Quinquagésimo terceiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.
Mansoa, aquartelamento, arroz e peixe da bolanha, o
cheiro da terra vermelha em algumas madrugadas quentes e húmidas,
e o companheiro Manuel Cristo, que era habilidoso, mesmo muito
habilidoso, “rapava o cabelo” a alguns, fazia aquelas tatuagens a
quem lhe pedia, com aquelas legendas
“Amor de Mãe”,
“Guiné -
1964”,
“Guiné - Bat. Art. 645”, ou
“Guiné - Comp. Caçad. 654”,
mas o nome por que era mais conhecido era
“Cristo”.
Recebeu este nome de guerra, porque além de todas aquelas
habilidades também gostava de trabalhar na madeira e, de uma certa
vez, de um tronco pequeno e seco de uma árvore, que o avanço das
obras do aquartelamento mataram, com um canivete, que por acaso
tinha num dos lados uma legenda dizendo qualquer coisa como
“Recordação de Fátima”, fez uma imagem que se parecia com Jesus
Cristo.
A sua tarefa e o seu posto na guerra era soldado com a
especialidade de “atirador”, não sei se havia outra designação, mas
era o que se dizia de alguém que carregava a G3 às costas e, lá ia
para as patrulhas e emboscadas. Era magro, caminhava com as pernas
tortas, em arco, como alguns jogadores de futebol, gostava de tudo o
que envolvesse madeira e, quando segurava uma tábua que tinha
tirado de uma caixa de munições, passava com a palma da mão pela
sua superfície, como que a acariciá-la e, com um serrote, um martelo e
alguns pregos, que às vezes aproveitava, já tortos, mas com algum
cuidado endireitava, fazia as gaiolas para os macacos e piriquitos,
mesas de cabeceira, bancos, algumas caixas de diversos formatos, a
que nós chamávamos armários e algum equipamento para a cozinha
do Arroz com Pão, que era o cabo do rancho. Como habilitações
literárias tinha a segunda classe, que depois de receber um
questionário, vindo de Portugal, que completou, com a ajuda e
algumas instruções do furriel miliciano que andava sempre a fumar
um cigarro feito à mão, e que comprovou e assinou diversos
documentos, em como lhe tinha dado classes e, por fim recebeu um
diploma oficial da quarta classe, que orgulhoso guardou, dizendo:
- Quando regressar à minha aldeia, se regressar, já não sou o
Manuel, filho do Zé Lavoura, sou o senhor Manuel, que sabe ler e
escrever, com diploma e tudo, e quer um emprego à altura.
O “Cristo” era
“pau para toda a obra”, ou seja era
habilidoso e ajudava em tudo o que fosse madeira e não só. Como lá
no aquartelamento, assim que algumas paredes estavam erguidas e
cobertas com telhado, eram logo “ocupadas”, precisava-se de tudo,
aproveitava-se tudo. Roubavam-se as tábuas que tinham servido de
molde para o cimento da base dos pavilhões, sujas de cimento seco e
com pregos, que o “Cristo” nos dizia para limpar e tirar os
pregos e para depois o chamar. Enfim, em pouco tempo o “Cristo” já
não chegava para as encomendas, como é costume dizer-se.
O comandante, numa visita de rotina ao centro cripto, perguntou se
não havia uma mesinha a mais, pois precisava de uma nos seus
aposentos, que não eram aposentos nenhuns, aquilo parecia mais
uma “toca”, para os seus livros que andavam pelo chão. O Cifra logo
lhe disse para falar ao “Cristo”, que lhe faria uma, sem qualquer
problema e, bem feita. O comandante, depois de ver a mesinha, com
uma pequena gaveta e tudo, mas improvisada, com muita imaginação
e, como se estava a improvisar tudo no aquartelamento, retira-o do
seu lugar de soldado atirador, manda vir da capital da província
algumas ferramentas de carpinteiro, uma pequena banca em madeira,
e num pequeno espaço do aquartelamento, que o mesmo “Cristo”
construiu, monta uma pequena carpintaria, onde o “Cristo” era o
carpinteiro.
Passou a receber um prémio monetário mensal, e
não tinha tempo para mais nada. Ia à capital buscar tábuas,
pregos, cola e outros materiais com as quais fazia pequenas obras: arranjava
portas que fechavam mal, fazia mesas, cadeiras e vasos dos barris de
vinho, alguns bancos para o refeitório, etc. Em resumo, depois da sua
promoção a carpinteiro, o aquartelamento passou a ter outro aspecto,
e o “Cristo” era das pessoas mais apreciadas no aquartelamento.
Quando via o Cifra dizia:
- Tens que vir ver a mesa secretária que estou a fazer para o sargento
da messe, que tu talvez vás usar para fazer as suas contas, porque ele
é burro. Mas o Cifra não queria saber de nada, pois só pensava em vir
embora daquele inferno, pensava em Portugal, na sua aldeia e, talvez
na menina Teresa, que era uma “solteirona”, que escrevia as cartas à
mãe Joana, que lhe tinha mandado numa dessas cartas, uma nota de
vinte escudos, para lhe trazer da Guiné, um “Falo”, ou seja um
“Phallus”, ou mais propriamente um “Pénis” em madeira de pau
preto, talvez de ébano, para lhe dar sorte na vida, e até explicava o
tamanho e alguns pormenores!
Tony Borie, Abril de 2014.
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Nota do editor
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Guiné 63/74 - P12971: Bom ou mau tempo na bolanha (52): Pelo Arizona e Nevada - Grand Canyon (Tony Borié)