Do Ninho D'Águia até África (2)
Montando o Centro de Cripto em Mansoa
O Unimog, pois é assim que chamam à viatura onde viaja o Cifra, que vai sentado num dos bancos corridos que foram colocados em cima desta viatura, que é uma espécie de uma camioneta pequena, com as rodas muito altas, e toda aberta, incluindo a cabine.
O Cifra, leva vestido um camuflado novo. Na cabeça, leva um boné, também de pano camuflado, a que chamam “quico”, é uma espécie de boné com duas palas, uma na frente e outra atrás, mas com dois bicos, o que o Cifra, nunca compreendeu porquê, estes dois bicos. Devia levar um capacete de ferro, mas durante os dois anos em que esteve na província, nunca lho distribuíram, e o Cifra, também não o pediu.
Leva a G3 entre as pernas, segura com ambas as mãos, com o carregador cheio e pronta a disparar, um cinto com dois carregadores extras. Um pouco à frente, na viatura, vai um pequeno monte de malas e sacos, pertencentes aos militares que viajam com o Cifra. São os seus haveres.
Saíram do acampamento, já passava das nove horas da manhã.
Iam a caminho duma vila no interior da província, onde iriam ser colocados. A estrada era estreita, mas quase toda de alcatrão, e em alguns locais, estava coberta com alguma água.
O Cifra ia com algum receio, pois era voz corrente, de que depois de saírem da capital da província, não se podia andar um metro, que havia logo, um guerrilheiro, “armado até aos dentes”, coberto de armas e munições, com catana e tudo, atrás de cada árvore ou arbusto, que encontrassem pelo caminho!
Enfim, sempre que algum colega falava mais alto, ou sempre que ouvia algum barulho fora do normal, o Cifra ficava quase em pânico, e agarrava-se à G3, com quanta força tinha!.
Começa a chover. Tanto ele como os outros militares ficaram encharcados, diziam que era o começo da época das chuvas. O Cifra não sabia o que era a época das chuvas, só sabia que estava molhado até aos ossos, mas mesmo assim não tirava os olhos da sua mala e do saco, principalmente do saco, onde ia a sua roupa, parte dela suja e cheia de lama, usada no acampamento, onde tinha estado por três semanas, e onde não havia condições nem meios para a lavar.
E o Cifra, para ver se perdia um pouco de receio, que o atormentava, começa a falar sozinho:
- Agora, com esta chuva é que a roupa suja de lama, que vai dentro do saco, vai ficar numa lástima, e é capaz de contaminar e sujar toda a restante, e para mais com aquela goma, que a ganga de que é feita tem, quando é nova!
Com estes pensamentos, chegaram ao local de destino.
O furriel miliciano diz, com a água da chuva a escorrer-lhe pela face e a entrar pela boca:
- Tirem as vossas coisas, e acomodem-se o melhor que poderem naquele local, onde há algumas paredes, e o resto do telhado.
Quando o furriel miliciano, se referia às paredes e ao resto de telhado, estava a referir-se às ruínas do que diziam ter sido um convento de padres de uma ordem religiosa francesa.
E continuando, a falar, diz:
- E tu, oh Cifra, quando puderes vem buscar esta mala e este saco, que são meus, e ajeita-me lá um espaço, ao pé de vocês, pois eu ainda tenho muito que fazer.
Cada um procurou, o melhor possível, acomodar-se, e logo se improvisaram camas no chão, com o saco molhado, a servir de travesseiro. Todos barafustavam, mas iam arrumando as suas coisas.
Lá mais para o final do dia, o Setúbal, que foi baptizado com este nome, porque o principal era Jeremias, e não dava muito jeito a pronunciar, diz para o Cifra:
- Tenho fome!
E dito isto, começa a subir para uma enorme árvore, o que mais tarde, souberam que era uma “Mangueira”, e começa lá de cima, a abanar os ramos de onde caíram bastantes “mangos”, que era uma fruta deliciosa!
O furriel miliciano, vendo isto, grita-lhe:
- Aí em cima, estás mesmo a jeito, para levar um tiro dos guerrilheiros! Vem já para o chão, e vem com cuidado, porque podes cair, e se não morres do tiro, morres da queda!
Alguns, riram-se, outros ficaram ainda com mais receio, como foi o caso do Cifra.
A partir daí aquela árvore, passou a chamar-se a “Mangueira do Setúbal”!
Havia, mais ou menos no centro das ruínas, uma fonte, com uma bica que deitava alguma água, o Cifra perguntou a um militar, que já se encontrava há algum tempo, naquela área:
- Esta água, é boa para beber? - Ao que ele respondeu, tirando um cigarro da boca, mostrando uns restos de dentes quase pretos. Era um homem novo, com cara de velho:
- Eu não sei, eu não sou de cá!
E o Cifra pensou, que não fazia muita diferença beber ou não, pois se bebesse, era capaz de morrer, mas se não bebesse, também era capaz de morrer, mas à sede!
Nesta altura, passa o capitão, que era o comandante da companhia, que já lá se encontrava, e o militar, depois do capitão passar, diz, mostrando de novo o resto dos dentes quase pretos:
- Tem cuidado com este gajo, pois ele parte tudo à bofetada! Tanto faz ser soldados como furriéis!
Com estas boas referências, o Cifra, fica colocado em possível cenário de guerra, no interior da província.
Faz parte do comando de uma unidade militar, que irá controlar todos os movimentos de tropas na região. Pelo menos de dia, pois de noite ninguém tinha autorização de sair da área do aquartelamento que entretanto se estava a construir, ao lado das ruínas, assim como em qualquer parte de toda a província. Era proibido andar fora das áreas aquarteladas, de noite.
Há tudo a fazer, desde instalações militares, pista de aterragem para avionetas e helicópteros, paiol, enfermaria, dormitórios, cozinhas, lugares cobertos para refeições, e mais um sem número de outras coisas, que fazem um comando funcionar.
Claro, protecção, ou seja, abrigos subterrâneos e à face da terra, gradeamentos, com arame farpado, em toda a volta do aquartelamento, com especial protecção, em certos pontos estratégicos. Para isso havia sob o comando desta unidade militar, um batalhão de cavalaria, que veio mais tarde, parte de uma companhia de engenharia, um pelotão de morteiros e demais pessoal, que não importa agora mencionar.
Este aquartelamento estava a construir-se num local com alguma estratégia. A este havia uma grande aldeia, com casas cobertas de colmo, onde viviam naturais da província, de uma certa etnia, que pelo menos, se mostrava fiel aos militares.
A norte e oeste, era a vila, típica colonial, com algumas casas de adobe, e cobertas a folhas de zinco, e dos lados algumas bananeiras, que se viam da rua.
Na vila, sobressaiam o posto dos correios [, foto à direita de César Dias, 1970], o mercado, com as suas bancas, onde se vendia de tudo um pouco, e onde não faltavam alguns cães vadios, que não deveriam de ter dono, pois estavam lá todo o dia e alimentavam-se do resto da carne e ossos, embrulhados em folhas de bananeira, que se vendiam em determinada área do mercado, a sede de um clube de futebol local, que abria à tarde, e vendia cerveja à temperatura ambiente, e gasosa muito doce, a saber a cana-de-açúcar, uma pequena igreja, pintada de branco, onde havia missa, sempre que era possível vir um padre da capital da província, um estabelecimento comercial, propriedade da Companhia Ultramarina, que recolhia alguns produtos que os naturais vendiam, a troco, muitas vezes, de bugigangas, sem qualquer valor, ou uns panos de chita, algumas casas pintadas mais a preceito, onde viviam alguns negociantes de madeira, uma casa, que era uma espécie de taberna, de uma senhora de origem cabo-verdiana, que juntamente com as suas filhas, vendia comida e cerveja mais ou menos fresca, que tirava de um frigorífico, que diziam que funcionava a petróleo, cerveja esta que os militares lhe traziam da capital da província, um posto de enfermaria, o edifício público onde funcionava, uma espécie de câmara municipal, que emitia documentos de identificação aos naturais, que queriam viajar de umas povoações para outras, sem serem incomodados pelos militares, entre outras coisas.
As ruas eram direitas, com algumas árvores, em especial Mangueiras, que estavam pintadas de branco, na sua base, pelo menos dois metros de altura. O Cifra, nunca compreendeu porquê, essa pintura. Do lado sul, havia matas, que diziam, mais tarde seria um campo de aviação. Mas creio que isso nunca sucedeu, pois usava-se uma zona ao norte, ao lado da tal aldeia, com casas cobertas de colmo, que era plana e onde aterravam as avionetas, e helicópteros.
Mais a oeste, quase à entrada da vila, passava um rio, com uma ponte em cimento, com um arco, e diziam que era a ponte mais importante da província. Embora, a vila se encontrasse a muitos quilómetros do mar, a maré subia alguns metros, o que fazia ficar grandes áreas submersas, e quando a maré era baixa, deixava a descoberto essas mesmas áreas, que era só lama, e passava a ser o paraíso de algumas aves e crocodilos, enterrados nessa mesma lama.
Mansoa > Ponte sobre o Rio Mansoa
Foto: © Joaquim Mexia Alves (2008). Todo os direitos reservados
O Cifra, tal como o nome indica, tem por missão ajudar a organizar e montar um centro cripto onde funcionará um sistema de cifra que ajuda a comunicação, em código, entre todas as forças militares que estão estacionadas na região, em diferentes zonas de guerra. Monta-se um centro cripto com o mínimo de segurança e organiza-se turnos de modo a funcionar vinte e quatro horas por dia. O centro de transmissões, recebe a mensagem em código, entrega-a por mão no centro cripto, este por sua vez decifra o conteúdo da mensagem e entrega-a no comando, também por mão.
Como já compreenderam, o Cifra, esse puto, que acordava, na sua aldeia do Ninho d’ Águia, ao som do comboio das seis e meia, tem a guerra na mão! Sabe de tudo o que se passa nas zonas de combate, primeiro que os comandos. Como entrega a mensagem, já decifrada, no comando e por mão, por vezes, vê na expressão do rosto do comandante e seus pares, sabendo ele o conteúdo da mensagem, se o comando vai agir, se se cala ou se movimenta tropas. [Foto à direita, de Paulo Raposo: placa toponímica, Mansoa, 1968].
Enfim, era como aqueles párocos das aldeias, no interior de Portugal, que sabiam a vida de todos os paroquianos, através das confissões.Não diziam nada. Mas sabiam.
Todos os meses mudava o código no sistema de cifra. O Cifra tinha por missão, tal como os seus companheiros no centro cripto, todos os meses ir entregar, também por mão, o novo código ao comando de todas as forças militares que operavam sob o comando da sua unidade. Mais tarde, quem tinha essa missão eram os camaradas criptos, do comando do Batalhão de Cavalaria, que se veio instalar no novo aquartelamento, ainda em construção, mas numa fase já mais adiantada, pelo menos já havia local coberto, para se dormir, embora ainda não houvesse paredes.
As forças militares deste Batalhão de Cavalaria ficaram instaladas no novo aquartelamento, mas o comando, depois de reconstruir parte das ruínas, ficou aí a funcionar, e construiu uma “Porta de Armas”, com o emblema do Batalhão, bastante bonita, e que era o orgulho dos militares.
Diziam que o comando do Batalhão não gostava de trabalhar em colaboração com o comando das forças militares a que o Cifra pertencia, que funcionava no novo aquartelamento, em algumas habitações, entretanto acabadas. Rivalidades, talvez. Mas os militares de acção, e não só, davam-se bem e eram amigos, pois dormiam e sofriam juntos as agruras e tristezas desta maldita guerra.
Mas voltando ao assunto, os documentos que se transportavam em envelopes fechados, com o carimbo de “muito secreto”, como era de prever, eram entregues por mão a todas as forças militares que se encontravam estacionadas em cenário de guerra.
Tanto o Cifra, como os seus camaradas, usava os mais diferentes meios de transporte. Desde a avioneta do correio, uma coluna militar de movimentação de tropas, o carro dos doentes, que normalmente era protegido por uma secção de combate, ou um helicóptero que cruzasse a zona. Enfim, no final de cada mês andava à boleia na guerra!
Isto, era o que se dizia entre os cifras.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. primeiro poste da série de 21 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10177: Do Ninho d' Águia até África (1): Mobilização e partida para um Comando de Agrupamento (Tony Borié, ex-1º cabo cripo, Cmd Agrup 16, Mansoa, 1964/66)