Guiné > Zona Leste > Estrada Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho > CCAÇ 12 (1969/71) > s/d > Coluna logística... Homenagem ao nosso camarada e amigo Arlindo Teixeira Roda, ex-Fur Mil Inf, autor destas fotos, professor do ensino secundário (reformado, presumo), leiriense a viver em Setúbal, mestre do king, da lerpa, das damas e do xadrez, e de quem há muito não temos tido notícias... (Sei que tem duas filhas: será que é avô?).
Lembrei-me dele, hoje, dele, do Arlindo Roda e do Ricardo Reis, e dos seus jogadores de xadrez, um poema da antologia da poesia mundial... Não é, do Fernando Pessoa, um dos meus herónimos preferidos, mas este poema é um dos que figuram na minha antologia pessoal... Nunca joguei damas (o meu velho, esse, era um ás nas damas!), nem xadrez, nem king, nem lerpa... Não sou decididamente um jogador, nem sequer das máquinas do casino. (Se cheguei à roleta russa, foi no TO da Guiné!)...
Mas lembrei-me do Arlindo Roda e do Ricardo Reis, e do xadrez, num dia estranho, como o hoje, de chumbo, de negrume, pela manhã, em que a gente pergunta o que é a vida e o que vale a puta da vida... Assisti, muitas noites, à distância (mínima) que ia da minha mesa à mesa dos jogadores, a infindáveis partidas de king e de lerpa, pela noite dentro, enquanto fazíamos horas (eu, o Roda, o Levezinho, o Humberto, o Marques, o Zé Vieira de Sousa, o Branquinho, o Luciano, e tantos outros camaradas da CCAÇ 12) para mais uma emboscada, um patrulhamento ofensivo, uma coluna logística, um operação, um reforço a uma tabanca em autodefesa...Havia dias (e noites) de angústia mal disfarçada, como a de hoje, pela manhã, que se superava à tarde, por um qualquer gesto bonito de camaragem, de solidariedade, de amizade...ou pela leitura de um simples poema como, por exemplo, este do Ricardo Reis...
Desculpem-me se abuso deste espaço, que já não é meu, é coletivo, mas hoje apeteceu-me ser um dos dois compulsivos jogadores de xadrez persas em plena cidade em chamas...
"Quando o rei de marfim está em perigo,/ Que importa a carne e o osso / Das irmãs e das mães e das crianças? / Quando a torre não cobre / A retirada da rainha branca,/ O saque pouco importa. /E quando a mão confiada leva o xeque /Ao rei do adversário,/ Pouco pesa na alma que lá longe / Estejam morrendo filhos ".
Lembrei-me dele, hoje, dele, do Arlindo Roda e do Ricardo Reis, e dos seus jogadores de xadrez, um poema da antologia da poesia mundial... Não é, do Fernando Pessoa, um dos meus herónimos preferidos, mas este poema é um dos que figuram na minha antologia pessoal... Nunca joguei damas (o meu velho, esse, era um ás nas damas!), nem xadrez, nem king, nem lerpa... Não sou decididamente um jogador, nem sequer das máquinas do casino. (Se cheguei à roleta russa, foi no TO da Guiné!)...
Mas lembrei-me do Arlindo Roda e do Ricardo Reis, e do xadrez, num dia estranho, como o hoje, de chumbo, de negrume, pela manhã, em que a gente pergunta o que é a vida e o que vale a puta da vida... Assisti, muitas noites, à distância (mínima) que ia da minha mesa à mesa dos jogadores, a infindáveis partidas de king e de lerpa, pela noite dentro, enquanto fazíamos horas (eu, o Roda, o Levezinho, o Humberto, o Marques, o Zé Vieira de Sousa, o Branquinho, o Luciano, e tantos outros camaradas da CCAÇ 12) para mais uma emboscada, um patrulhamento ofensivo, uma coluna logística, um operação, um reforço a uma tabanca em autodefesa...Havia dias (e noites) de angústia mal disfarçada, como a de hoje, pela manhã, que se superava à tarde, por um qualquer gesto bonito de camaragem, de solidariedade, de amizade...ou pela leitura de um simples poema como, por exemplo, este do Ricardo Reis...
Desculpem-me se abuso deste espaço, que já não é meu, é coletivo, mas hoje apeteceu-me ser um dos dois compulsivos jogadores de xadrez persas em plena cidade em chamas...
"Quando o rei de marfim está em perigo,/ Que importa a carne e o osso / Das irmãs e das mães e das crianças? / Quando a torre não cobre / A retirada da rainha branca,/ O saque pouco importa. /E quando a mão confiada leva o xeque /Ao rei do adversário,/ Pouco pesa na alma que lá longe / Estejam morrendo filhos ".
Amigos e camaradas, desculpem lá qualquer coisinha!... E ao Arlindo, se me estiver a ler (o que é de todo improvável), mando um abraço do tamanho do Rio Corubal... Felizmente, amanhã é outro dia, e o sol volta a nascer... (LG).
Fotos: © Arlindo Teixeira Roda (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
Os Jogadores de Xadrez
por Ricardo Reis / Fernando Pessoa
Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia da Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.
À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário,
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.
Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.
Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.
Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.
Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indiferentes.
Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranquilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.
Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.
Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranquila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.
O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.
A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.
Ah! sob as sombras que sem querer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.
[1916]
In: REIS, Ricardo - Odes. Obras completas de Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1994. (Coleção Poesia).
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Nota do editor:
Último poste da série > 28 de janeiro de 2012 > Guiné 63/74 - P9413: Blogpoesia (175): Elegia para uma triste tabanca fula (Luís Graça