terça-feira, 1 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6510: Controvérsias (82): A (im)preparação dos oficiais milicianos na guerra subversiva (Luís Dias, ex-Alf Mil, CCAÇ 3491, Dulombi, 1971/74)


Guiné > Zona Leste > Galomaro > Dulombi > CCAÇ 3491 (1971/74) > O Alf Mil Luís Dias, empunhando
a famosa AK 47 (ou Kalash).

Foto:  Cortesia de Luís Dias (2010).  Fonte: Blogue Histórias da Guiné 71/74 - A CCAÇ 3491, Dulombi

1. Comentário do Luís Dias ao Poste P 6488:


Caro Mário Pinto

Ainda tenho os célebres manuais militares que nos eram fornecidos para estudo: Manual do Oficial Miliciano-Parte Geral , 1º e 2º Volumes, e o "famoso" O Exército na Guerra Subversiva, Operações contra Bandos Armados e Guerrilhas. 

No entanto e de facto o que nos acontecia era um aprender rapidamente que tudo aquilo que nos ensinavam, com certeza de boa fé, não servia no teatro de guerra em que nos envolveram.

No primeiro contacto com o IN, em que 2 Gr Comb da minha companhia, por mim comandados, se viram debaixo de fogo intenso, ao cair da noite, no dia a seguir à partida dos velhinhos, eu vi de imediato os erros que tinha cometido, por não saber estar/abordar uma zona de mato cerrado, em formação deficiente, com grandes dificuldades de ripostar com morteiros, LGF e Dilagramas, numa primeira fase e que só nos correu a contento devido a uma grande dose de sorte e a um soldado africano, muito experiente (ex-guerrilheiro, que conseguiu sair da zona cerrada, obter uma clareira e com o morteiro 60 colocado à barriga - parece incrível mas foi verdade - lançou duas ou três granadas que atingiram os guerrilheiros pondo-os em retirada.

Foi ainda importante que o IN foi detectado primeiramente por 2 elementos nossos, tendo um deles aberto fogo de HK21 sobre um guerrilheiro, o que desencadeou a emboscada que estava a ser montada.

Esta primeira acção, aliada a outras que encontrei no início da comissão, levaram-me também a tomar outras opções tácticas, mais de acordo com o que estávamos a enfrentar no terreno.

No armamento também deixámos a bazuca em casa, só a levando em colunas (também chegámos a usar um RPG2 apreeendido). Largámos as granadas defensivas, ficando unicamente com as granadas ofensivas. Aumentámos os elementos com dilagramas e também usávamos 2 HK 21. Em determinadas zonas mais cerradas o homem da frente levava uma caçadeira calibre 12 com zagalotes. Recorremos a armas do IN para efectuar fogo contra os mesmos (Kalash AK-47 e PPSH 41).

É como tu dizes, tivemos de efectuar uma revolução do que aprenderamos na metrópole.

Um abraço

Luís Dias

Guiné 63/74 - P6509: Controvérsias (81): As urnas de chumbo: "Os restos mortais do José António jazem finalmente na sua Terra Natal" (Alvorada, Lourinhã, 23/5/1965) (Luís Graça)



Notícia, que eu próprio elaborei (tinha 18 anos...) sobre a morte e o funeral do Sold Apont Morteiro José António Canoa Nogueira. E que vem a propósito das "urnas de cumbo com pedras e areia" (*)

Alvorada. (Lourinhã). 23 de Maio de 1965

Os restos mortais do José António jazem finalmente na sua Terra Natal.

Depois de transportados da Guiné para a Metrópole a expensas dos seus companheiros de campanha que lhe votavam particular estima e amizade, os restos mortais do soldado José António Canoa Nogueira repousam finalmente no cemitério da sua terra natal.

O funeral, realizado no segundo domingo do corrente, constituiu uma homenagem pública à memória daquele de cuja presença e convívio a morte irremediavelmente nos separou, e um testemunho de apreço pelo sacrifício da sua vida. Nele se incorporaram, além da multidão anónima e inumerável, o sr. Presidente do Conselho, outras autoridades civis e militares e os Bombeiros Voluntários.

À chegada do auto-fúnebre militar, com a urna, os clarins dos Soldados da Paz tocaram a silêncio. E o préstito atravessou a Vila, sob uma impressionante atmosfera de recolhimento e dor.

Antes da urna ser depositada no jazigo, os Bombeiros tocaram a continência, num último adeus e derradeiro tributo de homenagem ao Soldado e Jovem Lourinhanense.



O jornal publicava também, a seguir à notícia, uma carta, datada de 10 de Janeiro, endereçada ao  director, e que fazia parte do  espólio do malogrado José António  (o jornal não chegara a recebê-la, fora-me entregue pelo seu pai).

Em comentário introdutório dizia-se que a carta se revelava “a alma simples e transparente do José António, e da sua sensibilidade fina, delicada, capaz de descobrir motivos de beleza numa bandeira que flutua perdida no mato ou numa improvisada e fraterna refeição de campanha. Tinha razão o filósofo e ensaísta brasileiro Tristão de Ataíde quando disse: 'No fundo de cada homem dorme um poeta desconhecido'.

E acrescentava-se:

"Por ser , pois, a última ou uma das últimas cartas que escreveu para a Metrópole, e um apontamento breve mas sugestivo de expedicionário, aqui a publicamos"- acrescentava a notícia do jornal da terra.

Foto: © Luís Graça (2005). Direittos reservados


1. José António Canoa Nogueira, o primeiro combatente da guerra do ultramar, natural da Lourinhã, a morrer na Guiné. Em 23 de Janeiro de 1965.  Ia eu  fazer os meus dezoito anos e, por isso, já tinha dado (ou ia dar) o nome para as sortes.

A pacata vilória (naquele tempo)  do oeste estremenho foi sacudida pela notícia da morte do Nogueira.  Claro que ninguém soube  exactamente onde nem em que circunstâncias. Sabia-se apenas que tinha sido algures na Guiné. As Forças Armadas não davam explicações dessas. Um telegrama, seco e brutal, chegava normalmente a casa do pai e/ou mãe, uns dias depois, anunciando a funesta notícia: “As Forças Armadas cumprem o doloroso dever de o(a) informar que o seu filho morreu no campo da honra, servindo a Pátria”. Imagino que o teor do telegrama fosse esse...

Sei (ou melhor, vim a saber através da Internet, através da página sobre a Guerra do Ultramar, do nosso camarada António Pires) que o soldado Nogueira era apontador de morteiro, tinha o nº  2955/63, pertencia ao Pel Mort 942 / BCAÇ 619,  morreu em em combate. Sei também, por uma carta que publiquei a título póstumo, que ele estava em Ganjolá, Catió, SPM 2058.

O funeral do Nogueira,  quatro meses depois (em Maio de 1965), foi uma impressionante manifestação de dor. Lembro-me da urna, selada, em chumbo. Dos soldados fardados e aprumados, vindos de Mafra, da Escola Prática de Infantaria. Da salva de tiros. Do luto carregado. Da emoção no ar. De uma família destroçada. De uma comunidade comovida. Dos boatos: "Se calhar o caixão vem é cheio de pedras". Da estupefacção e do medo dos mancebos que estavam na lista para a tropa, como eu. Lembro-me sobretudo do silêncio do cemitério. Do calor,  abrasador, do dia.

Nasci e vivi os meus primeiros anos, a 100 metros de um cemitério. Era incapaz de lá passar à noite quando puto. A paz do cemitério num país em guerra... a milhares de quilómetros das portas de cada um de nós.

O Nogueira era meu primo, embora em 3º grau. Não tínhamos grande convívio, mas os nossos pais (o pai dele e a minha mãe) eram primos direitos. As nossas avós maternas eram irmãs. Todavia, a sua morte tocou-me. A morte aproxima sempre os grupos, as famílias. Fiz-lhe uma singela (e creio que sentida) homenagem no jornal da terra, com direito a caixa alta.  O seu pai nunca mais foi o mesmo. Passou a ser, doravante, um homem destroçado. Tinha uma irmã, líndissima, a Esmeralda, de olhos cor de esmeralda, que acabou por emigrar para o Canadá, se não me engano.

Na altura eu ainda era o chefe de redacção e o repórter principal do quinzenário regionalista "Alvorada".   Um facto, desconhecido e insólito para mim, mas ao tempo revelador da grande solidariedade entre os camaradas de guerra: na época os restos mortais dos nossos soldados não eram embarcados para a Metrópole, a expensas do Estado. No caso do Nogueira, foram os seus camaradas (do Pelotão de Morteiros e possivelmente também do Batalhã) que se quotizaram para pagar, do seu bolso, o transporte por via marítima da urna...(E, se calhar, a própria urna).  Creio que custava,. o transporte por via marítima,  qualquer coisa como 11 contos  (equivalente hoje a 55 euros...), o que era muito dinheiro para a época. De resto, entre a morte em Ganjola e o funeral na Lourinhã passaram-se  cerca de quatro meses...

Fica aqui a minha homenagem a esses bravos anónimos de Ganjolá. E mais uma vez aqui deixo também a saudosa recordação do meu conterrâneo e parente, reproduzindo uma das suas últimas cartas em que relatava, para os leitores do jornal da terra,  um pacato domingo no mato!

Não sei se foi depois disso (da notícia do funeral e dos meus comentários)  que o director, o Padre António Escudeiro, recebeu um ofício do Ministério do Interior a perguntar por que é que o jornal já não ia à censura há mais de um ano. Duas linhas, secas, burocráticas, impessoais. Em baixo, ocupando mais de metade da folha, a assinatura, em letra garrafal, mais arrogante e intimadatória que eu jamais vi em toda a minha vida… (Se o fascismo alguma vez existiu na minha terra, na nossa terra, então essa assinatura do censor-mor, ou de algum dos seus esbirros,  era fascismo, puro e duro).

2. Um domingo do mato
por José António Canoa Nogueira

Aqui, Ganjolá, Guiné, 10-1-1965

Mesmo no sul da Guiné, pequeno destacamento militar presta continência à Bandeira Verde-Rubra que sobre o mastro fica brilhando ao sol. E que linda que é a nossa bandeira; e é tão alegre, tão garrida, só olhá-la nos faz sentir alegria e também emoção; alegria de sermos portugueses e emoção por estarmos cá longe para a defender. Embora assim perdida no mato, a bandeira, brilhando, afirma que aqui também é Portugal.

Em volta, meia dúzia de barracas verdes, o nosso aquartelamento, a única nota de civilização nesta imensa planície. Muito ao longe, quase perdidas no mato e no capim, algumas palhotas indígenas; de resto, tudo é solidão. Somos soldados de Infantaria e por isso o nosso trabalho é fazer operações em qualquer parte do mato.

Aqui não há escolas e as igrejas não têm paredes; o tecto é o céu. Em toda a parte se reza e tudo nos incita à oração. Deus está em toda a parte e ouve-nos.

Hoje é domingo, dia de descanso, não se trabalha, mas distracções também não há. Alguns vão à pesca ou à caça; outros, deitados debaixo das enormes árvores, dormem e pensam nas suas terras e famílias distantes, mas pertinho do coração. Como são diferentes aqui os divertimentos nos domingos.

Dois soldados vão todos os dias à caça; por isso, fome não há. Temos carne com abundância, mas falta tanta coisa!... Ei-los que chegam com tenros cabritos e gazelas e logo enorme fogueira crepita alegremente. Esfolam-se os animais e lava-se a carne; a água não falta, embora para se beber seja preciso enorme cuidado. Prepara-se um espeto para se assar a carne. Espalha-se então o cheiro da carne assada pelo pequeno acampamento. Está a refeição preparada; troncos de árvores, caixotes vazios, servem de mesa e de cadeiras.

Todos se servem. A refeição é pouco variada: apenas carne assada e pão. O vinho também é pouco, mas dividido irmãmente dá para todos; que bem que sabe uma pinguita com este almoço!...

Bebi-se mais mas não há, paciência… O improvisado cozinheiro faz enormes quantidades de café. Todos enchemos os copos de alumínio e bebemos alegremente. Acaba a refeição; por fim, alguns macacos, meio domesticados, que por aqui andam, aproximam-se e reclamam a sua parte.

É assim um domingo no mato. Depois de explanar esta ideia, termino. Despeço-me com o mais ardente desejo de a todos vós abraçar brevemente, fazendo preces ao Senhor para que tenhais saúde e boa sorte. Vosso amigo que respeitosamente se subscreve, todo vosso.

José António Canoa Nogueira.
Soldado nº 2955/63
SPM 2058.

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 27 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6481: (Ex)citações (60): Urnas com pedras e areia (Eduardo Ferreira Campos & Manuel José Ribeiro Agostinho)

(...) Comentário de Luís Graça:

Temos tendência para reagir "emocionalmente" (isto é, com o coração, não com a cabeça), quando se toca nos nossos mortos... Mas vamos por partes: também aqui deve respeitar-se o princípio "in dubio pro reo", isto é, o princípio da presunção de inocência...

Na maior parte das situações de morte no TO da Guiné (por combate, minas & armadilhas, acidente, doença...), os corpos recuperavam-se e eram identificáveis (mesmo mutilados, como eu próprio recuperei ou observei alguns)...

Nunca assisti à preparação de nenhum corpo para efeito de exéquias... Levei no entanto à sua tabanca natal o primeiro morto da CCAÇ 12, o Iero Jaló... Não me lembro se foi em caixão de chumbo. Sei que foi transportado, em Unimog, em caixão de madeira, coberto com a bandeira nacional, e que teve direito a honras militares (o que na altura me chocou)... A família acabou por fazer-lhe um enterro segundo os usos e costumes locais (tradição africana e muçulmana)...

A preparação do morto - se bem me lembro - deve ter sido entregue aos seus próprios camaradas, fulas...

No caso dos militares metropolitanos, vinha sempre um cangalheiro de Bissau... Não sei exactamente a que serviço pertencia.

Não há razões para pensar que as urnas, com os nossos mortos, transportadas para a metrópole, viessem por sistema cheias de areia e pedras... Casos como o que foi relatado nos jornais, passado no concelho de Peniche, devem ter sido raros ou excepcionais... No caso de afogamentos, quando não havia corpo, o militar era dado como "desaparecido"... Em caso do corpo ser levado pelo IN (houve casos), ou o militar ser feito prisioneiro, creio que se usava a expressão "retido pelo IN"... Devia haver legislação ou regulamentação clara sobre estas diversas situações... Talvez alguém nos possa esclarecer...

Em todo o caso o Exército (que deve ser visto como um pessoa de bem, como uma instituição) bem poderia fazer um relato mais circunstanciado e digno relativamente à morte dos nossos combatentes, em vez se limitar a mandar, à família, o telegrama seco e brutal com a funesta notícia... Não sei como se procede hoje. Mas, durante a guerra colonial, não havia essa sensibilidade, essa cultura... (É a minha percepção, também me assaltou a dúvida quando eu próprio, jovem jornalista, fiz a reportagem do 1º morto da guerra colonial na Guiné, natural da minha terra, e por sinal, meu primo). (...)

Guiné 63/74 - P6508: Convívios (246): Convívio Anual do Batalhão de Cavalaria 490, realizado em 29 de Maio de 2010, Coimbra (Valentim Oliveira)

1. Do nosso Camarada Valentim Oliveira, que foi Soldado Condutor Auto da CCAV 489 / BCAV 490, Como, Guidage e Farim, 1963/65, recebemos a seguinte mensagem, dando-nos conta da confraternização anual do seu batalhão:

Convívio Anual do Batalhão de Cavalaria 490
Camaradas,


Mais uma vez me dirijo à Tabanca Grande, para comunicar que o Convívio Anual do Batalhão de Cavalaria 490 se realizou ontem, 29 de Maio de 2010, em Coimbra, no Hotel Dona Inês (propriedade do nosso camarada Belfo).


Foi um convívio feliz, pelo encontro de velhos
Camaradas que, na quase totalidade só se encontra nestas alturas.

É de lamentar que, ano após ano, o número de convivas é cada vez mais reduzido, mas como diz o velho ditado os anos não perdoam e nós lá vamos “indo” uns atrás dos outros.
É a Lei da vida.
Um Abraço da grandeza da Guiné para os Editores, para o nosso Comandante Luís Graça, bem assim como para todos os Tertulianos com “assento” neata Tabanca.

Até breve,
Valentim Oliveira
Sold Condutor Auto da CCAV 489/BCAV 490
____________
Nota de M.R.:
Vd. último poste da série em:
30 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6495: Convívios (160): 7.º Encontro da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, dia 5 de Junho de 2010 em Fátima (Manuel Maia)

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6507: Estudos (1): Guerra de África - O QP e o Comando das Companhias de Combate (António Carlos Morais da Silva, Cor Art Ref) (I Parte)










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(Continua) (*)

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Nota de L.G.:

(*) O Cor Art Ref António Carlos Morais da Silva é professor do ensino superior universitário, foi docente da Academia Militar, do Instituto Superior de Gestão e da Universidade Autónoma de Lisboa, sendo especialista em Investigação Operacional.  Também passou pelo TO da Guiné como oficial do QP. 

O Morais da Silva teve a gentileza de nos facultar, em pdf e em word, um exemplar do seu estudo, de 30 pp.,  sobre  a  "Guerra de África - O QP e o Comando das Companhias de Combate" (Março de 2010), que circulou internamente, na nossa Tabanca Grande, através da nossa rede de emails. Queremos agora que chegue a um público mais vasto, através do nosso blogue.

  A existência de um elevado número de gráficos e quadros obrigou-nos a digitalizar todo o relatório que será publicado, no nosso blogue, sob a forma de imagens, em três ou quatro partes. O nosso camarada Jorge Canhão (ex-Fur Mil da 3ª Companhia do BCAÇ 4612/72, Mansoa,  1972/74) encarregou-se dessa diligente tarefa. Temos que lhe agradecer o empenho e a competência com que levou a cabo a digitalização do documento.

Guiné 63/74 - P6506: Blogoterapia (151): Senti que já era o tipo que podia ter uma conversa séria com o velhote (João Santiago)

1. No passado dia 26 de Maio de 2010, o João Santiago, filho do nosso Camarada Paulo Santiago, festejou mais um aniversário, tendo o Carlos Vinhal, em nome dos editores e demais elementos da Tabanca dedicado, no poste P6472, os nossos melhores e mais amigáveis parabéns e felicitações.
2. O João não ficou insensível à mensagem que lhe foi dedicada e deixou um comentário de agradecimento, no dito poste, que pela sua agradável simplicidade e frontalidade, que obviamente nos tocou, resolvemos passar a publicar para conhecimento geral:

"... Senti que já era o tipo que podia ter uma conversa seria com o velhote... "
“Olá muito boa tarde, desde mais quero dizer, que não estava mesmo nada a espera... Depois quero agradecer às pessoas (ou pessoa( que se lembraram da minha pessoa... Um Grande Abraço do fundo do coração...
Ser reconhecido neste dia por "Camaradas" do meu Pai foi muito bom... Quero também dizer que a Viagem a Guiné com o meu Pai foi uma das experiências mais impecáveis que já vi neste 1/4 de século, fez-me encarar a vida de outra maneira,  reflectir ainda mais sobre o quanto vocês todos foram importantes (sempre gostei de saber das "histórias" da Guiné que o meu Pai e os amigos falavam, achava fascinante, eram putos mais novos do que a idade que tenho quando os mandaram para a guerra, e lá criaram as maiores amizades)... Enfim, pisar aquela terra vermelha e estar naquele clima naquele país com aquelas pessoas, faz-nos simples e cria um sentimento de liberdade brutal.

Por fim quero dizer que ter feito essa viagem com o meu Pai fez com que a relação pai filho ficasse mais madura. Senti que já era o tipo que podia ter uma conversa séria com o velhote... foi lá que puxei do meu primeiro cigarro em frente ao meu Pai...
Vocês todos sabem melhor do que eu,  de certeza,  o que eu estou para aqui tentar explicar...
Acho que é tudo...
UM GRANDE ABRAÇO... para quem se lembrou de mim desta maneira neste dia...
UM MUITO OBRIGADO!!
P.S: Quando estava a fotografar a GMC, naquele momento existia ali um silêncio... inquietante e que ao mesmo tempo acalmava...
João Santiago”
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Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P6505: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (16): As primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares (3): Maria Zulmira (Rosa Serra)

Enfermeira Pára-quedista Maria Zulmira


As Primeiras mulheres portuguesas equiparadas a militares - III

Enf.ª Pára-quedista Zulmira

Agora o meu olhar vai para a Enfermeira Zulmira que esteve tanto tempo na Guiné e de quem, com certeza, muita gente conhece. Não me vou referir ao seu desempenho como enfermeira, mas apenas ao seu perfil humano e de certeza que todos concluirão como era ela como enfermeira pára-quedista.

Falar da Zulmira é como falar de um ser especial. Eu acho mesmo que ela é um anjo disfarçado em gente da Terra. Ela é compreensiva como poucos, apaziguadora como ninguém, fala com as mãos e vê com olhos de raio X o que se passa na alma do ser humano.

Se não estivesse a trabalhar era distraída e fazia coisas que nos fazia rir. Nas horas de descontracção alinhava sempre nas brincadeiras, mesmo se fardada e em ambiente militar.

Na Guiné, na hora do almoço e se não estivéssemos no ar, geralmente íamos as duas almoçar ao BCP12. Púnhamos a boina no cocuruto da cabeça e riamos como colegiais pelas diversas reacções dos páras que se cruzavam connosco.

Um dia resolvi “roubar” uma bicicleta que andava por lá pelo BCP12, não sei bem a quem pertencia, penso mesmo, que era usada por quase todos. A Zulmira ficou de atalaia para ver a reacção da pessoa que a deixou à porta da messe enquanto almoçava, acaso saísse e não a encontrasse, enquanto eu fui dar uma volta com ela pela unidade observando o ar de quem presenciava a cena. Alguém tirou uma fotografia e me ofereceu para imortalizar o momento.


Divertíamo-nos com essas pequenas provocações, diria mesmo parvoíces infantis que se calhar ninguém ligava, mas que a nós nos fazia rir e nos punha bem dispostas com vontade de dar uma cambalhota se houvesse uma nesga de relva por perto. O certo é que estas pequenas brincadeiras suavizavam alguns dos momentos mais dolorosos vividos e nos davam alegria.

A Zulmira hoje, a esta distância da juventude de então, continua a ser um Ser Humano ainda mais maravilhoso, de sentimentos puros, que escuta as lamentações dos outros, mima a alma ferida de quem sofre, apazigua quando as emoções se revelam agitadas dos magoados pelas amarguras inesperadas da vida e sem se aperceber o quanto faz bem aos outros, continua a ser aquele anjo feito gente que se projecta no outro acreditando no ser humano, desculpando comportamentos e levando-nos a saber perdoar a quem nos ofende, de uma forma tão generosa e solidária que chega a ser comovente.

Tem uma fé inabalável, que não impõe a ninguém, limita-se quando fala dela a dizer que Deus é seu amigo e que lhe pede para quando fizer a travessia (palavra dela) Ele esteja lá, para lhe dar a mão e que também gostava que a mãe e avó estivessem presentes para a acolher.

Com perfeita noção que a morte é inevitável, não a incomoda falar dela, no entanto há pouco tempo passou mal e quando nos encontrámos após a crise, disse-me com o ar mais normal da vida e sem qualquer ar de lamechice: “hoje estou aqui, mas há dias atrás, pensei que tinha chegado a hora da travessia e ainda por cima tive medo.”

Situações houve em que todas nós fizemos preces por aqueles que sofreram os horrores da guerra, naturalmente umas mais que outras, mas eu tenho quase a certeza que a Zulmira, com essa intimidade que tem com Deus, deve estar em n.º 1 pela sensibilidade que tem com o sofrimento dos outros. As pessoas que a conhecem bem, sabem que ela é assim, mas sem ponta de “beatice” supérflua ou inútil.

Tenho muita pena das minhas capacidades literárias serem diminutas o que me impede de descrever como é a minha amiga Zulmira como ser humano, pois merecia uma narração mais elaborada pois ela é um poema em forma de mulher.

Rosa Serra
Ex-Enfermeira Pára-quedista

Rosa Serra (à esquerda) e Zulmira (à direita) entre camaradas pára-quedistas na mata da Guiné em operação onde ambas participaram o dia inteiro.
No dia anterior também a enfermeira Manuela e a Enfermeira Rosa Exposto acompanharam os mesmos militares. Que eu saiba fomos os único caso, de enfermeiras andarem mesmo em terra, durante todo o dia. Se alguém tiver interesse em saber porquê, explicarei noutra oportunidade.

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Nota de CV:

Vd.último poste da série de 29 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6489: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (15): A minha homenagem à enfermeira pára-quedista Ivone Reis que ficou em Contabane a cuidar dos feridos graves (Carlos Nery)

Guiné 63/74 - P6504: A viagem de Tangomau, o meu próximo romance (I) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), hoje de parabéns por completar 65 anos, com data de 26 de Maio de 2010:

Caríssimo Carlos,
É minha intenção oferecer a todos os nossos camaradas no dia em que faço 65 anos uma lembrança exclusiva: o arranque do romance em que estou presentemente a trabalhar.

O Tangomau é o branco que se africaniza, é lançado no mato, será absorvido pelos usos e costumes, atraído pela natureza e pelas gentes. A expressão foi usada sobretudo nos séculos XVII e XVIII, depois caiu em desuso. De algum modo, eu sou um Tangomau, mesmo quando fingia que África estava distante de mim, longe das minhas precedências. Afinal, como se comprova e escreve, não é assim.

O livro começa com a minha entrada em Mafra, dali seguirei para a ilha de S. Miguel, vou formar batalhão na Amadora, acusado de ser “ideologicamente inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar português”passei à rendição individual, em Lisboa tinham-me advertido: “Ali ao menos vai infectar os pretos”. Infectar, entenda-se seria manifestar repúdio por práticas bestiais muito em voga de oficiais do quadro permanente.

Quem me infectou foram as populações e os soldados, nunca mais os esqueci. A viagem é a minha vida, sempre à procura daquele povo em reconciliação consigo mesmo e eu com ele. Estou em fase de preparativos para ver se passo 15 dias na região de Bambadinca e do Xime, onde combati e ganhei raízes para o que sou hoje.

Nada melhor que dar em primeira mão conta das minhas memórias a quem lá combateu e com quem me correspondo regularmente.

Grato pelo acolhimento, recebe um abraço de amizade do Mário
Mário Beja Santos


A VIAGEM DO TANGOMAU

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.
Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no meu esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como um alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
– Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave
devastador.

Herberto Helder


SORONDA*
Soronda, uma palavra do crioulo guineense que significa germinar, desabrochar, crescer

O anúncio dos preparativos

Ante - Manhã

O poeta desloca-se desabridamente pela sala, na mão direita agita um punhado de folhas esverdeadas, há nelas dizeres dactilografados, o Tangomau limita-se a seguir-lhe os movimentos, o poeta está em transe, não há nada de parecido com a pose de retrato em hieratismo como será pintado pela Maluda, para o visitante é tudo inesperado para este seu último dia de civil pois que amanhã se transfigurará em militar aprendiz, tem um documento no bolso para se apresentar em Mafra, exactamente dentro do convento. Mais convidativa homenagem a este ritual de mudança de estado não se afigurava possível. O poeta garante que lhe vai oferecer em primeiríssima mão a leitura dos seus poemas mais recentes, tudo safra do ano em curso. O poeta resfolega, momentos há em que parece que está a sofrer de rinite alérgica, num compasso metódico ergue o braço de onde lhe sai um pulso frágil com os dedos finos, delicados, quase em corola, abrindo ou fechando. Desloca-se na transversal, em helicóide, estaca subitamente, subitamente arranca, prossegue a melopeia, galvanizado, os olhos como azeitonas pretas cada vez mais líquidos. O que mais impressiona o ouvinte (o convidado, ou seja o Tangomau) não são os requebros do corpo do poeta, são, de facto, os olhos, sabe-se lá se transfigurados ou em hipnose; o que se retém é aquele adejar como se fosse em levitação, o poeta viaja por longe, parece encastelado numa nuvem, trouxe incumbências, parece, dos grandes mestres do vudu., ou visitou Deus.Momentos há em que o Tangomau se alheia, desatendido de um título enorme de um dos poemas, do género “Excerto de Uma Carta-Meditação para uma Amizade Ausente na qual se Insere o Poema que lhe Deu Motivo: «Mon Coeur Mis A Nu»”. O alheamento é compreensível, houve festa de despedida lá onde trabalhava, num mister de serviços mecanográficos, discursos, abraços, o Tangomau recebeu lembranças, sinais de conforto, estamos em Abril de 1967, com aquele tamanho, o vigor notório das articulações, aquele arcaboiço, ninguém o vai subtrair da guerra, África espreita. Até comida deram ao Tangomau, lá no mister de serviços mecanográficos, houve quem vaticinasse que nos meses de preparação há provações a curtir, sem apelo e cheias de agravos, dentro das provações há as da comida, sempre mazinha nos quartéis, por isso lhe deram conservas e outras vitualhas, entra-se sempre no baptismo da tropa com farnéis de queijo e fumeiro, um vinho, tudo para aconchegar. Nada se estraga, com tanta caminhada, exercício, preparativos bélicos, há sempre escape para comes e bebes, acresce que nas casernas a tendência é repartir - foi o que disseram. Estava-se, pois, num dia de emoções. O visitante distrai-se olhando uma imagem de S. João Baptista e, ao fundo, junto à porta, um quadro a óleo de António Dacosta, muito perto do gira-discos, onde já soaram acordes do concerto para violoncelo de Robert Schumann, não muito conhecido mas muito belo. Como num filme, o visitante recorda como chegou a esta casa, vai para dois anos, incumbido de pedir poemas para serem publicados, como foram, num jornal de nome Encontro, periódico de estudantes católicos, onde antes, ou depois, apareceram poemas de Ruy Belo, Sophia ou Pedro Tamen.

Mas agora o poeta arrebata-o, o corpo desceu à terra, a voz arrepia, tem estridência mineral, depois torna-se dolente, pesarosa, clama de um estranho altar:

“Timor! Que paciência eterna!
Vinte anos de paciência.
Ilha de mistérios densa
e gente de tez morena.
Timor, minha ilha querida.
Minha verdade. Falida?...
Ó minha causa perdida!
Senhora, tem piedade.
Tem piedade, Senhora.
Tem piedade.
Olha-me por esta gente
portuguesa,
que te ergueu um trono, uma pedra.
Um sacrário de inocência.”


Ruy Cinatti pintado pela Maluda. A pintora, que ganhou grande notoriedade nos anos 60 e 70, era vizinha do Cinatti na Travessa da Palmeira. Lembro-me uma tarde em que o fui visitar, ele estava exasperado, tinha estado a posar durante duas horas, queixava-se de dores no pescoço, a Maluda gritava-lhe quando ele começava a fazer momices ou a gesticular. Para mim, é o Cinatti no apogeu das suas faculdades, é o tempo de grande poesia e de alguns de seus melhores trabalhos de antropólogo.

O recitativo prossegue. Já se falou de uma alucinação em dia de Natal em que o poeta foi visitado por um diabo incorpóreo. Seguiu-se um estranho poema dedicado a um médico que viveu em Timor, de nome Joaquim de Almeida Gomes, falava-se muito nessa prosa lírica em Sartre, o ouvinte, ausente, sorumbático, olhava a luz coada pela única janela daquela sala, debruçada sobre o Tejo, com o olhar sempre entretido em tanto artefacto timorense, bronze, cesto ou pano. Foi então que aquele poema “Ante – Manhã” o recuperou para o tangível. Depois, em marcação cerrada, o poeta mudou de tom, temos agora a sua mão orientada para a estátua de S. João Baptista, a narrativa fala de um tomahawak, artesanato dos índios Cherokee. Num quase lusco-fusco (estamos em Abril, mais propriamente no dia 10, é um anoitecer que recorda a fome que ronda o jantar), os olhos do poeta voltam a chispar palavras soltas, a voz espevita interjeições, há águias a voar, sons de flauta, até cavalos verdes em estradas desertas. O poeta suspira de cansaço, finda tão longa peroração em diferentes espaços etéreos. E esclarece o seu ouvinte: “Goste-se ou não, estes quatro textos poéticos têm a sua unidade. Ou os publico assim ou queimo-os. A minha vida mudou neste meu reencontro com Deus. Continuo pávido perante este Deus que me resgatou a fé. E para lhe agradecer a sua paciência em assim me aturar e para comemorar a tropa que há-de vir, proponho o bife do Avis, nos Restauradores, depois deixo-o em casa, é uma boa despedida, parece-me, neste rito de passagem”

À porta do Avis, ocorreu algo de bizarro que o Tangomau jamais esqueceria. Do que se conversava até lá chegar não ficou memória, impressionante foi aquele homem de cabelo branco, espetado, sobrancelhas espessas, de azeviche, olhos agitados, que, em tom áspero, mas também ansioso, questionou o poeta, à queima-roupa, saindo do breu do desvão da escada para a porta iluminada: “Diz-me uma coisa, ó Cinatti, o Salazar já morreu? Tens a certeza?”. Creio que resposta não houve, ou não se pôde ouvir por gente desacautelada, o poeta pôs-lhe a mão no ombro, seguiu-se um vozear ameno e depois uma despedida sem frases ríspidas, como se toda a harmonia fosse previsível na comunicação daqueles dois homens, a qualquer hora. Seguindo o poeta, estarrecido por este encontro inesperado, por aquele insólito linguajar num país de pides e informadores, o Tangomau olhou o interior do café, subiram até à mezanina, o poeta explicava que lá em baixo, em grupos separados, havia gente apoiante do regime, outros desafiando-o, outros, indiferentes, em tertúlia quase neutra, porventura artística, como em muitos cafés das redondezas, sobretudo no Rossio. O vozear chegava rebaixado, um pouco difuso, como se toda aquela gente convivesse num fosso de orquestra. Antes de pedir o tal bife cuja acrisolada fama provinha do molho, o poeta dá explicações: “Não esteja tão interrogativo, não ligue, há mistérios maiores. Aquele senhor é o Tomaz de Figueiredo, um dos maiores escritores portugueses, quando voltar a Lisboa e passar lá por casa empresto-lhe uma das suas preciosidades, é conservador e monárquico, mas, que quer, tem um ódio de morte ao Salazar, é coisa confusa”. Quando volta a falar em Timor, tema de um trabalho de etnógrafo, outro vozeirão se levanta, desta vez de um corpo maciço, um rosto quase quadrado, lábios grossos, esse alguém avança sobre a mesa e clama: “Ó Cinatti, não me digas que não me ofereces um vinho Gatão!”. O poeta levanta-se e apresenta o recém-chegado: “Não sei se se conhecem, é o Amândio César, jornalista, poeta e grande contista. Senta-te, bebe connosco, este amanhã vai para a tropa”. Desinteressaram-se de mim, falaram de África (Angola e Guiné) e de Timor, de guerras por ganhar, falaram de literatura, o poeta deu conta dos seus trabalhos mais recentes e dos que hão-de vir, o jornalista disserta sobre as suas reportagens, não se coibindo de se queixar da modorra nacional, incompatível com o Império em luta. Teve lugar o jantar, as garrafas de vinho Gatão sucederam-se, estão ali quatro vazias no pano da mesa, os sons abaixo da mezanina reduziram de volume. É nisto que o poeta nos desafia: “Bom, regressemos a minha casa, vou mostrar-te os meus cadernos daquele cruzeiro a África, vais conhecer o ossobó, o conto que escrevi em jovem, em 1936”. O serão prosseguiu na Travessa da Palmeira, nº 12, 3º Dto., o Amândio César tomou conta da conversa, falou-se de literatura africana, de forma subliminar as guerras de África apareciam como o futuro suspenso de Portugal. O visitante surpreso por aqueles sons tonitruantes, aquele homem que gritava pelo Ultramar em perigo e referia uma retaguarda cheia de cobardes ou gente acomodada, discurso assim nunca ouvira. E assim se passaram as horas, até ao alvorecer. O Tangomau sentia-se prostrar, até medo teve de entrar derreado, de ali a poucas horas, no convento. Então, aquela gente crescida, entusiasta e vociferante, apiedou-se, o poeta avisou que ia levar as visitas a casa. Na Avenida Infante Santo, sempre com o vozeirão timbrado, Amândio César deu a saber: “Olha miúdo, falei-te do tal livro do Malaparte que eu traduzi. Não acredito que sobre a guerra se volte a escrever coisa tão importante. Vou lá acima buscar um exemplar, ficas obrigado, quando nos voltarmos a encontrar, a dares-me a tua opinião”. E voltou com o livro, o título impressionou o Tangomau: “Kaputt”. Foi para a cama, com uma faca de cortar papel abriu as primeiras páginas, apercebeu-se das vicissitudes com que Curzio Malaparte (aliás, Kurt Suckert) preparou o seu livro, entre 1941 e 1943. Sente-se exausto, quer dormir algumas horas, almoçará em casa com a mãe e com o seu maior amigo, depois seguirá para o novo estado. Mas fixa o importante da história do manuscrito contada por Malaparte: “Kaputt é um livro horrivelmente cruel e divertido. A alegria cruel é a mais extraordinária experiência que tirei do espectáculo Europa no decorrer destes anos de guerra. Entre os protagonistas deste livro a guerra nem por isso tem menos o papel de uma personagem secundária. Se os pretextos inevitáveis não pertencessem à ordem da fatalidade, poderia dizer-se que não teve outro valor que não fosse o de um pretexto. A guerra é a paisagem objectiva deste livro. O herói principal é Kaputt, monstro divertido e cruel. Nenhuma palavra melhor que esta e quase misteriosa expressão alemã: «Kaputt, que significa literalmente: estilhaçado, acabado, reduzido a pedaços, perdido», que estaria indicada para definir o que nós somos, o que é, presentemente, a Europa: um amontoado de detritos. Mas que fique bem entendido que eu prefiro esta Europa kaputt à Europa de ontem e àquela de há vinte ou trinta anos. Prefiro que seja necessário refazer tudo a ser obrigado a aceitar tudo como uma herança imutável”. Por acaso inexplicável, a leitura do livro só teve sequência algum tempo mais tarde, de Agosto para Setembro de 1968, no regulado do Cuor, no Leste da Guiné. Nem Malaparte ou mesmo Amândio Césa poderiam ter sonhado como aquele livro iria ser importante na formação do Tangomau, até para a compreensão daquela guerra em África em que ele, dentro de horas, iria conhecer as primícias. Assim adormeceu, rodeado dos seus livros tão caros, dos seus objectos tão amados. Acordou sereno mas meditabundo, arranjou os haveres para a partida. Insensível ao que o espera, ensaca livros para ler por vários meses.

Tomaz de Figueiredo foi indiscutivelmente um dos grandes prosadores portugueses do castiço. “A Toca do Lobo”, “Dom Tanas de Barbatanas” e “Tiros de Espingarda” são obras de um grande mestre da língua. Vim mais tarde a confirmar que havia de facto um ódio do escritor a Salazar, creio mesmo que quando estava a morrer perguntava ansiosamente se o ditador já tinha morrido...

Amândio César foi um poeta, jornalista e contista de grandes méritos. Veio do neo-realismo, fixou-se nas reportagens ultramarinas, depois da guerra colonial, dedicou dois livros à Guiné. Ofereceu-me com uma bonita dedicatória o “Kaputt”, de Curzio Malaparte, que ele traduzira. É ainda hoje o meu livro de referência sobre os horrores da guerra, uns pontos acima de Norman Mailer

Respira-se à mesa, durante o almoço, a tensão da despedida. A mãe vestiu-se de preto, faz recomendações, apela ao respeito e à disciplina, recorda a capacidade de aceitação, as orações nocturnas sempre orientadas para aqueles que já partiram e que merecem ser gratificados nas nossas recordações, as orações diurnas para aqueles a quem devemos o amor e o incentivo para o dia que vai começar. O maior amigo do Tangomau está silencioso, terá fundadas razões para isso. Nesse dia se interrompe um diálogo constante, as conversas quase diárias havidas lá para a Praça Pasteur, num quarto coberto de telas e desenhos do pintor Fausto Sampaio. Chegou a hora de partir, a mãe passa em revista os objectos pessoais indispensáveis, faz exclamação quando vê um saco com conservas, queijos e produtos de fumeiro, mais exclamação quando vê os livros e frascos com produtos ditos dietéticos. Suspirando, diz-lhe: “Volta bem depressa, fico praticamente sozinha”. O filho responde: “Voltarei no fim-de-semana, espero, não a esqueço, muito menos a educação que me deu, esta alegria de viver”.

A partida para Mafra, por pura ignorância do Tangomau, que confiava cegamente na guia de marcha que lhe entregaram, falava em comboios, e na estação do Rossio. É para lá que os dois amigos se dirigem, no cais se despedem com um abraço e é nessa altura que o amigo, sempre com a mesma expressão tímida, com o seu olhar azul muito vivo lhe entrega um livro sobre pintura grega, uma edição de Lausanne, escreveu a dedicatória com a sua letra verde, cuidada e apõe a data: 11 de Abril de 1967, do teu amigo sempre grato, com votos de rápido regresso. É no comboio, rodeado doutros mancebos, que o Tangomau se apercebe que não existe um comboio para Mafra, aquela linha do Oeste vai despejá-los na Malveira, daqui seguirão de autocarro até ao convento construído das promessas do rei D. João V. Nada prevendo de aliciante naquele troço da viagem, dá consigo absorvido no livro “Um Realismo Sem Fronteiras”, de um tal Roger Garaudy, que o seu amigo livreiro, o senhor Barata, lhe assegurou ser um marxista não dogmático. É uma análise das obras de Picasso, Saint-John Perse e Kafka. Saint-John Perse é o poeta que o Tangomau presentemente mais aprecia, aliás aquele poeta da véspera já lhe oferecera um livro chamado “L’Anabase”, uma poesia cheia de mar e de todos os outros elementos da natureza, com muita evocação do passado mas igualmente com muitas promessas de futuro. Naquele comboio, por vezes distraído pela paisagem e pelas conversas envolventes, agita-o aquela fé tão plena no homem, aquele ritmo jubiloso, arquejante e musical de combate: “Que desvenda em sonho muitas outras leis de transumância e de derivação; o que busca, por meio de sonda, o barro vermelho dos grandes fundos para modelar a face do seu sonho” ou, ainda: “Aqueles que pressentem a ideia nova nas frescuras do abismo, aqueles que sopram nas tubas às portas do futuro”. Destes três livros agora referidos, “Kaputt”, a pintura grega, numa linda edição de La Guilde du Livre e “Um Realismo Sem Fronteiras” só subsistiu a prenda do seu maior amigo, nunca se saberá porque é que esta doce lembrança não integrará o espólio constante de duas caixas de madeira, feitas à medida, por um carpinteiro do Regimento de Infantaria nº 1, na Amadora. Como haverá circunstância para descrever, todo este espólio ficará reduzido a cinzas, em meados de Março de 1969.

Enquanto se espera o autocarro, toda aquela gente jovem, ajoujada de malas, sacos e até instrumentos musicais, mete conversa desopilante, a apreensão fica assim mais submersa, já se está muito perto do primeiro destino que a vida militar reserva. Entardece enquanto o autocarro pejado de recrutas, camponeses e outros habitantes locais, após uma estrada sinuosa, cercada de matas e fraguedos, com uma nesga de mar ao fundo, se imobiliza em frente ao convento. Uma voz álacre ressoa, ufana,categórica, no interior do transporte público: “Malta, chegámos a casa!”.

(Continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de hoje, 31 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6503: Parabéns a você (117): Mário, para ti, neste dia, aqui vai uma doce lembrança da tua menina, da tua Glorinha (Os Editores)

Guiné 63/74 - P6503: Parabéns a você (117): Mário, para ti, neste dia, aqui vai uma doce lembrança da tua menina, da tua Glorinha (Os Editores)


"A Glorinha no seu esplendor" - eis a última foto, com legenda, que o Mário Beja Santos nos mandou há dias...

Foto: © Beja Santos (2010). Direitos reservados

1. Carta do além para  o meu querido pai que hoje faz anos:

Paizinho: Pois é, vai fazer um ano que eu vos deixei, a ti, à mãe, à Joana, a todos os meus amigos. A vida pregou-nos uma partida... A vida está sempre a pregar-nos partidas. Tu mesmo podias ter ficado para sempre lá naquela terra distante que hoje tanto amas... Mas a tua boa estrelinha protegeu-te. Eu não tive a mesma sorte... Sei da tua dor imensa, da tua saudade desmedida. E como voltaste ao trabalho com toda a gana e paixão com que sempre viveste e trabalhaste...

Hoje é o teu dia, pai. Não estarei cá, fisicamente, para te cantar os "Parabéns a Você" pelos teus 65 anos!... Mas, graças ao blogue dos teus camaradas da Guiné, quis-te fazer um pequena surpresa, que, julgo,  vais adorar.   Lembras-te do último trabalho que eu andava a fazer,  no âmbito do Curso sobre  Comunicação Social e Cultural, na Católica? Foste tu que sugeriste que entrevistasse o Luís Graça... Fiz um trabalho, para a cadeira de História Contemporânea, sobre "A Guerra Colonial Vista pelos Ex-Combatentes Portugueses"... Andava tão entusiasmada!... Era o meu 3º ano, tinha tanta gente, amiga, fantástica, que me ajudou, a começar por ti, que eras (e és) o meu melhor amigo.

Pois é, o editor do blogue tinha o trabalho guardado para ser publicado numa boa ocasião.... E que melhor ocasião, meu  pai, do que este dia!... Sei que vais deitar uma lágrima, doce, terna, pela tua Glorinha. Ficarei por perto, a zelar por ti, pela saúde desse grande coração... Mais: fiquei a gostar dos teus velhos camaradas da Guiné. Diz-lhes que eu fico, lá no alto do poilão da Tabanca Grande, a velar por eles, a rezar por eles, a divertir-me com eles, a chorar por eles, a puxar por eles, a ler e a emocionar-me com as suas aventuras e desventuras... Por eles e por ti. Espero que me aceitem como um irão bom, ou como uma fada madrinha. Amo-te muito, pai. Tua, Locas.


2. "A Guerra Colonial vista pelos Ex-Combatentes Portugueses” [Recebida pelos editores do blogue Luís Graça & Camaradas da Guíné, em 23/4/2009.

Autor: Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos (1976-2009) (*)

Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Ciências Humanas
Curso de Comunicação Social e Cultural
História Contemporânea
3º Ano, Turma 2


2.1. ENTREVISTA A LUÍS GRAÇA


1. Quando é que lhe surgiu a ideia de formar um blogue ?

L.G: O blogue surgiu em 2003, em Outubro de 2003. Era um blogue pessoal, para publicação das minhas “blogarias”… Chamava-se Blogue-Fora-Nada… Em 2004, publiquei algumas coisas relativas à guerra colonial da Guiné e aos ex-combatentes. Lembro que o primeiro texto, em 23 de Abril de 2004, foi sobre os aerogramas e o papel das madrinhas de guerra (que eu, de resto, nunca tive). Mas foi a partir de Abril de 2005 que o blogue começou a receber contributos de outros ex-combatentes, como eu.

No início, eu queria falar das minhas memórias, da minha Companhia, a CCAÇ 12; depois, gradualmente, abri-me ao exterior. Foi a partir daí, em meados de 2005, que comecei a receber comentários de outros ex-combatentes, e foi então que tive que tomar uma decisão, a de dedicar exclusivamente o blogue à guerra colonial na Guiné (1963/74).

Como disse, originalmente o blogue chamava-se Blogue Fora-Nada. Foi rebaptizado, passando a chamar-se Luís Graça & Camaradas da Guiné. Em Junho de 2006, demos início à II Série do blogue. Foi nessa altura que apareceu o seu pai [, Mário António Gonçalves Beja Santos].

A versão actual (Luís Graça e Camaradas da Guiné) é a de um blogue, colectivo, com uma participação muito activa, onde todos os dias se colocam textos, documentos, histórias, provenientes fundamentalmente de ex-combatentes. Mas também há familiares, amigos, especialistas, etc., gente de muitos quadrantes e origens, portugueses, guineenses, cabo-verdianos… Temos camaradas na diáspora, Brasil, Estados Unidos, Canadá, França, Holanda, Alemanha, Suécia, Austrália…

Em suma, não se tratou de um blogue criado intencionalmente a pensar na guerra colonial e na Guiné. Ele nasceu um pouco pelas circunstâncias. Depois, por arrasto, foram chegando as pessoas, cada vez mais pessoas. Formámos uma espécie de tertúlia, virtual, havia uma grande cumplicidade entre pessoas que não se conheciam e que até mesmo não se conhecem (é por isso que procuramos fazer encontros anuais, para nos conhecermos melhor uns aos outros).

Começaram a aparecer mapas, documentos, fotografias… Os mapas foram digitalizados, incorporou-se material. Achei interessante colocar online os mapas, para tornar as situações geográficas mais precisas, os lugares, como, por exemplo, a região de Bambadinca, onde eu estive, tal como o seu pai, os rios, as bolanhas, etc. Reavivava-se assim a memória dos ex-combatentes, foi esse o meu objectivo primordial. Os membros do blogue, neste caso, os ex-combatentes, esforçaram-se para fornecer os melhores elementos para o enriquecer, desde histórias de guerra até apontamentos sobre a fauna e a flora da Guiné, aspectos culturais, etnográficos, etc.

Há uma coluna estática, do lado esquerdo, quando se visita o blogue, onde todo esse material (mapas, fotos de lugares…) está disponível para pesquisa, ao alcance de um clique. Parte desse material (mapas e fotos dos lugares) está alojado na minha própria página pessoal: Luís Graça, sociólogo > Saúde e Trabalho, http://www.ensp.unl.pt/luis.graca.

O blogue tem assim uma lógica, sob o ponto de vista de construção, que permite essa investigação. Além disso há um constante apelo à participação de todos os camaradas que passaram pela Guiné (ou de todos os amigos da Guiné e dos guineenses).

2. Na sua opinião, a que é que se deve esta explosão de confissões e o dever da memória? Por que é que foi preciso esperar mais de quarenta anos para os veteranos da guerra falarem do seu sofrimento e da sua nostalgia ?

L.G: Nos anos oitenta participei activamente no semanário O Jornal, com escritos sobre a minha experiência da Guiné. Havia uma série chamada “Memórias da Guerra Colonial” [, criada pelo jornalista Afonso Praça, que tinha estado em Angola]. O meu objectivo era ‘exorcizar os fantasmas’ (sic) da Guerra Colonial. As pessoas começaram a tirar da gaveta escritos, fotografias, poemas, diários, recordações.

A série acabou, entretanto, ao fim de umas largas semanas… Terá havido pressões por parte de alguns sectores político-militares para apressar o fim desta primeira tentativa de divulgar publicamente as histórias e as memórias da guerra colonial, contadas na primeira pessoa do singular.

Nessa altura ainda não havia internet nem blogues nem nada. Embora embrionária, a ideia não ficou esquecida. O seu pai escreveu no JN - Jornal de Notícias um folhetim com vários episódios da guerra na Guiné… Mas houve, nos anos 80, também as obras de escritores como o Cristóvão de Aguiar e outros. O José Brás, por exemplo, escreveu um romance (Vindimas do Capim) que teve um prémio literário. São dois nomes,  entre outros ilustres desconhecidos do público. Mas houve também outros nomes, pioneiros, que alimentaram a literatura da guerra colonial, e em especial a da Guiné: por exemplo, Armor Pires, Barão da Cunha, etc.

Ainda antes do 25 de Abril, mas sobretudo depois, nasce assim um movimento, literário, de homens que escreviam obras, de ficção ou não, motivadas alguns pelo dever de perpetuar memórias de cunho autobiográfico ou de cunho histórico, respeitantes à guerra colonial, em geral, e da Guiné, em especial.


3. Como é que os ex-combatentes começam a dar sinais de registo de memória no pós-25 de Abril?

L.G: Tem a ver com o ciclo de vida. No blogue há pessoas que já estão na reforma, ou seja, pertencem à chamada população inactiva. Têm tempo, têm mais tempo, têm curiosidades, sente a nostalgia dos seus verdes anos, a saudade da Guiné… Para o melhor ou para o pior, a Guiné ficou-lhes registada de uma forma muito intensa. Há o problema de tentar recuperar uma juventude perdida. Com o advento da blogosfera, chegou a hora para a actual democratização da Internet, digamos assim.

Em 1999, como eu já disse, criei uma página pessoal, mas muito centrada na minha actividade académica. O blogue só aparece, em 2003, na tentativa de divulgar escritos mais intimistas ou pessoais.

Naturalmente, há também o problema de uma certa iliteracia informática que impediu (e ainda impede) o desenvolvimento destas memórias. A minha geração não tem as mesmas perícias informáticas do que a geração seguinte, a dos seus filhos... É preciso, pelo menos, ter um endereço de e-mauil (e um computador) para comunicarmos uns com os outros...

4. Existe de facto uma solidariedade entre os ex-combatentes?

L.G: Nunca pensei que este blogue tivesse uma adesão tão forte com este impacto de participações e de interesse por parte dos ex-combatentes. Existe um elo solidário muito forte. O drama da Guerra assolou a minha geração. Aos 18 anos fui à inspecção militar, como todos os rapazes da minha geração, e aos 22 anos e seis meses estava na Guiné. Outros, em contrapartida, não compareceram ao embarque e foram para a França, a Suíça, a Suécia, e por aí fora. Em números absolutos, terão sido uma minoria (refiro-me aos desertores, não aos refractários).

A maior parte de nós não teve outro remédio, independentemente do estrato socioeconómico a que pertencia. Nos primeiros anos de guerra ainda havia poucos milicianos com passagem pela Universidade. A partir de 1968, começa a aparecer outra malta com mais formação académica, experiência de luta académica, etc.

No passado, havia a Seara Nova, o Diário de Lisboa, o Notícias da Amadora, o Comércio do Funchal, entre outras publicações, que nos chegavam à Guiné, por correio. Eu assinava, por exemplo, o Comércio do Funchal, que foi um lufada de ar fresco no panorama cinzentão e conservador da imprensa portuguesa de fim de regime.


5. Sente que esse factor democrático existe no blogue? Há, de facto, pessoas que tinham formação para falar à vontade em contextos socioeconómicos e históricos da época? Essas pessoas são as que melhores se exprimem no blogue?

L.G: A maior parte das pessoas, sim. Não se trata de um blogue de ideias mas sim um blogue de registo de memórias e afectos. Também se fazem comentários, e muitos. Mas, no essencial, procuramos contar histórias. Há com certeza pessoas mais informadas do que outras. Na Guiné, havia pessoas que liam, ouviam música clássica , enquanto outras gastava o seu tempo livre bebendo uns copos, jogando às cartas, etc. Muitos de nós bebiam muito. A actividade operacional era, muitas vezes, intensa, violenta, dramática, stressante.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > CCAÇ 12  (1969/71) > Pôr do sol sobre o Rio Geba...

Foto: © Artlindo T. Roda  (2010). Direitos reservados


6. Como é que os negros, digamos os nativos,  encaravam o facto de vocês estarem ali a cumprir uma obrigação e como se estabelecia esse lado humano?

L.G: Repare, eu quando fui para a Guiné, no tempo do Spínola, já havia uma certa abertura. Estava em marcha a criação de uma força africana. Os jovens viviam em aldeamentos muito isolados, quase encurralados. O exército para eles era também um bom negócio porque tinham dinheiro ao fim do mês. Foram criadas companhias, com base em soldados do recrutamento local. Criaram-se os Comandos Africanos, em Fá Mandinga, etc.

Os Fulas tinham uma certa consciência nacionalista, no passado lutaram contra os portugueses, mas acabaram por ser "pacificados" e depois tornaram-se fiéis à causa portuguesa, ou melhor, nossos aliados. Se calhar, não tinham alternativa. Os meus soldados eram fulas. A guerra da Guiné, tal como eu a vivi era também uma guerra civil. Eram homens fortemente tribalizados, que estabeleciam alianças connosco por conveniência.

Por outro, tinham práticas culturais que estavam nos antípodas da nossa cultura. Eram poligâmicos, islamizados, tinham os seus ritos e rituais, distintos dos nossos e de outras etnias. Enfim, não eram totalmente islamizados. Tinham práticas animistas, usavam amuletos. De um modo geral, eram fiéis ou leais a Portugal. Alguns pagaram caro essa fidelidade. Estão hoje bem documentados os fuzilamentos de Comandos e outros quadros graduados por nós. Os Fulas foram as principais vítimas desse ajustamento de contas, no pós-independência.


7. Voltando ao blogue, sente que de alguma forma há um efeito catártico?

Sim, o que fazemos é também blogoterapia. Acreditamos num certo efeito terapêutico da palavra. As recordações, o avivar da memória, a descoberta dos mapas das regiões onde combatemos, o cruzamento de memórias, as fotos, tudo isso produz esse efeito catártico. Temos gente de todo o lado do país e de todas as épocas, do princípio, meio e fim da guerra colonial.


8. Este blogue pretende espelhar o sofrimento de quem lá esteve dando voz também a quem combateu ao lado do PAIGC?

L.G: Repare, isto é um blogue para ex-combatentes, idealmente de um lado e do outro. O blogue é para camaradas e amigos da Guiné, portugueses, mas também guineenses, quer tenham combatido ao nosso lado ou contra nós. Por outro lado, há amigos da Guiné espalhados pelo mundo, estão aparecer mulheres e familiares de militares... Infelizmente, do lado dos antigos guerrilheiros não há muita gente: há muitas barreiras, a começar pela língua, as tecnologias, as comunicações, etc.

Quanto ao resto, não posso prever para onde vai o nosso blogue, só sei que está a crescer, estamos neste momento a chegar a um milhão de vistas. Pensamos muitas vezes que o melhor que nos pode acontecer é conseguir juntar as duas faces da guerra, nós e os guerrilheiros de então. Porque também lutamos pelo esclarecimento, esperamos chegar à reconciliação, como homens que no passado se combateram, sob bandeiras diferentes, mas hoje unidos pela língua, a história, os afectos, o tempo, o lugar...

2.2. BREVE INTRODUÇÃO À PROBLEMÁTICA DA HISTÓRIA COLONIAL (FRENTE DA GUINÉ)

Quando, no final da década de 50, o Senegal e a Guiné-Conacri se tornaram independentes, sabia-se que haveria sérias repercussões na província da Guiné Portuguesa. A consciência da independência encontrou eco nos quadros urbanos de Bissau e foi assim que nasceram movimentos orientados, uns para a progressiva independência, com ou sem diálogo com Portugal, outros dispostos à luta armada, no caso de Portugal não querer conceder a independência à Guiné.

Em 1959, ocorreu no porto de Bissau um protesto de estivadores e outros trabalhadores que acabou num banho de sangue, foi um autêntico massacre. Esse episódio veio agravar as tensões e a partir daí passaram a destacar-se dois grandes movimentos, a FLING, apoiada pelo Senegal, e o PAIGC apoiado pela Guiné-Conacri.

Estes dois movimentos não chegaram a nenhum acordo de princípio para a luta comum, estavam irremediavelmente divididos num conceito nacionalista: a FLING queria uma Guiné só para os Guineenses, o PAIGC queria uma União de duas pátrias, a Guiné e Cabo Verde. A FLING foi a responsável por algumas escaramuças no norte da Guiné, a partir de 1961, era um movimento que se baseava em muita improvisação - não houve preparação dos quadros militares, nem muito menos se preparou uma estratégia para aliciar as populações civis.

Com o PAIGC foi muito diferente. Teve um líder organizador genial, Amílcar Cabral, recebeu apoios sobretudo da China e da União Soviética, preparou quadros militares e foi apetrechada com equipamento e outro armamento que tornou logo, em 1963, a vida duríssima às tropas portuguesas. Desenvolveu um trabalho ideológico eficaz, a tal ponto que em finais de 1963 os campos estavam claramente demarcados, muitas povoações foram abandonadas, numa proporção que ainda hoje se estima de 1 para 5 ou de 1 para 6, o PAIGC acantonou-se em pontos estratégicos de muito difícil acessibilidade, sobretudo na região Sul.

O PAIGC soube igualmente explorar a natureza da geografia da Guiné a seu favor. Sendo um facto que o clima da Guiné é muito difícil, praticamente todo o território está atravessado por rias e outros cursos de água que dificultam a circulação humana. O PAIGC destruiu inúmeras estruturas e começou a combater numa verdadeira atmosfera de guerra de guerrilhas. Face a esses sucessos, os Estados Africanos reconheceram o PAIGC como o único interlocutor para a Guiné e a FLING desapareceu, nas suas expressões política e militar.

Em 1964, o regime de Salazar envia para a Guiné um novo governador, Arnaldo Schultz, com a missão de travar o avanço do PAIGC, desarmá-lo psicologicamente e reforçar o apoio das populações, sujeitas a pressões dos dois lados. Quatro anos depois, esta missão não tinha tido o êxito que se esperava, o PAIGC sentia a sua influência crescer, se bem que o conflito começasse a ter dimensões aproximadas a uma guerra civil (o entrevistado Luís Graça refere-se a esse aspecto). O desmantelamento das sociedades agrícolas, umas que ficaram reordenadas à volta dos quartéis e outras sob controlo do PAIGC levou ao jogo duplo das populações, que é um dos grandes dramas deste tipo de guerra.

O período de 1964 e 1968 levou à formação de contingentes africanos dentro da Guiné, e o sucessor do General Arnaldo Shultz, Brigadeiro António de Spínola, reactivou o aparelho militar guineense. Mesmo com a incorporação de africanos, as tropas portuguesas continuaram uma politica de abandono de quartéis nas zonas fronteiriças.

Em 1968, chega à Guiné o Brigadeiro Spínola que procura inverter a situação: os seus objectivos foram sobretudo os seguintes: intensificar a dinâmica militar, desmotivando o PAIGC; reagrupar as populações civis oferecendo-lhes como projecto uma elevada participação no seu destino, através da fórmula “por uma Guiné melhor”;  criar, dentro das limitações existentes, uma política de fomento económico que desse aos guineenses confiança num novo rumo.

O Brigadeiro Spínola cedo foi confrontado com a combatividade do PAIGC que não desarmou e obrigou as tropas portuguesas a abandonar mais quartéis. A política de “uma Guiné melhor” deu os seus frutos na medida em que conquistou a adesão das populações envolvidas. Depois, Spínola tentou a negociação com algumas etnias para deixarem a guerra, tudo terminou tragicamente com a morte dos negociadores do lado português, em Abril de 1970. Spínola procurou, com o beneplácito de Marcelo Caetano, uma operação de invasão da Guiné-Conacri que teve fracos resultados e que custou a reprovação internacional.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Pel Caç Nat 52 (1968/70) >  O Alf Mil Beja Santos, já no final da sua comissão, em meados de 1970, frente às instalações para oficiais do quartel de Bambadinca (que foi sede do comando e CCS do BCAÇ 2852 - 1968/70 - e do BART 2917 - 1970/72). Foi no tempo do BCAÇ 2852, que ele ganhou o seu nome de guerra, "Tigre de Missirá".

Foto: © Beja Santos (2010). Direitos reservados

O ano de 1973 é um ano de viragem. Amílcar Cabral morre assassinado e os acontecimentos subsequentes dão conta que o PAIGC já não está totalmente dependente do seu líder histórico, tinha já identidade nacional. O PAIGC apareceu apetrechado de mísseis terra-ar e o lado português não teve contrapartida para estas armas. A comunidade internacional foi continuando a censurar a política colonialista portuguesa e em Agosto desse ano o PAIGC declarou unilateralmente a independência da Guiné -Bissau, logo reconhecida por 80 países. O General Spínola, vendo que não lhe davam equipamentos militares compatíveis e tendo sido convidado a abandonar mais povoações fronteiriças, cada vez mais flageladas para as armas temíveis do PAIGC, demitiu-se, tendo sido substituído pelo General Bettencourt pôde evitar a escalada da guerra.

Nesse ano de 1973, verificou-se igualmente que o PAIGC ganhara uma grande capacidade para progredir para uma guerra quase convencional, entrando no território português com rampas de foguetões. Acresce que uma ofensiva no Sul leva a que um importante quartel teve que ser abandonado devido ao potencial de fogo do atacante e ao esgotamento das nossas tropas. Em 1974, Marcelo Caetano autoriza conversações secretas com o PAIGC que não passaram da fase exploratória, pois logo a seguir ocorreu o 25 de Abril.

A frente da Guiné foi indiscutivelmente a mais difícil das três frentes da guerra em que Portugal travou em África entre 1961 e 1974. Porque o terreno físico era claramente hostil a poder empurrar o adversário para posições fixas; porque o adversário cedo obrigou as forças em presença a uma grande separação; porque o adversário estava altamente motivado e possuía um chefe dotado de uma inteligência incomum, etc.

Os militares da Guiné, quase sem excepção (e a excepção era a cidade de Bissau e arredores) tiveram de combater, e foram diariamente confrontados com os horrores da guerra. Tinham à volta de 20 anos, na altura destes acontecimentos, têm hoje entre 60 e 70 anos.

Os acontecimentos posteriores ao 25 de Abril foram orientados para a luta política em Portugal, esses jovens tiveram que fazer pela vida para arranjar trabalho e reconquistar a paz interior. Dedicaram-se à política, às empresas, regressaram à agricultura ou ao operariado. Educaram filhos, têm hoje netos. O mundo mudou, Portugal está na União Europeia, a Guiné-Bissau vive em estado calamitoso, esses ex-combatentes têm reuniões nostálgicas, quase todos os anos, sentem hoje uma maior disponibilidade, à beira da reforma ou já reformados, para recordar e contar o que viram e como viveram.

O computador alterou radicalmente as relações de comunicação, à frente de um ecrã, clicando, fazem o chamamento do passado, mostram as suas fotografias, discutem opiniões sobre os anos da guerra e o que hoje se diz sobre esses anos da guerra.

É nesse contexto que os ex-combatentes têm vindo a aderir à formação de novas assembleias onde conversam, dão opiniões, comovem-se e até escrevem livros. São os blogues.

2.3. ANÁLISE DE CONTEÚDOS DE UM BLOGUE DEDICADO AO DEVER DE MEMÓRIA POR PARTE DE EX-COMBATENTES DA GUINÉ

Não é este o lugar para falar da essência de um blogue. O que importa é saber como funciona um blogue de ex-combatentes da Guiné. No caso específico do blogue “Luís Graça e Camaradas da Guiné”, assiste-se à convergência de algumas centenas que aderiram ao projecto de um professor da Escola Nacional de Saúde Pública que decidiu convidar sem quaisquer barreiras todos os camaradas da Guiné interessados em desenvolver entre si o dever de memória e partilhar experiências.

Cedo o seu criador se apercebeu do atractivo criado, começaram a chover mapas, documentos históricos sobre operações, cada um trouxe as suas fotografias e a sua correspondência. Por vezes, um acontecimento suscita enormes discussões: foi o caso da retirada de Guileje, os ataques ferozes a Guidage ou a Gadamael. De vez em quando abrem polémicas, mostram a sua poesia, reúnem-se em assembleia para criticar um comentário, como ocorreu recentemente a propósito das declarações do General Almeida Bruno.

Um blogue com estas características, renovado continuamente sete dias em sete, apelando à solidariedade com os povos da Guiné-Bissau, falando da sua história e da sua cultura, mostrando imagens inéditas, registando depoimentos afectivos, feito artesanalmente por voluntários e sem quaisquer custos para os participantes, tem que ser visto como uma tribuna de valor excepcional. Recolhe material que um dia pode ser tratado por historiadores, tem por vezes o ar fresco de uma praça pública onde estes homens de 60 e 70 anos se cumprimentam e acamaradam discutindo por vezes acaloradamente.

Maria
[Revisão / fixação de texto / introdução: L.G:]

3. Comentário dos editores:

Mário, sabemos que esta doce lembrança da tua menina, da tua Glorinha, é a melhor prenda que a gente te podia dar. Todas as palavras que quisermos acrescentar, aqui e agora, sobre o amigo, o camarada, o homem, o cidadão, o escritor, o colaborador activo, empenhado, generoso e profícuo deste nosso projecto comum (com mais de 200 referências no nosso blogue), são supérfluas.  Só te queremos desejar o melhor dia possível e dizer-te quanto te estimamos e prezamos. Muita saúde e longa vida, que a ti Deus tem de dar tudo! Um terno Alfa Bravo para ti. Um chicoração também a Joana e, naturalmente, para a Cristina Allen, mãe da Glória (e que é uma grande senhora, cuja presença, tutelar, nesta Tabanca Grande muito nos honra e nos fortalece).
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Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P6502: Blogoterapia (150): Rosa, esta Tabanca tem a particularidade de sarar as feridas que mais ninguém quer tratar (Jorge Félix)

1. Mensagem de Jorge Félix* (ex- Alf Mil Pil Heli Al III, BA 12, Bissalanca, 1968/70), deixada no poste 6469**, referente à apresentação da nossa camarada Rosa Serra, ex-Enf.ª Pára-quedista:

Olá, Rosa, já passaram alguns anitos e continuas bonita!

Dizem que andar de helicópetero leva o tempo a parar. (Estacionário, é a palavra que está associada ao heli e ninguém ainda explanou sobre a sua importância na relatividade da passagem do momento...). Tu andaste bastante e o resultado não podia ser outro.

Já te deram as boas-vindas, que eu reforço, e agora que fazes parte da Tabanca Grande quero te avisar que vais ter momentos encantadores, momentos de imensa alegria e outros menos bem dispostos. Vais voltar a viver Bissalanca, o "mato", o frio da noite em evacuação, e a tristeza do Hospital Militar quando chegávamos tarde.

Vais encontrar camaradas esquecidos, outros vão te encontrar. Esta Tabanca tem a particularidade de sarar as feridas que mais ninguém quer tratar. Vais dar conta disso.
"Chatos" como eu, também não vão faltar.

É com grande alegria que volto sentir a tua presença.

A nossa Tabanca recebe-te de braços abertos.

Abraço
Jorge Félix
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 15 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6397: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (21): Fotogramas de um vídeo com o Honório (Jorge Félix)

(*) Vd. poste de 25 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6469: Tabanca Grande (223): Rosa Serra, ex-Alferes Enfermeira Pára-quedista, BCP 12, Guiné, 1969

Vd. último poste da série de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6401: Blogoterapia (149): Com os Gringos de Guileje, e com o nosso blogue, mantendo viva a chama de uns velhos, ontem miúdos, combatentes (Amaro Samúdio, CCAÇ 3477)

domingo, 30 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6501: Álbum fotográfico de Jorge Rosales, ex-Alf Mil da 1.ª CCAÇ, Porto Gole, 1964/66 - I (Jorge Rosales)

1. Álbum fotográfico do nosso camarada Jorge Rosales*, ex-Alf Mil da 1.ª CCAÇ, Porto Gole, 1964/66.

Foto 1 > Agosto de 1964, com o Bijagó, o meu guarda-costas em Porto Gole.

Foto 2 > Fevereiro de 1965, dar banho às crianças.

Foto 3 > Março de 1965, uma boa futebolada com tropa nativa, soldados da metrópole e pessoal da administração de Porto Gole.

Foto 4 > No Xime com pessoal da CCaç 556, de Enxalé.

Foto 5 > Março de 1965, o descanso do guerreiro, junto ao rio Geba.

Foto 6 > Em Novembro de 1965, com o o meu amigo Alfero.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4488: Tabanca Grande (151): Jorge Rosales, ex-Alf Mil, Porto Gole, 1964/66, grande amigo do Cap 2ª linha Abna Na Onça