Guiné-Bissau - 2008 - Cemitério Militar de Bissau - Talhão Central
Foto: © Nuno Rubim (2008) . Direitos reservados.
1. Em mensagem de 28 de Agosto de 2017, o nosso camarada António
José Pereira da Costa, Coronel de Art.ª Ref (ex-Alferes de Art.ª da CART
1692/BART 1914, Cacine, 1968/69; ex-Capitão de Art.ª e CMDT das CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, e CART 3567, Mansabá,
1972/74), enviou-nos esta reflexão onde põe em causa o sacrifício de uma geração que combateu em África, numa guerra sem sentido em território desconhecido para a esmagadora maioria dos militares para além-mar mobilizados. A mesma interrogação se põe para os camaradas guineenses que durante 11 anos lutaram a nosso lado.
A Minha Guerra Petróleo (21)
E Afinal para Quê?
Passados que foram quase 44 anos sobre data do reconhecimento da independência da Guiné por parte de Portugal (10SET74), facto histórico ocorrido após onze anos de guerra, conduzida nas condições mais duras de quantas ocorreram nos três TO onde a guerrilha contra as autoridades portuguesas eclodiu e depois de ter lido alguns dos últimos posts no blog que me atingiram mais profundamente, ocorre-me perguntar:
E afinal para quê tanto esforço? Para que serviu tanto sacrifício? Valeu a pena o nosso empenhamento, (sempre que existiu) não apenas na área operacional, mas também nas outras, (e tantas foram)? Esta questão do “empenhamento” no desempenho das tarefas diárias levanta a questão fundamental da nossa intervenção em África: será que a considerávamos necessária, justificada, útil e vantajosa até? Ou pelo contrário, aceitávamo-la como uma problema – uma espécie de obstáculo a transpor – a que não podíamos fugir?
Tenho para mim e declaro já que, cada vez mais, concluo que tanto esforço e sacrifício foi totalmente inútil. Mas isso é a minha maneira de pensar… Aqui deixo algumas considerações sobre o tema.
A guerra na Guiné durou 11 anos e traduziu-se essencialmente num somatório do sacrifício – físico e psíquico – de períodos de dois anos imposto aos jovens portugueses, numa altura da vida que deveria ser, como dizia Gomes Freire de Andrade, a mais bela parte da vida e durante o qual os rapazes do nosso tempo se preparavam para a vida que se iria seguir. Para além dos que foram e voltaram “bem”, temos a considerar o sacrifício dos mortos, a dor dos feridos e de todos os outros que voltaram depois de terem sido vítimas de outros tipos de sofrimento, como a prisão, por exemplo.
Hoje, coleccionamos as consequências do “conflito”, descrevemo-las em livros, em blogs e em evocações anuais ou convívios em que se recorda o sucedido. Chamam-nos os “Velhotes da Tropa”. Nesta altura já não será importante contabilizar as tais consequências, pois isso é do campo da estatística, uma ciência fria e que normalmente não acrescenta nada de novo, depois de um tratamento matemático da realidade. Os estudiosos futuros que o façam! Além disso, hoje não se pode fazer nada para melhorar o que quer que seja…
Venho apenas perguntar para que serviu tudo aquilo que passámos e cujas marcas hoje ostentamos, veladamente uns, outros exibindo-as com orgulho (provas de dever cumprido, afirmação de coragem ou de virilidade) ou, na pior das situações, por impossibilidade de as esconder.
Vou falar dos portugueses metropolitanos. Mas poderia estender a pergunta, incluindo os guineenses, que lutaram – esses de modo ininterrupto, nas suas terras e junto das suas famílias – do lado das autoridades portuguesas. E, por uma questão de justiça, ainda poderia estender as mesmas perguntas, relativamente aos guineenses (guerrilheiros do PAIGC e civis que os acompanhavam, na esperança de que, depois daquele sacrifício, a vida lhes sorriria). Se podemos apresentar um número dos que lutaram à ordem do governo, sed
iado em Lisboa, em relação a estes últimos não encontramos arquivos fiáveis que nos permitam estimar quantos tenham sido e, muito menos, quais desses morreram ou ficaram com as sequelas dos tipos que indiquei a cima.
Os “Metropolitanos”, arregimentados num processo contínuo e sempre crescente, podem ter começado por aceitar a ida para a guerra como um imperativo patriótico e moral. Com efeito, a História e a Geografia de Portugal que estudávamos, todos pelos mesmos manuais, e examinados, da mesma forma e com os mesmos critérios, inculcavam-nos no espírito, uma espécie de crença (não diria fé) que fazia com que tivéssemos daquelas terras um conhecimento menos que livresco mas, mesmo assim, se nos perguntassem, considerávamos que elas eram “os nossos territórios de além-mar”. O número dos que lá tinham qualquer coisa de seu era mínimo e, em boa verdade, o sentimento de posse em relação àquelas terras era algo que ninguém conseguia explicar o que fosse. Estou convencido de que este estado de espírito tinha que ver com o momento da vida em que o conhecimento nos era inculcado. Era uma ideia que íamos interiorizando e não podíamos pôr em causa – por motivos óbvios – e que íamos arrumando no nosso espírito, esperando nunca ter de a fazer vir à memória e, muito menos, que isso viesse influenciar a nossa maneira de viver. Quantos de nós tinham ido alguma vez à Guiné? E, contudo, se a Pátria precisasse, iríamos e fomos…
A censura que pesava sobre as publicações antigas acerca da Guiné impedia que tivéssemos conhecimento do que por ali se passou, ao longo de 500 anos e a que não tínhamos acesso nos tais manuais. Era uma censura estranha, já que não “cortava” textos ou impedia a publicação dos livros mas, recorrendo a uma espécie de silêncio nunca assumido, impedia que a mensagem daquelas publicações se difundisse e assim tivéssemos uma ideia concreta do que íamos encontrar e, principalmente, porquê. Hoje, quando lemos os livros e as revistas antigas, só temos que somar dois e dois, ao conectar o que encontrámos nos locais onde vivemos com as descrições que ali encontramos. As publicações de propaganda (emitidas pelo SNI e outras entidades oficiais) eram algo que tinha uma difusão muito restrita, talvez propositadamente, e não despertavam interesse. Eram coisas que “o Estado” publicava, mais por obrigação, e que acabavam por não ter utilidade na difusão da realidade.
E a “realidade” veio. Uma vez desembarcados, só poderemos falar de choque e espanto. Então a Guiné era aquilo? Era por aquilo que vínhamos arriscar-nos? Aquela terra também era Portugal? Porquê, se a diferença era tão grande? Qual era a ligação que sentíamos ter àquelas populações? Ou, reciprocamente, qual era a ligação que as populações tinham connosco? Sem possibilidade de retorno, fizemos apelo à velha capacidade de adaptação dos portugueses a qualquer meio onde se encontrem, chegando ao ponto de tentar falar a língua que era comum aos seus grupos étnicos de que ainda conhecíamos(?) vagamente os nomes. No contacto diário, nunca procurámos ensinar-lhes a nossa. Por mim, creio que recusar aprendê-la era uma das suas formas de resistir à ocupação, que só episodicamente assumiu a forma de integração. É por isso que ainda conhecemos algumas palavras em crioulo ou mesmo em fula, balanta ou outra, consoante as regiões por onde andámos. Mas o mais importante foi que, à chegada, caiu por terra o mito de “dilatação da fé”, uma vez que o número de católicos que encontrámos era ínfimo, se comparado que o dos islamitas ou animistas.
Inevitavelmente, no íntimo de cada um de nós, começaram, então, a ser postas em causa as razões para estarmos ali, naquela hora e naquelas condições. Era uma interrogação para qual cada vez menos tínhamos resposta. É inútil dizer que as perguntas deste teor, sem resposta, eram cada vez mais e as contradições se avolumavam a cada dia de comissão. Sabemos todos que a convicção – mesmo forte – das primeiras mobilizações rapidamente se perdeu e, a cada “fornada” de periquitos, era possível notar a falta de mentalização, de interesse e vontade, relativamente aos velhos que saíam com a sensação de que as coisas não tinham melhorado. Mas, no fundo, o que é que interessava se tinham melhorado? O “dever cumprido” era afinal ter estado sem fugir, ter sofrido e, com maior ou menor êxito ter suportado as investidas do inimigo ou ter obtido êxitos nas nossas acções ofensivas. Mas, em consciência, a maior parte de nós não saberia responder cabalmente se o sector que passámos aos periquitos estava melhor do que tínhamos recebido da velhice. Não falo obviamente, na melhoria das condições de vida, nos aquartelamentos, porque essas vinham do nosso ânimo, capacidade e apoio logístico conseguido.
Numa análise das outras áreas da nossa actuação, vou excluir a famigerada APsic que, antes de tudo, tinha de ser barata, o que a condenava a nem conseguir sequer seduzir os incautos, tal era o seu grau de demagogia. Mas havia outras áreas em que a nossa acção revestia aspectos gratificantes. A melhoria das condições de vida nas tabancas através (por exemplo) da abertura de poços ou construção dos chamados “reordenamentos”, onde era suposto que a população viveria melhor, pelo menos a coberto dos incêndios. No entanto, os “reords” eram também uma consequência da nossa táctica, o que faz supor que nunca teriam acontecido se a guerra não tivesse surgido. Temos também o caso do apoio sanitário que conseguíamos prestar às populações e que, algumas vezes, até estendíamos aos inimigos. E as melhorias no sistema viário, intensificadas durante o governo do General Spínola e obtidas à custa de grande esforço em todas as regiões. Já no que respeita à educação, a nossa actuação foi mais discreta e os resultados bem modestos. Nunca detectei uma grande avidez da população no acesso à instrução e cultura e, devido ao atraso em que se encontrava, seria de esperar que o desenvolvimento da educação fosse quase exigência. Recuso que se trate de características endémicas do povo. Admito antes que se tratasse de uma atitude de desconfiança, ou até de recusa, que radica no passado, talvez longínquo, e que visaria evitar a descaracterização. Seria possível a montagem de uma estrutura de escolas primárias semelhante à que existia na Metrópole? Não creio que fosse, por demasiado cara. Como sabem a “guerra” tinha que ser barata, pois o orçamento não dava para tudo. E professores/as será que os havia?
De qualquer modo, temos que concordar que é uma ideia um tanto ou quanto absurda ter de fazer uma guerra para obter melhorias sociais ou “concedê-las” em consequência da guerra. “Na Guerra Preparando a Paz”, a divisa de um dos batalhões a que pertenci é, no mínimo, um absurdo. A Paz faz-se e pratica-se. Se há guerra é porque há condições para que surja. Preparar a Paz fazendo a guerra, como muitas vezes se diz é como ficar feliz por ter adoecido e saber que o que é bom é ter saúde. Surrealismo puro!
Mas por mais que fizéssemos, há uma coisa, que ninguém pode negar: nunca ocorreu uma mudança de campo massiva da população sob controlo do inimigo, nem uma colaboração espontânea e generalizada por parte da população que estava sob nosso controlo. E a população era o alvo daquela guerra. Era o que tínhamos de conquistar de modo a negar ao inimigo a exploração das contradições que tinham levado à situação que se vivia. É dado adquirido que, na Guerra, há sempre uma parte da população com um comportamento amorfo em relação aos beligerantes, mas as mudanças operadas deveriam ter levado a uma maior aceitação do domínio das autoridades. E tal não sucedeu, por mais que nos esforçássemos.
Não entendíamos porquê mas, já naquele tempo, tínhamos a ideia de que o inimigo estaria muito mobilizado e motivado. Não tínhamos dúvidas de que o aparelho administrativo do inimigo não tinha capacidade para fazer melhor do que a nossa Administração. Também não entendíamos bem o que levava a população que apoiava o inimigo a manter-se junto dele. Sabemos agora que a deserção, de combatentes ou não combatentes, era severamente punida e que o controlo dos acompanhantes era muito apertado. Era o “partido” dos anos sessenta/setenta, nos restos do estalinismo. As sucessivas independências da África iam-no confirmando, de vez em quando. Era só ler os jornais e revistas. Claro que os nacionais poderiam ser acusados de facciosismo, mas os estrangeiros – a que tínhamos acesso – e que normalmente eram a base dos noticiários que víamos, ouvíamos e líamos, poderiam ser aceites como bastante credíveis. Em geral, a saída das autoridades coloniais, precipitava os novos países para as situações de neocolonialismo que não beneficiavam senão o partido (único) que ficava no poder. E se assim fosse em relação à Guiné, que é que poderíamos fazer para que ali fosse diferente?
Passaram 54 anos. Duas gerações! Estamos quase todos na casa dos setenta e é tempo de olhar para trás, de modo lógico, imparcial, sem ideias preconcebidas e com a coragem necessária para enfrentarmos o que passou. É bom que o façamos, antes que os doutores comecem a fazer teses, frias e sem alma, mas que encerrarão o processo. E o que eles escreverem o que está certo.
Enumerei, sinteticamente o que fizemos e os resultados (pobres) que tivemos. Descrevi o modo – vicioso e atabalhoado, mas férreo – como fomos, desde a meninice, preparados para participar activamente no que sucedia. O trauma da chegada e as dificuldades em justificarmos numa auto-análise o que fazíamos e o desacerto entre nós e as populações locais que eram também portugueses, mereceu-me destaque. Acho que a convicção, uma vez adquirida, não deve ser posta em causa e, se perdida, perdeu-se tudo o resto. Resumidamente, descrevi a nossa actuação na área operacional e indiquei os sacrifícios e os traumas de toda a espécie que carregamos e que muitas vezes não são compreendidos e muito menos aceites na sociedade dos nossos dias. Por fim mostrei as consequências de um fenómeno que começou sem que nos apercebêssemos e terminou, como seria de esperar.
Como conclusão final interrogo se poderíamos ter feito algo (ou deveríamos ter feito mais) para que as coisas não sucedessem assim e tenho a certeza de que nada havia a fazer. No meu primeiro, ou segundo post, digo que éramos um grupo de bombeiros que chegavam tarde a um incêndio florestal que tinha todas as condições para arder e não tenho hoje qualquer dúvida de que tudo foi em vão. Se calhar, com um pouco de senso, poderíamos ter chegado a uma solução melhor e com menos sacrifícios dos metropolitanos e dos guineenses amigos ou inimigos. Mas, a História não se rebobina…
28 de Agosto de 2017
AJPC
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Nota do editor
Último poste da série de 28 de dezembro de 2016 >
Guiné 63/74 - P16891: A minha guerra a petróleo (ex-Cap Art Pereira da Costa) (20): Estudo sobre o bi-grupo de Mário Mendes