1. Quadragésimo quinto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177, chegado até nós em mensagem do dia 15 de Janeiro de 2013:
DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA (45)
Quando criança, o Cifra, que nessa altura se chamava To
d’Agar, descalço e com uns calções que tinham sido do irmão
mais velho, assistia com algum frio no corpo, às classes do
professor Silvério, que entre outras coisas lhe dizia:
- O grande navegador e explorador
Nuno Tristão, navegando numa “casca de
noz”, por volta do ano de 1450, sempre
debaixo dos auspícios do reino de
Portugal, descobriu a Guiné, onde existem
leões, elefantes, tigres e macacos.
E mostrava um mapa mundo pendurado
na parede, apontando com uma cana fina e
seca, com que lhe batia nas orelhas,
algumas vezes, para um pequenino espaço, onde dizia que aí era
a Guiné.
Estas palavras do professor Silvério não mais lhe saíram
do pensamento, primeiro por mencionar leões, elefantes, tigres
e macacos, e segundo por lembrar a cana, fina e seca, com que lhe
batia nas orelhas.
Nunca gostou que lhe batessem, o pai e a mãe repreendiam mas não batiam, só os irmãos mais velhos é que às
vezes lhe batiam, mas coisa sem importância, e estavam logo
amigos, mas não gostava.
Se algum adulto lhe batia por qualquer
coisa que tivesse feito, que não estivesse de acordo com as
regras, que esses mesmos adultos ditavam, ficava revoltado e
chorava, às vezes por horas.
Os amigos, antigos combatentes, já estão a pensar que ao
Cifra, hoje deu-lhe “pró moral”, mas não, tudo isto vem a
propósito de no tempo em que o Cifra esteve estacionado no
aquartelamento de Mansoa, na então província da Guiné, e dado ao
desenvolvimento do conflito armado, que com o passar do tempo se
intensificava cada vez mais, o aquartelamento funcionava como se
fosse um posto avançado de fronteira, com chegada e saída de
militares e equipamento bélico, que às vezes, talvez debaixo de
algum stress, pois a partir de Mansoa entravam no verdadeiro
cenário de guerra, os
militares criavam
pequenos conflitos,
dentro do grande
conflito em que
estávamos todos
envolvidos, e não era
necessário ser bom
observador para ver
que havia militares,
mas cada caso era um
caso, como por
exemplo o soldado
atirador, Curvas,
alto e refilão que
tinha uma linguagem
reles e agressiva, que não acatava ordens e
tinha algum desprezo
pela sua própria vida,
outros, eram mesmo graduados, poucos, felizmente muito poucos,
quase que se contavam pelos dedos da mão, que deviam de ter
assimilado o treino total a que foram submetidos, e agora em
pleno cenário de guerra, não aguentavam a pressão psicológica,
da responsabilidade que tinham entre mãos.
O tempo que nos resta, a nós antigos combatentes, já não é
muito, e deve ser gasto com coisas que nos alegrem e façam viver
esta idade de ouro, o mais feliz possível, e não deve ser gasto em
críticas a nenhum de nós, tudo o que fizemos de bom ou de mal já
lá vai, e isto é só única e simplesmente um lembrar de
situações, que alguns de nós, até vão sorrir, ao lembrarem-se de
algo que se passou consigo, ou em seu redor. O rascunho do
boneco que o Cifra fez, a personagem tem seis ou sete divisas,
só para não se confundir com nenhum graduado. Mas continuando,
esse treino era agressivo, muitas vezes doloroso, eram treinados
sobre uma grande pressão psicológica, dizendo-lhes que tinham
que servir de exemplo, pois esses militares iam ser lideres, e
tinham que manter o poder nas mãos, não interessava se tinham de
usar o sistema de agressão física, se tinham que usar o sistema
de intimidação, o que interessava era que no final desse treino,
estivessem habilitados, para poder ter nas mãos todos os seus
subordinados de modo a os poderem dirigir, controlar, e
colocarem nas mais remotas e violentas zonas, sem que esses
subordinados, pudessem dizer uma só palavra de que não se
sentiam confortáveis. Se no final do treino estivessem
habilitados para isso, o referido treino tinha sido perfeito.
Houve alguns, como o Cifra disse anteriormente, felizmente
muito poucos, que assimilaram totalmente e seguiram todos os
regulamentos de treino, e foram durante a sua estadia em cenário
de guerra uma
cópia do sistema,
onde possivelmente
lhe diziam:
vai em
frente, és o
melhor, a razão é
sempre tua, todos
sobre os teus
galões, têm que
acatar as tuas
ordens, em caso de
dúvida, elimina o
elo mais fraco, se
for preciso usa a
tua força física,
pois estamos a
treinar-te e a
explicar-te as
artes de luta, que
não são explicadas aos soldados, para isso vais ser um líder,
tens o compromisso com a tua Pátria de a representar, tu, em
algumas situações és a Pátria!.
Daí nasceram alguns “Rambos” e “Justiceiros”, como nos
filmes de cowboys, em que o xerife, com duas grandes pistolas, é
quem decidia quem era o bom e o mau, e assim tínhamos, em cenário
de guerra, militares, alguns com galões, que usavam todo o seu
poder nos seus subordinados, usando a força física no corpo de
outros militares e “partiam tudo à chapada”, eram os tais
“donos da verdade”, ou “donos da guerra”, que sem saberem o que
faziam, estavam a quebrar as mais exemplares regras da
humanidade, que era terem contactos físicos e agressivos,
fazendo mazelas e danificando o corpo e a dignidade de outro
ser humano. Depois, como eram justiceiros e pessoas com muito
bons sentimentos, vestiam a pele de “Madre Teresa” e eram
capazes de dizer:
- Fiz mazelas no teu corpo, feri-te na parte mais íntima da
tua dignidade, quebrei as mais exemplares regras da humanidade,
mas era para teu bem, pois se escrevesse a dizer mal de ti,
ficava no teu registo pessoal, portanto, uns simples pontapés
e umas bofetadas até te tornam mais militar e mais agressivo, não fiques com vergonha dos teus colegas, porque eles, não
tarda muito, também vão levar e se não te portares com juízo,
depois sim, é que te estrago a vida com relatórios de não
obediência, e agora, se te está a doer, vou levar-te ao
Pastilhas, para que te ponha aí uma qualquer ‘pomada”!.
Não sabendo, esse graduado, que na sua inocência, tinha
feito o maior mal do mundo a esse colega militar, que foi o ter
tocado e danificado o seu corpo e a sua dignidade de homem novo,
que nesse momento, precisava de confidência e toda a moral do
mundo para resistir ao ambiente de conflito, em que então se
encontrava.
Bem, o Cifra, acredita que já está a ir longe demais, vai
pôr um bocadinho de “água na fervura” e vai dizer: ah, grande
Curvas, alto e refilão, que no caso de ser insultado ou tentarem
agredi-lo, não olhava para as divisas e não lhes virava a cara e não lhes tinha qualquer receio. Mas nunca usou a força
física, era só uma linguagem reles, dita por uma cara com
feições de guerreiro, que às vezes metia algum respeito, também
nunca foi castigado, pelo contrário.
O Cifra sempre pensou que esses militares nunca foram os
verdadeiros culpados de todas essas anomalias, mas sim o sistema
e o governo que os treinou, talvez nunca os tivessem treinado
para seguirem as regras do respeito e fazerem crer aos seus
subordinados que podiam seguir as suas ordens porque única e
simplesmente confiavam neles e viam neles um líder, porque a
disciplina tem que
ser consentida e
não imposta, e
esta surge
naturalmente se
houver capacidade
de liderança, como
dizia há dias um
antigo combatente
que também viveu,
como nós as
agruras de um
cenário de guerra,
pois esses
militares, que
repito eram
poucos, alguns até
eram pessoas com bons sentimentos, tendo muitos ficado traumatizados pela responsabilidade que lhe tinham dado, pois
sem eles mesmo querer, tinham recebido e assimilado totalmente
esse treino, que era deveras violento, e dado em muito pouco
tempo, e creio que esse treino, neste princípio de guerra, não
era acompanhado psicologicamente, para se saber se o carácter e
os sentimentos das pessoas que o recebiam tinham capacidade
para isso.
Já agora, e vem mesmo a “talhe de foice”, como era costume
dizer-se na altura, quer o Cifra reproduzir, com o devido
respeito, e pedindo perdão por esta liberdade, um enxerto de um
texto que o nosso prestigiado camarada Beja Santos transcreveu
de um livro, que creio é “Da Guiné a Angola, Fim do Império”, do
senhor coronel Piçarra Mourão, que serviu na Guiné, na região do
Oio, a mesma onde o Cifra serviu uns anos antes, onde a certa
altura diz:
“A NAÇÃO, E OS SEUS MENTORES LIMITAVAM-SE A MANDAR COMBATER
A QUALQUER PREÇO. O ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO DOS HOMENS, EM
QUALQUER FASE DO SEU EMPENHAMENTO, NUNCA FOI VISTO, TRATADO OU
FALADO”.
Pelo menos no tempo em que o Cifra esteve na então província
da Guiné, e pelo que lhe foi dado observar, era verdade, NUNCA
FOI VISTO, TRATADO OU FALADO.
O Cifra só agora verificou que já vai longe demais no
texto, os amigos antigos combatentes vão por certo dizer que
“já chega de moral”, o Cifra tem que falar é das emboscadas e da
guerra na Guiné, mas como sabem o Cifra era um razoável militar,
mas um fraco, mesmo muito fraco guerreiro e também nunca gostou
que o professor Silvério lhe batesse com a cana fina e seca,
nas orelhas.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 DE JANEIRO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P10946: Do Ninho D'Águia até África (44): O Canjura andava farto de guerra (Tony Borié)