1. Mensagem de 13 de Janeiro de 2012 de um nosso camarada que se assina apenas como Amílcar:
Assunto: ex combatente - fur. milº Inf Op - Farim 1972/74 (Bcaç 4512/72-CCS)
Bom dia.
Por estes dias tive o primeiro contacto com o teu blogue e no que se refere ao sector de Farim e Guidage (pelos funestos acontecimentos) estou parcialmente de acordo com as narrativas feitas. Não estive na frente de combate ou em Guidage, só posso referir o que os camaradas diziam sobre a situação explosiva que se vivia ali e o clima vivido na sede de sector. Do que tive oportunidade de ler a narrativa do ex-Fur Mil Ranger
Fernando Araújo* (2ª Compª do Bcaç 4512) está correcta.
Existem ex-combatentes vivos que estiveram na frente de combate, nos diversos dias que a acção decorreu, que poderão dar o seu depoimento. Todos os depoimentos que li e sempre que narravam situações que o combatente não foi protagonista entram em contradição com os referidos por quem os viveu.
Aqueles dias marcaram-nos inclusive a quem ficou a dar apoio às linhas da frente.
Num dos depoimentos é referido que o camarada Bento (Ccaç 14) foi morto pela explosão de mina quando todos os relatos, que tenho conhecimento, referem que foi morto por uma rajada de metralhadora que o cortou na região do baixo ventre. É um pormenor que ilustra bem as diferenças nas várias narrativas. Se queremos a verdade ela só será revelada por quem assistiu a tão trágicos acontecimentos.
A emboscada à 1ª coluna de ajuda a Guidage aconteceu no 1º dia, ao fim da tarde, só terminou ao raiar do dia seguinte, com o IN a derrotar as NT, e fazendo o correspondente assalto final. As munições de ajuda a Guidaje foram destruídas pelo bombardeamento das FAP (cerca das 9 horas) tal como as viaturas e alguns elementos IN que no momento estariam a roubar o conteúdo das Berliets. Os corpos dos nossos mortos foram recuperados semanas depois (quantas?), só após um grupo especial de Sapadores, de Tancos, ter chegado para o efeito.
A chegada angustiante ao quartel de Farim, naquela tarde de domingo de Maio, para verificarmos quem não tinha sido ferido, já que mortos eram 4 (o Bento, o Cabo Miliciano açoriano da 1ª Compª e 2 militares da Ccaç 14). Os feridos deitados no chão das Berliets e Unimogs, desnudados, enfaixados, recebendo soro, e a seu lado as enfermeiras e enfermeiros… O barulho dos motores dos helis, na pista, prontos para os evacuar.
Aquela tarde quente com o gosto amargo pela perda de camaradas, pelos camaradas feridos e mesmo pelos que voltaram sem ferimentos mas cansados e esgotados física/psicologicamente. E a dúvida acabou nesse fim de tarde; o furriel louro morto era o Bento e não o outro (não me recordo do seu nome) que também estava no teatro das operações e cuja esposa estava a viver em Farim. A imagem do encontro do casal nunca se me apagou da memória.
As fotografias documentam o primeiro ataque de foguetões que tivemos (o Batalhão dos velhinhos ainda se encontrava no sector) e a jangada que fazia a travessia do rio Farim (Cacheu), e, nos ligava a K3 (Saliquenhedim).
Quanto aos acontecimentos referidos no depoimento do ex-Fur Mil Ranger Fernando Araújo (2ª Compª do Bcaç 4512) sobre a morte trágica do Alf Mil que comandava o Pel Caç Nat 51 envio-te um ficheiro que consta das minhas memórias de guerra.
Constata-se que o inicio do diferendo não terá sido o reforço mas da não autorização para o militar africano visitar a mulher. Esta situação foi muito comentada pelos soldados africanos de Farim, pois diziam que não era razão para ele matar o alferes.
Para um primeiro contacto já vai longo.
Um abraço, até sempre
Amílcar
2. RETALHOS DE UMA GUERRA
JUMBEMBEM
(Pel Caç Nat 51)
Naquele fim de tarde, cerca das 17,30 horas, chegou a coluna militar de Jumbembem.
A notícia tinha-nos chegado horas antes e dizia o seguinte: o comandante do Pelotão Nativo 51, Alf. Milº, tinha sido abatido por um tiro, à queima roupa, dado por um soldado africano.
Convém aqui dizer que estes pelotões eram compostos por soldados negros comandados por oficiais e sargentos brancos.
Mais tarde, via rádio, fomos informados de que a coluna militar fúnebre se encontrava junto ao arame farpado do aquartelamento, para depositar o cadáver na missão do sono, donde, posteriormente, seria enviado para a Metrópole.
Estávamos no Comando do Batalhão. O Comandante, Coronel Vaz Antunes, saiu a recebê-los. À frente das viaturas vinham os soldados formados em 2 filas e com as armas em posição funeral-armas, desfile tão triste. Armas que até ali, e dali em diante, só apontavam para ceifar vidas, neste momento com os canos virados para o chão.
Feito o desfile o cadáver foi depositado.
No fim da coluna fúnebre vinha uma viatura “Berliet”, escoltada por 6 homens armados, e no estrado jazia o assassino. O homem tinha sido neutralizado e ataram-lhe as mãos atrás das costas com arame de espessura de 0,5 mm. A cara, de tantos muros e pontapés que tinha levado, estava tão inchada que parecia tudo menos o rosto de um homem. Os pulsos, devido, ao arame, estavam a sangrar. Quem o olhasse diria que estava morto. Só a respiração, ofegante, desmentia tal facto.
Foi chamado o médico do Batalhão, para certificar o estado de saúde do detido, para poder ir para a prisão, uma vez que o oficial de dia se tinha recusado a aceitar o preso naquele estado. O médico observou-o e recusou-se a aceitar o preso devido ao seu estado físico. Mas como a coluna tinha que regressar a Jumbembem, foi o Comandante de Batalhão a responsabilizar-se pelo estado físico do preso.
Apesar de o comportamento assassino do soldado ser reprovado por todos os militares (brancos e pretos), nesta morte ficou estampado todo o racismo recíproco existente. A morte motivada pela não autorização, por parte do alferes, para o soldado ir visitar a mulher, foi um crime, mas a fúria com que todos os brancos batiam no desgraçado, não era menos criminosa. Interrogados porque batiam no homem, respondiam; ele é preto.
Depois de tão martirizado, o soldado, recolheu à prisão onde permaneceu deitado, no chão, até ao dia seguinte.
Durante uns dias o médico assistiu-o, periodicamente, tendo este recuperado.
NOTA: Neste dia estava de sargento de dia ao batalhão
3. Comentário de CV
Caro camarada Amílcar muito obrigado pelo teu contacto.
O assunto que referes e a que acrescentas mais uns pormenores, foi já largamente tratado no Blogue.
Toda e qualquer declaração que aumente o nosso conhecimento é bem vindo, pelo que esta tua mensagem fica a fazer parte do dossiê Guidaje 1973. Antes de ti vários camaradas fizeram chegar até nós testemunhos dramáticos daqueles dias, pelo que nem me atrevo a salientar nenhum. Cada participação tem um valor incalculável porque são quase todos vividos na primeira pessoa.
Se assunto da tua mensagem se refere ao teu posto e Especialidade, então foste Fur Mil com a Especialidade Inf Op e pertenceste à CCS/BCAÇ 4512/72. Do teu Batalhão fazem parte da tertúlia, assim de repente, os camaradas
Manuel Marinho,
Manuel Sousa e o Fernando Araújo. Espero não ter esquecido ninguém.
Já agora, aproveito para te convidar formalmente a fazeres parte da Tabanca Grande. Para oficializares a tua candidatura, antecipadamente aceite, manda por favor uma foto militar e outra civil (actual) tipo passe e confirma o teu posto, Especialidade, Unidade, local de permanência na Guiné, e tudo o que achares seja útil conhecermos de ti. Se tiveres mais algum apontamento das tuas memórias que queiras partilhar connosco, assim como fotos, junta ao processo. Digamos que é a jóia para ser admitido.
Futuramente poderás continuar a contar-nos as tuas vivências em Farim, suponho, assim como a enviar fotos, com a respectiva legenda, por favor, para serem publicadas na nossa página. Deste modo contribuirás para a nossa memória futura.
Até ao teu próximo contacto, deixo-te um abraço
Pelos editores
Carlos Vinhal
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Notas de CV:
(*) Vd. postes de:
25 de Abril de 2010 >
Guiné 63/74 – P6249: Estórias avulsas (85): Como foi assassinado o Alf Mil Op Esp Nuno Gonçalves da Costa, do Pel Caç Nat 51 (Fernando C. G. Araújo)
e
8 de Abril de 2010 >
Guiné 63/74 – P6131: Estórias avulsas (82): A participação do 2º Pel 2ª CCAÇ/BCAÇ 4512, na Coluna a Guidage (Fernando C. G. Araújo)
Vd. último poste da série de 30 de Janeiro de 2012 >
Guiné 63/74 - P9421: O Nosso Livro de Visitas (124): Recordando as forças expedicionárias do RI 15 (Tomar) no Mindelo, São Vicente, Cabo Verde (1941-1943) (Adriano Miranda Lima, Cor Inf Ref)