Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
1. O "Sintra", ou seja, o nosso camarada e grã-tabanqueiro Joaquim [Nunes] Sequeira, "não brinca em serviço"... Onde se mete é para valer... O seu CV é curto e grosso:
"Comecei a Trabalhar aos 10 anos e ainda não parei em escola da vida; andei na Escola Secundária de Santa Maria - Portela de Sintra"; vive em (e é natural de) Mucifal, Sintra; é casado; foi 1º cabo canalizador, BENG 447, Bissau, 1965/67; frequenta com assiduidade a Tabanca da Linha; é membro. nº 608, da nossa Tabanca Grande desde 8/3/2013; é 1º vogal da direção do Núcelo de Sintra da Liga dos Combartentes, e o seu porta-estandarte...
Ao serviço do BENG 447, conheceu meia Guiné: Pelundo, Nhacra, Mansoa, Cutia, Mansabá, K3, Farim, Binta, Lamel, Jumbembem, Canjambari, Bambadinca, Cuntima, Bafatá, Nova Lamego, São João, Bolama, Jabadá, Tite, Enxudé, Fulacunda, Ilha das Galinhas, Ilha das Cobras, Nova Sintra, Olossato, e Bissorã...
Mandou-me há dias uma mensagem, com votos natalícios: "Luis graça, vai a foto para publicar no blogue, um abraço para toda a malta".
"Primeiro uma explicação, o aerograma foi para ver se há mais companheiros que tenham outros pois até hoje só vi este que guardo religiosamente e que me foi enviado por um conterrâneo da Força Aérea que já não está entre nós. Transcrição do teor do aerograma:
"Bissalanca, 27 dez 65
Caro amigo:
Com os meus votos de felicidades, quero-lhe participar que já tenho em meu poder a encomenda que fez o favor de trazer de Colares [, Sintra].
Terei muito prazet em conversar consigo, mas não sei onde está, pois ignoro onde é o SPM 1588, mas se for perto [?] de Bissau, escreva-me para saber como está. Todas as 3ªs, 5ªs, sábados e domingos estou à noite no Café Universal.
Até breve, Teves Costa."
Folha de rosto do aerograma enviado ao 1º cabo Joaquim Nunes Sequeira, [BENG 447, Bissau]. SPM 1588, pelo 1º sargentyo MMA (?), Teves Costa (?), [BA 12, Bissalanca], SPM 0078 (?).
Vídeo (1' 41'').- Alojado em You Tube > Luís Graça
São Martinho do Porto > "Casa do Cruzeiro" na estrada do Facho > Almoço-convívio. 7 de Agosto de 2008.> Anfiriões Clara Schwarz da Silva (1915-2016) e seu filho Carlos Schwarz da Silva, "Pepito" (1949-2014)... Violinista: João Graça, executando um, "freylach". Homenagem às raízes judaicas, polacas e russas, da anfitriã (que nasceu em Lisboa, em 1915)... Tratou-se de um trecho de música klzemer, a música tradicional dos judeus da Europa de leste, os asquenazes. Na imagem, o Pepito aparece à esquerda, de pé, e a sua mãe, então com 93 anos, à direita, sentada.
Vídeo carregado no You Tube em 07/08/2008, com a devida autorização ao artista...que é membro da nossa Tabanca Grande desde pelo menos 2011 (, tendo, cerca de uma centena de referências no nosso blogue). É cofundador e membro, desde 2006, do grupo Melech Mechaya.
O João Graça, que por razões profissionais não pôde despedir-se da sua amiga, por quem tinha grande estima e admiração, pede-nos para publicar este vídeo, mesmo antigo e gravado ao ar livre, em condições precárias, como homenagem derradeira, por sua parte, à dona Clara que, também ela cursara, como ele, o Conservatório Nacional de Música de Lisboa e tocava violino, o seu instrumento preferido. (LG)
Foto nº 1
Foto nº 1A> > Crematório de Barcarena, Oeiras > 14 de dezembro de 2016 > 15h32 > Funeral de Clara Schwarz (1915-2016) > O arco-íris e o seu forte simbolismo para os seres humanos: na foto nº 1, é difícil distinguir a sequência das 7 cores do espectro solar, mas aqui (foto nº 1A) pode identificar-se melhor ou pior o vermelho, o laranja, o amarelo, o verde, o azul, o índigo (ou anil) e o violeta (ou roxo).
É um arco-íris de homenagem à nossa amiga e decana da Tabanca Grande, uma homenagem a um vida que atravessou dois séculos e que, por onde passou, deixou luz, amor, humor, felicidade, beleza, conhecimento, simpatia, tolerância, amizade...
Foto nº 2 > Crematório de Barcarena, Oeiras > 14 de dezembro de 2016 > Funeral de Clara Schwarz (1915-2016) > A urna, os cravos, a caixinha para as cinzas...Uma imagem que nos vem lembrar a nossa condição humana: "Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris" [Lembra-te, ó homem, que és pó e em pó te tornarás. Fonte: Antigo Testamento, Génesis, 3, 19].
Foi uma cerimómia singela: não éramos mais de meia centena, mas os familiares e amigos vieram de vários pontos, de Bissau, de Paris, de Lisboa (*)...
O João Schwarz da Silva foi o "mestre de cerimónias", discreto, comedido, num ambiente que ainda é estranho para muitos de nós, a antecmara do forno crematório (neste caso, o de Barcarena, Oeiras).
Por vontade expressa da nossa decana, Clara Schwarz, foi uma cerimónia simples, em cima da urna, vários ramos de cravos vermelhos (como a Clara gostava), além da caixa de madeira para guardar as cinzas... Houve depois quatro ou cinco intervenções de familiares e amigos, que quiseram tomar a palavra:
(i) o filho João, e a seu lado, o Henrique;
(ii) a neta Mariana (filha do João, que vive em Paris e que estava emocionadíssima, era também uma neta muito ligada à avó);
(iii) uma afilhada da Clara, cujo nome não retive;
e por fim (v) o editor do nosso blogue, amigo da família...
Alguém fez questão de passar, muito apropriadamente, dois trechos de música, sinfónica e klezmer, de que a Clara muito gostava... E no final depois batemos palmas... à nossa heroína (que ultrapassou a fasquia dos 100 anos), à vida, à saudade, à amizade, ao amor, ao futuro (representado pelas novas gerações a quem compete pegar no "testemunho" dos que partem...)
A família, que não é numerosa, estava lá: os filhos João e Henrique, os netos (a Pepas, o Ivan, a Catarina, do lado do Pepito e da Isabel), a Marina e o Martin (?), do lado do João... Até a última bisneta, a Lara, com escassos meses, filha da Catarina... e a avó Isabel Levy Ribeiro (que regressa, coma a filha e a neta, a Bissau, no princípio de janeiro... porque "a vida continua"!)...
Do lado da Tabanca Grande, além de mim e da Alice, vi (e estive com) o Carlos Silva, o António Estácio, o Eduardo Costa Dias... Conheci mais algumas camaradas, nascidos ou crescidos na Guiné, e que foram alunos da prof Clara Schwarz, no liceu Honório Barrreto (um dos que fixei o nome tem por calcunha o "Manuel Balanta" e é hoje colega, na EDP, do nosso colega Eduardo Magalhães Ribeiro) (**).
A prof Clara Schwarz tinha fama de disciplinadora e os alunos respeitavam-na e temiam-na, mas todos asseguram que foi graças a ela que aprenderam a dominar o francês. Todos me têm falado dela com saudade. Por ocasião do seu 100º aniversário, o nosso camarada Manuel Amante da Rosa, então embaixador de Cabo Verde em Roma, evocava-a nestes termos:
(...) "Cincoenta anos passados e ainda me lembro de como entrou pela primeira vez, altiva e austera, no nosso 1º ano B, com o Bonjour da ordem, pasta em cima da mesa, livro de ponto aberto e caderneta nova, com as nossas fotos, ainda por preencher nos recantos das notas e chamadas orais. Iniciar ela própria a chamada da praxe para nos ir identificando pelo primeiro nome, um sorriso e olhar maternal ocasional para os mais amedrontados dissiparem o respeito que nos incutia.
Não me lembro nunca de ter visto algum aluno a ser expulso das suas aulas ou levar falta de material. Ela teria o dom da disciplina sem ter que castigar. Uma admoestação verbal dela caía fundo porque era dada de frente para o aluno, olhando-lhe bem nos olhos. Muito preocupada sempre com aqueles que sabia serem os mais carenciados e carentes de locais para estudo. Poucos olhares se mantinham fixos nela quando por detrás das lentes procurava um de nós para as chamadas orais.
Durante quatro anos tive o privilégio de a ter como minha Professora de Francês e ao mesmo tempo educadora. Como eram os Professores antigamente. Fui expulso algumas vezes de outras aulas. Éramos irrequietos, jovens e sempre à procura de algo diferente mas nas classes da Clara Silva e mais um ou outro Professor imperava a atenção e a disciplina." (...)
Reencontrei o Rui Miranda e a esposa Isabel Miranda, que trabalham na AD, e que eu conheci em 2008, em Bissau... (Desejo ao Rui boa continuação do tratamento hospitalar a que está a ser sujeito e Lisboa!... Lembro-me do Pepito sempre o tratar, com graça, por "furriel Miranda", já que ele havia servido o... exército colonial!...Também ele foi aluno da prof Clara Schwarz).
Estranha coincidência ou não, foi o mesmo crematório, o de Barcarena, onde o nosso Pepito foi incinerado. N a altura, estranhei, eu e a Alice, ninguém quer dizer uma palavar de despedida, antes da entrada da urna no forno crematório... Provavelmente a família não estava, ali, preparada para dar a palavra a quem que fosse... Aliás, a morte, repentina, do Pepito tinha-nos deixado a todos consternados e sem palavra... Fiquei agora a saber que as suas cinzas foram levadas para Bissau onde o pai, Artur Augusto Silva, morrera, em 1983 e onde fora sepultado.
Transmiti aos presentes, e nomeadamente à família Schwarz, os votos de pesar de toda a Tabanca Grande, pela morte da nossa decana, uma grande senhora que soube viver e morrer com toda a dignidade. E relembrei dois ou três (quadras populares) das que publicámos no nosso blogue por ocasião dos seus aniversários:
(...) Fazer anos, que maçada, Já não tenho, p’ra isso, idade, Mas estou-vos muito obrigada, P'los votos… de eternidade!
Decana, eu ? Ah, pois sou, Com muita honra e prazer! E ao blogue ainda vou, Mesmo sem poder escrever.
Nesta terra querida, Tive mundo, e tive amor, Não me posso queixar da vida, Tive tudo, e também dor. (...)
(...) Há festa no Tabancal,
Os seus anos celebramos De Lisboa ao Corubal, Nossa decana saudamos.
Fez da vida maratona, A nossa grã-tabanqueira, Clara, senhora e dona, É atleta de primeira.
É um mix de culturas A nossa aniversariante, Passou por muitas agruras, Mas foi sempre adiante.
De polaco pai e russa mãe, Tem alma rubra e verde, Apaixonou-se também Por um filho de Cabo Verde.
Artur foi o seu 'cretcheu', Que lhe deu três belos filhos, Pepito é o guinéu, Sempre metido… em sarilhos!
Quem anda, tropeça e cai, Parte braço, mas recomeça, Mais vale dizer ai!, Do que perder… a cabeça! (...)
PS - Ah!, esqueci-me de mencionar a presença da na nossa querida e amiga tabanqueira Júlia Neto, a viúva do nosso saudoso capitão Zé Neto (1929-2007), que me deu notícias das filhas e dos netos... Reencontrei-os na Tabanca de São Martinho do Porto, depois de os ter conhecido no funeral do pai e avô. Fiquei a saber que a Júlia é bisavó... Lembram-se da conversa, aqui, do Zé Neto, o capitão José Neto, o primeiro dos nossos grã-tabanqueiros a deixar-nos ?
Na altura, em 2006, ele era o "patriarca" da nossa tertúlia (ainda não dizíamos Tabanca Grande...). Chegou ao nosso blogue com a seguinte mensagem, que eu adorei, porque vi logo que era um homem de palavra e com sentido de humor, um excelente camarada, para além de amigo do Pepito:
(...) "Meu caro Luis: depois de muito meditar cheguei à conclusão de que, pelo menos tu, mereces a minha confiança para partillhar contigo uma parte 'muito significativa' das memórias da minha vida militar. São trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só 'a matar pretos' enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de família" (...).
Pois é, o nosso Afonso é hoje um respeitável chefe de família e já deu à Júlia um bisneto... A nossa querida, Leonor, a mana do Afonso, por sua vez, tirou comunicação social, trabalhou na TVI, está agora fazer outras coisas e faz companhia à avó...
Uma bela família, também... Gostei de rever a Júlia, mesmo que o sítio e a ocasião não fossem os mais adequados...A Júlia soube da notícia da morte da Clara através do Facebook da Tabanca Grande.
Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250, "Os Unidos de Mampatá" (1972/74) > Um foto aérea de povoação e aquartelamento... A esquerda o heliporto. Era uma tabanca fula, ,logo muçulmana.
Original foto de Canjude, região de Gabu, com votos de Boas Festas, enviada pelo José Martins [ex-fur mil trms, CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70)
Cartão de boas festas do nosso amigo, camarada e grã-tabanquieiro Benjamim Durãe [ex-fur mil op esp, Pel Rec Info, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72); DFA, sempre voluntarioso e generoso, é um homem de causas, tendo sido até há uns anos presidente da direção do Núcleo de Setúbal da Liga dos Combatentes].
Guiné > Zona letse > regiãod e Bafatá > Bambadinca (Setor L1) > CCS/BART 2917 (1970/72) > Época das chuivas, 1970 > O Benjamim Durães no meio do capim da Bolanha de Bambadinca (?)
Guiné > Região de Quínara > Tite > Julho de 1965 > O Santos Oliveira, em pacato passeio pela tabanca
Guiné > Região de Quínara > Tite > Agosto/setembro de 1965 > Uma cena de caça
Guiné > Região de Quínara > Tite > Julho de 1965 > Uma DO27 (Dornier) na pista de reabastecimento.
Fotos do álbum do nosso camarada, grã-tabanquerio da primeira hora, de Santos Oliveira, ex-2.º sgrt mil armas pesadas inf, Pel Mort 912, Como, Cufar e Tite, 1964/66). Esteve em Tite ao tempo do BCAÇ 1860 (Tite, abril de 1965/abril de 1967)
O Zé Teixeira, em 2008, em Iemberém,
com população local. Foto de Luís Graça (2008)
O início da guerra colonial no CTIG, contada pelo outro lado: entrevista, de 2001, com o homem que liderou o ataque a Tite, Arafam 'N’djamba' Mané (1945-2004) – Parte Final (José Teixeira): os frutos (amargos) da aventura...
1. Preâmbulo
Todos nós, os que passamos pela guerra (e em particular pelo TO da Guiné), temos vindo com o tempo, a tentar passar aos vindouros as situações vividas (, "com sangue, suor e lágrimas"...) num ambiente hostil e agressivo, próprio dos confrontos militares . É o nosso ponto de vista. Com mais ou menos romantismo; com mais ou menos realismo, vamos escrevendo o que a nossa memória registou.
É comum ouvirmos camaradas nossos contar testemunhos de situações que vivemos em conjunto e encontrarmos diferenças, às vezes pormenores que nos escaparam ou a que não demos atenção. Foram situações (ataques, flagelações, emboscadas, explosões de minas e armadilhas, etc.) vividas em comum, mas analisadas por outro ponto de vista. Alguém com outra base académica ou cultural, ou até com outra visão politica e militar da situação, é capaz de "ver" e "narrar" os acontecimentos de outra maneira... O local e ângulo de onde se está a vivenciar o acontecimento, afeta a informação registada na memória (e depois a narrativa, a reconstituição, o depouimento...).
Neste caso concreto, estamos a tomar conhecimento de um testemunho de alguém que vivenciou o ataque a Tite, de 22 para 23 de janeiro de 1963, data (polémica) do in´´iio "oficial" da guerra colonial (ou de "libertação", para os nacionalistas). Foi o seu comandante, mas do outro lado da barricada, logo, o relato dos acontecimentos que viveu e a visão global do ataque são à partida diferentes da "narrativa" daqueles que, na altura, defendiam a bandeira verde e rubra. Pontos de vista diferentes, mas tespeitáveis, já que tal como a moeda, a "verdade" tem um verso e um reverso. São estes conjuntos de ponto de vista, diferentes entre si, dos acontecimentos que vão permitir escrever a História.
Estranhamente pouco ou nada se tem escrito, oficialmente, sobre este acontecimento tão marcante, (seria?) para o desenvolvimento da guerra na Guiné.
Na parte da entrevista que se segue, o entrevistado assume que o ataque a Tite foi uma aventura, a qual serviu de alerta para as tropas portuguesas. Na realidade, podia ter sido uma grande catástrofe para os guineenses envolvidos pela sua ingenuidade de fazer avançar cerca de 150 africanos (!) – diz ele – com reduzido armamento e nenhuma formação nem prática de combate, contra uma instituição militar devidamente apetrechada e homens bem trenados no manuseamento de armas. Valeu-lhes o ato de surpresa e creio mesmo que a população local envolvida fugiu a sete pés, mal se iniciou o tiroteio.
Com este "ato de loucura", o PAIGC terá ganhado mais alguns aderentes e talvez notícias de primeira página nos jornais, por esse mundo fora, vacinado contra o colonialismo via URSS e EUA, as grandes potências em conflito latente, empenhadas em “abocanhar” a África e a afirmar a sua hegemonia geopolítica,,,. Claro que foi um ato que deu “gás” aos militantes do PAIGC, fazendo sentir que era possível lutar contra os "tugas" (sic), de "armas na mão", bastante para isso terem armas, pois que vontade não lhes faltava.
Mas, como acontecimento de guerra, o ataque a Tite não passou de um fracasso, para ambos os lados da barricada. Desgraçadamente, foi o início de uma escalada que só parou 11 anos depois... e que nos envolveu a todos.
A três anos de morrer, Arafam Mané faz também o balanço de uma vida: "filho de camponês", com passagem pela escola do maoismo, e tendo conhecido as misérias e as grandezas da luta de libertação nacional, da independência, do exercício da governação e das lutas fratricidas no seio do PAIGC, Arafam Mané termina a entrevista em tom "politicamente correto", mas nem por isso menos "coerente" e "humano" e até com uma ponta de "amargura":
Isso para mim, é um grande orgulho. Vejo que, de facto fiz algo de importante para este país a Guiné-Bissau. Mesmo, se morrer hoje não ficarei arrependido. Cada um de nós conhece bem o que é a vida de um camponês. O filho do camponês é sempre condenado na sociedade dos intelectuais mesmo nos países mais desenvolvidos do mundo. Somente nos países socialistas é que vimos que o filho do camponês tem valor. Eis as recordações palpáveis que tenho sobre o ataque de Tite.
Em todo o caso, convirá dizer que esta versão dos acontecimentos de 23 de janeiro de 1963 não é consensual entre os próprios protagonistas (***)... Como sói dizer-se, quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto... Por exemplo, não fica esclarecido quem é que "comandou" a operação, se fosse o Malam Sanhá ou so seu adjunto, o Arafam Mané...Como os dois já morreram, nunca mais irão esclarecer esta minha pequena dúvida...
No texto anterior o entrevistado dizia, continuando a responder à pergunta, " Mas como é que conseguiram penetrar facilmente no interior do quartel?" “A nossa missão podia ter maior sucesso se um dos nossos companheiros não tivesse falhado no cumprimento da ordem. Não obstante tudo, a operação planeada para esse dia não podia ser adiada custe o que custasse. Considero que o acto foi uma aventura que serviu de alerta para os tugas; porque queríamos que soubessem que voltamos com força para a zona. Foi uma guerra psicológica porque, na realidade, nós não tínhamos uma força palpável. Mas essa acção desorientou as tropas coloniais que a partir daquele momento receavam sair do quartel para fazer patrulhas.”
E continuava:
"No entretanto, após esta corajosa operação, mais de 300 jovens voluntários aderiram ao movimento de guerrilheiros para, do nosso lado, lutar contra os colonialistas portugueses. Não havia armas nem tão pouco baionetas mas esta realidade não desanimou os jovens cujo número de aderentes crescia constantemente na minha barraca [acampamento temporário]."
Publicamos a seguir a resposta de Arafam Mané às duas questões finais.
III. Entrevista com o coronel Arafam Mané - Parte IV ( e última)
Esta entrevista foi concedida em 2001 ao jornal “O Defensor”, órgão, de periodicidade mensal, das FARP - Forças Armadas Revolucionárias do Povo, Guiné-Bissau, no quadro da recolha de depoimentos dos Combatentes da Liberdade da Pátria sobre os acontecimentos históricos que marcaram a luta armada de libertação nacional, entrevista essa reproduzida no sítio das FARP, em novembro de 2015.
Coronel ADM - Penso que a falta de armas ou a sua insuficiência na altura da operação de Tite foi uma coisa positiva, porque se houvesse muitas armas, isso teria talvez constituído um golpe fatal para o nosso próprio comando que, certamente, devido a falta de experiência sobre o uso de armas poderia provocar vítimas nas nossas fileiras mesmo, como referiu o célebre cantor guineense José Carlos Schwarz,“caçador desconhecido falhou e virou a sua arma contra a aldeia”. Se não fosse a falta de experiência, teríamos ocupado Tite naquele dia, porque as tropas coloniais, surpreendidas pela operação, tinham já fugido. Do nosso lado, a única baixa do assalto foi o meu guarda costa Wagna Bomba, natural de Gambala, que sucumbiu atingido por balas do inimigo. Do lado do inimigo, não posso avançar um número preciso de vítimas mas deve ter sido considerável, porque o camarada Malam Sanhá conseguiu lançar uma granada dentro da caserna onde dormiam soldados. Foi um sucesso, camarada jornalista. Portanto, depois da operação em Tite, os ataques da guerrilha se multiplicaram, alastrando-se para os diferentes pontos do sul. A notícia sobre o início da luta armada contra os colonialistas portugueses, como já disse anteriormente, foi tornada pública por Amílcar Cabral em Londres (Inglaterra), numa Conferencia de Imprensa. Em África, a notícia foi imediatamente publicitada pelas Rádios de Conacri, Rádio Nacional do Senegal e mais tarde pela “Rádio Libertação” do PAIGC. A divulgação dessa notícia nos órgãos de comunicação social levantou o moral no seio dos camaradas e a vontade de lutar fortemente para libertar o nosso povo. Enquanto para os "tugas", a divulgação da notícia constituiu uma dor de cabeça.
O Defensor - Mas no fundo
qual foi a reacção de Amílcar Cabral
logo que foi informado do ataque
contra o quartel de Tite?
Coronel ADM - Foi positiva. Fui logo promovido ao posto de Comandante Regional. E, antes da minha ida para a República Popular da China, que ocorreu em Abril de 1963, consegui mobilizar um número considerável de camaradas para a luta. Tive inclusive contactos com Bissau na pessoa de Rafael Barbosa que na altura era grande membro do Comité Central do PAIGC.
FACTOS HISTÓRICOS INESQUECÍVEIS
São recordações de encorajamento, isso porque depois da operação as nossas populações chegaram a conclusão de que, afinal, nós naquela altura não podíamos fazer nada porque não tínhamos armas. Reconheceram, por outro lado, que nós podíamos ser bons soldados se tivéssemos armamento. Depois dessa acção, passamos a receber géneros da população e recebemos também medicamentos.
Houve igualmente o congresso de Cassacá que deu o acento tónico que a população esperava do grande partido. O congresso permitiu acabar com as barbaridades praticadas por alguns camaradas, reorganizar a nossa luta armada, entre outros. O povo voltou a ganhar a confiança no partido, nos seus dirigentes e no destino da Luta de Libertação Nacional.
Mas a maior satisfação que tenho é, precisamente, o facto de ver hoje os camaradas que ontem eram camponeses analfabetos que tinham como vestuários “lopé” (tanga), panos rodeados no corpo com os pés descalços, tornarem-se agora grandes oficiais das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP), outros são Engenheiros, Aviadores (Pilotos), Médicos, Deputados, Condutores, pilotos de barcos...
Isso para mim, é um grande orgulho. Vejo que, de facto fiz algo de importante para este país a Guiné-Bissau. Mesmo, se morrer hoje não ficarei arrependido. Cada um de nós conhece bem o que é a vida de um camponês. O filho do camponês é sempre condenado na sociedade dos intelectuais mesmo nos países mais desenvolvidos do mundo. Somente nos países socialistas é que vimos que o filho do camponês tem valor. Eis as recordações palpáveis que tenho sobre o ataque de Tite. IV. Comentário final
Vejo nesta entrevista um documento histórico de relevante interesse, pois acaba por desmistifica um acontecimento propalado aos quatro ventos como um verdadeiro ato de guerra, heróico e grandiloquente... Afinal não passou de uma "aventura", uma ação, tosca, que escapou à própria direção política do PAIGC, quase sem consequências imediatas, a não ser a de alertar as tropas portuguesas...
Em todo caso, e usando a terminologia dos historiadores da guerra colonial Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, mal ou bem o "ataque a Tite" marca o fim da "fase pré-insurreccional e de doutrinação políticia (in; Afonso, A, e Matos Gomes, C. - Guerra colonial; Angola, Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d, p. 421),
O PAIGC estava em fase de mentalização e mobilização das populações, e de organização das suas estruturas enquanto a tropa portuguesa ainda “dormia na forma”. Por outro lado, está bem patente o medo que os militares portugueses impunham sobre as populações através de atos violentos na tentativa de travar o avanço do movimento independentista.
Hesitei em por o texto no nosso blogue, com receio de que iria abrir "velhas feridas mal curadas". Por outro lado o seu valor histórico impunha que fosse dado a público, mas para meu sossego passou incólume, sem o mais pequeno contraditório, o que me preocupa, confesso.
[Introdução, seleção, notas, incluindo parênteses retos, revisão e fixação de texto: Zé Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf]
____________
(...) Bissau (Rádio Bombolom-FM, 23 de Janeiro de 2013) – A Guiné Bissau marcou ontem, quarta-feira, cinquenta anos do início da luta armada de libertação nacional a 23 de janeiro de 1963 no quartel de Tite, região de Quínara, no sul da capital, Bissau.
Em homenagem a esse acontecimento histórico do país, o Estado-Maior General das Forças Armadas, através da Divisão para os Assuntos Cívicos e Sociais e Relações Públicas, promoveu uma palestra subordinada “Início da Luta Armada pela Independência da Guiné e Cabo Verde”.
Um dos participantes nesse primeiro ataque com armas de fogo contra um reduto militar português na então Província Ultramarina da Guiné, Daúda Bangura (Comissário Político), lembra ainda dos nomes de heróis que haviam constitudo o grupo de assalto, entre eles, Arafam Mané (na altura Adjunto de Comandante), Malam Sanhã (na altura Comandante Geral da Operação) e Tchambu Mané, que era Comandante de Grupo.
Apesar de o assalto ter sido de surpresa para as tropas portuguesas, Daúda Bangura lembra que na operação, o grupo sofreu duas baixas, nas pessoas dos guerrilheiros NFamará Dabó e Malam Dabó. (...)
1. Sempre bem humorado, bonacheirão, irreverente, prestável, sempre surpreendente, o nosso Miguel, amigo do seu amigo, camarada do sue camarada, grã-tabanqueiro de longa data, cartunista talentoso e, claro, histórico sobrevivente da guerra colonial, o único coronel pilav '(e)strelado' que eu conheço em todo o mundo e arredores... (É, além disso, o diretor da Karas de Monte Real. )
Mandou-nos este divertido, belíssimo, festivo e original 'cartanito' de Boas Festas, como votos de Feliz Natal e Ano Novo para toda a Tabanca Grande, o mesmo é dizer todos os amigos e camaradas da Guiné...
O editor, infante, terráqueo, que não está habituados às alturas, retribui, em nome da tropa toda (de ar, terre a mar), com o desejo de boa continuação dos altos voos nos céus da vida, para a Giselda e o seu 'asa' Miguel (e viceversa, já que ele e ela fazém tandém...). LG
PS - Se eu fosse o Chefe Supremo das Forças Armadas Portuguesas, teria que lhes dar a nota máxima, na escala de 0 a 20, por esta exibição acrobática (que, felizmente não põe em risco o ptrimónio nacional nem muito menos a soberania e independêncioa da Pátria) ... Mas, como não sou o chefe dos chefes, mas ainda sou prof, dou-lhes um Excelente nesta "prova de vida" (que é isso que conta para o nosso blogue)...
Quanto ao cartune ("cartum", no Braisl...), acho que não tem preço!... Adorei!..
2. Em tempo... (Nota do Miguel Pessoa, com data de hoje, posterior à edição deste poste)
Como não contava que fosse dado tanto relevo ao meu "cartanito" não me preocupei em mencionar a autoria dos "bonecos" nele contidos. É certo que o cartoon foi ideia minha, mas os "bonecos" foram uma oferta do Paulo Moreno, o "benjamim" da Tabanca do Centro que muito nos tem apoiado nas nossas iniciativas - são da sua autoria as T-Shirts, aventais, bolsas, bonés, canecas e outros projectos que têm saído da sua loja com motivos alusivos à Tabanca do Centro. Aqui fica a informação, pois não gosto de brilhar com o trabalho dos outros...
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Outubro de 2015:
Queridos amigos,
O historiador e nosso confrade Leopoldo Amado deu à
estampa em 2005 uma importante reflexão sobre os 30 anos da independência
da Guiné-Bissau. Preambula cuidadosamente sobre a singularidade ideológica
do PAIGC, enquanto entidade subordinada ao pensamento e ação de Cabral e
aprecia a ingenuidade e cegueira dos dirigentes do novo Estado que
pretendiam a todo o vapor projetos financiados pela ajuda internacional de
grande envergadura sem disporem de gestores à altura.
De 1974 a 1980
passou-se do sonho e do reconhecimento de muitos pela índole do movimento
revolucionário para a queda aparatosa de todos os sonhos, incluindo a cisão
irreversível na unidade Guiné-Cabo Verde.
A época de Nino Vieira é também
cuidadosamente estudada, incluindo a deriva de Kumba Yalá. Nino Vieira
regressou e o depauperamento não conheceu melhores dias, chegou a praga do
narcotráfico e o aviltamento das instituições.
Para ler e tirar lições.
Um
abraço do
Mário
Guiné-Bissau, 30 anos de independência, por Leopoldo Amado
Beja Santos
A revista Africana Studia, n.º8, 2005, publicação do Centro de Estudos Africanos da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, é essencialmente dedicada aos 30 anos de independência das antigas colónias portuguesas. Coube ao historiador Leopoldo Amado, nosso confrade, a reflexão sobre a Guiné-Bissau. Começa por nos dizer que o PAIGC que chegou a Bissau em Outubro de 1974 exibia com todo o garbo a sua matriz revolucionária anticapitalista e autocrática. O novo Estado viria a ser formalmente influenciado por dois fatores: os princípios fundamentais do PAIGC e pelo sistema de países que durante essa luta o auxiliaram. O processo de reconstrução nacional contava nesta fase com a cooperação dos países na órbita de Moscovo, e de Moscovo, claramente. O PAIGC teimava em apresentar-se como partido marxista mas não como partido marxista-leninista e publicitava os seus princípios numa direção coletiva, no centralismo democrático (tal como ela era praticado pelos países comunistas) e na democracia revolucionária.
Esta fase medeia entre 1974 e 1980: o sonho de grandes projetos, uma tensão permanente entre a visão de um país profundamente atrasado e agrário e a expetativa de alguns dirigentes para que o país avançasse a galope para a industrialização. O saldo deste período foi profundamente negativo, exauriu o país, cavou tensões entre a cidade e o campo, exacerbou ódios indevidos na ausência de um plano seguro e fiável de reconciliação nacional.
Por estas razões e pela crescente crispação entre o grupo militar guineense e a elite dirigente cabo-verdiana, Nino Vieira encabeça a 14 de Novembro um golpe de Estado que era apresentado como “Movimento Reajustador”. Para Amado, o golpe oculta inúmeras contradições mal resolvidas durante o período de libertação nacional, a par de uma questão militar, política e moral que continuava sem solução, a definição de estatuto para os Combatentes da Liberdade da Pátria, que aguardavam um pouco de justiça e o prémio devido para os deficientes, incapacitados e severamente doentes. Luís Cabral, atulhado em projetos verdadeiramente faraónicos para a dimensão do país, para os quais não havia gestores à altura, teve de recorrer a ajudas financeiras. Nino Vieira seguiu, é no seu tempo que vão ser aplicados programas de estabilização e ajustamento estrutural.
A atmosfera política guineense assumia duas faces: a direção política dura e pura e as garantias que Nino dava à comunidade internacional de que ia encaminhar o país para a democratização. Nino Vieira, ao adotar o PAE (Programa de Ajustamento Estrutural) negociado com o FMI e o Banco Mundial, tentou implementar um plano de desenvolvimento que acabou por originar, na prática, a rutura com o anterior modelo de planificação marxista. E de rutura se tratou, na pior aceção da palavra, pois todos os projetos da época de Cabral foram escandalosamente deixados ao abandono.
Colapsado o modelo de planificação, nasceu a tentação da Guiné avançar para uma ideologia liberal mantendo o partido monolítico na direção. A Carta dos “121” foi o primeiro sinal de exigência à abertura. Mas o PAIGC parecia apostado na inviabilidade da abertura política a conta-gotas. Afinal, a liberalização não foi uma escolha assumida do poder político, este entrou contrafeito no processo, sob a égide de uma intensa pressão económica internacional. Em sequência, surgiu o anteprojeto da Plataforma Programática de Transição, que previa um governo baseado na separação de poderes, na consagração do sufrágio universal direto, mantendo o sistema de governo presidencial mas declarando abertura para a formação de partidos políticos. É nesta atmosfera que se chegou ao II Congresso Extraordinário do PAIGC onde foram votadas novas medidas: despartidarização das forças de defesa e de segurança e privilegiando-se um sistema semipresidencialista de governo.
Entrara-se concretamente na transição democrática. Em 1994, realizaram-se as primeiras eleições democráticas e presidenciais, o PAIGC foi vencedor. Passado cinco anos da realização das primeiras eleições, o país foi de novo a votar, depois de uma guerra civil que teve o condão de abalar praticamente todas as infraestruturas do país. Nesse clima, o PAIGC foi punido, perdeu as eleições a favor do PRS e de Kumba Yalá. Por inoperância do sucessor de Nino, iniciou-se um processo de claro desequilíbrio étnico na representação social do poder, a etnia Balanta apresentava-se ao mais alto nível da hierarquia: Presidente da República, Primeiro-ministro, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e Presidente do Tribunal de Contas. Embora o termo não seja verdadeiramente justo, assistiu-se a uma balantização do regime, o mesmo é dizer assistiu-se ao definhamento do Estado, à incapacidade técnica e política dos titulares dos cargos públicos, à mais despudorada perversão das regras democráticas que apressaram a queda de Kumba e o regresso de Nino. É indubitável que a guerra civil clivou a sociedade guineense, pôs a nu a fragilidade da democracia a despeito do comportamento heróico dos velhos militares guineenses que puseram senegaleses e guineenses de Conacri em fuga.
Nino Vieira não soube acalmar os conflitos, até com o próprio PAIGC, exonerando arbitrariamente o Primeiro-ministro Carlos Gomes Júnior, o que se seguiu era irrelevante pela falta de coesão política. Chegava-se à triste realidade de haver uma completa indefinição ou mesmo ausência da presença do Estado na maior parte do território, isto a par da extrema indefinição do papel das autoridades tradicionais.
O enfraquecimento do Estado e das instituições democráticas figuram na Guiné-Bissau como a principal causa da incapacidade do Estado em usar as suas atribuições.
E Leopoldo Amado termina o seu ensaio observando que quando se fala da Guiné-Bissau como um Estado falhado, “é imprescindível que se proceda a uma profunda normalização da vida pública e à modernização do aparelho de Estado que devem ser os antídotos à corrupção reinante e à necessidade inadiável de se conferir credibilidade interna e externa ao Estado”.
Ensaio premonitório, toda esta deriva foi desaguar no golpe militar de 2012, mais um manifesto sinal que os militares, depois de 1980, contrariavam a lógica de Amílcar Cabral que confinava os militares ao poder político.
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Lourinhã > 10 de dezembro de 2016 > "Boneco" de Natal > Há muito que a economia "mercantilizou" o Natal dos cristãos... Não há terra nem terrinha que escape à ideologia do consumo e e à compulsão do "shopping" natalício...
E veio, também, essa espécie de "coisa" a que chamam "árvore de Natal". E anda toda a gente excitada neste tempo de Natal, não pela ideia de "nascer" qualquer coisa de novo (ou renovada), mas por causa das compras, compras, compras... prendinhas, prendas e prendonas...
No poema "Dia de Natal" do António Gedeão está lá isso TUDO! Só tem que se substituir o "relógio de pulso anti-magnético" pelos mais recentes "gadgets" das novas tecnologias (?) inúteis ou fúteis.
Abraços Alberto Branquinho P.S. - Isto lido por muita gente que a gente sabe, será seguido por um pensamento ou uma afirmação:- Velhada!Cotas! (**)
2. Dia de Natal
por António Gedeão [1910-1997]
Hoje é dia de ser bom. É dia de passar a mão pelo rosto das crianças, de falar e de ouvir com mavioso tom, de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem, de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria, de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem, de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal. É só abrir o rádio e logo um coro de anjos, como se de anjos fosse, numa toada doce, de violas e banjos, entoa gravemente um hino ao Criador. E mal se extinguem os clamores plangentes, a voz do locutor anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético. (Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu? Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas. Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante. Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates, com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica, cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates, as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito, ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores. É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito, como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento. Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar. E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado. Mas a maior felicidade é a da gente pequena. Naquela véspera santa a sua comoção é tanta, tanta, tanta, que nem dorme serena.
Cada menino abre um olhinho na noite incerta para ver se a aurora já está desperta. De manhãzinha, salta da cama, corre à cozinha mesmo em pijama.
Ah!!!!!!!!!! Na branda macieza da matutina luz aguarda-o a surpresa do Menino Jesus.
Jesus, o doce Jesus, o mesmo que nasceu na manjedoura, veio pôr no sapatinho do Pedrinho uma metralhadora.
Que alegria reinou naquela casa em todo o santo dia! O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas, fuzilava tudo com devastadoras rajadas e obrigava as criadas a caírem no chão como se fossem mortas: Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está! E fazia-as erguer para de novo matá-las. E até mesmo a mamã e o sisudo papá fingiam que caíam crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal, Dia de Amor, de Paz, de Felicidade, de Sonhos e Venturas. É dia de Natal. Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. Glória a Deus nas Alturas.
Portugal > Estremadura > A8 > Torres Vedras-Lisboa > 17 de dezembro de 2016 > O pôr do sol... Onde estão os moinhos de vento da minha infância e dos meus Natais ? E o vento soprando nas velas e nas cabaças dos moinhos ? E o mar? E os heróis do mar ?
Natal de 1955 por Luís Graça Em 1955, soletrava-se
à noite,
à
luz do candeeiro a petróleo,
a
lição do livro da primeira classe onde terra rimava com chão.
Ainda
não havia televisão,
havia
o hino nacional, na rádio, que era um luxo,
havia Deus, havia a Pátria, havia a Família,
e pouco mais,
e chegava,
essa tríade sagrada. Afinal, o mundo acabava ao fundo da rua grande da tua aldeia.
E, no
Natal,
quando
ainda o Pai Natal
não
tinha sequestrado e morto o Menino Jesus,
ia-se
à missa do Galo,
à
meia noite em ponto,
na
igreja do Castelo,
e só
depois,
a
tiritar de frio,
de
regresso a casa,
pela rua escura e medonha dos Valados,
rente ao muro branco do cemitério,
é
que se bebia o cacau quente
e se
comiam os coscorões,
o
arroz doce
e as
filhós de sangue de galinha!
De manhã, junto ao fogão a petróleo
ou ao fogareiro a carvão,
a mãe tinha alinhado os sapatinhos
onde por um golpe de magia haviam florido
meias e lenços, e uma ou outra, rara, guloseima... e, com sorte, talvez um carrinho de lata para ti ou uma boneca de cartão para a mana, comprados às escondidas na feira de setembro.
Havia uma noite do ano
em que os meninos da tua rua
eram inconscientemente felizes, os mais inconscientemente felizes do mundo!
Havia
o ouro, a mirra,
os
três reis magos,
e um
deles era o pretinho da Guiné,
havia
o presépio,
o burro, a vaca,
a esterqueira,
havia
o incenso,
ligeiramente
enjoativo das missas,
havia,
enfim, o sagrado
e o
pagão,
e a tudo isto, ou a só isto,
se
resumia o acanhado palco da vida
que
te coubera em sorte. E, claro, havia o mar, os moinhos nos cabeços, e o vento uivando nas velas e nas cabaças dos moinhos, e, por detrás dos cabeços e dos moinhos, e das velas e das cabaças dos moinhos, havia o mar, o grande oceano. e o apelo irresistível do(s) que estava(m) para além do mar.
Excerto de:
Luís Graça - Autobiografia: com Brughel domingo à tarde
(poema, inédito, 2005, c. 40 pp)
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