Foto: © Portojo (2009). Direitos reservados
1. Mensagens de Arsénio Puim, ex-Alf Mil Capelão, CCS/ BART 2917, e que esteve em Bambadinca entre Maio de 1970 e Maio de 1971 (A sua comissão terminou mais cedo, um ano depois de ter chegado a Bambadinca, por decisão do Com-Chefe, ao que se sabe). Vive actualmente em Vila Franca do Campo, Ilha de São Miguel, Região Autónoma dos Açores (RAA). Está reformado como enfermeiro do Serviço Regional de Saúde da RAA (*).
12 de Junho de 2009
Luís Graça
Como te havia dito no email anterior, começo a minha participação no Blogue, em forma de pequenos registos com alguma ordem cronológica e temática, se achares que tem interesse.
Um abraço amigo - Arsénio Puim
1 de Junho de 2009
Luis Graça
Chegado já há alguns dias a Vila Franca do Campo, devo dizer que o prazer que tive de encontrar velhos companheiros da Guiné em Viana e em Lisboa compensou, só por si, a minha deslocação a terras do continente português. E quero agradecer-te todas as atenções e referências que me dedicaste durante a minha estadia em Lisboa.
Como havia dito, tenho em mente participar no documental blogue de Luis Graça, talvez com o registo de alguns factos, à maneira de pequenas crónicas, que eu possa relembrar e que constituam mais uma achega para a nossa história comum na Guiné. Fá-lo-ei, porém, lentamente - sou mesmo muito lento naquilo que faço - e numa fase um pouco mais tardia, em que espero ter maior disponibilidade de tempo.
Recomenda-me com a tua esposa. Um abraço amigo - Arsénio Puim
2. RECORDANDO... I - NO RAP 2, EM VILA NOVA DE GAIA
por Arsénio Puim
Este é o primeiro duma série de pequenos relatos, para este histórico blogue de Luís Graça, respeitantes à minha vivência como alferes capelão do Batalhão 2917, que acompanhei desde a Serra do Pilar até Bambadinca, no centro da Guiné, entre Dezembro de 1969 e Maio de 1970.
É meu propósito essencial rememorar e partilhar com os antigos companheiros do Batalhão, por quem tenho muito apreço, alguns factos e acontecimentos que nos são comuns, sem nunca pretender atacar quem quer que seja.
Depois duma curta preparação na Academia Militar, em Lisboa, - tema a que gostaria de voltar mais tarde – vim parar, em finais de Novembro de 1969, ao RAP 2, na Serra do Pilar, em Gaia, para me juntar ao Batalhão [de Artilharia] 2917, que ali estava a ser mobilizado, com destino à Guiné, e me tinha sido atribuído por sorteio, realizado no final do referido curso de capelães militares.
À distância de 40 anos, e recolhido aqui em terras dos Açores, guardo ainda hoje algumas recordações desta estadia, durante três meses, naquele Regimento de Artilharia Pesada.
Guiné > Região de Tombali > Bedanda > CCAÇ 6 > 1971 > Um das famosas imagens da guerra da Guiné, a saída do obus 14, de noite, tirada com a máquina rente ao chão, pelo então Alf Mil Médico Amaral Bernardo (hoje médico do Hospital de Santo António, Porto, e membro da nossa Tabanca Grande)... A padroeira dos arilheiros era(é) a Santa Bárbara... O dia da Arma de Artilharia festeja-se a 4 de Dezembro (LG)
Foto: © Amaral Bernardo (2007). Direitos reservados.
A minha primeira participação em eventos mais assinaláveis desta comunidade militar do Norte foi a Festa de Santa Bárbara, padroeira das Unidades Militares de Artilharia, realizada no dia 4 de Dezembro com considerável aparato. Uma coisa que me intrigou na altura, e que ainda hoje não sei decifrar, foi esta relação de Santa Bárbara com a Artilharia: será por esta santa, algo mítica, ser invocada como protectora nas trovoadas, e o ribombar dos trovões ter alguma semelhança com o estrondo causado pelas armas pesadas?
Depois veio o Natal. Todo o mundo partira, nessa noite, para as suas terras, e o Quartel, ali sobranceiro ao Douro adormecido e olhando para o Porto entregue aos seus convívios familiares, ficara quase deserto. O pequeno grupo que restava – oficial e sargento do dia, capelão e uns poucos soldados – celebrou também a sua consoada, no bar dos oficiais, onde não faltava apetitosa comida, bom vinho e muita saudade.
Botei a palavra. Neste contexto natalício e de ausência familiar, para mais com a perspectiva da partida próxima para a Guiné e já alguns eflúvios vínicos a actuar (os quais são sempre propícios a gerar inocentes climas de comoção), vivemos alguns momentos de grande sentimentalidade, com algumas lágrimazinhas mesmo a aparecerem ao canto do olho. Lembro com simpatia esta noite, embora não recorde já os convivas.
Foi no final de Fevereiro de 1970 que teve lugar a Comunhão Pascal da Guarnição, presidida pelo «bispo brigadeiro» de Portugal, responsável pelo Vicariato Castrense e a assistência religiosa aos militares do País.
Os Comandantes do Regimento e eu esperámo-lo junto do Mosteiro do Pilar. Saindo dum carro grande do Estado, conduzido por um soldado, D. António percorreu, admirou, reclamou mais dinheiro para aquelas velharias do Mosteiro. Um pouco atrás seguia eu, quando se chegou junto do meu ouvido o capitão-capelão-chefe do Porto, que me segredou:
- Arranje uma batina (sotaina) e apareça com ela amanhã. O D. António ficou danado(Eu tinha estado, no dia anterior, na Comunhão Pascal da Reclusão do Porto, vestido, apenas, com o fato e o cabeção eclesiásticos).
Certamente uma questão bem fútil no contexto da problemática, já então acesa, dos capelães militares e da guerra colonial.
Era o RAP 2, em Gaia, que recebia os soldados de toda a região norte mortos no Ultramar. Várias dezenas de caixões empilhavam-se uns sobre os outros numa grande sacristia, mal iluminada, da igreja do Pilar, que eu atravessava – um pouco de corrida, confesso – quando ia celebrar missa. Não raro, alguns caixões abriam espontaneamente um pequeno orifício por onde vertia um líquido fétido de cor esverdeada, até que os soldadores fossem chamados para obturar a brecha.
Cabia ao capelão do Regimento fazer os funerais, de acordo com uma escala elaborada pelos serviços competentes, acompanhando a urna até à terra natal de cada soldado, que o pároco e a população em peso aguardavam, com grande consternação e incontido choro geral, num sítio próximo da igreja.
Foram mais de 60 funerais que fiz nestes três meses - 2 ou 3 deles apenas as caixas dos ossos - nas mais diversas e recônditas aldeias do norte de Portugal. Um sacrifício dramático da nossa juventude, merecedor de muito respeito e dignidade, mas que não podia deixar de fazer pensar qualquer pessoa.
Arsénio Puim
_________
Nota de L.G.:
(*) Vd. postes anteriores, rekacionados com o Arsénio Puim:
3 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 – P4455: Estórias cabralianas (50): Alfero, de Lisboa p'ra mim um Fato de Abade (Jorge Cabral)
26 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4416: Memória dos lugares (26): Bambadinca, CCS/BART 2917, 1970/72 (Arsénio Puim, ex-capelão)
25 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4412: Dando a mão à palmatória (20): O Arsénio Puim, capelão do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), só foi expulso em Maio de 1971
25 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4410: Cancioneiro de Bambadinca (4): Romance do Padre Puim (Carlos Rebelo † )
23 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4404: CCS do BART 2917: a emoção do reencontro, 38 anos depois (Arsénio Puim)
19 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4378: Arsénio Puim, o regresso do 'Nosso Capelão' (Benjamim Durães, CCS/BART 2917, Bambadinca, 1970/72)
18 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4372: Convívios (131): CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), com o Arsénio Puim e os filhos do Carlos Rebelo (Benjamim Durães)
17 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1763: Quando a PIDE/DGS levou o Padre Puim, por causa da homília da paz (Bambadinca, 1 de Janeiro de 1971) (Abílio Machado)