sábado, 25 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13799: A propósito de paludismo... e da arte de bem guerrear (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Migueis da Silva (ex-Fur Mil Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 23 de Outubro de 2014:


Meus caros:
Para matar saudades, estou a anexar o meu contributo para o tema em epígrafe.

Um abraço tão grande e forte como a estima e a consideração que me mereceis.
Mário Migueis


A PROPÓSITO DE PALUDISMO
por Mário Migueis da Silva 

[, membro da Tabanca Grande, desde 16/4/2009: recorde-se o seu BI:  (i) Furriel Miliciano
com a especialidade de Reconhecimento e Informação, esteve na CCS/QG (Bissau),  em em diligência na CCS/BART 2917 (Bambadinca, Novembro 70-Janeiro 71),  CCaç 2701 e CCaç 3890 / Saltinho (Março 71 a Outubro 72)]

Tendo decidido que, a partir de agora, vou fazer um pequeno esforço para tentar ultrapassar tão rapidamente quanto possível as mil e uma entradas da feraz caneta do nosso distinto tabanqueiro Mário Beja Santos, nem sempre beneficiária dos meus encómios, mas nem por isso desmerecedora – ela, a caneta – da minha vénia a tanto engenho e farto saber, vou, desde já, aproveitar o ensejo do tema apresentado pelo nosso não menos estimado Rui Vieira Coelho - que, por sinal, foi médico em Galomaro, sede dos dois últimos batalhões em que estive em diligência – para partilhar uma pequena amostra do que foi a minha luta incessante contra o famigerado paludismo, ainda hoje responsável por milhões de baixas neste “mundo do Senhor”.

O encontro de apresentação, ou seja, a primeira manifestação do dito deu-se, por alturas de Março de 1971, em Bissau, onde me encontrava em formação na Repartição de Informações do Comando-Chefe, onde estava colocado. Começou com uns arrepios e, daí a nada, estava com uma temperatura diabólica, o que me levou a uma consulta médica na Amura, à qual se seguiu uma outra na enfermaria do QG, que era a minha unidade, em virtude de os meus camaradas de quarto no “Palácio das Confusões” terem ficado alarmados com a evolução – para pior – do meu estado de saúde. Mas, não havia razões para tanto susto: com a terapêutica da ordem, decorridos cerca de oito dias, pouco mais que pele e osso, e agarradinho às paredes ou a um ombro amigo para não me estatelar no chão, tal era a fraqueza das minhas pobres canetas, lá consegui chegar ao Clube Militar de Sargentos, que, providencialmente, era ali mesmo ao pé, para uma primeira refeição após o já inesperado ressurgimento.

A umas bolachinhas com Fanta natural, seguiram-se umas sandes com umas coca-colas e, finalmente, uns camarões de fazer queimar a beiça, acompanhados de umas cervejas fresquinhas e retemperadoras. Tinha, assim, levado de vencida este nosso primeiro embate, e o que achei de mais curioso, em termos de sintomatologia, foi, de permeio com as terríveis dores de cabeça, corpo dolorido, febre altíssima, falta de apetite, vómitos e mal-estar geral, a sensação de que cada fio do meu cabelo estava implantado numa chaga.

Dito isto, passemos, desde já, à quarta ou quinta experiência, que não haveria papel que chegasse nem paciência que vos sobrasse para tanto relato, se eu me perdesse agora, por aqui, a contar tudo, tim-tim por tim-tim.

Estava eu no Saltinho, e tinha terminado há muito pouco tempo o período de sobreposição das duas companhias de caçadores minhas anfitriãs: a “2701”, dos “velhinhos” do capitão Carlos Clemente, e a “3490”, do capitão miliciano Dário Lourenço, com quem eu ficara, de castigo – mentira!...

Ao entardecer de mais um dia de muito sol e boa disposição, fui tomar o meu habitual banho numa das piscinas naturais do Corubal, a pouco mais de cinquenta metros do arame da nossa posição militar. Lá de cima da rocha mais alta, que eu não fazia aquilo por menos, mergulho como uma bala nas águas mornas e suaves do pacato rio, e, emergindo com a potência de mais que muitos cavalos-vapor, dou meia dúzia de braçadas até à margem. É aí que, acto imediato, e embora fizesse ainda bastante calor, sinto aqueles arrepios – sempre eles! – que me fizeram encolher, apanhar a toalha e regressar “a casa”, a rogar pragas à minha pouca sorte: não havia dúvidas nenhumas, aí estava o paludismo, uma vez mais!...


Uma bela imagem do Rio Corubal, no Saltinho. 

Foto retirada da página Encore de L'audace do nosso camarada Paulo Santiago, com a devida vénia


Já a bater o dente, fui directo ao Henrique Custódio, furriel (miliciano) enfermeiro, a quem não dei hipóteses de paninhos quentes:
- Dá-me já uma dessas injecções de cavalo, que esta merda não vai com comprimidos nem afins!....

Não passara ainda meia hora, deitava eu contas à minha triste sina de paciente dos pântanos compulsivo, quando chegam, em passo de corrida, dois elementos da população de Madina Bucô, a darem conta de que, nas imediações da sua tabanca, a cerca de oito quilómetros de distância do Saltinho, tinham sido detectados “turras” – eh, pá!... -, em preparativos para um ataque pela calada da noite.

Em resposta – pois claro! -, prepara-se para avançar o pelotão de intervenção, que, com os seus homens já instalados em três “burrinhos”, aguarda a ordem de “siiiiga!...”. É quando o furriel enfermeiro, que estava sentado ao lado do Elói, outro furriel miliciano de elevado gabarito, salta do pequeno camião e se dirige a mim, perguntando-me com um espanto de espantar:
- Como é, não vens connosco, meu sacana?!...
- Sacana?!... Sacana és tu, meu malandro do caraças!... Então, acabaste de me dar a puta da injecção para o paludismo e queres que vá convosco prá rambóia?!... Desta vez, ides ter que passar sem mim.



Guiné> Zona leste > Setor L5 (Galomaro) > CART 3490 > Saltinho, 1972, época das chuvas

Foto: © Mário Migueis (2009). Todos os direitos reservados


E, assim foi. Daquela feita, consideradas as condições de periclitante saúde, não fui, armado em rambo, para a coboiada. E, afinal, até nem fui preciso para nada, porque, felizmente, não houve ataque nenhum aos nossos amigos fulas e o Henrique Custódio, de quem já me tornara um bom amigo, pôde, na madrugada do dia seguinte, regressar são e salvo, para poder acompanhar convenientemente os efeitos do “soro cavalar” administrado.

Mas, entretanto… Entretanto, pouco faltaria para a meia-noite no quartel do Saltinho – e penso que em Madina Bucô também -, estava eu no gabinete do comandante da companhia, que funcionava simultaneamente como sala de informações. Só, sentado à secretária, cabeça caída sobre o tampo alagado com os suores de gelo que me faziam tremer de frio e morrer de calor, aguardava a morte.

Assim, com a febre a atacar-me impiedosamente, fui surpreendido por aqueles estampidos secos, que nada tinham de familiares. “Devo estar com alucinações!”, pensei. Só que, ao primeiro estalo, seguiu-se, segundos depois, uma surda explosão que me pareceu bastante mais distante. Mas, não pestanejei sequer, até porque estava com os olhos bem colados às pálpebras, coitaditas, mais mortas que vivas. Já ao terceiro – alto lá!, que, pelos vistos, a coisa era para durar - soergui ligeiramente a cabeça e passei a mão direita pela testa ensopada e pegajosa. E ia a coisa já no quarto ou quinto – palavra de honra que não contei! -, quando tive a percepção de que cessara o ruído – tom, tom, tom - do enorme gerador, acomodado no outro lado da parada.

Com um esforço pouco menos que titânico, consigo levantar duas ou três pestanas da vista melhor colocada e reparo que a lâmpada do tecto se extinguira e que a grande ventoinha de estimação dava os últimos suspiros. É, então, que me atrevo, aos tropeços e às apalpadelas, a fazer os dois metros que me separam da porta, para espreitar, a tentar perceber o que se passa. Não foi preciso muito tempo para isso, pois a explicação estava ali, diante dos meus olhos vermelhos e cansados: dos lados de Aldeia Formosa, a meio caminho dos dez quilómetros em linha recta que separavam os dois aquartelamentos - por aí -, partiam, em direcção a norte, projecteis tracejantes – luminosos, pois, - com uma trajectória curva de longo alcance, tendo eu estimado que os impactos se estariam a verificar a cerca de 20 quilómetros de distância a norte da zona de lançamento.

Comigo de novo todo encolhido, cabeça em fogo sobre o tampo da secretária, eis que irrompem na escuridão da sala, mansa e quieta, a pobrezita, que não fazia mal a ninguém, três ou quatro tigres de Mampa…, quer-se dizer, três ou quatro tigres da Malásia, que, de lanterna em punho, se vêm colocar desrespeitosamente de costas para mim. Aos saltos de nervosismo, ganas, enfim, de entrar em acção, “dá cá a lanterna, passa-me essa merda”, apontam o foco de luz para a tela plastificada que cobre completamente toda a parede de cinco por três.
 - É dali, é dali!..., - exclama o alferes Rainha, que substituía o capitão Dário, ausente em Bissau ou coisa assim.
- É mais abaixo, Rainha! – agora, o alferes Armandino, com a sua voz roufenha e aparentemente mais calma, apontando para o número 44, envolto por um circulo a vermelhão, na carta de tiro do morteiro de maior alcance de que dispúnhamos na unidade.
- Não, não, Armandino, o tiro sai mais a sul! – insiste o Rainha, brandindo a lanterna, impaciente.
- Tás enganado, Rainha, mas pronto, faz lá como tu quiseres – concede, por fim, o Armandino, a ajeitar o quico e a puxar o cinto das calças para cima, preparando-se já para sair com os restantes invasores, rumo ao espaldão do “10.7”.
- Amanda-se prós dois, pronto!... Fogo pró trinta e pró quarenta e quatro!... - resolve o Rainha, que, para além de mais velho, tem todo o aspecto e os tiques de ser o mais belicoso.


Guiné> Zona leste > Setor L5 (Galomaro) > CART 3490 > Saltinho, s/d. c. 1971/72... O Miguéis (, aqui conhecido por Silva,) sentado no "tigre" qye encimava o monumentos aos mortos da CCAÇ 2406 (Olossato e Saltinho, 1968/70), companhia do meu tempo e que era conhecida como os "tigres do Saltinho" (fizemos operações juntos) (LG)

Foto: © Mário Migueis (2009). Todos os direitos reservados [Edição: LG]

Não aguentei mais tanta impetuosidade, tanta vontade de fazer ronco:
- Fogo o caralho!... – resmunguei com quanta força me permitia a debilidade da minha carcaça em brasa. “Ó, cum caraças!”, só não se atiraram ao chão, porque começaram a tropeçar uns nos outros, em direcção à porta por onde antes entraram de rompante e dispostos a pôr tudo a ferro e fogo.

A áspera caralhada, assim disparada do escuro, à falsa fé sem ninguém contar, tivera o efeito de uma granada que nos cai aos pés. O Armandino foi o primeiro a reagir e, apanhando a lanterna ainda acesa que o Rainha deixara cair com o susto, vira-a para mim e consegue titubear:
- Ai é você?!...
- Pôrra, Migueis, que susto do caraças!... Você não está a ouvir os rebentamentos?!... – esganiça o Rainha, mais magro e descorado ainda do que em tempos de paz.
- É claro que estou, mas isso não é nada connosco!...
- Mas deve ser com o quartel de Buba, ou coisa assim!... – justificava-se e tentava impor-se o comandante em exercício, perante o saber de experiência feita do furriel de informações.
- Qual Buba, qual quê!... Alguém pediu fogo de apoio?!... – perguntei, agora com a cabeça fora da carapaça, e a procurar levantar-me da cadeira, onde estava literalmente colado.
- P´ra já, não, mas…
- Ai, não?... Então, deixem-se estar mas é quietos, senão os gajos viram-se p´ra cá e ainda nos rebentam com a puta da ponte!

Estava escrito que ainda não era daquela que os indómitos periquitos haviam de fazer o gosto ao dedo, e eu, logo que me recompus, e na sequência da mensagem que o SIM oportunamente fizera seguir para o Comando-Chefe, elaborei o relatório de informações respectivo, onde, nos “Ensinamentos Colhidos”, que, normalmente, ultimavam o texto, omiti, por incúria, o que de mais importante se extraíra de tão alvoroçada experiência: “O paludismo pode funcionar como agente dissuasor do gasto excessivo de munições, que tantos sacrifícios custam ao erário do nosso depauperado povo”.

Dias mais tarde, chegar-nos-iam notícias recortadas provenientes da República da Guiné, dando conta de que o PAIGC tinha recebido recentemente alguns carros de combate (tanques) da União Soviética, os quais haviam chegado a Conakry por via marítima e depois seguido para Kandiafara, principal base logística do IN, onde se mantinham. Os carros de combate – referiam ainda as mesmas fontes - tinham sido, entretanto, testados junto à linha de fronteira, para os lados do Saltinho, ou seja, acrescentei eu, tinham utilizado abusivamente a nossa carreira de tiro, sabedores que eram, porventura, de que eu, o maior da cantareira, estava a braços com as febres dos pauis.

In “A Arte de Bem Guerrear”, autoria cá do rapaz, a publicar brevemente

Esposende, 22/10/2014

Um abraço muito amigo,
Mário Migueis

Guiné 63/74 - P13798: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (9): o 'making of' do livrinho (Parte II)

Capa



B. O CADERNO DE POESIAS «POILÃO» (*) (Continuação)

por Albano Mendes de Matos


[ Albano Mendes de Matos, ten cor art ref, que esteve no GA 7 e QG/CTIG, Bissau, 1972/74, como tenente, e foi o "último soldado do império"; é natural de Castelo Branco, vive no Fundão; é poeta, romancista e antropólogo] [, foto à direita, como 2º srgt].


Procurei o Valdemar Rocha (Unidade de Transmissões), Armando Lopes (GA 7), Joaquim Lopes (QG-CTIG) e o Carlos Ramos, que logo concordaram com a ideia e os dois primeiros entregaram-me poemas. O Valdemar entregou-me, também, poemas do Jales de Oliveira.

Planeei «POILÃO». Sem jeito para desenho, rascunhei, a esferográfica, o esboço de um poilão (árvore típica da Guiné) estilizado, que tenho, porque quase todos os rascunhos foram perdidos quando vinham, da Guiné, num caixote que foi arrombado no cais de Santa Apolónia e pilhadas algumas coisas. Os poemas de «POILÃO» salvaram-se porque os touxe numa pasta.

De 2 comissões em Angola, trouxe muitos apontamentos e fotos que me serviram para publicar o caderno de contos «O Jangadeiro», o livro «Meninos da Mucanda» e diversas publicações em jornais e revistas, além de um livro «Por Angola – Etnografia e Guerra», que está a ser teminado.

 


Esboço, feito a esferográfica, para capa de «POILÃO» e paginação, de Albano Mendes de Matos.


Uma noite, ao sair de um café, com Valdemar Rocha, onde nos encontrámos para falar do «POILÃO», encontrei o Aguinaldo de Almeida, caboverdiano, funcionário do BNU e dirigente do Clube Desportivo e Cultural do Pessoal do BNU, que conhecia da UDIB, União Desportiva Internacional de Bissau.

É aqui que entra o Aguinaldo, nas aventuras de «POILÃO» Contei-lhe que estava a organizar o caderno, com poemas de militares, e que seria interessante incluir alguns guineenses e caboverdianos. Achou a ideia interessante. Como eu não conhecia pessoalmente os «poetas» locais, pedi ao Aguinaldo para falar com alguns e pedir-lhes originais, se tivessem interesse em colaborar. Depois, o Aguinaldo apresentou-me alguns no Clube Desportivo e Cultural do BNU. E assim surgiram os poemas.

Foi numa ida para o Clube do BNU que vi o Pascoal D’Artagnan, filho de um italiano e de uma mulher Balanta, subgrupo mansoanca daquela etnia, que só conhecia de nome. Pareceu-me muito tímido.

Entreguei os originais ao Aguinaldo para ler, que devolveu. Escrevi um prefácio, para «POILÃO», cujo original também se perdeu no Cais de Santa Apolónia.

Num econtro com o Aguinaldo e o Valdemar Rocha, eu propus que não fosse incluído o meu prefácio em «POILÃO», e que o Aguinaldo devia de fazer uma introdução, como aconteceu. Eu dactilografei o caderno em «stencil», dei o papel, imprimi e agrafei a capa, com a ajuda de colegas militares. O Grupo Desportivo e Cultural do BNU ofereceu a capa para «POILÃO».

Um alferes miliciano da Unidade de Tarnsmissões desenhou a capa para «POILÃO» a pedido de Valdemar Rocha.

O segundo caderno seria um trabalho meu, com o título de «BATUQUE», já preparado, que foi publicado mais tarde em edição artesanal restrita [Oeiras. 1987]. O terceiro seria com poemas de Pascoal D’Artagnan.

Eu propus o seguinte;

- Que seria o Grupo Desportivo e Cultural do Banco Nacional Ultramarino a publicar «POILÃO».  O dinheiro obtido com a venda de «POILÃO» seria doado à Leprosaria da Cumura.

«POILÃO» foi apresentado após distribuição de prémios de uns Jogos Florais, na Associação Comercial da Guiné, organizados pelo Grupo Desportivo e Cultural do Pessoal do Banco Nacional Ultramarino, e posto à venda sem preço. Os preços oscilaram entre 20$00 e 100$00. Cerca de 300 exemplares foram vendidos num dia e 400 exemplares, uma segunda edição, também num só dia.

Não foram publicados mais cadernos de poesias, porque eu vim de férias, aconteceu a revolta das Caldas da Rainha ], 16 de Março,] e, a seguir, o 25 de Abril. Estava tudo em ebulição.

Agostinho de Azevedo, chefe de redacção de «Voz da Guiné», refere a publicação de «POILÃO» no jornal de 28-02-1974.






___________________

Nota do editor:

Último poste da série > 24 de outubro de  DE 2014 > Guiné 63/74 - P13796: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (8): Respondo a algumas perguntas: (i) o poeta Pascoal D' Artagnan, que era filho de mãe balanta e pai italiano; e (ii) o 'making of' do livrinho (Parte I)

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13797: Nova tentativa para a construção de um Monumentos aos Combatentes, em Odivelas (José Marcelino Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 22 de Outubro de 2014:

Boa noite
Nova tentativa para a construção de um Monumentos aos Combatentes, em Odivelas.
O texto já foi enviado à Junta de Freguesia e à Liga dos Combatentes, sem resposta até ao momento.
Que ao menos sirva de incentivo a outras autarquias.
Abraço
Zé Martins


Guiné 63/74 - P13796: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (8): Respondo a algumas perguntas: (i) o poeta Pascoal D' Artagnan, que era filho de mãe balanta e pai italiano; e (ii) o 'making of' do livrinho (Parte I)




Elemento gráfico da capa do documento policopiado do Caderno de Poesias "Poilão", Edição limitada a cerca de 700 exemplares, policopiados, distribuídos em fevereiro de 1974, em Bissau. A editada é de  dezembro de 1973, por iniciativa do Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino (O GDC dos Empregados do BNU, grupo esse cuja história remonta à I República: foi criado em 1924,

Com o 25 de abril de 1974, esta coleção não teve continuidade: estava prevista publicação de um 2º caderno («Batuque», com poemas do Albano de Matos; será editado mais tarde, em Oeiras, 1987, com o título "Batuque - Poemas Africanos", ) e de um 3º, dedicado ao Pascoal D'Artagnan.



A. RESPONDENDO À PERGUNTAS DO EDITOR

[ Albano Mendes de Matos, ten cor art ref, que esteve no GA 7 e QG/CTIG, Bissau, 1972/74, como tenente, e foi o "último soldado do império"; é natural de Castelo Branco, vive no Fundão; é poeta, romancista e antropólogo] [, foto à esquerda, Bissau, c. 1973].

Mensagem de 29 de setembro último:

Caro Luís: Enviei mensagem pela sapo.mail, mas não tenho indicação de que tivesse seguido. (...). Vão, também, em anexos: respostas ás perguntas, que pude dar (com os anos passados, há coisas que falham), um registo de como surge «POILÃO», já repetido, e «BATUQUE», o meu caderno de poesias que seria o nº 2. O nº 3 seria do Pascoal D'Artagnan.. Grande abraço.

Em primeiro lugar, vou responder a algumas perguntas relacionadas com  o «POILÃO». (*)

1 – O editor foi, por minha proposta, depois de o caderno estar já alinhavado, o Grupo Desportivo e Cultural do Banco Nacional Ultramarino, que ofereceu a capa.

Foi coordenador o Albano Mendes de Matos em conjugação com o Aguinaldo de Almeida.

2  – Nem todos os poemas eram inéditos. Foram pedidos, pelo menos, 3 poemas a cada autor. Foram solicitados pessoalmente por Albano Mendes de Matos, aos militares, e por Aguinaldo de Almeida, alguns com a presença de Albano Mendes de Matos, aos guineenses e caboverdianos.

3- O Valdemar Rocha entregou, também, os poemas de Jales de Oliveira. Conheci o guineense Baticã Ferreira, médico, na Sociedade da Língua Portuguesa, que lhe publicou uma colectânea de poesia, e incluí um poema seu em «POILÃO»

4 – Só me encontrei uma vez com Pascoal D’Artagnan, junto da sede do Grupo Desportivo e Cultural do BNU, na companhia de Aguinaldo de Almeida. Pareceu-me muito tímido. Falámos sobre a publicação de um caderno com poemas do Pascoal D’Artagnan.

5 – Segundo informação do Aguinaldo, o Pascoal D’Artagnan trabalhava nas oficinas navais da Marinha, nas proximidades do cais «Pindjiguiti» e da alfândega. Foi também o Aguinaldo que me informou de que o D’Artagnan era simpatizante do PAIGC, bem como alguns guineenses com os quais contactei. 

6  – Pascoal D’Artagnan era euro-africano, filho de pai italiano e de mãe Balanta. Nada sei das viagens do Pascoal [no interior da Guiné].  Pode afirmar-se que foi o único poeta da sua geração. Na antologia de poetas da Guiné, «Mantenhas para quem luta! – A nova poesia da Guiné-Bissau», publicada em 1977, não consta o Pascoal D’Artagnan.

7 – Não sei onde estudou Pascoal D’Artagnan.

8 – Jogos Florais da UDIB - 1972:  1º Prémio «Solidão», de Valdemar Rocha, pag. 26 de «POILÃO»; 3º Prémio «Mãos», de Pascoal D’Artagnan, pag 9 de «POILÃO». Desconhece-se a a composição e identificação do júri. (**)


B. O CADERNO DE POESIAS «POILÃO» (**)

por Albano Mendes de Matos


Colocado no GA 7 - CTIG, em Dezembro de 1972, em comissão militar, fui em diligência para a 4ª Repartição do QG-CTIG, a fim de organizar Companhias de Milícias, com guineenses voluntários, que tivessem feito o serviço militar, para defesa das aldeias. Como o chefe de contabilidade do Conselho Administrativo do QG-CTIG terminara a comissão sem ser substituído, fui indicado para o substituir, em Maio de 1973.

De vez em quando, especialmente nos dias festivos, o pessoal do CA (oficiais, sargentos e praças, reunia-se nas respectivas instalações para umas brincadeiras, como festivais da canção, arremedos de teatro, etc, com material da Secção Foto-Cine que estava ao lado.

Soube, pelo jornal «Voz da Guiné», que na Guiné havia pessoas a escreverem poesia, devido a Jogos Florais que a UDIB (União Desportiva Internacional de Bissau) organizara, nos finais de 1972.

Creio que na noite de Natal de 1973, propus fazermos uma sessão de poesia em que cada militar faria poesias para ler ou recitar ou ler poesias de poetas, porque lera no jornal «Voz da Guiné» um escrito em que o chefe da redacção, alferes miliciano, Agostinho de Azevedo, que, depois, foi director do 
«Correio da Manhã, falava de poesia.








Foi nesta altura que imaginei fazer os Cadernos de Poesia «POILÃO» apenas com colaboradores militares, com três ou mais poemas de cada colaborador, e respondi ao chefe de redacção do jornal «Voz da Guiné», com um escrito, só publicado em 02-02-1974.







O poema «Vida», de Joaquim Lopes, escrito para uma sessão no CA-QG-CTIG, incluído no artigo de «Voz da Guiné»:



VIDA


Vida,
Tu nasces nas raízes que consomes
Dás origem a crises e fomes,
Tu és um dom de que se fala,
Dás pobreza a muita alma,
Tu és a desgraça e a sorte
De muitos que te pedem a morte,
Tú és o princípio e o fim do mundo,
Quantos não pensam em ti a fundo.
Vida,
Tu és o tempo no espaço,
De muito viver de cansaço,
Tu és a perfeição dos imperfeitos,
Dominas a paz pelos direitos,
Tu és a força dos seres
Aos quais impões deveres,
Tu és tudo na existência,
Tens poder e resistência.
Vida,
Tu és o signo da verdade
De ricos a viver em felicidade,
Tu és uma paz de alma,
De comodistas a viver na calma,
Tu és a morte obscura
De egoista a pedir luxúria,
Tú és o despertar louco
De ricos a viver por pouco.

(Continua)

_________________

Notas do editor:

(*) Vd., poste de 27 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13657: Caderno de Poesias "Poilão" (Grupo Desportivo e Cultural dos Empregados do Banco Nacional Ultramarino, Bissau, Dezembro de 1973) (Albano de Matos) (3): "Mãos", "Balantão" e "Cachimbêro", três poemas do poeta maior desta antologia, natural de Farim, Pascoal d' Artagnan [Aurigema] (1938-1991), pp. 9/11

Comentário de LG:

(...) Talvez o Albano de Matos nos possa dar mais informações sobre o "making of" desta coltãnea de poesia, "Poilão"...

Por exemplo, quem foi, na realidade, o "editor literário", o coordenador ? Foi o Albano de Matos ou o Aguinaldo Ferreira ? Ou foram ambos ?

Como foram obtidos os originais ? Houve um contacto pessoal com os autores ? Todos os poemas eram inéditos ?

O Albano terá conhecido pessoalmente o Pascoal d'Artagnan, presumo, que trabalhava nas "oficinas navais", em Bissau... Pertenciam à Marinha ?

Ele já seria, em 1973, simpatizante ou mesmo militante do PAIGC ? Qual a sua origem étnica ? Balanta, manjaco, papel, mandinga ?

Sabemos apenas que nasceu em Farim.. Mas viajou pelo país: Catió, Safim, Ilha das Galinhas... O que é que ele faz na Ilha das Galinhas, em 1967 ?

Pelo que eu li dele, ainda muito pouco, parece-me um poeta com fôlego, e na linha da tradição oral africana... com influência talvez do angolano Viriato da Cruz...

Ele deveria ser um autodidata... não ? (...)



Guiné 63/74 - P13795: (In)citações (70): África meteu-se-nos debaixo da pele (Juvenal Amado)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 23 de Outubro de 2014:

Carlos e Luis
Aqui vai mais um apontamento para publicar se tiver qualidade e interesse.
A foto não é grande coisa se tiverem melhor agradeço.

Um abraço para vocês e para toda a Tabanca Grande
Juvenal Amado


ÁFRICA METEU-SE-NOS DEBAIXO DA PELE

Pôr-do-sol no Rio Geba
Com a devida vénia a mundo do FRED

África é assunto infelizmente quase sempre por más razões. Para nós ex-combatentes é a nossa juventude, os nossos verdes anos, as recordações da nossa passagem à idade adulta, das nossas aventuras, das nossas partidas e dos nossos regressos. Quer obrigados ou por vontade própria, a verdade é que hoje a quase esmagadora maioria de nós celebra o ter lá estado e ter passado por aquela prova de fogo. Ninguém ficou incólume à terra vermelha.

O continente africano tem estado mais uma vez nas primeiras páginas, talvez pelo risco que causa aos países ocidentais, que de repente descobriram a gravidade do Ébola. Doença que mata nove em cada dez infectados e que é bem mais grave, pois acaba-se por descobrir que há bastante tempo atrás, esta misteriosa doença matava aldeias inteiras no Congo, onde se morria silenciosamente, escondendo os mortos e possibilitando e aumentando o contágio antes de se tornar notícia. Tornou-se mediática quando ficou comprovado que a doença embarcava com quem viajava para Espanha, Estados Unidos, Alemanha etc e, que não havia barreiras alfandegárias para ela. Depois apareceram os contágios de quem não tinha estado nos territórios afectados e as autoridades sanitárias apressaram-se a deitar as culpas para cima dos profissionais de saúde, dizendo que eles não tinham cumprido os protocolos. Enfim, cheira-me a desculpa de mau pagador ou sacudir a água do capote.

Mas esta crise tem também alguma utilidade, pois esta doença menosprezada na sua importância tendo por base a pouca mortalidade em comparação com a malária e outras pragas, encheu de medo desta vez o Ocidente e já se fala numa vacina a fazer em passo acelerado. Já com a SIDA aconteceu o mesmo mais ao menos, quando se pensava que ela só atacava os homossexuais e que a doença era um castigo de Deus para quem se dedicasse a esses comportamentos. Depois veio a verdade nua e crua de que ela atingia qualquer um com comportamento de risco, que é transversal a todas classes e credos. E também muita gente foi infectada por agulhas e transfusões de sangue.

Mas África com todas a suas misérias e belezas, meteu-se-nos debaixo da pele, ou melhor, debaixo da nossa pele também somos africanos?

Penso que é o continente onde o sofrimento do seu povo mais nos afecta, porque as notícias de lá sempre acompanham desgraças, fome, guerra, doenças e doí-nos todo aquele sofrimento.

Talvez haja relação com o facto dos primeiros homens lá terem nascido e todos nós sermos dali descendentes, o que faz de nós “pretos de pele clara” se assim se pode dizer sem ser considerado heresia como em tempos idos, pois por estranho que pareça, há menos de 100 anos um indivíduo preto não era considerado humano em muitas regiões das nossas “civilizadas sociedades”. Até aos anos 60 do Século XX, os cidadãos de cor em muitos estados do Sul dos Estados Unidos, não podiam frequentar as mesmas escolas, as mesmas igrejas, os mesmos cafés e, à cautela, não lhes era conveniente frequentar as zonas urbanas onde viviam brancos. Muitos pagaram com a vida o atrevimento de passarem em zonas dos brancos ou simplesmente por divertimento, como na agora celebre saga em filme ou em livro, que apaixona os nossos adolescentes chamada Os Jogos da Fome, onde se faz apologia à violência gratuita e irracional.

Com uma riqueza imensa, bem cedo aquele continente africano passou pelas mais difíceis privações. Os povos da costa Ocidental, a dois passos da América Latina, foram considerados mercadoria sem custos, sem responsabilidades e sem contas a prestar, tornando florescente a actividade dos navios negreiros.

Os escravos foram levados do golfo da Guiné e de Angola para as plantações do Brasil e para toda a América Latina, onde não havia índios para escravizar em quantidade suficiente, havia pretos fortes e guerreiros, que alucinados pelo que lhes tinha acontecido, não conseguiram reagir a tempo para escapar à desgraça que sobre eles caía.

Floresceu o comércio de escravos com entrepostos de onde eram embarcados e outros onde eram distribuídos, como no caso de Cuba e arredores, onde o domínio espanhol e a pirataria vária, faziam o negócio florescer com a recpeção e venda de escravos para toda a América Central e do Norte. Quando se começou a combater a escravatura, Cuba foi usada de uma forma muito ardilosa para rodear a proibição e os estados do Sul da América esclavagista, continuarem a receber escravos.

A dada altura foram criadas leis que proibiam a importação de novos escravos da costa africana, assim eles eram levados clandestinamente para Cuba e lá eram vendidos como filhos de escravos, pois a lei permitia que os senhores das plantações fossem donos dos escravos e da sua descendência. Dizem as más línguas, que as leis anti escravatura foram implementadas pelos ingleses como forma de estrangular as economias que vivam da sua prática. Não custa nada acreditar, pois ao mesmo tempo asfixiavam os estados do Sul segregacionista, com uma economia toda assente no trabalho escravo, deitavam o olho gordo para as colónias de onde eram embarcados os negros. No caso português isso durou até à entrada de Portugal na 1.ª Guerra Mundial pois os planos encaminhavam-se para o acordo secreto entre ingleses e alemães para dividirem entre si as nossas colónias. Com amigos destes quem é que precisava de inimigos?

Como se vê, em nome do humanismo e bons costumes, eternizava-se a condição dos que, mesmo nascidos homens livres, uma vez feitos escravos, transmitiam o seu estado às gerações vindouras. Mas os sofrimentos dos africanos não ficaram por aí.

À escravatura de exportação sucede-se a da colonização e aí os africanos passaram a ser escravos na sua terra. Mais tarde, quando finalmente se ilegalizou a escravatura, ela passou a “encapotada” e adquiriu o título de “contratados”.

Os “contratados” eram serviçais ilusoriamente livres, mas que dependiam do patrão para comer, dormir, da ferramenta com trabalhavam, que nunca estava paga, com o agravante de os prejuízos serem-lhe descontados a eles, que nunca tinham lucros.

A titulo de exemplo, em Angola em 1960 havia uma zona onde empresas algodoeiras que mantinham os negros num estado próximo da escravidão, (35 mil famílias) proibidos de transpor o perímetro, eram os trabalhadores obrigados a cultivar o algodão e a vende-lo ao preço da fome. A empresa limitava-se a fornecer as sementes, não lhes pagava salários, nem prestava qualquer apoio técnico, nem fertilizantes, nem pesticidas, nem compensações em caso de cataclismos, que eram normais em forma de secas ou cheias. Depois de um dia de trabalho duro, os agricultores viam-se obrigados a fazer vários quilómetros até pequenos pedaços de terra, para assim cultivarem os próprios alimentos, porque a empresa cercava as aldeias com plantações, sem deixar um palmo de terra que fosse para outra coisa que não fosse algodão. Na terra onde nasceram no meio de tanta riqueza, não eram donos de nada nem da esteira onde dormiam.

Mas vieram as guerras de libertação.

As potências coloniais foram obrigadas a reconhecer as independências à custa de muito sangue e sofrimento, mas o problema não ficou ai resolvido, porque aos movimentos libertadores sucederam-se golpes de estado, na maioria das vezes apoiados pelas antigas potência colonizadoras. Na maioria dos casos saiu a mão de obra qualificada branca e entraram mercenários e consultores militares. Aos governos corruptos, são os seus ditadores recebidos ou tolerados pelas nações ocidentais, que continuam assim a explorar as riquezas do continente semeando a escravatura, a tragédia, a miséria e as guerras. As fabulosas fortunas depositadas em instituições europeias e também dos USA nas suas contas (até há pouco tempo credíveis), tem como contra partida o fluxo de armamento, chegando ao inimaginável de só em Angola, com dez milhões de habitantes, chegou a haver uma mina antipessoal por cada angolano.

Aos maus governos sucedem-se as más guerrilhas e, a uns ditadores, sucedem outros ditadores, mas o trafico de madeira, marfim, diamantes, ouro, petróleo, colton, prata, cobre, etc nunca pára. Na Bélgica, na Inglaterra, na Holanda e nos USA, limpa-se o sangue de milhares de homens, mulheres e crianças, e convertem-se as pedras, em bruto, em gifts, que enchem as lojas mais chiques das capitais de todo o Mundo. É negócio sujo mas lucrativo, e as autoridades, hipocritamente, fecham os olhos ao que se passa no terreno, chegando os diamantes a serem exportados por países como a Libéria, que não são produtores e onde eles entram ilegalmente, para saírem de lá legais para o mercado europeu. Rodeia-se assim o adjectivo horroroso de “diamantes de sangue”.

África é um continente riquíssimo que vive permanentemente da caridade alimentar e medicamentosa, quando é detentora da maior área para produção agrícola disponível em estado virgem no Mundo.
Como é possível que não haja um fim para este estado de coisas?
Ninguém me tira da cabeça que seriam muito mais felizes se nunca por lá tivessem visto um branco, e nunca tinham dado pela sua falta. África não transforma praticamente nada do que lá é extraído, mas também não fabrica armas que aparecem como por milagre.

O povo vive em cidades super povoadas, para onde fugiram à guerra, na mais profunda das misérias humanas, sem água potável, sem saneamento básico, a que só as elites têm acesso.

Para o bem e para o mal, hoje África está nas mãos dos africanos, resta saber se eles saberão sacudir as últimas grilhetas e libertar finalmente o seu próprio povo.

Atrevo-me a transcrever o que José Saramago publica a dada altura num dos seus cadernos de Lanzarote - Diário V:  
“Tentei expressar neles a angustia, o medo e também a esperança de um povo vivendo sobre ocupação, primeiro resignado e submisso, depois, pouco a pouco organizando a resistência até à batalha final e ao recomeço da vida paga com mil mortes. Coloquei no futuro esse povo de um pais não nomeado - Imagem de quantos viveram e vivem sob o domínio e o vexame de outro mais poderoso -, pensando por ventura que estaria descrevendo os últimos sofrimentos da humanidade que enfim ia principiar a lenta aprendizagem da felicidade e da alegria, sabendo embora que nada de nós ficará debaixo da sombra que vamos projectando no chão que pisamos.
Nem os sofrimentos acabaram nem a felicidade começou. E, a estas horas, frase por frase, palavra por palavra, quantos povos no mundo, aqui e em toda a parte, não leriam hoje estas páginas como o livro da sua dor e da sua imortal esperança”.

Um abraço para todos
Juvenal Amado
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13733: (In)citações (69): Amigos das ONGD Ajuda Amiga e Tabanca Pequena, é importante abrir poços, mas se a água não for "Iagu Sabi", a população abandona-os (Cherno Baldé, Bissau)

Guiné 63/74 - P13794: Inquérito online: resultados finais (n=145): (i) o paludismo é doença que não se esquece; (ii) um em cada dois tê-lo-á apanhado; e (iii) um em cada três diz que tomava sempre ou quase sempre, todas as semanas, o comprimidinho, Pirimetamina, 25 mg, LM


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > CCAÇ 2592/  CCAÇ 14  (Bolama, Contuboel, Aldeia Formosa, Cuntima, 1969/71) > Junho ou Julho de 1969 > O António Bartolomeu, fur mil, "recuperando de um ataque de paludismo, foi do caraças" (*)... Estivemos juntos, nessa altura, na formação das nossas companhias (ele, da CCAÇ 14, eu, da CCAÇ 12). Depois cada foi à sua sorte... (LG)

Foto: © António Bartolomeu (2007). Todos os direitos reservados.


A. Resultados finais da nossa sondagem sobre o paludismo (n=145) (**)

1. Não me lembro se tive paludismo > 3 (2%)

2. Não me lembro do medicamento para o paludismo > 9 (6%)

3. Sim, tive paludismo > 69 (47%)

4. Não, nunca tive paludismo > 30 (20%)

5. Não, nunca tomava o medicamento > 3 (2%)

6. Sim, tomava sempre (ou quase sempre) > 48 (33%)

7. Sim, tomava, mas só às vezes > 28 (19%)

8. Tomava o medicamento e tive o paludismo > 55 (37%)

9. Tomava o medicamento e nunca tive o paludismo > 22 (15%)

10. Nunca tomei o medicamento nem nunca tive paludismo > 11 (7%)

Votos apurados: 145
Encerramento: 23 out 2014,  21h45


Guiné  > Região de Tombali > Cantanhez > Cafal Balanta > O "resort" do Manuel Maia,  o poeta  que irá cantar, em sextilhas, tanto  o "seu" Portugal como a "sua" Guiné). (O Manuel Oliveira Maia é  autor de: (i) História de Portugal em Sextilhas, 2009; e (ii)  "Guiné que aprendemos a amar", 2013)

Foto: © Manuel Maia (2009). Todos os direitos reservados.

2.  Manuel Maia (ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, 1972/4) andou por muito sítio palúdico ( Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine)  mas foi um dos 20% que nunca terá apanhado o  paludismo...

Recorde.-se, a propósito, as suas  quadras alusivas ao paludismo de que se livrou (***)

Do paludismo nem cheiro,
"capei" mosquitas da zona,
já o mosquito era porreiro,
não me deu cabo da mona...

Malária ou paludismo,
foi maleita que não tive,
por ter um bom organismo,
sempre o "plasmodium" contive...

À custa duns "largos jarros"
e pastilhas LM [, Laboratório Militar,],
cerveja, whisky e cigarros,
paludismo não se teme...

Milhões de vezes picado
nos "resorts" conhecidos,
avisei-os por recado
- Se me infectais estais perdidos !!!

No Cantanhez foi a sorte,
a livrar-me do descambo,
que à mosquitada deu morte,
herói AB [, Almeida Bruno],  nosso Rambo...

Como Caio, o "mata sete",
ganhara fama por lá...
mosquitos do jet set
não picavam nos de cá...

Assim graças ao acordo,
e a uns copos bem regados,
as picadas que recordo,
não trouxeram mais cuidados...

Por outro lado também,
proibida era a doença,
por lá médico "cá tem",
e só na guerra se pensa...

Maleita é mais na cidade
com hospital logo à mão,
mosquito é da urbanidade,
que lhe dá mais atenção...

Sobre a doença hei dito,
acreditem que é verdade,
a relação com mosquito,
quase digo que é saudade...

Manuel Maia


3.  Mais  alguns postes, antigos,  publicados sobre a experiência do paludismo (e a sua prevenção e tratamento) no TO da Guiné (lista meramente exemplificativa; há muitos mais...)

15 de maio 2013 > Guiné 63/74 - P11573: Em Mansoa, nem mezinha má nem picada de mosquito boa... Ou as nossas doenças em tempo de guerra (1): Um mosquiteiro barato para um pira (Magalhães Ribeiro)

(...) O velhinho e meu grande amigo Furriel Ranger Marques, com a sua calma e longa experiência de vinte e muitos meses, deu-me, então, uma lição sobre “Como dormir sem zumbidos nem picadas dos mosquitos na Guiné”, assim:

1º) Não se faz mal às osguinhas e salamandras que deslizam ali no tecto — estavam lá três de vários tamanhos —, apesar do seu aspecto repelente elas são nossas amigas, e ajudam-nos a eliminar os mosquitos que, à noite, abundam e atacam muito mais, comendo-os; (...)


12 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11556: Estórias do Xitole (David Guimarães, ex-fur mil, CART 2716, 1970/72) (3): Era do caraças o paludismo

(...) E lá fui eu a tremer até ao Xitole, a bordo o de uma viatura... de Cavalaria, a autometralhadora Daimler do Vacas de Carvalho, comandante do Pel Rec Daimler... Esse mesmo, o da fotografia, espero que não tenha sido nesse dia mesmo que eu fiquei doente; julgo que na altura lhe agradeci a boleia, mas se o não fiz, devido ao estado febril em que eu me encontrava, ainda vou a tempo, trinta e seis anos depois:
- Obrigado, meu alferes! Foi a melhor boleia, a mais oportuna, a mais rápida, que eu apanhei na puta da vida! Mesmo à justa!... (...)


(...) Esta doença não demorou a entrar na [CCAÇ]  816 ou não começássemos logo a ser atacados pelo agente causador (o Anopheles) mal pusemos os pés na Guiné.  Pele branquinha e sangue fresco, bom pasto para aqueles sanguessugas. 

Os 13 primeiros dias em Brá (trampolim para o mato) foram dormidos sem mosquiteiros. Foi um tal atacar! O pessoal passava a vida a “tocar harpa”, como dizia o meu amigo Furriel Baião (já falecido) ao apontar um camarada a coçar-se desesperadamente com as unhas das mãos, logo ao limiar do dia. Afinal aprendemos todos a tocar harpa (uns mais desesperados que outros). A picada do mosquito, em alguns quase não se via sinais da dita, noutros era cada verdugo (!). (...)
________________

Guiné 63/74 - P13793: Notas de leitura (644): "O Mundo em AZERT - cadernos de um repórter”, por Cáceres Monteiro, edições O Jornal e Círculo de Leitores, 1984 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2014:

Queridos amigos,
É quase certo e seguro que esta reportagem datada não é um acontecimento histórico nem traz elementos novos.
Em termos gráficos, o álbum do jornalista é de uma grande beleza, tem um grafismo muito apurado.
Cáceres Monteiro viaja pela Guiné acompanhado de um gigante da fotografia, Eduardo Gageiro, ele capturou imagens que lhe vieram averbar a celebridade que já tinha, recebeu mais prémios internacionais.

Um abraço do
Mário


O mundo em AZERT: 
Cáceres Monteiro na Guiné, depois do golpe de Nino Vieira

Beja Santos

“O Mundo em AZERT”, por Cáceres Monteiro, edições O Jornal e Círculo de Leitores, 1984, é um álbum soberbo onde participaram para além do repórter Carlos Cáceres Monteiro, então chefe de redação-adjunto de O Jornal, três dos melhores repórteres fotográficos portugueses: Carlos Gil, Eduardo Gageiro e Joaquim Lobo. Cáceres Monteiro justifica assim este livro: “A melhor sensação que um jornalista pode ter é sentir que está a viver, par a par, com a história do seu tempo. Em algumas ocasiões, foi viva a sensação de que era uma testemunha privilegiada da história do nosso planeta. As reportagens que se incluem neste livro foram feitas no Sudeste Asiático, Vietname e Camboja; na América Central, em El Salvador e na Guatemala; em África, onde fui observador atento das turbulentas independências de Angola e do Zimbabué e diz a reportagem do golpe de Estado da Guiné-Bissau e onde tentei entender Moçambique e o seu líder Samora Machel; estive também no Irão, no auge dos fuzilamentos ordenados por Khomeini”.

Cáceres Monteiro acompanha a deslocação do Presidente Eanes até ao Saltinho e descreve a movimentação: “As escavadoras rompem já a floresta para resgarem a nova estrada, num assomo de progresso inusitado. E, quilómetros além, num sítio de cataratas do rio Corubal, atravessado por uma ponte metálica onde persistem inscritos os números mecanográficos e as naturalidades dos soldados da guerra colonial, pode vir a nascer uma grande barragem, com projeto português.
Saltinho, África, mesmo África. Gente saída das cubatas ancestrais vêm saudar o Presidente Eanes – e o nome de Nino Vieira aparece quase apagado nas manifestações cerimoniais dos manifestantes. Foi Eanes que eles vieram ver. Numa nota surreal, uma turma de futebol equipada às riscas azuis e brancas, tal e qual como o Porto, perfila-se na primeira linha da multidão. Futebol Clube de Tombali saúda o presidente Eanes”.

Não sem um assomo de malícia, o repórter aponta a miragem de alguma fartura que acompanhou a visita de Eanes à Guiné-Bissau: “No dia em que Ramalho Eanes chegou à Guiné-Bissau, onde normalmente não se vende qualquer produto importado, passou a haver de tudo: cerveja, água tónica em lata, uísque, gim. Comida. A Guiné-Bissau gastava os últimos dólares da linha de crédito. Depois disso seria a rutura financeira”. Chega Eanes e abre o supermercado, põe à venda Ovomaltine e Nestlé. Se no termo do consulado de Luís Cabral a rutura financeira era um facto, não desapareceu com Nino Vieira o fantasma da bancarrota. Nino Vieira pede uma ajuda de milhões e ameaça que se Portugal não lhe desse resposta o país voltar-se-ia para os vizinhos francófonos.

Estamos em 1982, Eanes é o primeiro Chefe de Estado a visitar a Guiné-Bissau depois do golpe de Nino, Luís Cabral já foi libertado. Cáceres Monteiro orienta o olhar para esse golpe em que, segundo alguns, foi antecipado quando Nino Vieira soube que estava projetado o seu assassinato pelas forças fiéis de Luís Cabral. Em 14 de novembro, o golpe iniciou-se junto à Embaixada portuguesa, com um disparo de rajadas, era o sinal de aviso para as movimentações militares. As tropas fiéis a Nino não encontraram praticamente resistência. As causas próximas do golpe também radicaram na discussão da nova Constituição, nela se previa uma concentração de poderes nas mãos de Luís Cabral, Constituição humilhante para guineenses comparativamente com a Constituição de Cabo Verde. O poder mudou de mãos e logo choveram as acusações de ostentação de privilégios por parte dos comissários do Governo, sempre a viajar para o estrangeiro e a deslocar-se na Guiné em rutilantes Volvos.

O repórter conta como Vasco Cabral escapou por pouco durante o golpe de Estado, foi ferido, fingiu-se morto e conseguiu escapar. Retrata Nino Vieira como um romântico, uma espécie de pequeno Che Guevara da África Equatorial, porém sem preparação ideológica. Cedo Nino Vieira enreda-se em negócios com Valentim Loureiro e Ferreira Torres. Nino aproveitou bem o descontentamento gerado pelas carências sentidas durante o consolado de Luís Cabral, coligou-se com militares, com Vítor Saúde Maria, Freire Monteiro e Iafai Camará, formam um Conselho da Revolução. As novas autoridades guineenses quiseram imediatamente atribuir a Luís Cabral crimes nefandos, abriram-se valas onde estavam enterrados ex-comandos guineenses e adversários do PAIGC. Na altura, um amigo de Nino, J. Turpin comentou que “Isto foi pior do que o colonialismo português”. Pedro Pires, então primeiro-ministro de Cabo Verde, desdramatizou, atribuiu esses acontecimentos a todos os responsáveis políticos, era impensável que alguém os ignorasse.

Um aspeto curioso é que o novo Conselho da Revolução destituiu Luís Cabral, dissolveu a Assembleia Nacional Popular mas reconduziu praticamente todos os membros do Governo anterior. Alguém comentou: “A lógica deste golpe é analógica”. E a reportagem de Cáceres Monteiro termina assim: “Quando chegámos ao aeroporto de Bissau, logo um guineense de rádio em punho nos veio dizer, cheio de júbilo, que Portugal tinha derrotado a Irlanda do Norte e nas ruas de Bissau, para além de todos os outros vestígios, não faltam as máquinas de registo do Totobola. A imprensa portuguesa é aqui mais conhecida e lida do que em muitos pontos do território nacional…”.

A capa deste álbum é um primor de Rochinha Diogo. As duas fotografias pertencem ao genial Eduardo Gageiro, a mãe com o seu bebé é uma das fotos internacionalmente mais premiadas do fotógrafo, mas é realmente muito impressiva a fotografia dos velhos guerreiros, trata-se de um instantâneo sublime.


____________

Nota do editor

Último poste da série de 20 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13768: Notas de leitura (643): General Spínola ao Diário de Lisboa, em 9 de setembro de 1972: Não há que temer a autodeterminação (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P13792: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (33): Um bagabaga que serviu de altar num casamento

 
1. Mensagem do nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), com data de 17 de Outubro de 2014:

Carlos, amigos e camaradas,
O artigo do José Saúde(1) despoletou-me a curiosidade e fez-me recuar no tempo, às minhas experiências vividas na Mata dos Madeiros, naquele longínquo ano de 1971.
Naquela Mata vivi situações reais que mais parecem contos de fadas. Esta é uma delas.

Com votos de muita saúde, um abraço transatlântico.
José Câmara


MEMÓRIAS E HISTÓRIAS MINHAS

33 - Um bagabaga que serviu de altar num casamento

O José Saúde no seu fino artigo “As arquitetónicas fortalezas das formigas na Guiné” transporta-nos mais uma vez à importância que os bagabagas tiveram nas nossas vidas enquanto militares na Guiné. Diz-nos que felizmente não foi necessário usá-los como defesa, mas como comentou o Hélder Valério, para além da guerra havia uma componente a que não era indiferente, a fauna e a flora da província. Tal como a ele, estou certo que muitos de nós ainda temos na retina muito do belo que a Guiné tinha.

Pelo seu tamanho e estrutura os bagabaga eram um ex-libris da natureza guineense. Na Mata dos Madeiros havia muitos que foram utilizados por nós, militares da CCaç 3327, de várias maneiras, sobretudo de apoio noturno nas emboscadas que montávamos. Mas há um que foi especial na história da Companhia: serviu de testemunha a um casamento, se preferirem, foi o altar possível de uma cerimónia em que a noiva se encontrava a muitas centenas de quilómetros.

Recuando no tempo, no meu Poste 6084(2) faço referência ao casamento do Fur Mil Fernando Pedro Ramos da Silva no dia de Páscoa de 1971, que se encontrava em patrulhamento algures na Mata dos Madeiros. Também é verdade que não tinha nenhuma foto para ilustrar a cerimónia simples que lhe dedicámos no nosso acampamento da Mata dos Madeiros antes de ele regressar ao patrulhamento. E assim continua. Quando escrevi aquele artigo também estava bem longe de saber que o Fernando Silva nos tinha deixado muito cedo na vida.

Depois de ler o artigo do José Saúde, o Fur Mil João Cruz chamou-me para me alertar para uma foto que me cedera em tempos sobre o casamento do Fernando Silva. Na história que um dia será escrita sobre a guerra da Guiné certamente que os bagabagas terão um destaque importante nas componentes militar e paisagística. Hoje podemos acrescentar que pelo menos um também o foi na formação de uma família, a do casal Fernando e Celeste Silva.

O bababaga que serviu de altar a um casamento. Na Mata dos Madeiros, o Fur Mil Fernando Silva bebe do seu cantil no momento em que a noiva, a Celeste, estaria na cerimónia religiosa do seu casamento, numa igreja algures no Portugal Continental. São testemunhas, a partir da esquerda: os Fur. Mils. Joaquim Augusto Fermento (Minas e Armadilhas), Carlos Alberto R. P. Costa (Operações Especiais) e na frente o João Alberto Pinto Cruz (At. Inf.)

Foto (Cortesia de João Cruz, FMil. CCaç3327)
____________

Nota do editor

(1) Vd. poste de 12 de Outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13723: Memórias de Gabú (José Saúde) (42): Baga-bagas, castelos de liberdade e de defesa

(2) Vd poste de 31 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6084: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (16): Páscoa e Casamento na Mata dos Madeiros

Último poste da série de 29 de Abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11503: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (32): Bassarel, um paraíso no chão manjaco

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Guiné 63/74 - P13791: Falando de paludismo e outras maleitas (Mário Vitorino Gaspar / Carlos Vinhal)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Vitorino Gaspar (ex-Fur Mil At Art e Minas e Armadilhas da CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68), com data de 18 de Outubro de 2014:

Tive paludismo, e de que maneira, embora tomasse todas as “pilulas” que nos davam.
Fui salvo pelo Furriel Miliciano Enfermeiro N.º 09309564, José Jorge Fernandes Durães, que tanto procuro. Ninguém conhece o seu paradeiro.

Não me abandonou – julgo ter entrado num tipo estado de coma – visto não me recordar de nada. Tive, segundo me disseram depois, altíssimas febres. O Durães acompanhou-me sempre molhando-me o rosto com aquilo que denominavam água, mas na altura muito me ajudou.

A partir de pouco tempo na Guiné cortei relações com a água porque só me havia criado ralações. Cerveja sim – até um protocolo assinei com a Sagres – e fiz inclusive um contrato. A palavra de ordem era “Sagres Sempre”. Sagres ao pequeno-almoço, almoço, jantar e nos intervalos.

Mas o paludismo concedeu-me uns dias de folga das operações constantes. Terminada a Comissão continuei, durante um certo período, a tomar as ditas “pílulas”, e não foi do Exército que as recebi. A minha mulher trazia-as do Laboratório Farmacêutico onde trabalhava.
Onde quer que estejas Durães, vai um grande abraço!

Tive matacanha por três vezes, e até tenho sinais num pé; fui atacado, mordido e remordido pela formiga dos bagabagas, logo nos primeiros dias de Guiné, encontrava-me no destacamento de Ganturé, só em Julho de 67 fui para Gadamael Porto; atacado em força pelos mosquitos demolidores e caí numa emboscada de abelhas quase no fim da Comissão numa grande Operação que se fez na zona do “corredor da morte”, ou “corredor de Guileje”, que é “gato com o rabo de fora” – algo que existiu mas não oiço falar – comandada em terra pelo então Capitão Cadete.
Sobre estes últimos casos muito tenho para contar, mas como se fala em paludismo…

Julgo que o camarada assinalado pela seta seja Fur Mil Enf Durães

Mário Vitorino Gaspar
Ex-Fur Mil Art MA
CART 1659

************

2. Carlos Vinhal, ex-Fur Mil Art MA da CART 2732, Mansabá, 1970/72

Também tive paludismo, a primeira vez confirmado pelo Fur Mil Enf da minha Companhia, Luís da Costa Marques, Enfermeiro na vida civil no Hospital de Braga. Foi no dia 8 de Outubro de 1970 (quinta-feira), pela hora de almoço, quando assistia, na qualidade de Sargento de Dia, ao almoço da malta.
De repente, lembro-me de um aumento súbito de temperatura e de um mal-estar geral. Fui directamente para a cama, já não almoçando. Como perdi completamente o apetite, o Marques levou-me umas latas de fruta para a cabeceira da cama para eu ir comendo a fim de evitar ficar ainda mais debilitado. Segundo os meus registos, atingi os 40º de temperatura. Durante uns tempos nem fumar conseguia. Com o tratamento adequado e dois dias e meio de cama tudo se resolveu.

Convém aqui abrir um parênteses para dizer que eu nesta altura ainda não era operacional. Chegado a Mansabá em ABR70, fui destacado para a Secretaria. Como em 05OUT70 (3 dias antes de eu adoecer) tinha morrido o Alf Mil Art MA Armando Couto, vítima de uma mina IN, e o alferes Bento, CMDT do meu pelotão, também atingido pela explosão e evacuado para o HM 241, era necessária a minha ajuda na "feitura da guerra no mato". Estou a lembrar-me que o Fur Mil Gardete Correia, também do meu pelotão, estava de férias na metrópole, pelo que o nosso camarada Fur Mil Fernando Nunes ficou sozinho. Nem a (des)propósito o ataque de paludismo que sofri, que reforço, foi comprovado.

Voltando ao assunto, no sábado recebi a inesperada visita, no quarto, do meu Comandante, Capitão C (lembras-te dele amigo Jorge Picado?), meu inimigo de estimação, que me incentivou a ficar bom porque necessitavam de mim. Fiquei estupefacto, então o "C" veio pessoalmente desejar-me as melhoras!!!
Mas pensando melhor, achei que o que ele foi ver é se eu estava a fingir doença para me baldar a ir para o mato. Aquilo é que me saiu uma peça!!!

No domingo, dia 11OUT70, houve uma homenagem ao malogrado Alf Mil Couto, com missa campal e cerimónia militar. Com algum esforço levantei-me para participar nas cerimónias e, de certeza, na semana seguinte comecei a sair para o mato para alinhar em pequenas operações, montes de colunas, etc.

Tive ainda na Guiné um segundo ataque de paludismo, muito leve, e mais tarde já em casa, e casado, no inverno de 1972, tive as mesmas reacções que combati com as injecções que trouxemos de prevenção, fornecidas pelo Exército Português a quando da desmobilização.

Cabe aqui ainda salientar que tomava religiosamente os comprimidos profiláticos que nos punham junto aos pratos, ao almoço das quintas e domingos. Acabada a refeição, complementava, tentando matar o bicho, neste caso a bicha, com VAT 69 ou White Horse.

Como a água não era de confiança, embora fosse de um furo e bombeada para um depósito, bebia normalmente água Castelo ou Perrier, muita Coca-Cola e outros refrigerantes. Cervejinha sempre às refeições e raras vezes fora delas. Em dias festivos, que eram quando nós queríamos, bebia umas garrafitas Casal Garcia para desenjoar. Moderação, muita, porque a vida iria continuar para além da guerra.

Na foto: Fur Mil Enf Luís Marques, Fur Mil Op Esp Luís Pires e Furs Mil At Ismael Santos e Carlos Vinhal

Mansabá, 11OUT70 - Cerimónia de homenagem ao nosso camarada Alf Mil Art MA José Armando Santos do Couto - Desfile do 3.º Pelotão/CART 2732. À frente o Cabo Corneteiro José Pedro Barge, seguido dos Furs Mil Fernando Nunes, Carlos Vinhal e o resto da malta.

Carlos Vinhal,
ex-Fur Mil Art MA
CART 2732
Mansabá, 1970/72

Guiné 63/74 - P13790: Fotos à procura de... uma legenda (40): Ainda a foto do Jorge Araújo... Xime, almoço de Natal de 1972... (Luís Graça / Sousa de Castro)


Guiné > Zona leste > Setor L1 (Bambadinca) > Xime > Almoço de Natal de 1972 > O cmdt do BART 3873, ten cor  António Tiago Martins, mais a esposa, sentados à mesa do comadpo da CART 3494 (à sua direita do ten cor Tiago Martins, o cap mil Luciano Costa). De costas, em primeiro plano, o alf mil Serradas Pereira. (*)

Foto: © Jorge Araújo (2014). Todos os direitos reservados [Edição: LG]



Luís Graça [ex-fur mil, CCAÇ 12, Contubnoel e Bambadinca, mai 69 / mar 71; grã-tabanqueiro nº 1, por antiguidade...] (**)


Vê-se que a senhora tem um ar digno.
E um porte sereno.
Está familiarizada com o meio castrense.
É a única mulher num grupo de homens, militares,
numa companhia, em pleno  mato.
Traja à civil.
É a única pessoa civil.
Só me lembro de ter visto uma mulher,  de camuflado,
à parte as enfermeiras paraquedistas:
a Helena,
a mulher do meu camarada, alferes Carlão
do 2º Gr Comb  da CCAÇ 12.
De camuflado, e de sapatos altos, vermelhos,
numa coluna que partia para o Saltinho.
No alto de uma Berliet,
e escoltada pelo capelão, o Puim.

Familiarizada, digo eu...
mas, reparando bem,
com um ar ligeiramente ausente,
entre o doce e o nostálgico,
ouvindo distraidamente pedaços de conversas,
ou talvez pensando na famíla
que deixou na metrópole,
os filhos, ainda a estudar,,,
Ou talvez não,
talvez estivesse apenas compenetrada
do seu papel de esposa do comanddante.

De que falarão os militares,
em seu redor,
oficiais e cavalheiros ?
Ninguém se interroga sobre o fim da guerra,
ali, naquele fim do mundo,
só interessava o dia, a hora, o momento.
É Natal, paz aos homens de boa vontade,
terá brindado o comandante,
Os do mato, esses, não ouvirão, os votos dos tugas.
Ou só ouvirão, mais logo, o trovão do obus,
ao deitar.
Para espantar diabos e irãs,
acocorados no alto dos poilões e bissilões.
Metia respeitinho o obus...

Veio para ficar a guerra,
a guerra dos cem anos,
n inguém diz mas pensa
Vai a camiho dos doze,
primeiro Angola, depois a Índia,
depois a Guiné, depois Moçambique...
E ainda faltará muito para acabar.
Que não acabe, ao menos,
o fiel amigo,
nas próximas festas do Natal e Ano Novo,
daqui a um ano, eem 1973.

Bambadinca está habituada a acolher mulheres,
de militares.
Conheci algumas no meu tempo.
A vida de um comandante de batalhão no TO da Guiné
era dura no tempo de Spínola.
Era preciso mostrar serviço,
ser líder,
ser comandante,
fazer roncos,
ganhar a iniciativa ao IN
que, contrariamente a Deus,
já não está em toda a parte.
Pode-se ganhar a guerra militarmente,
e perdê-la politicamente.
E o que pensará o general,
dando passos à volta no salão grande
do seu palácio.

Não conheci a malta do BART 3873 (1972/74).
Regressei a casa em março de 1971.
Muito menos conheci o ten cor António Tiago Martins,
que nasceu em 1919
e que irá morrrer v in te anos depois
deste almoço de Natal no Xime,
Dizem-me que  a malta do batalhão tinha,
algum apreço e estima por ele.
A esposa parece-me bastante mais nova do que ele;
irá morrer em 2011,
vimte anos depois do marido,
e muito provavelmente com oitentas e tais.
Nesta altura. em Dezembro de 1972, poderia ter 40 e poucos anos.
As mulheres enganam,
as fotos das mulheres ainda mais.

Devia acompanhar o marido nas andanças pelo império,
da Índia a Moçambique,
de Angola à Guiné.
Bambadinca era um pequeno oásis.
O quartel estava bem situado,
num pequeno promontório,
sobranceiro à grande bolanha de Bambadinca.
Só no tempo do BCAÇ 2852 (1968/70)
é que tinha sido atacado,
em 28 de maio de 1969,
um data com algum simbolismo
para os homens e mulheres do Estado Novo.
Depois disso, em junho,
houve (ou terá havido) uma flagelação,
de que não rezam as crónicas,
mas falam os cronistas.
Com a chegada da CCAÇ 12,
em julho de 1969,
o PAIGC não arriscou mais aproximar-se de Bambadinca.
Os fulas defendiam bem o seu chão.

Bambadinca tinha boas instalações
para os sargentos e oficiais.
Não havia falta de géneros.
Não se comia caviar, mas havia leitão.
E carne de vaca com relativa fartura.
E géneros frescos.
A 30 km, por estrada asfaltada
chegava-se a Bafatá,
a 2ª cidade da Guiné,
a princesa do Geba,
onde já havia um cheirinho de civilização:
aeródromo onde aterrava o NordAtlas,
hospital, cinema, piscina, restaurantes,
bom comércio, gentes várias, e até diversão
para os solteiros.
Era sede de concelho e sede do CAOP 2,
o coração do chão fula…
Mais a nordeste ficava Nova Lamego,
também acessível por estrada asfaltada.

O Xime era porto fluvial
e porta de entrada na zona leste.
Quem não passou pelo Xime,
dos militares que foram para o leste ?
Do Xime até Bissau, havia a grande “autoestrada” do Rio Geba.
Em Bissau apanhava-se o barco ou o avião
para casa,
o doce lar,
a verdadeira pátria, mátria, fátria.
Tinha heliporto,, o Xime.
E distava 10/12 km da estrada, nova, asfaltada,
construída pela TECNIL.
A meio do percurso havia o destacamentoo do Rio Udunduma.
um "resort" melhorado no tempo da CART 3494,
Além disso, havia a companhia de milícias do Xime,
espalhada pelo subsetor:
Amedalai, Taibatá, Dembataco, Enxalé,
outros pontos da curta geografia da malta.
E havia 3 obuses 10.5 do 20º Pel Art,
além de um esquadrão de morteiro 81.

O risco de emboscada, no troço Bambadinca-Xime,
era maior, sobretudo na zona de Ponta Coli,
de má memória.
Mas o tenente coronel, por certo,
que não foi no seu jipe
dar um passeio até ao Xime
no dia de Natal,
mais a sua corajosa e dedicada esposa.
Além da escolta, deve ter tido segurança,
montada pela malta da CCAÇ 12 e da CART 3494.

Mesmo assim, tiro o quico ao tenente coronel e à esposa…
A malta da CART 3494 terá gostado
e ter-se-á sentido importante.
Às vezes a arte de comandar também está
nos detalhes,


Sousa de Castro   [ex-1º Cabo Radiotelegrafista,
 CART 3494/BART 3873, Xime e Mansambo, 1971/74;
grã-tabanqueiro nº 2, por ordem de chegada]


No meu tempo, 1972/74, não era só a mulher
do comandante  Tiago Martins
que habitava em Bambadinca,
Havia outras senhoras de oficiais
e creio também de sargentos
que viviam com os maridos.
Quando iamos a Bambadinca ironizavamos com a situação,
era bom olharmos para aquela brancura
no meio de tantos negros.
Naturalmente que a segurança para aquelas deslocações
não era descurada.
Na Ponta-Coli a segurança regressava ao quartel no fim da tarde
e voltava de manhã.
Curiosamente o meu natal de 72 foi passado em Bambadinca
e o de 73 em Mansambo,
 o de 71 foi passado a navegar.
Portanto, para o BART 3873 foram três natais fora.
Tenho uma ou dus fotos do natal em Bambadinca.
Em Mansambo, se a memória não me atraiçoa,
 foi passado nos seus abrigos.
Acho, não havia refeitório,
no Xime sim, havia refeitório,
Acho que era servido dois turnos.
Acho.

____________

Notas do editor:

(*) vd. poste de 10 de outubro de 2014 > Guiné 63/734 - P13715: Fotos à procura de... uma legenda (37): D. Idalina Carvalho Pereira Martins, esposa do cmdt do BART 3873, ten cor Tiago Martins, no almoço de Natal de 1972, no Xime, o quartel do setor L1 mais atacado e flagelado (Jorge Araújo, ex-fur mil, op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)

(**) Último poste da série > 16 de outubro de  2014 > Guiné 63/734 - P13744: Fotos à procura de... uma legenda (39): Um poço à beira da estrada Nova Lamego-Bafatá, maio de 1970... Esta foto do Valdemar Queiroz faz-me recordar o caso de um furriel que na zona de Madina, em certa ocasião, vencido pela sede, oferecia sete contos (!) por um copo de água!... (Domingos Gonçalves, ex-alf mil, CCAÇ 1546, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68)