Alemanha, Berlim > Páscoa, 2012 > O J.L. Mendes Gomes com os netos.
Foto: © J. L.
Mendes Gomes (2012). Todos os direitos reservados.
1. Continuação
da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria do nosso
camarigo Joaquim
Luís Mendes Gomes,
membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf
Mil da CCAÇ
728, Os Palmeirins de Catió, que esteve na região de
Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66, vivendo
presentemente em Berlim.
SEGUNDA CARTA – EM CATIÓ
(PARTE II) (*)
Lichtenrade,
Berlim, 14 de Março de 2012
4- Recordações Boas e Amargas de Catió
Os
momentos da chegada ao quartel, depois do esforço e dos riscos que se tinham
sofrido, ficaram para sempre inesquecíveis. Desencadeavam em nós um tal
bem-estar e satisfação que quase apetecia dizer que, por eles, tudo tinha
valido a pena.
Um
banho de chuveiro e uma cerveja grande fresquinha bebida, gole a gole, de papo
para o ar e o corpo estendido na cama, acabavam por fazer esquecer e dar-nos a
insidiosa sensação de que tão cedo não cairíamos noutra…
Mas
não era assim, logo a seguir, haveria serviço noturno a desenvolver, com
emboscadas montadas em sítios estratégicos, nas imediações de Catió, para
criar insegurança ao inimigo e
afastar-lhes a tentação de ataques súbitos. Para isso, havia uma escala de
serviço para cada pelotão.
Nunca
me esquecerei daquele Domingo, de manhãzinha, em que fui acordado pelo alferes
Arlindo Barros, - exercia, por assim dizer, as funções de
segundo comandante da Companhia – para sair imediatamente com o meu
pelotão, porque andavam a raptar populações inteiras em certo sítio, fora de
Catió. [, foto do quartel à direita, 1968, foto do nosso saudoso Victor Condeço]
Rapidamente,
sem grandes apetrechos, estávamos a caminhar através de matas e bolanhas,
guiados por uns elementos nativos que conheciam bem o terreno. A caminhada durou o dia inteiro. Apenas
levávamos connosco o cantil cheio de água. De comer não.
O
calor era tórrido e sem abrigo, em muitos lanços da caminhada. O que mais falta fez, na realidade foi a
água. Eu pensei a sério, em beber a minha própria urina… não sei se alguém o
fez. Só sei que tive de beber água escaldante esverdeada dos charcos das
bolanhas filtrada na minha camisa. Para
refrescar o corpo, molhava-nos todos onde se podia. Momentos depois a roupa
estava seca sobre a pele.
[Foto do bar do quartel de Catió, à direita, 1968, foto do Victor Condeço, 1943-2010; na imagem, ele é o primeiro da esquerda]
O
regresso a Catió foi lancinante. Para além do cansaço, tinha-se-me esfolado a zona
entrepernas a ponto de sangrar. Terá
sido, para mim, pelo menos, a prova mais dura de todo tempo de comissão. E o
resultado foi nulo. Não se aprisionou ninguém. A tal ponto que este feito, no
final, inesperadamente, determinou- me a atribuição do meu único louvor, pelo
comandante de companhia o qual não mereceu, como seria de esperar, nenhum
reconhecimento pelo novo comandante de batalhão.
E houve de facto uma razão forte. Foi que, este comandante, o tal de tão mau
feitio e igual formação, que lhe mereceu uma agressão de alguém, anónima, na
cabeça, pela calada da noite, quando deambulava no interior do aquartelamento.
Quando
pôde voltar ao almoço na messe, cabeça toda entrapada, recomendou a todos os
oficiais que transmitissem aos seus subordinados que ele mesmo promoveria ao
posto acima quem denunciasse o agressor.
Claro
que ninguém quis ser promovido, gratuitamente.
Fosse
pelo que fosse, eis que, de supetão, decidiu empreender, por sua inteira
iniciativa, uma minioperação, que consistia num golpe de mão a um
aquartelamento inimigo, algures, para os lados do Cantanhez.
Sairia
a minha companhia só, reduzida a dois pelotões, o 2º e o 3º pelotão, o primeiro
ficaria de guarda ao quartel. À frente
seguiria o pelotão de nativos, comandados pelo famoso J. Bacar Jaló [, foto à esquerda, em Catió, em 1967, já graduado em tenente de 2ª linha: foto de Benito Neves].
Foi a
nossa salvação. Este alferes nativo
conhecia muito bem o terreno e o que por lá havia.
- Ó nosso alferes! Isto é uma grande asneira.
Muito perigosa. Se tentarmos lá ir tenho a certeza de que seremos todos mortos
como passarinhos. – exclamava-me ele atónito, e preocupado, não por si.
Toda a
gente sabia como ele era uma pessoa muito séria, do seu valor, coragem e
capacidade de comando no terreno. Se o dizia tão desassombradamente era porque
era mesmo verdade.
Que é
que nós podemos fazer contra tamanha força ali existente, de fonte segura. Nem
um batalhão, quanto mais, três pelotões, armados só de G3, bazucas e morteiros.
Sem apoio aéreo ou de artilharia. Era um golpe de mão.
Era
melhor ser um único pelotão. Por exemplo o meu…continuava ele espumando de
raiva. Eu era o comandante da operação.
Pelo facto de ser mais antigo que o comandante do 3º pelotão, o alferes
Gonçalves.
Conferenciei com ele. Logo se veria o que
faríamos. Quando já estávamos a pisar terreno de alto perigo, muito próximo da
entrada na mata onde ficava o quartel inimigo, apareceu no céu, muito alta, uma
avioneta que transportava o autor da operação.
Entrou
em contacto comigo via rádio. Informou que estávamos perto do objetivo . Que
estava a chegar um bombardeiro de Bissau para metralhar a mata. De seguida e à
sua ordem deveríamos entrar mata dentro.
- Entendido, nosso alferes? - Não
respondi logo.
[Foto à direita: pista de Catió, janeiro de
1968. Autoria: Victor Condeço, 1943-2010]
O raio
do rádio tinha de avariar naquele preciso momento…
- Está-me a ouvir ou não? – gritava lá do
alto.
Nunca eu sentira tamanha responsabilidade às
minhas costas. Sempre pensei que apenas iria cumprir , mas integrado na
companhia, à responsabilidade do comandante.
As
palavras do J. Bacar Jaló badalavam-me insistentes na cabeça.
- Não.
Não vou pôr , tão ingloriamente, em risco a minha e as vidas dos meus soldados.
Aconteça o que acontecer. – pensei para mim.
Recusei
responder-lhe, a tudo quanto ouvia, simulando uma avaria nas transmissões. O
comandante gritava mais e mais.
- Ó nosso alferes, está desobedecer-me. Vai
ser preso quando chegar ao quartel. Por desobediência em teatro de guerra. Por que,
de certeza, me está a ouvir.
E estava mesmo. O Gonçalves disse que eu é que
era o comandante. Fazia o que eu dissesse. O J. Bacar Jaló mantinha tudo o que
dissera:
- Vamos morrer todos, nosso alferes!
Não
vamos. Decidi. Ficamos ali parados no meio da bolanha.
Às
tantas apareceu lá longe o tal bombardeiro. Deu umas voltas em redor e, subitamente,
orientou-se na nossa direção, picou sobre nós. Roncando assustador, como uma terrível fera.
Ensurdecedoramente.
- Vamos ser bombardeados, por engano. – Gritei.
[Foto à esquerda, vista aérea de Catió, janeiro de 1968. Autoria: Victor Condeço, 1943-2010]
Não
foi preciso mandá-los. Logo uma série de soldados se despiu as camisas para lá
de cima verem que éramos nós… e acenavam-nas desesperados, mirradinhos de medo.
Por
momentos, pensei e todos nós que muitos iriam ficar ali para sempre. Foi tudo
muito rápido. Assim como picou em direção a nós assim se elevou, sem nada
acontecer.
Passados
mais uns momentos, começámos a ser atingidos por granadas de morteiro e bazuca
vindas da orla da mata. Respondemos
como pudemos. O resto foi o bombardeiro quem resolveu. Metralhando ferozmente
toda a mata e a orla donde vinha o fogo.
A
famigerada avioneta tinha desaparecido há muito nos céus. Que estávamos nós lá
a fazer? Mandei regressar.
No dia seguinte, fui chamado à sala do
comando. A tal onde se explicavam as operações. Estavam todos os oficiais do batalhão e da
minha companhia. Solenemente, o
comandante chamou pelo meu nome. Pus-me em sentido.
-
Nosso alferes Mendes Gomes, ontem o senhor negou-se a cumprir as minhas ordens.
- Que
ordens, meu comandante?
- Não me diga que não ouvia o que eu lhe disse
pelo rádio.
- Eu não ouvi nada, meu comandante. Está aqui
o comandante do 2º pelotão e o alferes J. Bacar Jaló que estavam à minha beira
para testemunharem se foi ou não verdade.
[ Foto à esquerda, da autoria de benito Neves Catió > 1967 > Lagoa entre Catió e Príame].
O
rosto do comandante toldou-se, não sei se de raiva se de gozo voraz. Iria
apanhar-me de certeza- pensou para consigo.
-
Nosso alferes Gonçalves, é verdade o que ouviu da boca do nosso alferes Mendes
Gomes?
- Sim.
É verdade. O rádio não transmitiu nada.
- Alferes João Bacar Jaló, que me tem a dizer?
- É
tudo verdade o que foi dito pelos nossos alferes.
O
comandante ficou embatocado. Nunca esperou ouvir o que ouvira. Parecia que estava tudo combinado. Mas não. As
reações dos meus camaradas foram espontâneas. Em total solidariedade. Aquela
operação era um suicídio…
Perante
tão claros e peremptórios testemunhos, que provas tinha ele do contrário? Absolutamente nenhuma. Mesmo assim, já estava tudo decidido.
Mandou
ler a repreensão agravada que já vinha preparadinha…
Uma vez lida, a magna reunião tão solenemente
como começou assim terminou. Respirei de
alívio.
- Quero lá saber da repreensão…- pensei.
Bem
temi que iria parar à prisão militar.
[Continua]
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Nota do editor