1. Quadragésimo segundo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177.
DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (42)
O Cifra, quando da sua instrução básica, num quartel da
província, e ainda se chamava Tó d’Agar, no seu último dia de
instrução já tinha guia de marcha para se deslocar, ao outro
dia, para um quartel nos arredores da capital, mas nessa última
noite passada nesse quartel, na formatura do recolher, um
militar, primeiro cabo, que já fazia de sargento de dia, pois
estava à espera de promoção a furriel, tinha umas divisas
parecidas com as de furriel miliciano, mas não era miliciano,
era um primeiro cabo, que devia ter assistido a um curso, que
lhe daria a promoção ao posto imediato, fez de todos os
militares presentes no quartel, nessa formatura de recolher,
“gato e sapato”, como se costuma dizer.
Mandava pôr em sentido, chamava pelo número e vinha ver se
era a pessoa, pedindo a identificação, enfrentava-a com cara de
mau, mas ridícula, pois fazia rir a pessoa com quem falava, depois dava uma volta em seu redor, revistava o cabelo, a barba, a farda, os
emblemas limpos, as botas engraxadas e depois
passava um raspanete agressivo, mesmo sem
motivo.
Isto tudo na parada e numa formatura de
recolher, portanto à noite, prolongando-a por mais de uma hora, pois fazia os militares ficarem
em sentido, às vezes por cinco minutos. Às tantas, alguns mais
atrevidos, começaram a
mandar “bocas”, como por
exemplo,
“queres promoção”,
“cabrão”, “lateiro”, “toma
lá disto”, “filho da p...”,
e mais uns tantos nomes que envergonhavam qualquer
um. Falavam de uma ponta
da formação, e quando ele
corria a ver quem era, logo
outro chamava da outra
ponta, fazendo rir toda a formatura. O homem
queria mandar, tinha mesmo
sede de mandar, e com os
seus excessos, tornou-se
ridículo. Talvez tivesse
sido treinado para isso.
O tempo passou, e estando o Cifra sentado no patamar de
cimento, em frente ao centro cripto, no aquartelamento de Mansoa,
a olhar o horizonte, a pensar na sua aldeia em Portugal,
esperando que alguma mensagem viesse do centro de transmissões,
ouve um barulho. Levanta os olhos e vê chegar umas tantas
viaturas com tropas novas. Levanta-se, fecha a porta do centro
cripto e vai ver se vinha alguém da sua zona em Portugal, dando de
repente de caras com o tal primeiro cabo, que só era mesmo primeiro cabo.
Primeiro, olhou bem, sim era ele, pois usava óculos
graduados, depois fez tal e qual como ele lhe fez na parada do
tal quartel na província em Portugal, deu uma
volta em seu redor, e depois certificando-se
que era a mesma pessoa, e vendo as divisas
de, só, primeiro cabo, disse-lhe, tirando o
cigarro
três vintes da boca:
- O que é que passou? Eras comandante.
O homem, não perdendo a compostura, encara o Cifra, e pergunta:
- De que é que o nosso cabo, está a falar?
- Olha, de uma noite miserável que me fizeste passar num
quartel da província, em Portugal.
Ele, então baixa um pouco os olhos, e diz:
- Eu sei, não
és só tu que me
tem dito isso,
fui treinado e
instruído para
isso, e essa
noite era uma
das provas da
minha promoção,
não fui muito
feliz e
castigaram-me,
não me
promoveram, e
tenho sorte em
ser primeiro
cabo, porque depois disso já fui castigado outra vez, por assuntos
que não gosto de lembrar. Agora estou aqui, com estas divisas, e
tenho que provar mais alguma coisa. Olha, por favor ajuda-me,
onde posso beber água? Isto aqui é difícil? Onde é que vamos
dormir?
O Cifra não sabia onde é que iam dormir, mas guiou-o o
melhor que pôde, e também lhe disse que não tinha que provar
nada, tinha mas era que tentar sobreviver e deu-lhe todo o
apoio que era possível durante o tempo em que esteve em Mansoa. Também lhe explicou que às vezes, depois da hora do
recolher, os guerrilheiros costumavam dar tiros e atacar o aquartelamento com granadas de morteiro, e que nessa altura estávamos todos unidos para nos proteger, pelo que não havia recolher nenhum. Desejou-lhe a maior sorte do mundo,
pois foi para uma zona de combate, como tantos outros.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 5 DE JANEIRO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P10900: Do Ninho D'Águia até África (41): Outra vez, a menina Teresa (Tony Borié)