1. Mensagem de Rui Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67, com data de 7 de Junho de 2009:
Camaradas,
Recebam um grande abraço e votos de muita saúde, extensivos a todos os ex-combatentes da Guiné, ainda mais para aqueles que, de algum modo, ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
FOGO DE ARTIFÍCIO em CANSAMBO às 03 h da madrugada do dia 6 de Abril de 1966
(Das minhas memórias “PÁGINAS NEGRAS COM SALPICOS COR-DE-ROSA”)
Operação Faísca. Não sei se foi coincidência, mas que lá muito faiscou naquela noite (e não foi intempérie), lá isso foi verdade.
Estávamos então a 5 de Abril de 1966. A “casa-de-mato” de Cansambo era a que ficava mais perto do Olossato. [Vd. carta de Binta].
Éramos quase vizinhos, só que… dávamo-nos muito mal.
Esta operação revestiu-se de grande ineditismo, pois, pela primeira vez, pelo menos no que dizia respeito à minha Companhia, o assalto ao refúgio inimigo foi perpetrado em PLENA NOITE!
O Capitão, como sempre e como era das suas atribuições, planeou a operação, e, desta feita, de uma forma muito inteligente e sobretudo audaciosa: Atacar em plena obscuridade da noite! Não lembrava ao diabo (e ele que andava sempre por ali).
O nosso guia era o Joaquim, outrora “turra” de boa estripe, que conhecia muito bem tal “casa-de-mato”, ou não fosse ele de lá oriundo.
Desta vez o Joaquim decidiu-se da melhor maneira para… nós, e também para a integridade física dele, pois o ele nos ter enganado uma vez custou-lhe ficar com a cara que o deixou irreconhecível, para não falar do corpo, de tanto murro, pontapé, etc.
Basta dizer que, senão toda, quase toda a Companhia, nesse dia do engano, molhou a sopa no pobre Joaquim. Coisas de então.
Bom, como ia dizendo, o Joaquim desta vez resolveu colaborar e então pôs o Capitão ao corrente e a par e passo do que ia na “casa-de-mato” de Cansambo.
O Capitão soube então que eles colocavam sentinelas nas árvores a partir das 4 horas da madrugada, portanto muito antes do alvorecer, altura esta que normalmente a tropa atacava.
Assim prevenidos, pois se a tropa resolvesse atacar, como era seu hábito e norma daquela guerra, ao romper do dia, as sentinelas dariam por isso muito antes e alertariam o pessoal da “casa-de-mato” que teria entretanto tempo para nos receberem com uma bem montada, ainda que normalmente improfícua, emboscada.
O Capitão lembrou-se então e em boa hora (isto dito depois) de a Companhia atacar o refúgio inimigo às 3 horas da madrugada, isto é, uma hora antes de as sentinelas tomarem as suas posições e formarem o seu dispositivo de segurança.
Portanto eles seriam apanhados quando despreocupadamente deveriam estar a dormir.
Mas, o atacar em plena noite, coisa que até aí nunca tinha acontecido, implicava alguns problemas e receios, entre estes o posicionamento e ordenamento na altura do ataque, pois como era noite cerrada e não se visava um palmo à frente dos olhos, isto teria de ser feito com muito cuidado e disciplina, e sobretudo sem ponta de barulho, o que era ainda o mais importante.
Bom, o Capitão planeou bem em todo o pormenor e a malta mostrou-se confiante, até porque o Joaquim parecia agora ser um grande trunfo.
À frente foi o meu Grupo de combate e a primeira secção era a do Baião.
O Capitão pôs o Furriel Mil José Baião com a sua Secção à frente da coluna como represália de ele se ter demorado em Bissau mais tempo do que ele tinha permitido, para ele tratar de um assunto qualquer. Eu desta feita não fui, pois estava em Bissau a contas com uma super-alergia e então estava a ser medicado pelo hospital e em regime de internamento.
Para surpreender o inimigo evitou-se o percurso habitual de saída (estrada Olossato-Farim) evitando também assim a passagem pela ponte sobre o rio Olossato aonde o inimigo também vigiava as 24 horas do dia.
Assim atravessámos em canoa rudimentar e em pequenos grupos o dito rio, algumas centenas de metros da dita ponte e a jusante e depois a progressão foi feita em corta-mato.
O Capitão mandou a malta levar balas tracejantes, pois como estas deixam um rasto luminoso perfeitamente visível à noite, a malta poderia melhor acertar com o alvo, ou pelo menos ver para onde elas iam, alvo esse que era certamente o refúgio inimigo.
Aos homens dos morteiros mandou o Capitão levar very-lights - granadas de morteiro, mas apenas de efeito luminoso.
Os very-lights uma vez lançados, apenas serviam para iluminar o espaço aéreo circundante durante uns breves segundos e permitir assim, neste curto espaço de tempo, uma razoável visão da zona do objectivo.
Portanto o maior problema seria o da instalação da malta relativamente ao refúgio, que teria de ser feita sem hipótese de detecção por parte do inimigo.
Uma vez a malta instalada e devidamente camuflada -a noite nesse aspecto ajudava e de que maneira - era só abrir fogo e então com a ajuda dos very-lights o fogo logo se concentraria no refúgio.
E tudo aconteceu, para felicidade nossa, como o Capitão planeara e nós todos confiávamos.
Foi tão grande a surpresa para eles que os 2 Grupos de combate mobilizados para o assalto instalaram-se em dispositivo adequado e em meia lua e sem dar azo ao mais leve pressentimento da sua presença, e então foi só aguardar o sinal de FOGO(!)
Este deu-se na hora H. O potencial de fogo era grande. As granadas de bazuca e de morteiro choveram aqui e acolá em ritmo bem cadenciado e de vez em quando surgia no ar um very-light para ajudar a malta a aferir melhor a pontaria.
O Capitão comandava o assalto utilizando um megafone.
Quem não soubesse que se tratava de um episódio da guerra até julgava que era um S. João bem festejado com bombas de Carnaval e fogo de artifício ao mesmo tempo.
Eles mal tiveram tempo para fugir quanto mais ocuparem os abrigos que tinham na periferia do refúgio e, ainda assim, eram muitos os rastos de sangue ali encontrados. Abandonaram praticamente o armamento todo e tudo o mais. Reagiriam depois ao longe com algumas rajadas de flagelação. O costume…
Assim, desta feita, foram-lhes apanhadas 5 Pistolas-metralhadoras, diversos carregadores para aquelas, diversas granadas de mão, de morteiro e de LGF (ver foto) e o morteiro 82 por pouco não foi apanhado.
Digo que por pouco, pois viu-se bem o rasto dele a pressupor dificuldade de transporte. Essa foi a maior pena.
O Capitão sabia que aquele morteiro dava a volta por algumas “casas-de-mato” do Oio, e então ele aguardou a altura, por indicação de Joaquim, que ele lá estivesse para a Companhia tentar capturá-lo.
Mas, claro, apanhar uma arma destas era sempre muito difícil, pois eles tinham o máximo cuidado em não se verem privados deste tipo de armamento.
Falava-se em represálias severas se o perdessem, mesmo ainda que alguém se tivesse de sacrificar para o salvar e, assim, do morteiro 82 que na ocasião reforçava a “casa-de-mato” de Cansambo, só se ficou com o cheiro.
Foi então quase (este quase pelo morteiro) um êxito de 100% a operação em Cansambo, de Faísca de seu nome.
Apanhámos praticamente todo o armamento que eles possuíam naquele refúgio, provocámos, senão baixas, bastante feridos a julgar pelos rastos de sangue bem visíveis, e destruímos completamente o refúgio inimigo de Cansambo.
Não tivemos qualquer azar, pois tão grande foi a surpresa, pela hora e pelo método, que eles só se preocuparam em fugir bem e depressa, daí não ter havido qualquer esboço de reacção.
“Parecia o S. João meu Furriel”, dizia-me um soldado mais tarde. Referia-se ele ao efeito dos very-lights e das balas tracejantes. “Pareciam bichas de rabear”, acrescentou outro.
Que espectáculo, imaginei eu. Foi formidável a ideia do Capitão, foi mesmo bestial - concordámos todos nós - mas ao fim e ao cabo deveu-se também em grande parte à colaboração do “ex-turra” e agora nosso grande amigo, de seu nome Joaquim, pois ele, em todo o pormenor, informou o Capitão tal e qual como a coisa funcionava em Cansambo.
Armamento capturado na Operação Faísca: Em 1.º plano: 3 pistolas-metralhadoras PPSH (a famosa costureirinha) e 2 “Thompson” (c/ um balázio de cerca de 12 mm. de diâmetro) e ainda 1 carregador PPSH; atrás 2 granadas de Lança-granadas-foguete e um carregador Kalashnikov; mais atrás: algumas granadas de mão e 8 granadas de morteiro 60, entre outro material de menor importância.
O Joaquim a partir daí passou a ser o melhor do mundo. Podia era ter-se livrado daquela grande sova aquando da primeira tentativa de assalto à “casa-de-mato” de Cansambo, ele que, intencionalmente, fez-nos andar à deriva, (não foi só ele a fazê-lo pois haviam guias que até davam o jeito possível, para ficarmos à mercê de mira inimiga), fazendo assim gorar os nossos propósitos.
Como sempre acontecia, o Joaquim, um “turra” então renegado, começou a compartilhar da vida comum de Olossato. Vestia agora bem e até tinha direito a gravata e comia do rancho.
A partir daí, sim, foi dada toda a liberdade ao Joaquim agora Senhor, pois a gente também sabia que ele jamais fugiria.
Sim, um “turra” depois de ter denunciado os colegas jamais regressaria ao seu convívio, pois era óbvio que estes lhe tratariam imediatamente da saúde, fazendo-o desaparecer do mundo dos vivos, pagando assim a sua traição.
O Joaquim, claro, escolheu ser um pacato cidadão da típica e pacata povoação do Olossato.
P.S. Devo dizer que o “Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa” foram escritas, ou vá lá rabiscadas, praticamente todas, em pleno tempo de guerra e acabadas logo a seguir ao meu regresso.
Escrevia à noite e ao outro dia já estava a pôr as cartucheiras à cintura e a G3 ao ombro outra vez, para passar por algo que poderia depois contar… se pudesse.
Naquela altura tinha os meus vinte e poucos anos e fora empurrado para uma guerra que já na altura não a compreendíamos muito bem. Ia impregnado de patriotismo e honradez e outras coisas assim, lutar contra o terrorismo, dizia-se.
Hoje tudo era contado de maneira diferente (ou noutra perspectiva) ficando desde logo subjacente o respeito por aquele massacrado povo africano que, afinal, só queria a sua terra e não queria ser escravizado. Naquele tempo ainda se via muito branco a bater no preto…
Quero com isto dizer que os excertos que vou mandando (com todo o gosto), para este magnífico blogue, são transcrições absolutamente fiéis à minha escrita feita naquele preciso tempo (espaço, maneira e modo).
Só assim haveria razão e cabimento de as querer mostrar tal e qual.
As minhas memórias começam assim e em jeito de intróito.
“PÁGINAS NEGRAS COM SALPICOS COR-DE-ROSA”
Este pequeno livro, que encerra uma modesta prosa, foi elaborado, a maior parte, nos últimos dias da minha comissão na Guiné, e concluído logo depois do meu regresso.
As páginas que se seguem, ilustram (ainda que de uma maneira sumária) o que foi a vida da minha Companhia e de um modo particular a minha, naqueles dois inesquecíveis anos de episódios multifacetados, os quais estive ao serviço da Pátria na defesa da sua integridade territorial, entre milhares de assim servidores, que integrados na Aviação, na Marinha ou no Exército, com galhardia e raro estoicismo defendiam aquele pequeno pedaço de terra no longínquo ocidente africano que corajosos portugueses de então descobriram, galgando mares e marés, e de uma forma assaz atribulada.
Das melhores e das piores recordações da minha vida dali as guardo até à morte.
As “páginas negras” escreveu-as a guerra…, que era o que afinal me levou ali, e estas eram as do quotidiano.
Os “salpicos cor-de-rosa” foram os bons momentos de alegre confraternização entre a malta, foram os jogos de mesa ou de campo, as “piscinas” (“cocktail” de bebidas - todas as que houvesse na altura - num grande alguidar de aço inox, que cada um bebia por sua vez e até dava direito a mergulhar o farfalhudo bigode), as brincadeiras entre uns e outros e…. a chegada da “Dornier” que trazia os aerogramas da família e até, às vezes, sardinhas.
Fotos: © Rui Silva (2009). Direitos reservados.
Um abraço,
Rui SIlva
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Nota de M.R.:
(*) Vd. último poste da série em: