X parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 27-31 (1).
Operação de retirada da guarnição de Madina do Boé (2)
Madina do Boé ficava junto à fronteira da Guiné-Conacri. A companhia que lá estava [ CCAÇ 1790]era flagelada quase todos os dias. Como estavam distantes, a sua capacidade ofensiva tinha sido praticamente anulada pelo IN.
O Comando-Chefe resolveu retirar aquela guarnição. Para a retirada, foi montada uma operação de grande envergadura [Op Mabecos Bravios] . Mais uma vez a nossa companhia [ CCAÇ 2405] foi chamada para tomar parte nessa operação, comandada superiormente pelo então Ten Cor Hélio Felgas [, comandante do Agrupamento 2947, de Bafatá].
Todas as companhias que tomavam parte nesta operação reuniram-se no quartel de
Nova Lamego [, a meio caminho, entre Baftá e a fronteira leste, com a Guiné-Conacri]. Lá chegámos todos por fim, jantámos uma ração de combate e dormimos sabe Deus como. Estávamos em Fevereiro de 1969.
Como a operação tinha 10 dias de duração, quando passámos por
Bafatá a caminho de Nova Lamego, deitei no correio uma aerograma para os meus pais, para não ficarem preocupados com a ausência de notícias durante aquele período. O aerograma era muito singelo e a minha mãe desconfiou de algo.
Desde que eu embarcara os meus pais escreviam-me todos os dias, além de outros amigos. Era coisa que melhor nos sabia, receber notícias de casa, quando estávamos a sofrer toda aquela adversidade.
No dia seguinte formou-se a grande coluna e largámos para Madina do Boé. Mais uma vez a Força Aérea tinha deslocado muitos meios para protecção. Estava sempre no ar a acompanhar a Coluna dois T6, fora os helis que andavam no seu vai-vem.
Chegados ao Cheche, junto ao Rio Corubal, encontrámo-nos com um destacamento a nível de grupo de combate, comandado pelo Alferes Dinis.
Para a travessia do rio havia uma jangada, que levava um carro pesado de cada vez. Nós fomos os primeiros a passar para montar a segurança no outro lado da margem. Por ali passámos a noite enquanto os carros da coluna iam atravessando o rio. No dia seguinte fizemos a pé o percurso até Madina do Boé. Foram 40 kms.
Aquela estrada parecia um cemitério de Unimog e de GMC. Até Madina havia para cima de 15 carros destruídos por efeito das minas. Geralmente o carro da frente, nas colunas, era chamado o arrebenta- minas. Ia cheio de sacos de areia para absorver a onda de choque da explosão da mina. O condutor, um voluntário, ia por sua vez, sentado em cima de um saco de areia. O problema às vezes era a falta de protecção das pernas.
Logo de manhã um T6, que nos sobrevoava, avisa-nos que havia IN à frente e portanto que devíamos ter cuidado. Por aqueles lados a vegetação era pouco densa e não havia população.
Em determinada altura sofremos um ataque de abelhas do mato. Foi terrível! O Alferes Rijo, [da CCAÇ 2405,] foi o mais massacrado. As abelhas não o largavam, ele bem pedia ajuda, mas ninguém se aventurava. Coitado, mal recomposto lá continuou. Bem podia ter pedido uma evacuação, mas não o fez.
À medida que o dia ia avançando, o cansaço, a fome e a sede iam dando cabo de nós. A noite começou a cair, e tal como é costume em África, caiu depressa. Foi nesta altura que nos começámos a desagregar, uns paravam outros não, e foi assim que começámos a entrar no quartel de Madina do Boé. Entrávamos em pequenos grupos. Se o inimigo andasse por ali, tinha- nos apanhado à mão.
O Capitão José Aparício, que comandava o aquartelamento, foi-nos espalhando pelos abrigos, recomendando para só nos deslocarmos entre abrigos pelas valas que por lá havia.
Como a cozinha já tinha sido desmantelada, deram-nos apenas uma sopa que nos soube muito bem. Os abrigos, onde dormimos no chão, eram muito abafados, devido a terem umas aberturas muito pequenas. Mais uma noite de primeira.
No dia seguinte e com a luz do dia, é que nos apercebemos dos pormenores daquele aquartelamento. Eles viviam com toupeiras. As partes laterais dos abrigos tinham uns troncos de palmeiras deitados para se protegerem quando respondiam ao fogo em caso de ataque.
Estes troncos estavam todos queimados por cima. Nos ataques mais prolongados que tinham tido, e que foram muitos, as armas faziam tanto fogo e ficavam tão quentes que queimavam os troncos de palmeira.
Ainda rebentados da véspera, não nos deram descanso e lá nos mandaram ainda mais para Sul, precisamente para junto da fronteira, para fazer protecção avançada. Ali passámos 24 horas, tempo necessário para as viaturas chegarem e serem carregadas com tudo o que a Companhia tinha.
Estas 24 horas foram passadas no maior silêncio pois o inimigo andava por perto. No nosso rádio bem o ouvíamos, em francês, a incitarem-se para nos atacarem.
No exterior e à volta de Madina do Boé, havia vários abrigos feitos e utilizados pelo inimigo para estarem mais protegidos quando lançavam qualquer ataque ao aquartelamento de Madina.
Por fim veio o regresso. De madrugada deram-nos ordem para fechar a coluna que já estava a serpentear a estrada. Se a nossa companhia fechava a coluna, o meu grupo de combate foi o último. Foi assim que a posição de Madina do Boé foi abandonada.
A nossa progressão até ao Rio Corubal, os mesmos 40 kms, foi novamente penosa, embora não tão perigosa uma vez que íamos todos em bloco. Recordo-me que a coluna à vinda tinha levantado várias minas e, curiosamente, no regresso levantaram-se mais umas tantas, lá colocadas entretanto pelo inimigo.
Estacionámos na margem sul do rio Corubal, nós e a companhia de Madina [CCAÇ 1790], durante toda a noite para protecção. Durante a noite a jangada foi transportando para a outra margem todas as viaturas. Já de madrugada [ do dia 6 de Fevereiro de 1969] e passados todos os carros, foi a nossa vez de atravessar o rio. Como tínhamos por hábito rodar as nossas posições assim que parávamos, a nossa companhia passou para a frente da de Madina e o meu grupo de combate., por sua vez, passou para a frente da minha companhia. Com o meu grupo de combate na frente, a companhia dirigiu-se para a jangada para fazer a travessia. A jangada já estava praticamente cheia e só coube o meu grupo. Para trás ficaram dois grupos da minha companhia [CCAÇ 2405]e toda a companhia de Madina [CCAÇ 1790].
Durante a travessia aproveitámos para nos lavarmos um pouco e encher o cantil de água. Uma vez terminada a travessia a jangada regressou para ir buscar o resto do pessoal. Como ninguém quiz ficar para trás, entre os que estavam do outro lado do rio, entraram juntos na jangada, para a última travessia.
Aqui facilitou-se. Eu estava do outro lado e assisti a tudo. A jangada ainda a poucos metros da margem, adornou para um dos lados (nascente) e atirou à água vários rapazes. Por falta de peso de um dos lados, a jangada adornou de repente para o outro lado, atirando outros tantos rapazes à água.
Depois disto a jangada ficou meio submersa. A meu lado estava um Major que deitou as mãos à cabeça e disse: - Deus meu!.
Como não vi ninguém a gritar ou a esbracejar, pensei para mim que talvez se tivessem afogado um ou dois rapazes. A jangada que estava de reserva, foi por duas vezes buscar o pessoal. No Cheche estavam no chão dois helis que levantaram vôo, nada podiam fazer ou ajudar.
Uma vez formadas as companhias, é que demos conta da extensão da tragédia: 45 homens afogados de ambas as companhias. Com as botas, o peso da cartucheira, das granadas e ainda a responsabilidade de não perder as armas, aqueles rapazes à medida que iam entrando na água, iam logo para o fundo, agarrando-se uns aos outros.
Pelo menos um dos rapazes da nossa companhia estava em França a trabalhar e regressara a Portugal só para cumprir o seu dever. Ali ficou.
A minha mãe assim que soube da notícia associou com o meu aerograma e ficou muito aflita. Telefonei-lhe de Nova Lamego para a descansar.
Acabada esta operação, quizeram responsabilizar pelo sucedido o Capitão Aparício e o Alferes Dinis. Quem lá estivesse, tinha feito o mesmo. Só quem está metido nelas é que sabe da sua vida.
Acho que as ambições do Brigadeiro Spínola aqui funcionaram em pleno. Ele não quis ficar com aquela nódoa na sua folha de serviço, pois já devia aspirar a voos mais altos, com Caetano no poder e Tomás no fim de um mandato.
Deixo aqui um pormenor que dá bem a ideia das voltas que o mundo dá. Na sequência do 11 de Março de 1975, Spínola segue para o Brasil, exilado. Com o General Eanes na Presidência é combinado o seu regresso a Portugal.
Quem é que o vai buscar ao aeroporto? O Ten Cor Aparício, Comandante Distrital da PSP de Lisboa. Acasos do Destino.
Regressámos à nossa rotina das Tabancas em Auto Defesa.
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Notas de L.G.
(1) Vd. último post > 22 de Maio de 2006 >
Guiné 63/74 - DCCLXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (9): Fome em Campatá e Natal em Bafatá
(...) "Foi em Campata que passámos o primeiro Natal na Guiné. O meu irmão, a pedido da minha mãe foi passar o Natal comigo. De avião em avião, chegou por fim a Bafatá, aonde solicitou autorização ao comando para eu passar aqueles dias com ele em Bafatá.
"O Ten Cor Banazol, que comandava o Batalhão que ali estava sediado, fez deslocar uma auto metralhadora Panhard para me ir buscar. Alugámos um quarto e, entre o cinema, os passeios e a Messe, assim passámos o Natal" (...).
(2) Sobre Madina do Boé temos já mais de três dezenas de referências no nosso blogue; e sobre Cheche existem 25 referências. Eis alguns dos principais posts sober a retirada da guarnição de Madina do Boé e do desastre de Cheche no Rio Corubal:
17 de Julho de 2005 >
Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)
(...) "Apresentação do livro de Gustavo Pimenta, sairómeM - Guerra Colonial (Palimage Editores, 1999), no Porto, Cooperativa Árvore, em 10 de Dezembro de 1999. Autor do texto: José Manuel Saraiva, jornalista do Expresso" (...)
2 de Agosto de 2005 >
Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre do Cheche, na retirada de Madina ...
(...) "Este documento, que me chegou às mãos através do Humberto Reis, relata aa dramática operação em que participou a CCAÇ 2405, sedeada em Galomaro, e pertencente ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), operação essa que tinha em vista operação essa que tinha em vista retirar as NT da posição insustentável de Madina do Boé, cercada pelo PAIGC" (...)
8 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXXX: A retirada de Madina do Boé (José Martins)
(...) "O mês de Fevereiro de 1969 tivera inicio há poucos dias quando passou, no aquartelamento de Canjadude, uma coluna cuja missão era retirar a Companhia de Caçadores nº 1790 do seu destacamento de Madina do Boé. Paralelamente a guarnição do posto do Cheche, pertencente à Companhia de Caçadores nº 5, também retiraria e juntar-se-ia à nossa companhia em Canjadude" (...)
8 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXXXI: Comentário de Afonso Sousa ao texto sobre a retirada de Madina do Boé
(...) "Emociona este seu testemunho. Eu só faço uma pequena ideia do sofrimento de todos vocês, naquele momento trágico, nas horas e nos dias seguintes - em terras de solidão, em paragens dos confins da Guiné" (...).
12 de Fevereiro de 2006 >
Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)
(...) "Em resumo e concluindo:
"(i) O desastre do Cheche ficou a dever-se, em minha opinião, ao excesso de peso entrado na jangada; (ii) E ela é corroborada por todos aqueles que, como eu, viajavam na jangada e que em conversas a seguir ao desastre manifestaram a mesma opinião;(iii) Note-se que a mesma jangada tinha já feito dezenas de travessias sob as ordens directas do Alf Diniz sem nunca se ter detectado qualquer problema;(iv) Esse problema surgiu de forma trágica na última travessia, ou seja, naquela em que o responsável Alf Diniz não pôde efectivamente proceder segundo o que estava estabelecido, deixando entrar na jangada o dobro da sua capacidade, por ordem do 2º Comandante da Operação a que, pela natureza da hierarquia militar, não poderia opor-se;(v) Mas fê-lo, e disso dei testemunho no âmbito do inquérito que se seguiu, advertindo previamente o seu superior hierárquico para o facto de estar a infringir as determinações que tinha sobre a forma de fazer a travessia do rio e da lotação definida para a embarcação;(vi) E estou convencido que a rapidez do desaparecimento das vítimas nas águas calmas, escuras e profundas do Corubal, se ficou a dever ao facto de todos transportarem consigo pesado equipamento de guerra que lhes tolheu os movimentos e os conduziu para o fundo do rio, de forma tão rápida, com a agravante de que a maior parte deles não sabia nadar" (...)
13 de Fevereiro de 2006 >
Guiné 63/74 - DXXIX: A verdade sobre o desastre de Cheche (Paulo Raposo)
(...) "Alf Raposo da CCAÇ 2405, também assisti ao desastre do Corubal, tinha passado com o meu grupo de combate na travessia anterior. Estavamos de regresso da grande operação de Madina do Boé. O meu muito amigo Alf Felício estava na jangada acidentada. O testemunho dele é verdadeiro" (...).