O João, já o conhecia, superficialmente, de um dos primeiros convívios da Tabanca do Centro. Natural de Aveiro, foi +professor no Instituto Politécnico de Leiria. Agora, o que não imaginava é que ele era também um dos homens-toupeira de Gandembel e um dos famosos letristas do Cancioneiro de Gandembel. Daí ele aparecer ao lado do Idálio Reis que, de resto, me ficou de mandar uma cópia das letras do Cancioneiro (que não se resume ao hino)... Infelizmente, uns meses depois a morte roubou-nos o João Barge.
Foto: © Luís Graça (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
1. Nos dia 9 e 10 do corrente, troquei com o Idálio Reis (ex-Alf Mil At Inf da CCAÇ 2317 / BCAÇ 2835 (Gandembel e Ponte Balana, Nova Lamego, 1968/69) a seguinte correspondência:
1.1. Idálio: (...) Diz-me se posso publicar, no todo ou em parte, no nosso blogue, os Gandembéis!... Aliás, gostava que fosses tu a apresentar: (i) o hino de Gandembel; e (ii) Os Gandembéis (incluindo a introdução sobre o vosso quotidiano em Gandembel)...
Ainda não tinha visto nada parecido, uma magnífica paródia dos Lusíadas!... (Bem, o nosso poeta Manuel Maia, o bardo do Cantanhez, fê-lo em relação à história de Portugal, mas é produção recente)...
Arte, mestria, drama, tragédia, epopeia, humor de caserna!... Uma obra-prima que mete o Cancioneiro do Niassa a um canto (sem desprimor para os anónimos autores, dos 3 ramos das forças armadas, da base de Metangula, que escreveram as letras das cerca de 4 dezenas de canções que integram o cancioneiro moçambicano).
Isto foi escrito em 1969, ainda no calor da batalha, seguramente não muito longe de Gandembel... Ainda cheira a pólvora, ainda sabe a sangue, suor e lágrimas:
(...) "Em Gandembel, tanta tormenta e tanto dano,
Tantas as vezes a morte apercebida,
No arame farpado, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida;
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida ?
Que não se arme e se indigne o céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno. (...)
Isto só pode ter sido escrito por gente com talento (literário), cultura, sensibilidade e... muitos dias de sofrimento e de insónias!!!
Quem são os seus autores ? Tu falas em "2 humildes anónimos"... Isto é claramente "made in Guinea", embora pós-Gandembel, quando vocês foram para o leste, para o Gabu, segundo percebi... Foram escritos em Nova Lamego, é isso, na "ressaca" de Gadembel ?!...Tinhas uma cópia em papel ? Foi reconstituído mais tarde ? De memória, seria impossível... Tens seguramente uma cópia...Nunca me tinhas falado dos "Gandembéis"...
Estou em pulgas para começar a publicar isso, numa nova série, com o teu nome associado... De alguma maneira, estamos ali todos naqueles cantos e naquelas oitavas decassílabas (são cerca de 65 estrofes, divididas por 4 cantos!)... Diz-me qualquer coisa...
Como sabes, o blogue deu a conhecer ao mundo "o suplício de Sísifo" de Gandembel, há uns anos atrás, na série Fotobiografia da CCAÇ 2317 (*)...Mas hoje temos muito mais audiência: em média, 4 mil visitas por dia (...)
1.2. Respostade Idálio Reis, com data de 10 do corrente:
Meu caro Luís: Em primeiro, aflorarei alguns aspectos quanto à divulgação do livro. Como te referi, atendendo a que o meu primeiro convívio de ex-camaradas da tropa é o de Monte Real, é meu desejo que o início da sua partilha tenha efectivamente aí lugar.
É para a tertúlia da Tabanca Grande, um dia de festa-convívio, e surge a ocasião mais que propícia para se concretizar esta intenção. E terá um digno cicerone, que é o J. Mexia Alves.
Também, como facilmente reconheces, já houve alguns pedidos para o seu envio, e a resposta foi sempre a mesma: (i) se lá estiveres, tudo bem; (ii) acaso não puderes estar presente, pede a um companheiro mais afim para to levar.
Abri, se a palavra for recta, com todo o carinho, duas excepções: há dias, apareceu-me o Paulo Santiago em minha casa, veio propositadamente de Aguada - não é longe da minha aldeia - com quem partilhei um exemplar, com um outro como portador para o seu conterrâneo Victor Tavares. O Torcato Mendonça, para ficar mais sossegado, enviei-lhe a cópia final das provas, em formato pdf.
E sobre isto, julgo que terias o mesmo procedimento, ou haverá algum equívoco da minha parte?
Quanto ao capítulo Os Gandembéis, imodéstia à parte, ficou bem, até porque junta alguma gente da Companhia. Já há muito tempo, o Blogue divulga o Hino. Desde o meu António Almeida, de alguns baladeiros, até aos Furkuntunda, foi uma dádiva muito especial.
Quanto aos Gandembéis, obviamente que sabia da sua existência, mas só consegui obter uma cópia, já em período posterior aos meus apontamentos no Blogue. Como referes, é uma obra-prima. Está lá a história da Companhia, inclusive a do Bigode Reis, que pela Guiné toda faça espanto, de RDMs e recusas singulares, de Gandembel as terras e do Carreiro os ares. E há um fundo de verdade, nestas palavras.
É uma obra que o apaziguador tempo de Nova Lamego proporcionou. Os seus autores, são anónimos e humildes. De todo o modo, faço-te a revelação: um deles, foi o malogrado e inesquecível João Barge, um filólogo de escol, e que decerto seria a única pessoa capaz de emprestar tanta arte e sensibilidade à sua pena.
Ainda que tivesse surgido em Gandembel, nos finais de outubro/princípios de novembro [de 1968], e num período em que se vivia já numa situação de mais alívio, teve a ajuda de um dos pioneiros da Companhia, um ex-furriel que ao tempo já era professor primário.
Luís, quanto à sua antecipada divulgação, fica ao teu critério. O capítulo tem um texto meu, e o resto já sabes. Para o efeito, faço anexar esse capítulo.
Por fim, uma mensagem. Gostava muito, que o livro fosse inserto da forma que já te enunciei. Ao Blogue, pertence-lhe uma grande quota-parte do seu aparecimento.
Um caloroso abraço do Idálio Rreis.
Foto: © Idálio Reis (2007) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
por Idálio Reis (*)
Na fria e imensa crueldade dos sofridos tempos de vivência em Gandembel, não seria possível resistir, por inteiro, se um forte espírito de solidariedade e de companheirismo não se irmanassem numa incontida e estóica perseverança. Teria de haver, alicerçada na junção indefectível daqueles homens, tantas e tantas vezes assolados pela perfídia do inimigo, ocasiões a surgirem, para podermos desfrutar de bons momentos de lazer, já que tão essenciais elas se revelavam no alívio de almas angustiosas e inquietantes, que aquele malévolo poiso, acintosa e despudoradamente, desencadeava.
Se, de todo, jamais poderíamos ficar indemnes a essas incontáveis vicissitudes resultantes das diversas contingências de uma guerra que não dava tréguas, forçosamente teríamos que arranjar formas capciosas de as enfrentar, a fim de serenar os nossos abalados espíritos. A confraternização entre todos, era a mola crucial para o esconjuro, e muito certamente a forma mais enternecedora para superar os fantasmas, que assolavam pungentemente os nossos lídimos sentimentos de aversão e revolta.
No geral, já com a Companhia instalada nas suas casernas-abrigo, e quando as tarefas não se tornavam impeditivas, as tardes propiciavam à junção de grupos mais afins, para reinventarem entretenimentos, e deixar passar o tempo insinuantemente, e que representavam autênticos momentos de um indelével prazer, à mercê da espontaneidade e da imaginação que cada um de nós fazia surtir, para vir a ser a preferida de momento.
Para além de incluir o arranjo de certos artefactos de carácter colectivo, tendentes ao conforto, como os casos de pequenas cabanas muito simples, onde coubessem uma mesa e bancos, de chuveiros em que a água emanasse em maior débito, ou até de zonas da lavagem de roupa ou das marmitas/latas do rancho, havia lugar às brincadeiras de puro divertimento e encanto, que a meninice retivera, mas com um único senão, que era a zona de recreio ser limitativa, imposta por razões de segurança pessoal. É que mesmo durante a claridade do dia, não se inibia a que houvesse olhos e ouvidos permanentemente atentos à emergência de putativos perigos advindos do exterior ao arame farpado.
Mas, se uns tinham mais apetência pelos jogos ao ar livre, outros preferiam os passatempos de caserna, onde preponderava a arte da prestidigitação dos baralhos de cartas, em que o jogo da sueca detinha uma larga primazia. Formaram-se parelhas de grande valia, particularmente difíceis de derrotar nalguns campeonatos que se realizavam a troco de umas cervejas frescas, que era a bebida de maior requinte, que de quando em vez até surgia em Gandembel.
Havia uns quantos, mais propensos a outros tipos de iniciativas, de índole branda e afectiva, que através de um singelo aerograma, buscavam corresponder-se com uma madrinha de guerra de encantamento e sedução, e que em determinadas circunstâncias, muitas vezes se vieram a tornar elementos fundamentais na estabilidade de temperamentos emotivos.
Havia também os mais artífices, que em geral, transformavam produtos utilizados da guerra, em pequenos e preciosos artigos de paz, que se guardavam como adereços de primazia, e ainda hoje perduram como gratificante recordação da comissão.
Mas, os de carácter mais expansivo, talvez os que melhor sabiam contrapor a tolerância às hostilidades, de forma a quietarem as suas incomodidades, entretinham-se no cantarolar ou assobiar as músicas das canções em voga, aprendidas nos bailaricos de há poucos meses atrás.
No trauteio dessas canções, havia uma colectânea vasta para fazer surgir o despique, como forma de reconhecer os mais exímios no ajuste ressonador dessas melopeias.
E daí, surgiu espontaneamente uma ocasião única, singular, um momento particularmente grato, de alguém ter concebido com imaginação e engenho, o hino de Gandembel. Após algumas sessões de requintada afinação, não duraria muito tempo para que não fosse amplamente aceite por toda a Companhia.
(Continua)
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Notas do editor:
(*) Vd. postes da série:
16 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá
9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo´
12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel
2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras
9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1743: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (5): A gesta heróica dos construtores de abrigos-toupeira em Gandembel
23 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço
21 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1864: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (7): do ataque aterrador de 15 de Julho de 1968 ao Fiat G-91 abatido a 28
8 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1935: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (8): Pára-quedistas em Gandembel massacram bigrupo do PAIGC, em Set 1968
19 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques
18 de Setembro de 2007>Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)
10 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)
(**) Fonte: REIS, Idálio - A CCAÇ 2317 na Guerra da Guiné: Gandembel / Ponte Balana. Ed. de autor, [Cantanhede], 2012, pp. 197-198.