1. Mensagem do nosso camarada Mário Ferreira de Oliveira* (1º Cabo Condutor de Máquinas, na situação de reforma, Vedeta de Fiscalização Bellatrix, 1961/63), com data de 8 de Janeiro de 2013:
Luís Graça e Camaradas da Guiné
Um Bom Ano Novo
Quero começar por agradecer a Honra que me foi concedida de ser admitido como membro de pleno direito da Tabanca Grande. Devo contudo fazer uma pequena afinação na minha ficha de inscrição, eu sou cabo C.M. dos Q.P. na situação de Reforma. Cabo CM significa cabo condutor de máquinas, antigamente éramos fogueiros-motoristas, aqueles gajos que enegrecidos pelo pó do carvão ou o corpo manchado por salpicos de óleo só seriam vistos e o seu labor valorizado, se o convés dos Navios de Guerra fosse de vidro. Conduzíamos enormes caldeiras e outras máquinas e “maquinetas” que propulsionavam os navios e alimentavam de energia todos os sistemas de armas. Apesar de sermos a base do poder técnico-militar dos navios, éramos mal amados pelos “Tétézinhos” que, de reluzente uniforme branco e unha envernizada, zelavam pela disciplina na Armada.
Isto que acabei de escrever não é História, é pré-história, fui há uns meses visitar uma fragata daquelas obsoletas nas Marinhas da NATO que os nossos aliados nos cedem a troco de uns milhões, e vim de lá “maluco”: o camarada cabo CM, que teve a gentileza de me mostrar as instalações de máquinas, levou-me no final a uma sala com ar condicionado, repleta de monitores, onde através de câmaras de vídeo e comandos à distancia os CM confortavelmente sentados, conduzem todo o sistema de máquinas.
E lembrei-me então daquela noite em Bissau, atracados à muralha, ia o NRP Sal a caminho de Angola, estava eu de “quarto” ao gerador, o chefe de máquinas, espreitando pela escotilha “caçou-me” sentado no vão da porta da casa das máquinas P.P. a menos de um metro do gerador, bastava-me estender o braço para apalpar o tubo de circulação de água, e só não me deu cinco dias de detenção, segundo me afirmou no dia seguinte, depois de me passar uma valente “piçada”, por eu estar na 1ª classe de comportamento, isto é absolutamente inacreditável, eu não abandonei o gerador, estava apenas sentado junto dele. Mas vamos lá então ao meu relato de hoje.
O Soldado Desconhecido do “Ana Mafalda”
Quando o “Botas” mandou apitar à faina e ordenou “largar cabos” e “avante a toda a força” que Angola é nossa, milhares de rapazes foram arrancados das suas aldeias, e depois de uma carecada, aprenderem a fazer direita volver e apresentar armas, foram enfiados em tudo o que navegava e enviados, parte deles sem saberem sequer a localização geográfica, para Angola, Guiné e Moçambique, defender sonho que se verificou irrealizável do Portugal do Minho a Timor.
Entre o que navegava e foi aproveitado para o transporte de homens e todos o tipo de equipamentos e armas, encontrava-se um navio da Sociedade Geral, o “Ana Mafalda”, pomposamente classificado na época de navio de passageiros, podia na realidade transportar 56 passageiros em três classes, 1ª, 2ª e 3ª e nos porões umas valentes toneladas de carga. Nos porões foram montados beliches e, onde anteriormente se estivavam toros de madeira ou carga a granel, passaram a alojar-se, nas piores condições, soldados (vulgo carne para canhão) e o "Ana Mafalda" passou a ter mais uma classe: a 4ª, transformando-se finalmente em navio de passageiros.
Mas perdoem-me a ironia, naquela viagem para a Guiné foi também um navio “turístico” porque para nós, marujos, navegar sem fazer “quartos” é turismo, é que o navio transportava também cerca de três dezenas de marinheiros que seriam a primeira guarnição do Comando da Defesa Marítima da Guiné e da primeira Esquadrilha de Lanchas, Bellatrix, Canopus, Denebe e LDP 1 e LDP 2.
Saída a barra do Tejo, apresentou-se-nos um mar calmo mas de ondulação larga que fazia baloiçar o "Ana Mafalda" de BB-EB e de proa a popa, curiosamente não estando mau tempo, é do pior que se fabrica para “maçaricos” que pisem pela primeira vez o convés de um navio a navegar.
Contudo, a maior parte dos soldados portou-se galhardamente, havendo mesmo grupos que jogaram à lerpa de Lisboa a Bissau, enquanto houve uns patacos jogou-se, a coisa só amainou quando os mais hábeis limparam literalmente os bolsos dos “saloios”. Recordo-me até de um dos rapazes ter sido apontado como o gajo que ganhou mais dinheiro.
Aí pelo quarto dia de viagem sem factos a registar, a não ser dois marinheiros dos mais antigos terem ido protestar junto do Comandante de Bandeira, pela má qualidade da alimentação, coisa que de imediato se resolveu, passando as praças da Marinha a comerem do rancho dos Sargentos do Exército, estava uma “gajada” composta de marinheiros e soldados a descascar favas (não estou a reinar, estávamos em Abril, mês das favas) em cima dos pranchões que tapavam a boca do porão, quando por nossa surpresa uns quanto soldados transportavam em braços, conforme podiam, um camarada meio desfalecido que depositaram em cima das cascas das favas.
- Ai, Ai - gemia o desgraçado! Ai que não volto a ver a minha rica mãezinha!
Olho para o gajo e disparo:
- Oh pá tem, lá calma que de enjoo ninguém morre!
- Morre, morre - afirmaram os que o tinham trazido do fundo da 4ª classe para o ar puro do convés, o que tinha sido uma boa ideia - ele há quatro dias que tudo o que come ou bebe vomita.
Acontecia que eu, apesar da minha pouca idade, 24 anos, era já um “velho marinheiro” e sabia que o enjoo é como o medo, todos o sentem, o segredo é aprender a dominá-lo. É que eu aos 24 anos já tinha navegado uns milhares de milhas. Além da comissão a Angola no N.R.P. Sal, no Petroleiro Sam Brás (quem é que se lembra dele) tinha feito sete travessias do Atlântico para as Antilhas Holandesas (Aruba e Curaçao) e contava no meu curriculum com duas viagens das Antilhas a Nova Yorque.
Quanto a enjoo tinha feito o meu “tirocínio” nos melhores navios que para esse efeito existiam: os Destroyeres. Nas manobras que em 1957 se fizeram com uma Esquadra da NATO, que foram interrompidas por causa da Gripe Asiática e do mau tempo, eu tinha sentido a bordo do NRP Dão o que o “Soldado Desconhecido” estava a sentir. Na Armada o enjoo não é doença, e um gajo mesmo que vomite as tripas e metade do fígado tem que fazer os “quartos”. Eu já tinha sofrido de enjoo até às lágrimas, quando se tem de recorrer às ultimas reservas do querer, no limite da resistência moral e física, e num esforço inimaginável fazer o que está superiormente determinado.
Decidi então dar a mão àquele “sacana”, começando por dizer aos camaradas que o reclinassem com as costas apoiadas num saco de favas, e ao gajo eu disse:
- Olha para o horizonte lá longe onde o mar se junta com o céu, não olhes para o mar aqui junto da borda, que te faz andar a cabeça à roda!
- Ai, Ai - continuava o rapaz.
Encosto-me a ele e digo-lhe ao ouvido:
- Tu és homem para guardar um segredo?
- Sou, sim, senhor marinheiro.
- Olha, eu sou um homem igual a ti, também enjoo (o que era verdade) mas tenho uma erva que trouxe da Índia (o que era mentira) e quando o mar está bravo e me vejo aflito, tomo um chá e fico logo bom, vou-te fazer um chá dessa erva que te faz passar o enjoo, mas tens de ficar de bico calado, porque já tenho pouca erva.
Feito o acordo, fui à cozinha do navio e pedi um púcaro de chá e umas bolachas ao despenseiro, o soldado bebeu o chá em pequenos goles como lhe recomendei e foi mordiscando as bolachas. Fui dizendo ao gajo:
- Olha que isto não vai passar já, vais ficar melhor pouco a pouco, se apetecer vomitar fazes força e não vomitas, porque o chá não deixa. Dormes cá em cima ao ar puro e vais ver que com o fresco da noite ficas melhor, e amanhã vais almoçar ao pé de mim, e depois voltas a beber outro púcaro de chá, calas é o bico!
Tive o meu “protegido” debaixo de olho até chegarmos a Bissau. O “gajo” recuperou bem. Nunca mais o vi. Que Deus o guarde se ainda for vivo.
Largamos de Lisboa a 27-4-1961 (salvo erro).
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 1 DE DEZEMBRO DE 2012 >
Guiné 63/74 - P10746: Tabanca Grande (369): Mário Oliveira, ex- 1º Cabo Condutor de Máquinas (na situação de reforma), Vedeta de Fiscalização Belatrix, 1961/63, grã-tabanqueiro nº 589