sábado, 13 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7271: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (9): A Suíça de África, o narcotráfico, a justiça e a falta que faz o Luís Cabral

1. Texto do António Rosinha [, foto à direita, Angola, 1961 ]:

Data: 4 de Novembro de 2010 23:31

Assunto: Guiné Bissau, o narcotráfico, a Justíça e a falta de Luís Cabral

 Agora que embalagens de droga dão à costa nas praias de Portugal, segundo os jornais, e não temos submarinos nem helicópteros nem marinha para travar este contrabando, até parece ridículo um português falar de narcotráfico em Bissau.

Mas não vou falar desse problema, mas apenas de Luís Cabral e de um caso de consumo de droga que ele solucionou à maneira dos velhos Chefes de Posto coloniais.

Pretendo esclarecer que as coisas que afirmo neste blog, em geral só podem ser corroboradas ou desmentidas por dois ou três tertulianos, pois de uma maneira geral foi quase tudo passado antes ou depois da guerra. Quando narro factos passados durante a guerra ou testemunhei ou são públicos e uso apenas a memória pois faço os possíveis para não recorrer nem a livros nem a documentos nem à wikipédia.

A minha guerra (sem tiros, felizmente) não foi de 24 meses mas de 13 anos, antecedidos por alguns anos de paz (?) em Angola e seguidos por alguns anos de paz  (?) na Guiné. Dos poucos tiros de guerra que ouvi, uns dois ou três foram de carro de combate em Bissau, na noite em que Luís Cabral foi derrubado em 14 de Novembro de 1980.

Como sempre achei imprópria e em hora inadequada para a Guiné a guerra imposta pelo PAIGC, nada me impede de considerar que Luís Cabral ao ser "excluído" da governação, a Guiné ficou condenada a sofrer tanto ou mais do que tinha sofrido durante a guerra anti-colonial.

Luís Cabral ficou a fazer muita falta à Guiné, principalmente por se saber que não havia alternativa válida, mas talvez Luís fosse vítima dele próprio e do projecto do PAIGC, como talvez se possa dizer o mesmo de Amílcar, caso não apareçam testemunhas com outros motivos mais válidos.

E passo a relatar uma decisão inteligente, prática e simples e diplomática que demonstra a capacidade que Luís Cabral e o seu governo tomaram para resolver um caso de uso (e talvez de tráfico) de droga, uns meses antes de ser derrubado (1980). Envolvia estrangeiros e nacionais nesse escândalo de droga.

Embora na Guiné só houvesse um pequeno jornal,  o NÔ PINTCHA

, do partido, que publicou alguma coisa sobre o escândalo, tudo se sabia de boca em boca. Havia uma invasão tão grande de cooperantes internacionais que no meio de tanta gente alguma escandaleira surgia de vez em quando naquela sociedade tão heterogénea que até se pode dizer que era uma grande confusão.

Foi o caso de uma arquiteta portuguesa e um professor francês e uns tantos guineenses que, segundo o NÔ PINTCHA e o boca a boca, se entretinham numas festas em que metia droga e a polícia entra em acção. E aqui entra a experiência que só um africano ou alguém com cultura africana pode resolver sem incidentes.



Luís Cabral durante a 1ª Assembleia Nacional Popular, na Região do Boé,  23 a 24 de Setembro de 1973.


Foto:  Fotografias Amílcar Cabral / Fundação Amílcar Cabral (2003) (Com a devida vénia...)






Sabemos que a chamada África negra tradicionalmente não tinha prisões, nem advogados nem juízes, no entanto como em qualquer sociedade também lá havia crimes a punir e justiça a ser feita. Também sabemos que os Chefes de Posto tinham uma pequena casa junto à administração que servia de prisão apenas momentânea pois não era feita para uma prisão definitiva.

Quem fazia de juiz, de advogado de acusação e de defeza era o próprio Chefe de posto, só não fazia de testemunha, pois aí entravam as pessoas da tabanca a favor ou contra. Em caso de crime provado uma das punições era a régua de cinco olhos e o cipaio (polícia) a executar a sentença. E a denúncia do criminoso perante a tabanca toda.

Os chefes de tabanca constantemente recorriam aos chefes de posto para resolver muitas quezílias e até problemas de ordem matrimonial que familiarmente havia dificuldade em solucionar.

Estes processos conheci em Angola no tempo colonial, mas foi extamente assim que vi no Gabu o presidente do Comité a residir na antiga casa do Aministrador colonial, resolver um caso de furto de uma vaca por um cidadão jovem (1987).

Como não assisti ao julgamento, apenas sei que o juiz e os advogados de defesa ou acusação eram inexistentes como no tempo colonial, e vi o cumprimento da sentença, ou parte dela, que constou de uma volta pelas ruas retilíneas do Gabu (Nova Lamego) pelo criminoso, com a pele da vaca a cobrir-lhe o corpo, depois de devidamente extraída do animal, com cornos integrados, e com a corda ao pescoço, que antes servira para levar o animal. Um polícia acompanhava o ladrão e a criançada,  e mesmo gente maior, fazia um enorme cortejo, que depois deste castigo nada discreto, o culpado não ia ficar com vontade de repetir.

No caso da droga, que era um caso mais melindroso, as autoridades do governo de Luís Cabral diplomaticamente recambiou os cidadão estrangeiros, "discretamente" com o aeroporto repleto de gente a bisbilhotar de quem chega e parte no primeiro avião da TAP que apareceu. Com o cenário da bisbilhotice, penso que a portuguesa e o francês ficaram sem vontade de regressar a Bissau.

E os cidadãos guineenses implicados, depois de passarem dois ou três dias na prisão de Bissau, com tudo devidamente confessado "voluntariamente" sem advogados nem juízes, e certos pormenores publicados e explicados ao povo, acabaram por não precisar de ficar presos, pois se o arrependimento matasse...!

A solução foi de uma eficiência que se soube que alguns intervenientes emigraram logo que puderam, assim como alguns que milagrosamente escaparam à rusga da polícia. Conheci pessoalmente um desses intervenientes por ser escriturário na empresa onde eu trabalhava, a Tecnil.

Estou a contar estes factos, como já contei outros factos após a independência da Guiné, tentando demonstrar que a governação de Luís Cabral era eficiente, dinâmica, e em Bissau pelo menos havia alguma ordem, e tento também demonstrar que Luís seguia a política que Amilcar escreveu em discursos e em entrevistas.

Tudo o que era ligado à justiça, agricultura, indústria etc, rara era a matéria em que Amílcar não deixasse algo escrito, até à maneira de comer a vianda com a mão, ele faz uma observação.  Luís Cabral seguia tudo à risca, e quero aqui realçar aquilo que já se falou no blog,  «fazer da Guiné a Suíça de África». Luís não tinha limites para tentar atingir o máximo de modernidade e credibilidade. Diariamente surgiam novas intervenções estrangeiras na educação, como um grande Liceu, na indústria, a fábrica do automóvel «Nhaye»,  da Citroen, uma camisaria industrial, na agricultura com novas técnicas desde as japonesas às portuguesas, etc.

Pelo que se via da sua actução era de cortar qualquer mal pela raíz. Cheguei a ver rusgas em Bissau à procura de jovens sem documentos ou sem trabalho e enviar às carradas de camião para a esquadra e devolver esses rapazes para as suas tabancas de origem. Um dia a polícia levou-me da minha viatura,  num auto stop no Alto Crim, os meus três ajudantes porta-miras por não terem nenhuma carta no bolso a dizer onde trabalhavam. Foi preciso o «soco por baixo da mesa» para os livrar de regressarem à tabanca. Talvez este política de cortar os males pela raíz tenha levado ao exagero dos fuzilamentos e das valas comuns de que [Luís Cabral] foi acusado.

Com este post particularmente, pretendo afirmar que se Luís Cabral seguisse mais uns anos na governação, neste momento, 2010, a Guiné Bissau poderia não ser a Suíça Africana, mas não era de certeza a imagem de uma capital do narcotráfico e outros males.

Mas tem que se fazer sempre a pergunta, porque correu tudo tão mal com Luís Cabral, Amílcar Cabral, e todos os dirigentes do PAIGC? E outras perguntas por exemplo, como correu melhor com o PAICV, se em Caboverde nem guerra houve?

O que se passou no interior do PAIGC desde a sua fundação, para haver tanta sede de sangue e tanta falta de respeito pelo povo da Guiné?

Para terminar regresso àquela ideia da «Suíça de África», dizendo que ainda mesmo depois de Luís Cabral ainda se continuava a ouvir essa frase, pois o entusiasmo do partido pelo desenvolvimento ainda continuou por algum tempo, os jovens continuavam a devorar livros pelos jardins para se instruirem, apenas os mais velhos e as mais velhas baixavam os braços e já não colaboravam na "produção e produtividade" que era uma máxima de que o regime socialista usava até à exaustão na rádio e nos comícios e no NÔ PINTCHA.

Temos que ter esperança que tudo melhore para aquele povo, em Bissau, mas também na Arcena, na Moita e que nós,  velhos tugas,  não desanimemos pois por cá tambem há uns problemas à procura de solução.

Com os meus cumprimentos para toda a tertúlia,

Antº Rosinha
____________


Nota de L.G.:


Último poste da série > 24 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7170: Caderno de notas de um Mais Velho (Antº Rosinha) (7): Da Casa Gouveia aos Armazéns do Povo

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7270: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (31): Achado e perdido, o meu amigo Mulai Baldé (Amílcar Ventura)


Guiné > Zona leste > Bajocunda > 1.ª CCAV/BCAV 8323, 1973/74 > Álbum fotográfico do Amílcar Ventura > "Foto 10 - Crianças amigas [ , em primeiro plano o Mulai Baldé, que mais tarde viria para Portugal]

Foto: © Amílcar Ventura (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados


1. Na sequência da história do Adilan, na minino, aqui apresentada pelo nosso camarada Manuel Joaquim (*), viemos a descobrir mais um djubi que, em tempos, conviveu com a malta da tropa... E muitos outros haverá, como foi o caso o Cherno Baldé, por exemplo, que conviveu connosco em Fajonquito e agora é um membro muito querido da nossa Tabanca Grande.

Eis o filme dos acontecimentos (com referência ao Mulai Baldé) aqui narrados pelo Amílcar Ventura e pelo Cherno Baldé... A confirmarem-se as pistas, é caso para mais uma vez dizermos aqui, alto e bom som, que o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande!


(i) Comentário de Amílcar Ventura (que vive em Silves; foto à esquerda, Bajocunda, 1973/74):

Manel, eu tive uma história parecida com a tua, só que o menino é o meu amigo Mulai Baldé. Na altura não tive a coragem de o trazer. Era um puto que nos servia na messe de sargentos.

Quando regressei,  em 9 de Setembro de 1974,  nunca perdi o contacto com ele, escrevia-lhe todos os meses três cartas, até que, passados oito anos, ele conseguiu vir para cá. Ajudei-o a formar uma empresa de construção civil. Depois trouxe a família para cá. Esteve muito tempo comigo no Algarve.

Mas depois foi para Lisboa e há dois anos que ando à procura dele. Deixou-me de telefonar, perdi-lhe o rasto, até já contactei a embaixada e até agora nada. Tenho estado muito preocupado.

Um grande bem haja para ti. Uma abraço do tamanho da Guiné para ti e tua família

Amílcar Ventura, ex-Fur Mil Mec Auto,
1ª CCAV / BCAV 8323
(Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74)


(ii)  Mensagem do Cherno Baldé (, foto à esquerda, quando estudante, em Kiev, Ucrânia, 1989,) para o Amílcar Ventura:

(...) Ao Amílcar Ventura aproveito informar que o Mulai, natural do Sector de Pirada (Bajocunda?), foi meu colega no Liceu de Bafatá, dormimos na mesma esteira e degustámos, comemos juntos, em Bafatá, de 1975 a 1979, o pão que o diabo amassou.

Actualmente ele vive e trabalha em Gabú, sua região natal. Aparentemente, é um Empreiteiro (ou Empresário) de sucesso e um homem de peso na região. Quero aqui felicitar-te pelo empurrão que lhe deste e que, certamente, contribuiu para o seu sucesso hoje.

Um abraço para todos,

Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

(iii) Comentário do Manuel Joaquim (, foto actual, à direita):

Oh Amílcar Ventura, que grande "bomba", hem?! O teu amigo Mulai Baldé apareceu! ( embora só nas palavras do Cherno).

A minha "estória" já fez abrir uma garrafa!

E viva a Tabanca Grande!

Um abraço
 
(iv) Comentário de Luís Graça (, foto à esquerda, em Nhabijões, Bambadinca, 1970):
 
Amigos:

Tantos e tantos djubis que não tiveram a sorte grande de encontrar um homem, de coração grande, como o nosso Manuel Joaquim!... Lembro-me, por exemplo, do Tchombé, a mascote (sic) da messe de sargentos de Bambadinca do meu tempo (BCAÇ 2852, BART 2917, CCAÇ 12, 1969/71)...

O que será feito desse minino, que não teria mais do que cinco anos quando o conheci, e que ninguém pôde ou quis trazer para a metrópole ?... Julgo que era "órfão de guerra" (ou talvez fosse apenas mais um "rafeiro", como diz o Cherno Baldé, que vivia na órbita da tropa de Bambadinca...).

Eh!, malta de Bambadinca, alguém de lembra do puto Tchombé ?

(v) Comentário, de novo, do Amílcar Ventura:

 Manel, que grande história de vida que nos contas nesta segunda parte. Também é maravilhosa, o Adilan encontrar a sua família, etc. Manel, quero dar-te um grande e forte abraço.

Por tua causa descobri o meu amigo Mulai Baldé. Já envie um e-mail ao Cherno e outro ao Pepito para verem se descobrem o contacto.

Obrigado do fundo do coração. Um grande bem haja para ti. Uma abraço do tamanho da Guiné para ti e tua família (...)

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Nota de L.G.:

(*) Vd. postes de:

10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)

 12 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7267: História de vida (33): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 2ª parte (Manuel Joaquim)

Úlçtimo poste desta série que se passa a chamar-se O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande >

30 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7192: O Mundo é Pequeno e o Nosso Blogue... é Grande (30): Forgotten African Soldier / O Soldado Africano Esquecido (Jochen Steffen Arndt, Universidade de Illinois em Chicago)

Guiné 63/74 - P7269: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (5): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (3) 1 de Novembro

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,
Há muito tempo que não fazia um exercício destes. Não é petisco nenhum, são carambolas da memória, anda-se de pinça em riste, à procura das emoções vividas. A chatice é que estou atolado de trabalho, até partir. E a Guiné já está a mexer comigo. Hoje fui buscar vários quilos de roupa para entregar à filha do Abudu, vai ser uma das primeiras missões deste recoveiro. E há chamadas, contactos ainda a estabelecer. E há o medo de que falava o Torcato, talvez o mais insidioso de todos: o que é que se vai dizer, passado todo este tempo? Como é que é possível não deflagrarem várias granadas ofensivas e defensivas naquilo a que se chama o coração e os sentimentos?
Glosando o que a minha irmã escreveu num daqueles bilhetes-postais, eu tenho que aguentar a viagem a que me impus, não foi ninguém que me empurrou, de cá para lá.

Um abraço do
Mário


Operação saudade 2010 (5)

Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (3)

Beja Santos

Os bilhetes-postais, os telefonemas, os livros

1 de Novembro

Faço vigília pelos meus mortos, os do sangue, os da mais terna amizade, aqueles de quem serei devedor para todo o sempre. Incómoda foi a hora em que decidi abrir a caixa de sapatos com os bilhetes-postais recebidos na Guiné, até aqueles que enviei para os meus mortos. Todas estas imagens desinquietam, me transferem prematuramente para a aventura que vou viver, dentro em breve.

Primeiro os bilhetes que a Manuela me enviava frequentemente, fosse a que pretexto fosse. 3 de Março de 1979, com a fachada da Estação do Rossio, a minha irmã recomenda-se: “Um dia de Páscoa o melhor possível é o que sinceramente te desejamos. Que Deus te vá dando forças para suportares tudo o que seja imposto. A 10 de Agosto desse ano, a minha mãe, a caminho de São Pedro do Sul, na companhia do Rodolfo, o meu sobrinho, com a biblioteca da Universidade de Coimbra, despede-se como sempre: “Beijo da tua mãe que nunca te esquece, Ângela”. Há bilhetes para todos os gostos, bilhetes policromos, do tipo arte pop, castelos, aldeias típicas e santinhos como aquele que a minha mãe me envia em Fevereiro de 1969, recordando um ano antes, as férias que passara nos Açores, na minha companhia. Leio e releio o que me dizem Junho de 1970 a minha irmã com uma imagem da Basílica de Fátima: “Viemos de passeio no nosso Fiat 850 Especial, o teu cunhado fez exame de condução com 27 lições e comprou o carro novo no dia. Desejo-te um rápido e feliz regresso”. A gratidão que devo à minha irmã não tem preço. Meticulosamente, aos sábados à tarde, ela ia visitar todos os feridos que estavam no Hospital Militar, levava-lhes comida e muito carinho. O marido e os filhos ficavam no carro enquanto ela atravessava aqueles corredores com gente com membros amputados, cegos, em cadeiras de rodas. Ela fez a comissão toda com uma devoção fraternal e um grande espírito de dádiva, muito próprio das enfermeiras.

Escrevo à minha mãe em 20 de Janeiro de 1967 e mando-lhe um bilhete-postal com uma plantação de chá em S. Miguel. Comunico-lhe que vou para exercícios finais para a Lagoa do Fogo. E é da Lagoa do Fogo que a minha amiga Cremilde Tapia me envia notícias, pedindo-me para ser perseverante e cumprir a vontade de Deus. Chega mesmo a dizer que quando acabar a comissão na Guiné irei passar por lá. Como aliás aconteceu, o Carvalho Araújo lá foi arrastado do cais do Pidjiquiti até à Ponta Caió, depois atirou-se pela noite escura em direcção a Cabo Verde, contingentes foram largados na ilha do Sal e depois em S. Vicente. A etapa seguinte foi o porto de Ponta Delgada, tinha os amigos todos à minha espera. O mais emocionante foi o barco a avançar lentamente sobre aquele esporão de cimento onde uma multidão de mulheres trajando de negro aguardava filhos, maridos e irmãos. De um silêncio sepulcral passou-se à estridência máxima enquanto de lá para cá, e de cá para lá, se faziam os reconhecimentos da voz do sangue.

A Lagoa do Fogo, ilha de S. Miguel

Plantação de chá, ilha de S. Miguel

Estação do Rossio em 1969

Não sei o que hei-de fazer destes bilhetes-postais. Procurei-os como teias de todo esse tempo que me parecia já descodificado, reconhecido, escancarado. É mentira, somos mnésicos, mas há sempre sombras, leituras dúplices. É um dos sabores da velhice, redescobrir lembranças do passado, poças de água que resistiram aos escaldões do vento suão.
Agora importa conversar, saber o que se vai passar na Guiné.

Começo pelo Cherno.
- Cherno!
- Pronto, às ordens!
- Cherno, já conseguiste encontrar o Doutor (Doutor é Quebá Sissé, cozinheiro, atirador e outras coisas mais, perdi-lhe o rasto, vive perto de Farim, pedi ao Cherno para o contactar)?
- Tumulu Soncó foi comprar tecidos a Zinguichor, passou por Farim, deixou recado. Boa notícia, Tomani Sanhá está vivo, vive perto de João Landim, a caminho de Mansoa. Com o telemóvel as coisas agora são mais fáceis, ficou combinado que vou seguir a tua viagem e a partir do dia 18 vou saber quando chegas a Bambadinca. No Cossé e em Badora, está tudo informado. Ninguém sabe do Campino, deve andar pelo Senegal. Tumulu deixou recado em Ziguinchor. A gente de Amedalai quer fazer-te uma festa, vais receber galinhas e panos.
- Cherno, não tenho palavras para te agradecer!
- Nosso alfero manda sempre, sempre. Pessoal da Guiné está à espera.

A seguir ligo para o Queta Baldé.

- Boa tarde, Queta.
- Boa tarde, boa tarde.
- Queta, já falei com o Mamadu, há muita informação a correr entre Bambadinca e o Xime, mas há nomes em falta, ninguém encontra Domingos nem o Príncipe Samba.
- Zé Pereira já foi encontrado. Está em Catió, vem para Bissau para te ver. Guardou sempre os louvores e a condecoração. Gostava de ser ajudado, não sei o que dizer, há muita tristeza, tens de partir preparado para o que vais ver.
- Vai-me dando notícias, meu bom Queta.

Amanhã vou ligar para Santa Helena e Bissau. Hoje já chega de emoções.

Remexi na bibliografia de tudo o que li na Guiné. Cheguei à conclusão que há títulos omissos. Agora sei bem porquê. Livros que não me tocaram, mesmo que fossem obras-primas. Foi o caso de “As Vozes do Silêncio”, de André Malraux. Para quem se lembra, o café Bento tinha uma pequena livraria ao fundo, ali encontrei relíquias. Recordo que na segunda visita a Bissau, em Julho de 1969, andava à procura de livros, perdera tudo no incêndio de 19 de Março, em Missirá. Malraux era para mim um grande escritor. Como, aliás, vim a confirmar quando, anos mais tarde, li "A Condição Humana" e as memórias que ele dedicou a Charles de Gaulle. Comprei “As Vozes do Silêncio” à toa, não me pude entender com aquela catadupa de análises. Dois exemplos: “O génio pode nascer de uma ruptura individual; a evolução e a mutação brusca dos valores provocam, contudo, em certas épocas privilegiadas, rupturas relativamente numerosas. Vários artistas tomam consciência, quase simultaneamente, de um desacordo fraterno entre cada um deles e a arte que admiram em comum; certas descobertas são retomadas por todos, como as descobertas técnicas do cinema o são hoje numa contradança inextrincável”. E mais adiante “É impossível compreender o papel desempenhado na nossa civilização pela ressurreição que ela suscita, senão descobrirmos que a arte que a pede surgiu das brechas da cristandade. Não do cristianismo, nem do pensamento religioso, mas da sociedade toda-poderosa que modelou a alma e o espírito dos homens, e cuja última expressão encontramos no que conservam do seu passado a Índia inquieta e o Islão”. Eu sei que isto é muito belo e seguramente profundo. Li na Guiné e não compreendi. E continuo a não alcançar esta forma de falar do absoluto e da permanência do acto criador. Paciência.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7259: Notas de leitura (168): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (5) (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 7 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7237: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (4): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (2) 31 de Outubro

Guiné 63/74 - P7268: Nome de código Chaminé (António Matos)


1. O nosso camarada António Matos, ex-Alf Mil Minas e Armadilhas da CCAÇ 2790, Bula, 1970/72, enviou-nos, em 11 de Novembro de 2010, a seguinte mensagem:

Nome de código Chaminé

A operação foi preparada discretamente…

Ao fim da tarde reuni os meus mais exímios soldados e pedi-lhes que se preparassem para a acção.

Objectivo, estratégia e progressão, seriam desvendados em cima da hora para evitar fugas de informação e as consequentes interferências.

Ao cair da noite, fiz o ponto de situação e dei os últimos retoques no atavio daqueles homens.

Homens e algumas mulheres pois naquele dia havia mulheres grandes da tabanca que se mostraram absolutamente determinantes no sucesso da investida na sua qualidade de apoio psicológico uma vez que mantinham relações de parentesco com eles.

No total éramos 11 a formar o grupo de assalto que levaria a cabo o golpe de mão.

O resto do pessoal foi dispensado ainda que só o viessem a saber no dia seguinte estranhando, contudo, a ausência de alguns dos camaradas com quem costumavam disputar longas sessões de lerpa.

Debruçados sobre o mapa da zona, indiquei-lhes o ponto onde perpetraríamos o assalto.

Elegi quem tomaria o comando caso um azar me pusesse KO.

Verificámos as munições e partimos.

Numa 1ª fase avançámos rapidamente até se detectar o primeiro obstáculo.

Tomámos posições defensivas e eu avancei para uma observação pormenorizada.

Era uma mina, porra!

Não estava enterrada mas estava armada o que fazia supor ter sido assim colocada para nos distraírem de eventuais outras armadilhas.

Era de forma cilíndrica com o percutor bem à vista e o detonador pronto a estoirar.

O material explosivo não era sólido o que dificultava o manuseamento.

Calculei os riscos e optei por desmontá-la para que um rebentamento provocado não viesse a denunciar a nossa aproximação.

Parecia não estar armadilhada e não tinha cordão de tropeçar.

Inspeccionei-a pela esquerda, depois pela direita.

Felizmente a temperatura fria da noite jogava a nosso favor.

Hoje recordo que os homens (não tanto as mulheres) se entusiasmaram demasiado e aproximaram-se para além dos limites de segurança para verem os pormenores.

Uuaauuuu! esta já estava!

Recolhidas as peças, continuámos em direcção ao nosso objectivo.

Felizmente que tudo estava muito bem planeado pois pelo caminho ainda tive que desactivar mais 4 engenhos semelhantes e mesmo assim, às 4 da manhã estávamos emboscados em semi-círculo frente a umas sentinelas que não se aperceberam da nossa aproximação.

Havia agora que as eliminar e para isso munimo-nos de facas e numa deslocação de verdadeiro bailado em pontas, surpreendemo-las sem grande alarido.

Num excesso de zelo que se justificava, a cada inimigo a quem espetávamos a faca, confirmávamos o seu aniquilamento com um género de forquilha com que lhe perfurávamos as entranhas.

Recuperadas todas as armas e munições que estavam naquele acampamento, apressámo-nos no regresso evitando qualquer reacção de algum grupelho que por ali andasse.

Chegámos ao quartel e reunimos para de imediato se fazer o relatório da operação.

As minas tinham inscrições em português!

Fabricadas num depósito de armamento ofensivo no Alentejo!

Estavam numeradas.

O explosivo, líquido e escuro, desaparecera, deixando-nos sem qualquer hipótese de o estudar.

Tivemos sorte pois deve ter-se vertido sem contudo provocar qualquer acidente.

Não era corrosivo o que afectaria o soldado que o trazia no burnal caso lhe chegasse à pele.

Tinha o nome de código Chaminé.

Passámos ao segundo ponto do relatório.

O inimigo era muito numeroso mas apanhado de surpresa como foi, soube-nos a pouco.

As facas, esmeradamente afiadas, cortavam as fatias do lombo do porco com batatas e castanhas de maneira exímia.

Não ficou nenhuma para contar como foi!

O bacalhau bem tentou fugir mas não conseguiu!

Finalmente, o inimigo dos inimigos apareceu disfarçado de leite creme, de toucinho do céu, de tiramisu, mas teve a mesma sorte: completamente dizimado!

Demos por terminado o relatório e todos o assinaram.

Uma última formatura e cada um seguiu para a sua caserna para um merecido descanso.

Pessoalmente dormi como um justo mas acordei cedo com uma dor de cabeça dos diabos.

Estávamos a 10 de Novembro de 2010, 39 anos depois de um outro incidente em Augusto Barros com direito a Panhards e tudo.

Recordações dum guerreiro que diz daquela longínqua guerra o que Moisés não disse do toucinho!

António Matos

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Nota de M.R.:

Vd. último poste deste autor em:

8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7243: (Ex)citações (106): Netos ou peluches, tudo por uma boa saúde mental! (António Matos)

Guiné 63/74 - P7267: História de vida (33): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 2ª parte (Manuel Joaquim)


1. O nosso Camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419/BCAÇ 1857, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67, enviou-nos, com data de 5 de Novembro de 2010, uma mensagem cuja primeira parte foi publicada ontem no poste P7261 e vinha acompanhada da seguinte introdução:


Camaradas,

Envio-vos um texto e fotos, sobre um menino balanta-mané, o JM meu "familiar" desde 1967, quando o trouxe da Guiné e que hoje ronda os 50 anos de idade (estou mesmo velhote!).

Tentei que o relato não fosse tão extenso mas não consegui. Aliás, o tema tem bem por onde se pegar e se desenvolver.

Mas este relato limita-se a dar uma ideia do porquê da vinda do menino para Portugal e suas peripécias, do ambiente familiar que encontrou, do seu regresso à Guiné em 1978, do encontro com seus pais e do seu regresso a Portugal, onde reside atualmente.

As fotos são minhas. Não sei se acham interessante a formatização do texto do Apêndice com selos da Guiné-Bissau. Fi-lo porque este texto é quase todo composto por excertos de correspondência por mim recebida, vinda do meu JM. [O texto segue as normas do acordo ortográfico em vigor].

2. ADILAN, nha minino.  Ou como se fica com um menino nos braços (2ª Parte)

APÊNDICE

Texto e imagens: © Manuel Joaquim (2010). Todos os direitos reservados.

Oito meses após a sua chegada à Guiné,  JM escreve aos padrinhos para os informar que tinha encontrado os seus pais. Seguem-se excertos de correspondência:
Bissau, 1/9/1978
(...) Agora tenho-lhes a dar uma excelente notícia que não irão acreditar! A descoberta da minha família, não acreditam? Então aí vão os nomes: pai, Adjula (...); mãe, Fati (...); irmã, Fulô (...) e eu, ADILAN (…).
Através do (...) de Bissorã, um dia eu e uns tipos do Partido resolvemos fazer umas buscas pela zona de (...), antes de lá chegarmos já lá tinham ido (...) interrogar as pessoas (...), acerca de um jovem que tinha sido levado pequenino para Portugal, não conhecia as suas famílias, (...) morava naquela região, enfim manga de coisas (...).
(...) uma pessoa da tabanca sobressaiu-se dizendo que tinha um filho muito pequenino (4 anos) que estava a guardar o milho com um outro miúdo qualquer e que os tugas (desculpem-me a expressão) tinham-no prendido e levado para Bissorã e mais tarde para Portugal. (...) lhe perguntou se o filho tinha qualquer sinal (...) ela respondeu:
- Sim, tem uma cicatriz no lado direito (na cara). Tem uma orelha furada no lado esquerdo. Um pouco atrapalhado a falar.
( ... ) estas respostas levaram-nos no dia 26/8/78 a ir certificar-nos. ( ... ) eu + 3 pessoas, incluindo um intérprete especial do balanta ( ... ). Chegámos a um lugar totalmente diferente daquele ( ... ) que eu tinha em mente, terreno plano ( ... ) arroz por todos os lados ( a minha cabeça começou em funcionamento como se estivesse a jogar xadrez com o padrinho e tivesse perdido a raínha, as torres e os bispos todos sem que o adversário sofresse nada e chegou o momento da pergunta, «Como será possível que estas pessoas passem tanta fome com tanto arroz semeado?» Veio logo o xeque-mate. «Não vês que esse arroz depois de cortado vai para Bissau e aí é consumido ( ... ) o que chega aqui é um tudo de nada que mal chega para a cova de um dente?» ( ... ) e calei-me, pois com o xeque- mate não há nada a fazer).
A tabanca estava quase vazia, só duas criancinhas mal sabiam o que era a vida é que estavam cá fora a brincar (o resto estava tudo na bolanha) mal tentamos aproximar-nos destas, sumiram-se logo ( ... ) Não havia nada a fazer senão esperar ( ... ).
( ... ) começam a chegar pessoas da bolanha (o meu coração aumentava cada vez mais enquanto o seu batimento era triplicado), esqueci-me de referir que as pessoas de ( ... ) se tinham refugiado no Senegal, a maioria delas, lá ao fundo uma velhinha ( ... ) vem calmamente andando com o seu cesto de encomendas à cabeça, chega junto de nós, pára e calmamente põe o cesto no chão e a primeira coisa em que ela põe o sentido é em mim, olha-me dos pés à cabeça, de trás e de frente enquanto eu me limitava a seguir os seus gestos até que chega um momento e o intérprete lhe pergunta em balanta:
- A senhora (mulher-grande) foi quem perdeu um filho?
- Fui.
- E como o perdeu, em que lugar, como era ele, em que altura foi?
Respondeu ( ... ) igual ao que está escrito atrás.
- Acredita que ele está vivo? ( ... )
A mulher grande baixou a cabeça chorando que nem uma perdida e respondeu não, um não de raiva, ele está morto e mesmo se ele estiver vivo nunca voltará aqui ( ... ) o pessoal da tabanca juntou-se todo à nossa roda, escutando com atenção o que se estava a passar, chorando também. No meio ( ... ) estava uma jovem, olhos castanhos, orelha furada do lado esquerdo, a mesma cicatriz e do mesmo lado, cor igual à minha ( ... ) de nome FULÔ ( ... ), e que a mulher-grande dizia ( ... ) era a minha única irmã, era autenticamente o meu retrato ( ... ).
Para acalmar os choros todos o intérprete disse que o tal rapaz era eu, euforia por parte da Fulô que se lança aos meus braços, beijando-me e abraçando-me com toda a sua força ( ... ) a mulher grande dançava, pulava, gritava, enfim foi uma tarde triste-alegre.
As pessoas juntaram-se todas à minha volta e levaram-me ( ... ). ( ... ) diziam que é o meu pai, que estava de cama (doente), este saltou da cama abraçou-me beijou-me até nunca mais parar. Queriam matar galinhas, porcos, ( ... ), enfim manga de coisas, falavam sempre comigo em balanta mas eu limitava-me a abanar a cabeça, eu disse-lhes que não podia ser, ( ... ). ( ... ) era muito tarde e a visita era curta e que ficaria para outro dia, comprenderam e guardaram tudo para Dezembro ( ... ) para eu não faltar em Dezembro.
Regressamos ( ... ), queriam que levasse um porco para Bissau mas era grande de mais ( ... ).

Quase um mês após este encontro, JM volta a falar dele e a relatar algumas cenas com mais pormenores, aflorando algo que o está a incomodar e que é o grau de emoção sentida, que sente muito abaixo do nível que tinha imaginado:
Bissau, 28/9/78
( ... ) Não tenho a certeza se a carta que lhes escrevi ( 1/9/78) irá aí parar ( ... ) mas vou-lhes relembrar ( ... ) passagens de interesse que nela iam.
Desde o primeiro dia que cheguei à Guiné-Bissau, perguntavam-me sempre pela minha família! a resposta era sempre estão mortos. Eles estão vivos e tu é que não os conheces (diziam-me).
( ... ) há uns dias atrás um ( ... ) de Bissorã ( ... ) descobriu uma família reduzida a três pessoas ( pai, mãe e filha ), faltando um filho que essa família dizia que tinha ido para Portugal levado por um soldado ( ... ) se ele estivesse vivo nunca mais voltaria ( ... ) por várias razões, condições melhores, com 4 anos já não se lembra nada da família ( ... ).
Então num fim de semana do mês passado fomos certificar-nos ( ... ) eu poderia pertencer a essa tal família ( ... ).( ... ) A mulher-grande da família foi interrogada em balanta por um intérprete ( ... )
- Qual o nome do seu filho que perdeu? R: - ADILAN ( ... )
- Em que ano o perdeu? R: – Em 1966.
- Idade que tinha quando o perdeu? R: – 4 anos.
- Que sinais tinha? R: – Um corte nas costas, quando lhe estava a cortar o cabelo caiu-me a faca, ( ... ) lado esquerdo orelha furada, olhos castanhos, um pouco gago ( ... ) sinal do lado direito marca dos meus filhos.
E baixou a cabeça chorando e dizendo: Ele nunca mais voltará... nunca mais voltará... um filho é uma fortuna que uma mãe nunca poderá perder mas eu perdi o meu... (...).
( ...) apresentado a essa família que sem perder um mínimo de tempo se lançou aos meus braços dizendo que eu era o seu filho . Será verdade pelas interrogações feitas e pelas respostas dadas, mas o meu coração não se inclina a aceitar por enquanto esta nova família, porque será? Esta é para vocês me darem a resposta o mais urgente possível. S.F.F. não se esqueçam.
Mas dentro desta família houve uma pessoa que me confundiu muito a cabeça, a tal filhinha de cor mulata, olhos castanhos, lábios finos, sinal do lado direito da cara, uma só orelha furada do lado esquerdo ( ... ) diziam que ela era realmente o meu retrato e devia sem dúvida ser a minha própria irmã, eu acredito que seja , não só pelas suas características serem idênticas às minhas mas também pela reacção quando me abraçou: ADILAN, ÉS TU PRÓPRIO O MEU IRMÃO! ADILAN, FALA! ( ... ). Eu não podia fazer nada senão limitar-me a fechar a boca porque não só o meu coração não se inclinava para o sim mas também residia e ainda reside a incerteza em mim.
Depois de um grande choro e lágrimas por todos os cantos veio ( ... ), canções de alegria, palavras de carinho, ( ... ) uma farra que não foi grande farra pelo meu coração não o querer e não sentir ainda aquele amor que devia sentir pela família ( ... ).

Fiquei preocupado com os problemas de índole afetiva que surgiram ao JM, ao encontrar seus pais e irmã, e não demorei a responder-lhe. Se bem me lembro, a minha resposta é um derramar de afetividade mas também leva como que um pedido de desculpas da minha parte, por me ver o causador de tais problemas. A contra-resposta aparece já um pouco fora de tempo (mais de três meses depois) e, surpresa, é muito agradável para mim, um alívio, um “docinho”.
Bissau, 6/2/79

( ... ) Na frase seguinte, o padrinho diz: “ se achas que eu teria feito melhor deixando-te pelo Oio, não me recrimines. Perdoa lá. Não foi com más intenções ( ... )”. Esta frase, apesar de ser optativa, deixou-me um pouco aborrecido, o que seria agora de mim se eu tivesse ficado no Oio? Estava agora vivo? Seria um Adilan vestido com calças e camisa? Seria um rapaz sentado numa secretária? ( ... ) a melhor coisa que fez, e agradeço-lhe por isso, foi levar-me como menino e trazer-me como homem, muito obrigado padrinho (as boas intenções nunca se recriminam). ( ... )

Mas o problema continua por resolver, mais de um ano depois:
Bissau, 1/5/80

( ... ) pois o problema trata-se da família. Família essa que dentro de mim não a sinto ainda (não sei porquê ) como verdadeira minha família e que neste momento me está trazendo várias complicações ( ... ) quer que eu siga todos os seus costumes, religião, que faça juntamente com eles os seus festejos (comprando vacas e porcos) e tradições ( fanado, chôro e demais coisas existentes nestas tradições ) e que finalmente case com a mulher que eles entenderem que devo casar, ( ... ) até a este momento não chegamos a um entendimento, o que pensarão vocês acerca deste assunto? (queria que me dessem uma opinião, se possível na próxima carta). ( ... )

O padrinho, eu, bem tenta entrar nestes problemas, dá os conselhos comuns e começa a vislumbrar o caso como difícil. Confia no tempo e aposta na desdramatização. Mas, perante o tipo de incompatibilidades surgidas, o que se prenuncia é o afastamento emocional da família pois a distância cultural é muito grande para haver hipóteses de aproximação funcional e afetiva entre estes dois mundos.
E o tempo foi passando, assim.
Bissau, 13/1/81
( ... ) Quanto à minha família tudo continua como dantes, as dúvidas persistem, até quando? Eu propriamente não sei explicar-vos porquê mas não consigo, mesmo que queira, considerá-los como um verdadeiro filho considera os seus pais e os estima verdadeiramente, eu não consigo adaptar-me e como farei, padrinho?

Bissau,17/3/81

( ... ) O amor de um filho pelos pais não existe ainda em mim ( na Guiné ). ( ... ) para mim esse amor existe e existirá sempre em Lisboa. Não quer isto dizer que eu nego os meus parentes, nada disso ( ... ). ( ... )

De vez em quando aparecem as saudades de Portugal (um contra-peso ?).
Bissau, 19/10/81
( ... ) Quando falam no nome de Casal Novo sinto uma coisa dentro do meu coração, recordar esta bela aldeia, as suas gentes, a amabilidade desta pequena povoação, enfim um paraíso para não esquecer nunca mais - ali nasceu e cresceu a infância de um pretinho de nome ( ... ) - obrigado CASAL NOVO, obrigado madrinha PIEDADE, padrinho ZÉ BISPO, ti JQUINA e ti MANEL, ti SANTIEIRA e ti RAINHO, mas não perdi a esperança de um dia poder voltar a essa belíssima aldeia... não perdi a esperança ( ... ).
Uma das últimas vezes em que se refere ao tema, que o tempo parece estar a resolver, aborda mais uma vez a aldeia da sua infância:

Bissau, 25/1/82
( ... ) A família continua a ser um caso cheio de casos ( ... ), continuo com aquele pensar que sempre tive desde a infância, que não tenho família e que ela morreu na guerra ( ... ) e, como não poderia deixar de ser, continuo a pensar cada vez mais em vocês, e no Casal Novo, ninguém me tira ou tirará esta ideia ( ... ).( ... )
E o tempo, em vez de consolidar os vínculos com a família natural e com a tabanca natal, vai os desvanecendo e, em contrapartida, vai fortalecendo a ligação afetiva com a família portuguesa e com a aldeia da sua meninice. Nota-se alguma emoção no relembrar o Casal Novo e seus habitantes.

Bissau, 29 de Setembro de 1983
( ... ) Essas belíssimas férias como foram passadas? Foram até ao Casal Novo? Falando daquela terra, as saudades são imensas, lembro-me ( ... ) a ajudar a madrinha no corte do milho, na apanha da azeitona por aqueles cerrados abaixo, encostas e ladeiras, aquele amor que os vizinhos tinham por mim, enfim lembro-me sempre do Casal Novo e da sua gente, daqui um abraço para eles todos, dêem-lho por minha conta e digam-lhes que ainda estou vivo e não perdi a esperança de ir visitá-los, era este ano mas gorou-se, penso que será para o ano. ( ... )
Não foi “para o ano”, como ele pensava. O ansiado encontro só se concretizou sete anos depois.
FIM
Sintra, Outubro de 2010
Um abraço,
Manuel Joaquim
Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419 do BCAÇ 1857
Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2010). Direitos reservados.
Fotos: © Manuel Joaquim (2010). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

10 de Novembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7261: História de vida (32): Adilan, nha minino. Ou como se fica com um menino nos braços - 1ª Parte (Manuel Joaquim)


Guiné 63/74 - P7266: (In)citações (19): Africanização da guerra, tema para um colóquio a organizar pela Tabanca Grande, e pretexto para a efectiva reconciliação nacional (Nelson Herbert)

Guiné > Zona leste > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Uma coluna logística Bambadinca-Mansambo-Xitole... Em segundo plano, de pé, do lado esquerdo, vê-se o Cap Inf Carlos Brito... (a seu lado, o Fur Mil At Inf, José Luís Sousa, o nosso único madeirense). Em terceiro plano, é fácil de observar uma vitura civil, de cor vemelha, uma das muitas que se costumava alugar para transportar mantimentos e armamento e que eram enquadradas por viaturas militares e por tropas (em geral, da CCAÇ 12)... Quando chegámos a Contuboel , em Junho de 1969, os 100 soldados (operacionais), que integraram a CCAÇ 12 (na altura ainda, CCAÇ 2590), não falavam português... E o único soldado arvorado que chegou a 1º Cabo, ainda em 2009, foi o José Carlos Suleimane Baldé, o dedicadíssimo e delicadíssimo José Carlos, uma joia de rapaz,  com quem lidei bastante (era meu secretário particular, intérprete, cozinheiro, guarda-costas, e sobretudo amigo e camarada).  Tem hoje duas mulheres e deve andar perto dos 60 anos. Gostava muito de vir a Portugal. Não sei a sua história de vida, depois da independência. Vive em Amedalai, perto do Xime. Sei que o Beja Santos vai lá estar, para passat um bocado com alguns dos seus soldados do Pel Caç Nat 52 (1968/70). Oxalá o José Carlos consiga falar-lhe!

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados.


1. Comentário, com data de hoje, de Nelson Herbert ao poste P7253:

"Pessoalmente, fui sempre crítico, no meu círculo de relações (a CCAÇ 12), da 'africanização' da guerra colonial. Sabia que mais tarde ou mais cedo iria conduzir a uma tragédia..."

E o presságio, meu caro Luis Graca, infelizmente se vai confirmando na nossa Guiné!!!

Numa outra latitude, as consequências arrasadoras da "indigenização" da guerra não foram de todo distintas das experimentadas na Guiné!

"The Hmong, a Laotian tribal people, secretly aided the U.S. military during the Vietnam War. After South Vietnam fell and the war ended, the Hmong (pronounced "mung") who had worked with U.S. troops feared that the communist Vietnamese and Laotians would persecute them.The Hmong began coming to the United States in 1976"  # *

Os "Mung" e seus descendentes constituem hoje praticamente o grosso da comunidade vietnamita nos  EUA.

Coincidências à parte, o certo é que na hora da debandada... também os Estados Unidos foram impotentes na dissuasão ou contenção de irracionalismos e ódios latentes a cenários de guerra ...

Por conseguinte, meu caro Luis, esta sua sábia constatação tem tudo para servir de mote a um debate bem mais abrangente desta problemática ... Um debate que independentemente das emoções e ressentimentos que possa ainda suscitar ...anime uma abordagem,  a todos os niveis, das consequências (num e noutro lado) da africanização da guerra ...

Quiçá um tema para um colóquio (um contributo à reconciliação dos guineenses) promovido pelo blogue?!

Qual indelével "nódoa" na história recente daquele conturbado país, o impacto da "africanização" da guerra na Guiné se impõe ainda hoje, transversal a geraçõoes de guineenses !   Prova disso temo-lo num áspero e irado dialogo animado em tempos num blogue por dois jovens guineenses, por sinal orfãos... de trincheiras desavindas de um mesmo conflito...

O primeiro, herdeiro de um soldado comando africano fuzilado no dealbar da independência da Guiné, o segundo, alegadamente vitima de uma incursão dessa tropa de recrutamento local a uma base do PAIGC...

Mantenhas

Nelson Herbert (**)
Washington DC
USA
___________

# In Catholic Diocese of Green Bay's Catholic Charities Resettlement and Immigration Services, Wat Tham Krabok Assessment Team Report; Migration Policy Institute

______________

Notas de L.G.

(*) Tradução inglês / português:

"Os Hmong, minoria étnica [do sudoeste asiático,  Laos, Tailândia, Vietname, China...],  ajudaram  secretament os militares norte-americanos durante a Guerra do Vietname.  Após a queda do regime do Vietname do Sul  e com o fim da guerra,  os Hmong (pronuncie-se 'mung') que haviam trabalhado com as tropas dos EUA,  temerem que os comunistas, vietnamitas e laocianos, os viessem a perseguir. Daí terem começado a emigrar para os Estados Unidos em 1976".

(**) Vd. poste de 9 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7252: (In)citações (23): Branco, na volta! Branco, na volta!, repetia a Fatemá em 2005... Com a sua morte perde-se um elo de ligação com os portugueses que passaram pelo regulado de Contabane (José Teixeira)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7265: Estórias do Juvenal Amado (32): Carne para o quartel

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 10 de Novembro de 2010:

Caros Luís, Carlos, Briote, Maglhães e restantes atabancados
Uma pequena estória sobre as qualidades alimentares de Galomaro.

Até ali nunca tinha visto o bife ainda com patas.
Juvenal Amado


Estórias do Juvenal Amado (32)

A CARNE PARA O QUARTEL

Ao serem içados, os touros urravam, em pânico, abrindo muito as unhas e pondo-se a nadar no ar, por cima das nossas cabeças.
Nunca a vida lhe mostrara uma tão perfeita imagem do terror, sobre o abismo: os bois esticavam as patas, ameaçavam alar-se e sacudiam o corpo. E os olhos já de si globulosos, luziam dum volume metálico, ainda mais frios que dantes.
Trecho do Livro GENTE FELIZ COM LÁGRIMAS de João Melo

O camarada José da Câmara falou de um episódio motivado pela necessidade de comprar gado de abate para o quartel. Nesse seu poste fala da pena, que os donos do gado sentiam quando o viam partir, traçando um paralelo entre ali e o que se passava na sua ilha, onde muitas vezes viu o gado ser exportado para Lisboa. Eram visíveis os mesmos sentimentos de perda nos olhos da pobre gente, que via assim o produto do seu trabalho, partir para um destino inexorável e sem outro possível futuro.

Também me lembrei de um tio meu, grande amante de carne de vaca, que resolveu criar uma para abater, encher a arca e assim saciar-se desse pitéu, quando lhe apetecesse.

Criou o animal, que se habituou a que ele fosse ao pé dele coçá-lo quando vinha da fazenda. O animal chamava-o e ele ia ao pé dele coçava-o e falava com ele. O resultado desta relação foi ter que o vender, pois não podia pensar em matá-lo e comê-lo.
Quem o conhecia, dificilmente esperaria uma atitude como a que tomou.

Mas a respeito de vacas, fui uma vez encarregue de ir buscar carne para o quartel de Galomaro.
Cheguei cedo ao local e comigo ia o Esteves e o Risinho*, cozinheiros, especialistas em Estilhaços com Bianda ao Chef, que eram servidos no restaurante Morte Lenta, senão ao almoço decerto ao jantar. Um prato tão afamado, que me fez estar muito tempo sem comer arroz fosse com o que fosse.

Era enorme a azáfama onde se misturavam as vestes tradicionais fulas com panos de cores várias, onde pontificavam rostos como o do Sekoturé e outros nacionalistas africanos, denunciando assim a proveniência dos tecidos como sendo da Guiné Conakri.

Pensava eu que já estaria a carne à nossa espera.
Engano meu, pois a vaca ou boi, pormenor que não me recordo agora, estava em pé aparentemente não desconfiando do que a esperava ainda.

De repente, num grande alarido o animal é deitado ao chão, atam-lhe as quatro patas num feixe e os olhos quase lhe saem das órbitas com o terror.
Seguidamente a cabeça, é lhe torcida até ficar com os cornos espetados no chão, obrigando o pescoço do animal a arquear sobre a pressão que um ajudante em peso, exerce sobre o queixo.
Não quero olhar mas não consigo desviar os olhos.

O magarefe aproxima-se com uma catana e o pescoço do animal é serrado em movimentos horizontais, primeiro a pele, depois a carne, as artérias, as goelas, tudo isto acompanhado de um sofrimento atroz, onde o corpo se contrai e pula de forma violenta mas sem apelo.

Por fim o animal resfolga já completamente degolado, cumpre-se assim a lei Islâmica em que se obriga à degola e sangramento total.
Se ao menos fosse de um golpe só!

Escondo-me atrás da Berliet, estou quase a vomitar.
Nunca mais voltei a presenciar semelhante sacrifício, mas tão depressa não comi carne de vaca e ainda hoje a como com alguma relutância, faço por não me lembrar deste episódio.

(*) O cozinheiro de alcunha o Risinho devia-a ao seu permanente riso causado por uma paralisia facial. Não tenho bem a certeza mas a deficiência adquiriu-a num acidente.
Natural de Setúbal, falava com paixão das caldeiradas de enguias de certa qualidade a que chamava eroses, que se encontram na região.
Faleceu depois do nosso regresso e sendo assim, o seu sorriso permanece eterno na minha memória.
Que esteja em paz.

Juvenal Amado

Na enfermaria com paludismo: o Aljustrel em primeiro plano; Esteves, o afamado cozinheiro, à direita. Eu estou ao fundo.

Mantimentos frescos

Mantimentos frescos prestes a esborracharem-se no chão
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7242: Blogpoesia (84): Por vezes... Regresso lá (Juvenal Amado)

Vd. último poste da série de 18 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7005: Estórias do Juvenal Amado (31): Desse amor ficou só a nostalgia daquela idade

Guiné 63/74 - P7264: Blogpoesia (86): Alentejo, terra mãe (Felismina Costa)

1. Mensagem da nossa tertuliana Felismina Costa* com data de 7 de Novembro de 2010:

Boa noite Editor e Amigo Carlos Vinhal
Resolvi enviar um poema sobre o Alentejo, que se integra perfeitamente nesta altura do ano, em que se lança a semente à terra.
Se achar que deve publicar, é mais uma homenagem à terra que me criou.
Felismina Costa


Alentejo Terra Mãe

Terra mãe... nua, nesta época.
Terra, apenas lavrada... esperando a semente!
Terra amanhada pela mão do homem que te ama
Terra amada
Mãe da gente!...
Na dobragem estética do teu perfil perfeito
(mais alta, mais baixa)
Na cor.
Mais castanha, mais rosada, mais vermelha.
(No degradê até, de cores e alturas),
Tudo é luminoso!
Insultante de tão perfeito!...
Quem pode competir contigo?
Tu, que estas sempre linda todo o ano?..
Eu, queria como tu, brilhar à luz do sol!
Ser uma canção de embalar.
Uma música de encantar.
Um poema!
Terra da minha ternura.
Alentejana terra da lonjura
Onde sempre me senti em casa.
Cada pedra e cada tom
São tão perfeitos!
Cada som tão sublime!
A tua voz, é um afago.
É um lago
Onde brilham sem cessar
As estrelas cintilantes
E o luar!...


Agualva, 12 de Abril de 2006
Felismina Costa
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7166: Blogoterapia (163): Recordações da infância (Felismina Costa)

Vd. último poste da série de 11 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7263: Blogpoesia (85): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (8) (Manuel Maia)

Guiné 63/74 - P7263: Blogpoesia (85): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (8) (Manuel Maia)

QUISERA EU... (8)

Por Manuel Maia*

Quisera ter regresso à mocidade,
e ver com outros olhos realidade,
do mundo de mudanças tão tardias...
Quisera analisar com atenção
a fauna e flora belas, mesmo à mão,
sem medos nem cautelas doentias...


Quisera na Guiné ver finalmente,
projecto dum futuro bem presente,
rasgando, par em par, os horizontes...
Aposta no Turismo e Agricultura,
transformaria a míngua em fartura,
servindo `inda outras áreas como pontes...


Quisera no país ver um processo,
capaz e retumbante de sucesso,
motor de arranque a impor o tal sistema...
Turismo e Agricultura, já vos disse,
assim mundo quisesse e permitisse
Guinéu viver aspiração suprema...


Já chega de intestinas vãs disputas,
de caos, destruição, fraternas lutas,
espaço à intolerância é já nenhum...
P`la guerra hipotecado não avança...
país que se quer rumo à abastança
carece sim de opção p`lo bem comum...


E essa opção aponta um só sentido
o dar de mãos, fazer país unido,
gerir, correctamente, a aposta certa...
Na Educação, sucesso a base assenta,
com formação, processo se apresenta,
e um novo sentimento então desperta...


É urgente, é necessário e expectável,
premente, obrigatório, indispensável,
o acordar dum povo adormecido...
A instrução e o pão, fundamentais,
(a insistência aqui nunca é demais...)
impondo ao dirigente, o dirigido...


Quisera cumprir sonho que acalento
p`ra estar lá no Saltinho o tal momento,
de ver apregoado macaréu...
Perder-me em pensamento no remanso,
das águas de bolanha no descanso,
olhar as aves, contemplar o céu...


Quisera eu reviver caça à gazela,
em noite bréu ver silhueta bela
escapulir por entre o arvoredo...
Aos tiros disparados pelo Ginja,
sem que nenhum sequer a peça atinja,
seguiu-se a angústia, a dúvida, o medo...


A zona era onde o IN circulava,
a cada vez que a tropa atacava,
flagelação intensa, intimidante...
naquele dia a sorte foi presente,
p`raquela meia dúzia "inconsciente",
alferes, sargentos, mesmo o comandante...

__________

Notas de CV:

(*) Manuel Maia foi Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74.

Vd. poste de 18 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6868: Blogpoesia (80): Saudades daquele tempo, ou Quisera eu... (7) (Manuel Maia)

Vd. último poste da série de 8 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7242: Blogpoesia (84): Por vezes... Regresso lá (Juvenal Amado)

Guiné 63/74 - P7262: Estranha Noiva de Guerra, romance de Armor Pires Mota (1): Apresentação em Lisboa, 10/11/2010, na A25A (Parte I)


Lisboa > Sede nacional da Associação 25 de Abril (A25A) > 10 de Novembro de 2010 >  Apresentação do romance Estranha Noiva de Guerra (1ª ed, 1995), agora em 2ª edição, na Âncora Editora (2010, 151 pp.). Neste vídeo, Beja Santos lê excertos do romance (pp. 93/94), obra que ele considera uma obra-prima da literatura da guerra colonial e que,  inexplicavelmente, terá passado despercebida da crítica em 1995.  Num gesto nobre de Armor Pires Mota, os  direitos de autor desta edição revertem a favor dos Centros de Apoio à Inclusão Social, da Liga dos Combatentes. O preço de capa é 16 €.

'Estranha Noiva de Guerra' é a história de Bravo Elias, "um furriel que combate na Região do Morés.  Com ele segue Júlio Perdiz, um morto em combate que não será abandonado em campo de batalha (...). É nisto que surge nesta terra de ninguém uma rapariga dizendo: 'Mim ajuda branco, mim vai ajuda branco'. Chama-se Mariama e promete levá-los até Mansabá (...). Aqueles dois seres humanos levam a padiola do Perdiz, seguem esgotdaos, correndo todos os riscos, atravessando bolanhas fétidas, sujeitos a todas as inclemências da natureza (...).  A paixão entre Mariama e Elias desperta. Passa-se  pela região de Lala Samba, os jagudis voltam a atacar o finado, arrancam-lhe  os olhos, metade de uma orelha, o nariz. Aos tombos chegam a Cumbijã Sare, lavam o que resta do Perdiz. (...). A trama ganha novos contornos com a chegada de dois guerrilheiros (...) Segue-se um ataque a Mansabá, uma descrição como nunca encontrei na literatura da guerra colonial: o vigor da encenação, os sons, as imagens de sofrimento, as águas fores das correrias e dos rodopios. Duarnte o ataque os dois jovens guerrilherios do Morés matam Mariama. O apocalipse prossegue (...).  (Do prefácio de Beja Santos, pp. 11/12).


Vídeo (3' 12''): © Luís Graça (2010).Alojado em You Tube > Nhabijoes



O Rotary Clube de Oliveira do Bairro prestou o ano passado, em 9 de Maio, uma justa  homenagem ao escritor e jornalista Armor Pires Mota, que completou 50 anos de actividade literária.  Do jornal Soberania do Povo, de 6 de Maio de 2009 (completado por outras fontes na Net), seleccionamos algumas notas biobliográficas deste nosso camarada:


(i) Armor Pires Mota nasceu a 4 de Setembro de 1939, em Águas Boas, Freguesia de Oiã, concelho de Oliveira do Bairro;

(ii)  Estudou teologia, no Seminário de Aveiro, curso que abandonou em 1961;

(iii) Em 1960 editou o seu primeiro livro, Cidade Perdida;  

(iv) Ainda no seminário, dirigiu a Revista Semente;  publica igualmente poesias em jornais da região  (Jornal da Bairrada, Correio do Vouga e Soberania do Povo);



(v) Foi alferes miliciano, na Guiné (CCAV 488, 1965/67), com actividdae operacional na Ilha do Como e na  Região do Oio;

(vi) Durante a asua comissão foi publicando um diário de guerra no Jornal da Bairrada;

(vii) Essas crónicas foram depois, em 1965,  editadas em livro,  O Tarrafo;

(viii) Pouco tempo, a ex-PIDE proibiu o livro que tinha cruas descrições de guerra (napalm, bombardeamentos, combates, mutilações...);

(ix) Foi editor de Soberania do Povo em 1970 (num período de rejuvenescimento editorial, na época marcelista), saindo em 1973 e regressando em 1988;

(x) Publicou uma série de crónicas sobre as arbitrariedades dos Serviços Florestais, que deu origem ao livro O Préstimo a Caminho de Lisboa (1971);

(xi) Em 1974, tornou-se pequeno empresário, com a criação de um  empresa na Palhaça (Alferpa); em 1980, com o mesmo sócio e o encarregado geral, fundou a Trougal;

(xii) Continuou sempre a escrever... Dos seus livros do Ciclo de Guerra, cite-se:  Baga-Baga (poesia, Prémio Camilo Pessanha, em 1968), Guiné Sol e Sangue (1968, contos e narrativas), Tarrafo (crónicas vivas da guerra) (2ª ed., 1970),  O tempo em que se mata, o mesmo em que se morre (1974, poesia),  Cabo Donato Pastor de Raparigas (1991, contos), Estranha Noiva de Guerra (1ª ed., 1995;  2ª ed., 2010) e A Cubana que dançava flamenco (2008) (estes dois últimos romances);

(xiii) Foi chefe de redacção da revista Itinerário (Coimbra) e colaborou na Observador e na Panorama. Tem ainda colaboração no Jornal de Notícias, O Primeiro de Janeiro e outros.

(xiv) Dedicou-se à também investigação histórica e à escrita de monografias (a que ele chama o Ciclo da Terra); escreveu livros de poesia e de vivências bairradinas; tem vários inéditos para publicar e figura em quatro antologias: Contos Portugueses do Ultramar, Corpo da Pátria , Vestiram-se os poetas de soldadosEscritas e Escritores da Bairrada;

(xv) Está também no Dicionário dos Escritores e Poetas Luso-Galaicos e no VI Volume do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, organizado pelo IPLB; o número de livros publicados,  repartidos enter o Ciclod a Guerra e o Ciclo da Terra, ultrapassam já as 3 dezenas;

(xv) É sócio da Associação Portuguesa de Escritores e sócio-fundador da Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada (AJEB). A Câmara Municipal de Oliveira do Bairro atribuiu-lhe, em 2001, a Medalha de Mérito Cultural.

(xvi) É um homem simples e solidário, que ama e ajuda a sua terra e os seus conterrâneos: Foi fundador do Grupo Desportivo e da Associação de Melhoramentos de Águas Boas, exerceu cargos na Comissão de Melhoramentos e Centro Social de Oiã, fez parte da Comissão Fabriqueira de Oiã e da Comissão de Obras da Capela de Águas Boas.




O Beja Santos (à esquerda) prefaciou e apresentou a obra...


Aspecto da mesa, presidida pelo dono da casa, Ten Cor Ref Vasco Lourenço...

Lisboa > Rua da Misericórdia nº 95 > Sede nacional da Associação 25 de Abril (A25A)  > 10 de Novembro de 2010 >18h30: Apresentação do romance de Armor Pires Mota, Estranha Noiva de Guerra, 2ª ed. (Âncora Editora, 2010, 151 pp.; Col  Guerra Colonial. Preço de capa: c. 15 €. A primeira edição é de 1995, Editorial Notícias)

Na mesa, presidida por Vasco Lourenço, pode ver-se da esquerda para a direita: (i) Beja Santos (apresentador da obra,  escritor, membro da nossa Tabanca Grande, em véspera de partir para a Guiné,  em "romagem de saudade"); (ii) Armor Pires Mota, o autor, ex-Alf Mil da CCAV 488, Mansabá, ilha do Como, Bissorã e Jumbembem, 1963/65 (*); (iii) Vasco Lourenço, presidente da A25A; (iv) Baptista Lopes, o editor (Âncora); e (v) Serafim Lobato, antigo fuzileiro, jornalista e agora responsável pela Colecção Guerra Colonial, da Âncora Editora .

Assistiram à sessão mais de 4 dezenas de pessoas, quase todos eles antigos combatentes, mas também amigos e familiares do Amor Pires Mota, "gente da Bairrada" que vive em Lisboa... Reconheci, entre outros, o Manuel Barão Cunha, coronel na reforma, DFA, escritor, autor de Tempo Africano (4ª ed., 2010); José Talhadas, antigo fuzileiro, autor de Memórias de um Guerreiro Colonial; os membros do nosso blogue Humberto Reis, José Martins, Belarmino Sardinha, Belmiro Tavares e Carlos Silva (além de eu próprio e o Beja Santos)...

Tive o prazer de conhecer pessoalmente o autor de Tarrafo, Armor Pires Mota, a quem voltei a endereçar o meu convite para integrar a Tabanca Grande, bem como o Serafim Lobato, com quem já em tempos havia trocado e-mails, e de quem já publicámos um ou dois postes.

(Continua)

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Nota de L.G.:

(*)  CCAV 488: Mobilizada pelo RC 3, partiu para a Guíné em 17/7/1963 e regressou a 12/8/1965. Esteve em Bissau, Ilha do Como, Jumbembém e Bissau. Comandantes: Cap Cav Fernando Manuel Lopes Ferreira; Cap Cav Manuel Correia Arrabaça; Ten Cav Lourenço de Carvalho Fernandes Tomás. Pertencia ao BCAV 490 ( (Bissau, Ilha do Como e Farim, 1963/65), comandado pelo Ten Cor Cav  Fernando José Pereira Marques Cavaleiro. Restantes companhias:  CCAV 487 (Bissau, Ilha do Como, Farim, Bissau); CCAV 489 (Bissau, Mansabá, Ilha do Como, Cuntima, Bissau).