A guerra e as suas entranhas, em terras próximas ou estranhas, sempre fascinaram, revoltaram e mobilizaram o homem.
Anarquistas e conservadores, aristocratas e operários, fascistas e antifascistas, descamisados e oficiais de monóculo, sobreviventes das trincheiras e gaseados, soldados de assalto e feridos de morte, poetas e prosadores, pintores e pensadores, muitos investiram as mais nobres energias na reflexão sobre o campo de batalha.
Este pode ser visto como uma simples planície da técnica, da era da espada ou da era de Urânio. Ou ser antes olhado, de forma que se diria “existencialista”, como um vale de lágrimas e revelações, onde se morre e se nasce, mas sobretudo onde habitam homens e mulheres comuns. E onde residem, soberbas ou incógnitas, evidentes ou traiçoeiras, contínuas ou explosivas, a violência e a morte.
Tivemos grandes obras sobre este continente trágico, onde vemos já não como um espelho baço, mas face a face. Como “As Tempestades Aço” de Jünger, como “O Fogo”, de Henri Barbusse, como E.E. Cummings em “O Enorme Quarto”, ou o “Entre Parêntesis” de David Jones, como o “Ronge Maille Vainqueur”, de Lucien Descaves, qualquer livro sobre guerra perturba, alerta, impede a normalidade. E pode despertar, para lá do desespero, a esperança.
É o caso do livro que nos traz aqui. Relato de guerra, seco e sem adornos desnecessários, este volume de Amadu Djaló, escrito em português escorreito e de lei, é tanto uma história de morte como de vida. De tempo de matar e de proteger. De tempo de golpes de mão, executados com precisão e destemor, e de lágrimas por uma criança perdida, em Darsalame Baio, na margem, literalmente na margem: à beira do rio Burontoni, à beira de sentença salomónica.
Relato de vida militar, da obediência perinde ac cadaver, também é uma fiel e lúcida exposição das dúvidas dos combatentes, quando confrontados já não com a obediência, a lealdade e a técnica, mas com os juízos políticos, a diplomacia e as relações internacionais.
Este clima de homens divididos encontra-se na breve descrição do prelúdio à operação “Mar Verde”: resgatar companheiros presos fazia parte da missão, mas o que dizer de levar a cabo um acto de guerra em território estrangeiro?
Estaríamos perante uma violação da soberania alheia, mesmo se de estado hostil, ou antes diante de uma espécie de auto-defesa legítima? Seria “regime change”, ou contra-ataque a quem nos agredia, ou oferecia bases a quem nos ofendesse?
“Obedientes como cadáveres”, como diria Inácio de Loyola. Mas pode um cadáver reflectir, se a alma, prestes a partir, ainda o habitar?
Relato de guerra, este volume, o primeiro de memória, é antes de mais um admirável retrato, de história oral e testemunhos vivos, sobre a humanidade, os seus encontros e desencontros, amores e desamores.
É a história dos condutores sem carta, dos oficiais à estalada em frente de soldados envergonhados, dos civis ambulantes que levavam o cinema às tabancas, de um ataque de abelhas que abatem um homem rijo, de romances ao luar, de misérias na estrada. Um relato de delicadeza e pudor.
Pudor na descrição do que hoje diríamos violência sexual, violência racial, violência animal. O autor, homem bom e reservado, é também bom e reservado, na visualização da desumanidade: o oficial que diz que “preto é como a tartaruga” não é “racista”, mas apenas “um branco mau”.
Este é também um livro sobre o terrível abandono, sobre a inutilidade, sobre o esquecimento. Sobre o absurdo.
Cito, talvez imprecisamente e sem consultar o original, um poema de um dos nossos grandes vates, António Manuel Couto Viana:
“A minha Pátria alçou o braço
Pátria pacífica e pequena
Baixou-o logo de cansaço
Foi Pena
“Cedo arrasou a altiva torre
Que ergueram todos
De mãos dadas
Agora sei como se morre
Por nada”
Esta obra, relato de guerra e do pós-guerra, relato da paz e da pós-paz, é também o mapa deste desencanto, dos combates declarados inúteis, dos combatentes declarados redundantes, dos feridos declarados descartáveis, dos órfãos e viúvas declarados dispensáveis, dos mortos declarados inexistentes, por regulamento ou decreto.
Mas é também uma história, se bem que só esboçada, de reconciliações e de abraços. Abraços e reconciliações às vezes traídos.
O autor encontra-se, a seguir ao 25 de Abril de 1974, com o cabo-verdiano Antero Alfama, quadro do vencedor político, o PAIGC. Os compromissos feitos pelo último são de transição generosa, de integração de todos os guineenses, sem vinganças ou retaliações, sem tribunais especiais ou valas comuns, sem julgamentos secretos e tiros na nuca, sem o “N’kré vivé”, o processo de choques eléctricos, sem asfixia colectiva, em antigos depósitos de munições. Promessas rasgadas pelo processo “revolucionário” em curso em Bissau, mas sobretudo pela iluminação sanguinolenta de algumas vanguardas.
Não vale hoje a pena, se calhar, chorar mais sobre as vidas derramadas, nesse intervalo onde Portugal, independentemente de credos, doutrinas, regimes e pessoas, não fez tudo o que devia, para proteger os que combateram em seu nome.
Não valerá a pena chorar mais sobre o “incidente”, que levou à execução de centenas de comandos, milicianos, civis, em Farim, Cumeré, Portogole, Mansabá, a partir de 1974.
Não valerá mais a pena chorar sobre a aplicação do artigo 86 da Lei de Justiça Militar do novo partido no poder. Não valerá mais a pena chorar sobre aqueles que preferiram ficar na Guiné, a sua terra, em vez de fugir ou de pedir colocação nas instâncias burocráticas de Lisboa.
Não valerá mais a pena chorar por aqueles que aguardavam por oportunidades para continuar a servir a Guiné, ou para serem julgados por crimes de guerra, com todas as garantias e recurso à verdade.
Não valerá mais a pena chorar por este processo. Mas será uma vergonha não o lembrar. Será uma vergonha ter vergonha de o lembrar.
Este livro é também, na tradição dos grandes relatos de combatentes, de tropas de escol ou de guerrilhas, de milícias ou de regimentos fardados a rigor, de irregulares ou de exércitos convencionais, este é também um relato sobre sonhos e premonições, sobre lendas e o outro mundo, sobre conchas mágicas e aparições.
É o caso de João Bacar Jaló, que fecha os olhos, e sabe o que vai acontecer nesse dia.
Nessa zona da mente onde desembarcamos do sono para o sonho, fazem-se também episódios onde imaginamos a morte, às tantas de tal, sem falta.
E lá está ela, pontual no encontro, no fim da picada. Ela, a velha ceifeira, que vem buscar os últimos guerreiros.
É também este um relato sobre acções militares das forças especiais, numa guerra que hoje se chamaria “de baixa intensidade”, mas que teve picos próximos de confrontos convencionais, com emprego de todos os meios, da aviação à artilharia, dos meios navais ribeirinhos à ofensiva em linha contra quartéis e bases.
É, no plano técnico, um bom relato, se bem que parcial e provisório, de incidentes localizados do “nevoeiro da guerra”, com descrições exactas de tácticas e princípios, doutrinas de contra-insurreição e aquilo que a prática, e as lições aprendidas, fazem aos manuais.
É a história da missão, talvez impossível, de ganhar corações e espíritos, num conflito subversivo, às vezes de armas combinadas, com os Harvard e os Alouette a zunir sobre as cabeças dos infantes, às vezes continuação de acções de polícia, de missões de assuntos civis, de operações psicológicas.
Às vezes, muitas vezes, demasiadas vezes, com “vítimas colaterais”, de um lado e de outro. Como diz o autor, no confronto verbal com o comandante guerrilheiro Pedro Nazi, logo a seguir ao cessar-fogo: “Porque se nas zonas libertadas vocês apresentam mil órfãos, nós também vos mostramos órfãos aqui na zona. O chicote da guerra é comprido, muito comprido” (p.205).
Neste sentido, o livro cumpre também o preenchimento da lacuna sobre relatos pessoais, ou de grupo, sobre pormenores operacionais na África Lusófona, do ponto de vista das forças armadas portuguesas e do seu inimigo.
Essa lacuna, que se foi preenchendo, nas últimas décadas, com documentos e relatórios de estado-maior, com romances de base realista, com fragmentos e com monografias, tem ainda muito poucas contribuições dos militares africanos, de um e de outro lado da barricada.
Não seria impensada a criação de uma instituição, no seio da parte da CPLP que directamente viveu as guerras africanas, que pudesse, mais activamente, colmatar a brecha.
Oio, Canjambari, Cunacó, Antuane, Cameconde, Bedanda…Nestas páginas pode-se também deambular pela Guiné desconhecida, uma terra onde as famílias, as raízes, os clãs e os laços ultrapassam fronteiras, e se espraiam para além dos estados definidos pelas regras das administrações europeias, ou dos orgulhos nacionais pós-europeus.
Este é assim, ainda, num tempo que preza os relatos de viagem e as descobertas das partidas do mundo, uma espécie de introdução à Guiné, à querida Guiné de todos os portugueses, tenham ou não deixado o seu melhor naquela terra.
À querida Guiné que – penso poder falar em nome de todos os presentes – continuamos a querer soberana, desenvolvida, feliz e capaz de repartir riqueza pelos seus filhos.
À querida Guiné que, acima de golpes de estado e revoluções, pronunciamentos e discursos com má pronúncia, sublevações e homicídios, narcotráfico e cleptocracia, ameaças estrangeiras e cancros internos, tem suficientes filhos, talentos e energias para erguer um futuro diferente. Um futuro melhor.
Porque este é também um livro para o futuro. Uma espécie de filho do autor, e dos que o ajudaram ao parto intelectual. Um manifesto que lembra, como no desfiladeiro das Termópilas:
“Estrangeiro, vai dizer a Atenas
Que morremos aqui para cumprir a sua Lei”.
Mas que, para além dessa lápide de sacrifício, afirma ainda, de forma límpida, o principio do amor entre os homens. Da possibilidade de recomeçar, mesmo na mais negra das noites. Da disposição firme de dar a mão a antigos inimigos, de erguer torres em conjunto, de obter a absolvição, e de absolver. Ou, como fizeram os bispos polacos, em 18 de Novembro de 1965, duas décadas apenas depois da grande carnificina, na carta pastoral aos irmãos alemães:
“Vimos perdoar, mas sobretudo pedir para ser perdoados”.
No fim das guerras, na lembrança interior, no armistício sem amnésia, na paz dos bravos, na reparação dos males, na humildade de reconhecer o que se fez, o que se sofreu, o que se poderia ter feito, na disponibilidade para afirmar os seus valores e reconhecer os dos outros, desta forma se fazem os futuros pactos de não agressão, os irmãos e os aliados.
E assim se alcança, talvez por milagre, a eternidade.
(Revisão / fixação de texto, negritos e itálicos: LG) (Com a devida vénia ao autor e ao nosso coeditor Virgínio Briote, que nos facultou o texto.)
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