi o último livro que li em Bambadinca. No dia seguinte, a guerra iria acabar para mim.



Aos pés da minha cama já dorme o jovem Mamadu Soncó, deve estar a sonhar em ir comigo até Bissau e mudar de vida. Nas outras camas, adormeceram profundamente o Abel e o Moreira, foram dois camaradões que jamais esquecerei. As caixas em madeira estão fechadas, escrevi a tinta preta, grossa, o meu nome e destino. O sono demora a vir. Respiro os cheiros de África, que me irão acompanhar até ao fim da vida. Há um silêncio total à minha volta, quase diria que ninguém suspira pela guerra, estamos ali em Bambadinca, todos à espera que a vida renasça, e nós também.
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Nota de CV

Vd. último poste da série de 10 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3290: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (47): Cartas de um militar de além-mar em África para aquém em Portugal (6)...

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3326: Breve resumo da História do BCav 490 (1963/65) (Virgínio Briote)

Batalhão de Cavalaria 490 (I)

Esta é uma pequena homenagem a todo o pessoal que fez parte do BCav 490.
Eu, V. Briote, um dos editores, fiz parte por alguns, escassos, meses deste famoso Batalhão.
Claro que todos os Batalhões, Companhias e Pelotões que passaram pela Guiné ficaram famosos.
Mas perdoem ao editor que, ao menos uma vez, dê a cara no nosso blogue pelo BCav 490. Todos nós dizemos o melhor dos nossos Camaradas, daqueles com quem calcorreámos os trilhos daquela imensa (imensa, sim...) Guiné. Noites e dias, os frios e os calores insuportáveis até ao limite, os camuflados pesados do calor e da chuva e a pergunta com resposta certa: quem quer saber do que estamos aqui a fazer?

E tinham razão aqueles que, já naqueles primeiros anos da Guerra, diziam abertamente que estávamos a travar uma guerra errada e sem sentido. Como quase dez anos depois para os que a iniciaram se veio a comprovar.
Nenhum de nós trouxe tudo o que para lá levou. Uns viram as suas vidas sacrificadas sem glória, outros mais afortunados deixaram lá partes e todos trouxemos coisas que os nossos vinte anos nem sonhavam.

vb
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História do BCav 490: Breve resumo

Adaptação da responsabilidade do editor



1. Formação

- Em Fevereiro de 1963, o comando do Batalhão frequentou um estágio de guerra subversiva no CIOE, em Lamego, a que se seguiu durante quatro semanas a Escola Preparatória de Quadros no RC 3.
- 16 Abril: início da Escola de Recrutas no RC 3, com a duração de 7 semanas.
- 2 Julho: gozo da licença do pessoal com a informação de que o Batalhão iria ser mobilizado para Moçambique. Com a licença ainda a decorrer recebem a notícia de novo destino: Guiné.
- 14 Julho: reunião de todo o pessoal em Estremoz e preparativos para rumarem a Lisboa.
- 16 Julho: despedida do Batalhão, com missa campal seguida de desfile. Deslocação em formatura para a estação dos C. F. de Estremoz, onde embarcou às 24h00 com destino a Alcântara Cais, onde chegou às 07h00 do dia seguinte.
- 17 Julho: formatura de todas as unidades prontas para o embarque, com revista pelo Brigadeiro Ribeiro de Carvalho, Director da Arma de Cavalaria.

2. Viagem
- 17 Julho: às 11h00, embarque no "Niassa". Seguiram no mesmo navio os Comandos e CCS dos BCaç 512 e 513, além de três Cªs de Artª. Com cerca de 1500 homens sob o comando do Ten. Coronel Fernando Cavaleiro e levando como Comandante de Bandeira o Cap. Mar e Guerra Ferrer Caeiro, o navio desamarrou às 12h00.
- Durante a viagem o pessoal teve instrução de armamento, familiarizando-se com a G-3, arma que viram pela primeira vez. Foram transmitidas ao pessoal algumas informações sobre a Guiné, nomeadamente clima, usos e costumes. Projecção de filmes, concursos de tiro e exercícios de salvamento ajudaram a passar os dias. Na véspera da chegada os militares apresentaram uma sessão de variedades.
- 22 Julho: chegada a Bissau, pela manhã.

3. Desembarque e instalação

- Devido à falta de alojamentos em Bissau o Batalhão só desembarcou em 27 de Julho, ficando alojado em barracões (sem portas nem janelas) sitos na Bolola.
- Dezembro de 1963: mudança para a Amura, de pouca dura, uma vez que foi atribuída ao Batalhão a missão de entrada em sector no Norte.
- Na deslocação da unidade para o Sector 02/Farim, as condições não permitiram que a bagagem seguisse com o pessoal (estava prevista uma missão operacional com a duração prevista de 20 dias, que acabou por não se realizar).
O pessoal entrou em Sector com uma muda de roupa. Devido a problemas vários, a maioria dos elementos do Batalhão recebeu as respectivas bagagens 8 meses depois.

continua
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Notas:
1. O Capitão de Mar e Guerra Ferrer Caeiro conheci-o como Comandante da Marinha em Bissau em 1965/66.

2. artigos relacionado em

Guiné 63/74 - P3325: O meu baptismo de fogo (11): Mampatá, 20 de Fevereiro de 1973 (António Carvalho)


1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (*), ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74, com data de 14 de Outubro de 2008, com a narrativa do seu baptismo de fogo (**).

Caro Carlos Vinhal,
Daqui te saúdo com muita amizade.

Uma vez mais peço que leias um testemunho meu dos tempos da Guiné e se o considerares interessante faz o favor de o publicar no nosso blogue.

Cordiais cumprimentos,
António Carvalho
Fur Mil Enfermeiro
CART 6250
1972/1974
MAMPATÁ (Forreá)


2. Caros Camaradas da Tabanca Grande

É a segunda vez que escrevo para o nosso blogue. Antes de mais deixem-me dizer-vos que, cada vez mais, entusiasmo-me com os textos que vou diariamente lendo, nesta janela propiciadora de revivências de um tempo doloroso. E sendo certo que me faz bem ler os relatos dos outros, depreendo que farei bem aos outros, ao descolar da minha memória, momentos marcantes daqueles tempos e, com a maior objectividade possível, torná-los conhecidos por todos aqueles que comungaram daquele cálice.

Tendo sido Fur Mil Enf, não sairia para o mato, por princípio, muitas vezes. Mas saí algumas vezes, como naquele dia 20 de Fevereiro de 1973. Não sei agora porquê, pois tratou-se de uma saída a nível de um único grupo de combate. Estaria o cabo enfermeiro doente? De férias? Não sei. Sei que saímos para fazer segurança aos trabalhos de desmatação, no âmbito da construção da estrada Aldeia Formosa-Nhacobá, com passagem por Mampatá, Colibuia e Cumbidjã. Nesta fase já a asfaltagem tinha chegado a Colibuia e já tínhamos fixado dois grupos da nossa companhia nesta localidade, primeiro em tendas e mais tarde em barracas de chapa de bidões.

Guiné > Região de Tombali >Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "Fase da construção da estrada, quando a mesma passava em frente à escola de Mampatá

Foto e legenda: © José Manuel (2008). Direitos reservados.


Saímos então de Colibuia ou de Mampatá e, depois de termos atravessado a área desmatada, quando procurávamos o local para montarmos o sistema de vigilância e protecção aos trabalhos da Engenharia, abriu-se um fogachal sobre nós que, nos primeiros segundos, pôs toda a gente de barriga colada ao chão. Logo de seguida ouço gritos:
- Estou ferido!... Oh Furriel estou ferido!... - Era o António Carola do Nascimento, 1.º Cabo Apontador de Morteiro.

Berrei-lhe:
- Faz fogo caralho... senão morremos aqui todos... se estivesses ferido não falavas.

- Estou ferido estou... tenho estilhaços nos colhões.

E os rockets deles a estourar por cima das nossas cabeças. Para sorte nossa, muito altos, projectando estilhaços para todos os lados à mistura com folhas de árvores. Eu estava a cerca de 10 metros à direita do Nascimento e outros tantos metros do camarada que tinha algumas granadas de morteiro. Então arrastava-me da direita para a esquerda para municiar o apontador. Ele - o Nascimento - teve que adiar o tratamento para depois e entregar-se com unhas e dentes à prioritaríssima tarefa de mandar morteiradas para a direcção de onde vinha ferro quente.

Entretanto o Pel Caç Nat 68 comandado pelo guerreiro Fur Gomes vem em nosso auxílio e o Ussumane Buaró chegado perto de mim, carrega-me nos ombros e obriga-me a deitar, com estas palavras que nunca mais esquecerei:
- Deita, deita Furriel, tu estás ferido.

Era um ferimento sem qualquer importância, com também o dos três camaradas que apanharam com estilhaços. No meu caso, um pequeno estilhaço, no dedo mínimo da mão esquerda, foi quanto bastou para ficar com todo o antebraço tingido de vermelho o que levou o generoso e amigo fraterno Ussumane Buaró a julgar-me gravemente ferido.

Posicionou-se ele, de pé, a fazer fogo de dilagrama, atrás de mim. Obrigado Ussumane. Se e quando for à Guiné procurar-te-ei para te abraçar. Se já não te encontrar procurarei o local dos teus restos e aí, de olhos postos no horizonte, perante a omnipresença do Criador Supremo, derramarei, nesse chão, lágrimas de gratidão e saudade.

Foi este o meu baptismo de fogo, com participação directa, em confronto com o então IN, hoje povo irmão.

E hoje fico por aqui.


2. Comentário de CV:

O António Carvalho, que vive em Gondomar, para quem não se lembra, foi Fur Mil Enfermeiro e, tal como o nosso Zé Teixeira, esteve em Mampatá. Ambos fazem parte da Tertúlia de Matosinhos que monta emboscadas semanais na Rua Heróis de França, em Matosinhos.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3200: Tabanca Grande (86): António Carvalho, ex-Fur Mil Enf da CART 6250 (Mampatá, 1972/74)

(**) Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3316: O meu baptismo de fogo (9): Missirá, Cuor, 6 de Setembro de 1968 (Beja Santos)