MEMÓRIAS DE UM EX-COMBATENTE (2)
O desembarque e a viagem até ao Cumeré
Atracou o navio ao porto de Bissau no dia seguinte de manhã cedo, onde desembarcaram os contingentes militares.
O meu Batalhão, o 4512, seguiu em coluna de viaturas em direcção ao Cumeré, a cerca de 40 quilómetros, atravessando primeiro a cidade, passando pelo Hospital Militar, pelo aeroporto de Bissalanca, Safim, Nhacra, por aí fora e, ao longo do percurso, fui registando sensações que ainda hoje tenho bem presentes na memória:
As populações indígenas e os seus trajes, - ora já a trabalhar nas bolanhas ao longo da estrada, ora agrupadas na berma a verem passar a coluna - os seus instrumentos agrícolas, especialmente a sua inseparável catana, a terra vermelha e os baga-bagas, o cheiro a terra seca e a capim queimado (era a época seca), as rectas intermináveis e onduladas da estrada, a neblina do calor intenso que se começava a sentir, à medida que o sol se levantava no oriente, não obstante de manhã ter estado um pouco frio, o aparecimento aqui e ali dos primatas, a plumagem e o canto das aves, etc.
Enfim, era o primeiro contacto com terras e culturas diferentes.
Chegados ao Cumeré, ali junto ao rio Geba, fomos instalados no campo de futebol em tendas, por não haver instalações disponíveis, por estarem ocupadas por militares em fim de comissão a aguardarem transporte para a metrópole.
Era um calor insuportável que se tentava atenuar pela frescura de uma cerveja, mas que tão difícil era obtê-la em intermináveis filas para o bar.
O meu achado
Um dia ou dois depois, fui incluído num grupo de militares recém-chegados para proceder ao arrumo e limpeza de uma das casernas que entretanto ficou de vago.
A desordem e o desarrumo era total, provocadas pela compreensível efusiva alegria dos“velhinhos” na última noite que ali passaram antes de embarcarem rumo à metrópole, precisamente no paquete Uíge que nos tinha levado.
Ao varrer sob uma das camas, entre papéis e poeira, vislumbrei algo minúsculo que me despertou a atenção.
Apanhei então uma pequena medalha em ouro, normalmente usada num fio ao pescoço, que ainda hoje guardo como relíquia, com a inscrição “Deus te Guarde”.
Uma medalha que teve comissão dobrada. Guardou alguém antes e continuou a proteger-me a mim depois.
O primeiro Natal na Guiné
Cerca de dez dias depois aproximou-se o Natal.
Na noite de consoada, já durante a instrução do IAO, o meu Pelotão pernoitou no mato, entre o Cumeré e Nhacra, onde, ali naquela zona, o nosso principal inimigo eram os mosquitos, as chamadas melgas, que nos deixavam o corpo numa autêntica chaga, por muito repelente que se aplicasse nas zonas descobertas, nos braços e no rosto.
Regressámos ao quartel no dia de Natal de manhã.
À hora do almoço, reparei que nas paredes do refeitório estavam afixados alguns motivos de natal.
Que Natal tão estranho! Não era só por estar longe dos meus familiares, mas porque para mim o Natal estava associado ao frio. A 40 graus de temperatura, pensava eu, não podia ser Natal.
Os turnos do camarada “porquinha”
Numa das muitas noites que ficámos no mato ali nas imediações de Nhacra, no decorrer do IAO, embora não houvesse grande risco de contacto com o IN, eram levadas a preceito todas as regras de segurança do Pelotão, preparando-nos assim, no âmbito do referido IAO, para a realidade futura que nos esperava no local de destino operacional.
Durante a noite, para uns descansarem, em cada equipa de um Cabo e quatro Soldados, um avançava para a frente uns passos, cerca de 5 a 10 metros, no meio do mato, e ficava de vigia em turnos de duas horas.
No silêncio duma dessa noites, ouvindo-se apenas em fundo o som dos batuques das tabancas ali próximas, ficámos sobressaltados quando o camarada “porquinha”, o vigia àquela hora, se lançou literalmente sobre nós, numa espécie de vala onde descansávamos, de tal modo em pânico que mal podia gritar:
- Ai que aí vêm eles…, aí vêm eles.
Perante este alerta de desespero, todo o pelotão se movimentou rapidamente e tomou uma posição de defesa para o que desse e viesse.
Entretanto apercebemo-nos, de facto, da presença de alguns “turras”já em debandada, mas deu para perceber que eles estavam disfarçados de esquilos.
Conhecida a fraqueza do “porquinha”, num dos dias imediatamente a seguir, no mesmo local, a sua coragem foi posta de novo à prova:
À hora do turno dele, o Cabo da equipa, o Martins, pegou numa garrafa de cerveja vazia, que tinha acabado de beber a acompanhar a ração de combate e, já com a intenção de o assustar, arremessou a mesma garrafa para longe, sobre o local onde se encontrava o “porquinha” em cujo trajecto o gargalo da garrafa em contacto com o ar provocou um silvo característico.
Qual corredor de meia maratona seria tão rápido como o “porquinha” que imediatamente correu e se precipitou em pânico sobre nós, completamente gago.
Os risos duraram até de manhã.
Gostaria imenso de reencontrar esse meu camarada, de seu nome verdadeiro, Salvador Rodrigues da Costa. À parte os seus receios, era um bom companheiro.
A viagem em ziguezague
Próximo do fim do IAO, nos primeiros dias de Janeiro de 1973, o Comando facultou-nos a passagem de um dia de folga em Bissau, disponibilizando-nos o respectivo transporte.
Boina, camisa n.º 1, calções, meias até ao joelho e sapato era o fardamento obrigatório.
A mesma indumentária punha em evidência a brancura das nossas pernas que denunciava o nosso escasso tempo de Guiné, que nos conferia o estatuto de “periquitos” de que os “velhinhos” tanto gostavam de nos lembrar.
Como transporte, coube-me em sorte um Unimog 411, o chamado “burrinho do mato”, conduzido pelo Soldado da minha Companhia, o Fernandes.
Saímos a porta de armas do Cumeré com destino a Bissau e entrámos na tal estrada, cujo traçado, como acima referi, é de longas rectas.
Só que o unimog era tão velho, com tanta folga no volante, e o condutor tinha tão pouca experiência, que não conseguimos fazer a viagem, quer de ida, quer do regresso, alinhados na estrada.
Ora guinava para a esquerda até à berma, ora guinava para a direita até à outra berma, a estrada era toda nossa e, com o consequente desequilíbrio provocado pelo peso dos seis ou oito militares que seguiam nos bancos laterais a trás, várias vezes estivemos prestes a despistar-nos para fora da via.
Conclusão: Um dia de canseira e preocupação. Num percurso de cerca de 80 quilómetros, ida e volta, devíamos ter percorrido quase o dobro com todas aquelas curvas, com muitas paragens forçadas pelo meio para evitar o despiste.
Desabafos do “Rio Mau”
Albino de Lima e Sá na foto, o primeiro da esquerda na fila de trás.
Albino de Lima e Sá de seu nome completo, natural de uma localidade chamada Rio Mau, algures em Vila Verde ou Viana do Castelo, no alto Minho, também conhecido por “santa mãe”, pelos motivos que adiante vereis, integrava também o meu Pelotão.
Um militar alto, bem constituído, de semblante carregado, de voz grave.
Quer no decorrer do IAO no Cumeré, quer mais tarde em Jumbembém na nossa zona operacional, quando o Pelotão se encontrava no mato, e principalmente de noite, era-nos exigido o máximo silêncio para a nossa própria segurança.
Por diversas vezes o “Rio Mau”, provavelmente em momentos de nostalgia, quiçá de desânimo, quebrava todas as regras de segurança e, com aquela voz grave, profunda, que no silêncio da noite parecia a voz de um fantasma, desabafava:
- Ai sannnnnta mãeeee, caraaaaalho...
Este camarada ex-combatente foi, ou continua a ser, motorista de transportes públicos em Cascais.
Num dos encontros de convívio dos ex-combatentes, a única vez que ele compareceu, já tive oportunidade de lhe relembrar estes seus sentidos desabafos.
A 12 de Janeiro de 1973, terminado o IAO, o Batalhão seguiu para o seu destino operacional, Farim, cuja viagem foi relatada por mim em O MISTÉRIO DO RIO CACHEU*.
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Notas de CV:
Vd. poste anterior de 18 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8129: Memórias de um ex-combatente (1): O desenrasca e a chegada a Bissau (Manuel Sousa)
(*) Vd. poste de 31 de Março de 2011 > Guiné 63/74 - P8020: Tabanca Grande (273): Manuel Luís Rodrigues Sousa, ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512 (Jumbembem, 1973/74)