CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
33 - De 14 a 31 de Maio de 1974
Aos poucos, a euforia motivada pela revolução do 25 de Abril, vai dando lugar à expectativa e a muita incerteza. Era assim em Nhala e não devia ser diferente no resto do TO. E, se por um lado se sentisse que a actividade do inimigo era quase nula, com o correspondente abrandamento da nossa, por outro lado, continuava a fazer-se a protecção às obras da estrada na frente de Buba, protecção às colunas, patrulhamentos e contra penetrações. E seria assim quase até ao fim oficial das hostilidades. Com menos tensão, é certo, mas sem nunca esquecer que estávamos em território de guerra. Guerra em banho-maria, não ainda a paz declarada. Tanto assim era que, infelizmente, alguns não viriam a ter oportunidade de saborear a paz. Para aumentar a nossa incerteza, já muito depois de ambas as partes terem adoptado o cessar-fogo tácito, o PAIGC atacou a tabanca de Madina em 3 de Junho, como se verá mais adiante. Obviamente, tínhamos também sempre presente que o cessar-fogo tácito, só por si, não desactivaria os milhares de minas espalhados pelo território, que só mais tarde seriam alvo de uma acção concertada e generalizada de levantamento. Tarde de mais para o Comandante de uma secção do GEMIL 406 que, juntamente com o GEMIL 405, no dia 7 de Maio patrulhavam as regiões de Bolola e Nhacobá, tendo pisado uma mina antipessoal que obrigou à evacuação para o HM 241 de Bissau. Antes, tinham feito um patrulhamento semelhante no dia 3, nas regiões de Missirá e margem norte do Rio Cumbijã, sem problemas. No dia 8 de Maio forças da 3.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 procederam ao levantamento de 10 minas na região da ponte do Rio Balana e implantaram 8, na sequência de uma permuta de responsabilidades de oficiais especialistas. Haveria mesmo necessidade de manter esse campo de minas? Certamente que sim. Tinham passado apenas quinze dias após a Revolução e tudo estava em aberto. Se revelo estes detalhes é tão só para se perceber o clima que se respirava. No meu Sector, só no dia 14 de Maio os homens do MFA deram sinal, como relata a História da Unidade e da qual transcreverei quase tudo por se tratar de um documento importante para memória.
Da História da Unidade do BCAÇ 4513:
MAI74/14 – Estiveram presentes em A. FORMOSA, Cap. CLEMENTE e Cap. PÁRA PINELA, Oficiais pertencentes ao Movimento das Forças Armadas, que numa reunião com os Oficiais e posteriormente com os Sargentos, esclareceram o programa do Movimento das Forças Armadas.
MAI74/16 – (...). Visitou A. FORMOSA o Encarregado do Governo Ten Cor FABIÃO, acompanhado do Cap. CLEMENTE do MFA.
MAI74/17 – (...). Verificou-se uma diminuição da actividade violenta do IN, correspondida por uma actividade menos intensa das NT, aguardando-se com expectativa as conversações em Londres em 25 de Maio de 1974.
[Da parte da guerrilha surge no Sector o primeiro sinal no dia 23. Percebe-se que é uma abordagem para avaliar o ponto da situação e a nossa disponibilidade para, na prática, terminar a guerra. A verdade é que também o inimigo, como nós, devia estar sujeito a grande ansiedade, devido a esta situação ambígua, de muitas expectativas, mas que não atava nem desatava].
MAI74/23 – (...). Apresentou-se em A. FORMOSA MANGA MANÉ, natural e residente na República da GUINÉ. Este elemento diz ter sido enviado pela Gendarmerie, com a missão de comunicar que:
- Tinham acabado os movimentos de tropa na Rep. GUINÉ.
- Que estavam a levantar todas as minas.
- Pretendiam abrir a fronteira e facilitar o movimento de gilas.
- Saber se do nosso lado também a guerra já acabou e se a população poderá transitar.
[Não sei que resposta foi dada mas, na mesma data, dia 23, o “RESUMO DOS FACTOS E FEITOS / BCAÇ 4513” destacava em maiúsculas:
“F – Em virtude do Movimento do 25 de Abril e após as conversações travadas com o PAIGC, começou em toda a Província a vigorar um cessar-fogo tácito. Neste período da comissão do Batalhão na Guiné, assiste-se a uma campanha interna de politização das populações pelo PAIGC e a perspectiva do regresso das NT à Metrópole. Para o fim do período, acelera-se o processo da descolonização, com regresso das NT e a entrega dos poderes ao PAIGC. É de salientar que todas estas operações se realizam na melhor harmonia e colaboração com o PAIGC”].
MAI74/25 – Apresentou-se em A. FORMOSA BRAIMA BALDÉ, Comissário Político do PAIGC. Nas suas declarações, disse que tinha por missão mostrar às populações que o PAIGC não tencionava exercer qualquer represália sobre as mesmas. [Sublinhado meu].
Neste mesmo dia chegou a A. FORMOSA, o Alf do PAIGC ABDU SAMBU. Declarou que se deslocou a A. FORMOSA por ordem do seu Comandante Major JULINHO BARROS, Capitães HUMBERTO GOMES e VARJOS PIRES, e tinha por incumbência comunicar que o PAIGC está absolutamente proibido de fazer fogo ou responder a tiros contra a tropa ou população Portuguesa. O seu Comandante teria mostrado interesse em qualquer dia visitar A. FORMOSA.
[Depois de um mês de ambiguidade e impasse – que, bem sei, é pouco tempo para quem a nível superior diligencia com os movimentos de libertação mas que, para nós no terreno, é uma eternidade -, depois de um mês de impasse, dizia, eis que começam os acontecimentos a precipitar-se em catadupa. Começa também a guerra das bandeiras e bandeirinhas... E estava dado o mote, ainda que ao princípio quase imperceptível: os militares africanos, as milícias, parte da população e os seus representantes, não viam com a mesma bonomia que nós, esta reviravolta na guerra. Nem podiam ver. Mais natural era que começassem a questionar-se sobre o futuro, adivinhando já o abandono após a debandada da tropa. E de pouco valeram as acções de tranquilização por parte do PAIGC e dos comandos militares portugueses. Como se sabe, o pior estava para vir, confirmando os anseios e receios principalmente dos militares africanos. É um assunto que merece ser tratado à parte. Segue-se a guerra das bandeirinhas...].
MAI74/26 – Foi do conhecimento deste Comando, que os elementos do PAIGC presentes em Aldeia Formosa tinham feito uma reunião com a população sem terem pedido a necessária autorização, e durante a qual distribuíram várias bandeiras do PAIGC.
Chegando também ao conhecimento deste Comando que o Alf ABDU SAMBU, tinha algumas cartas e algumas lembranças para entregar ao Comando Militar, foi feita uma reunião com os referidos elementos, em que foi criticado o procedimento por eles adoptado em relação à reunião com a população. Assim, ficou assente nova reunião com a população desta vez presidida por este Comando para esclarecimento das nossas intenções e nossas atitudes. No fim desta reunião, os “Homens Grandes” dirigiram-se ao Batalhão, manifestando a sua solidariedade para com os Portugueses.
[Julgo não serem necessários comentários para se perceber como, numa sucessão de episódios quase diários, se foi estabelecendo um clima propício a conflitos. A tensão ganhava espessura].
MAI74/28 – Pelas 16h00 forças da CCAÇ 18 dirigiram-se ao Administrador de Posto, exigindo-lhe a entrega da Bandeira do PAIGC que ele tinha aceitado dos elementos que estão presentes em A. FORMOSA, ao que o mesmo anuiu.
Satisfeitos dirigiram-se ao Comando do Batalhão para fazer a entrega da mesma, dizendo que enquanto houvesse Exército Português na Guiné, só haveria uma Bandeira que seria a Portuguesa. [Sublinhados meus].
Entretanto e enquanto se dirigem ao Quartel, encontraram o Régulo IAIA, a quem também exigiram a entrega no Comando do Batalhão de todas as bandeiras do PAIGC que possuía. Ele anuiu e fez a entrega das mesmas neste Comando. Sucedeu entretanto, que os referidos militares, sabendo que a Brigada da Engenharia também possuía uma Bandeira do PAIGC, quiseram forçar o substituto do encarregado do armazém que a possuía a fazer a entrega da mesma. Esta atitude, originou que o pessoal da Brigada resolvesse não trabalhar no dia 29MAI74.
MAI74/29 – Logo de manhã e com a presença do Comandante de Companhia de Engenharia, vindo de BISSAU, foi levada a efeito por este Comando uma reunião entre os representantes da CCAÇ 18 e da Brigada de Estradas. Após esta reunião a Brigada concordou em prosseguir os trabalhos no dia seguinte.
MAI74/30 – Foram retomados os trabalhos de Engenharia que prosseguem normalmente.
- Comandante e 2.º Comandante deslocaram-se a NHALA, BUBA e CUMBIJÃ.
- Of OP/INF deslocou-se a COLIBUIA e CUMBIJÃ.
[Ao longo de todo este mês, à semelhança do antecedente, são recorrentes na HU estes registos das deslocações do Comandante, 2.º Comandante e Oficial de Operações às Unidades e subunidades de todo o Sector. É justo que se refira esse contacto permanente, quase diário, em que nos eram transmitidas informações e directivas, amenizando, de algum modo, a sensação de impasse e incerteza em que se vivia. E faziam-no para além das deslocações a Bissau numa frequência inusitada].
Junto imagem da 1.ª entrada do PAIGC em Nhala, na pessoa de um Comissário Político, provavelmente Braima Baldé que há dias chegara a A. Formosa, mas não estou certo.
Foto 1: Nhala, fins de Maio ou Junho de 1974. Primeira visita de um Comissário Político do PAIGC, vendo-se da esquerda para a direita: elemento do PAIGC que não recordo; o Comissário Político; Alf Mil António Murta e Alf Mil Campos Pereira.
************
História marginal (7): A hiena perneta.
Nhala, de madrugada. Dormia profundamente quando senti que me batiam levemente no ombro. Ouvi um sussurro tímido a despertar-me: “meu alferes...” - Virei-me e, no escuro, vi uma silhueta curvada sobre mim ainda a sussurrar:
- Meu alferes... Está ali um animal a comer formigas junto ao arame farpado. Podíamos matá-lo e amanhã tínhamos rancho melhorado...
Era a sentinela do posto mesmo ali ao lado da messe. Ele sabia que eu não resistia a uma caçada, mesmo àquela hora da madrugada.
- Que animal? - Perguntei, a bocejar.
- É assim como um cão, mas maior, não dá para ver bem.
Sentei-me na cama ainda zonzo e só então me apercebi do som forte do peso da água a bater no solo lá fora. Parecia que estava sentado junto a uma catarata. Vesti-me e peguei na G-3, ainda a pensar que era preciso ser muito doido para sair numa noite daquelas. Chovia tão copiosamente que a água nos tapava as distâncias, caindo em cordões grossos e verticais, sem uma aragem. A noite estava amena de temperatura. No alpendre o soldado apontou-me a luz do projector junto ao arame farpado do lado da fonte. Metemo-nos à chuva em direcção à luz e, a cerca de vinte metros, acautelámos os passos na aproximação. Só então vi o costado do animal, meio oculto devido à altura do capim e por ter a cabeça mergulhada na base do poste. No ar, à volta da luz, centenas de formigas voadoras redopiavam freneticamente, num ritual nupcial que já não nos era estranho. Sob o peso da chuva, caíam na vertical, como riscos de luz direitos à cabeça do animal, muitas já sem asas e outras que as largariam no solo. E estavam constantemente a chegar mais, atraídas pela luz. E sempre a cair mais.
Aproximámo-nos mais um pouco já sem grandes cautelas, pois o barulho da chuva, tudo abafava, mesmo as nossas vozes. Levei a arma à cara e apontei àquele alvo fácil mas, quando já premia o gatilho, tive um rebate de consciência e suspendi o gesto. Perguntei ao soldado se gostaria de ser ele a dar o tiro.
- Eu gostava... - Retorquiu-me ele, no tom de quem, por instantes, perdera a esperança daquela oportunidade. Caramba! Como é que posso ser tão egoísta, pensei.
- Força! - Disse-lhe, entusiasmado com a minha atitude de última hora.
Soou o tiro e, no mesmíssimo instante, vimos, como uma mola, uma silhueta raiada de vermelho descrever um arco longo para a direita e enterrar-se no capim lá no escuro. Demos uma corrida para o cavalo de frisa ali perto e, já do outro lado do arame farpado, avançámos de arma em riste na direcção da luz, com muitas precauções para evitar surpresas. Batida a zona onde supúnhamos estar o animal, com o capim a dar-nos quase pela cintura e a dificultar-nos a tarefa, chegámos ao poste da luz sem nada ter encontrado. Na base do poste o solo estava tapado de formigas que fervilhavam na ânsia do provável acasalamento promíscuo. Mesmo ao lado, salpicos de sangue no capim. Disse ao soldado: “Rápido! Vamos seguir as marcas de sangue enquanto a chuva não apaga tudo”. Avançámos em zig-zag, quase já sem pistas, até que, por fim, lá vimos o animal denunciado pelo capim abatido. Olhei para a luz atrás de nós e percebi, com surpresa, que estávamos a cerca de seis metros. Como à volta o capim estava intacto, tivemos de concluir que toda aquela distância fora feita de um salto apenas.
Assim de relance, não percebemos que bicho era. Simplesmente, não o reconhecemos. Mas não podíamos perder muito tempo com alvitres porque não tardava era dia. E tínhamos que tirar aquelas desconfortáveis roupas molhadas. Antes de agarrarmos o animal pelas patas dianteiras, dei-lhe um pontapé para me certificar de que não oferecia perigo. Mas foi ao arrastá-lo pelo capim que reparámos que tinha uma das patas traseiras decepadas abaixo da coxa. Era perneta. Ou fora numa armadilha, ou fora vítima de outro predador. Porque há sempre um predador mais forte...
Na manhã seguinte o animal foi entregue aos cozinheiros para ser preparado para o jantar, sem que alguém conseguisse dizer de que se tratava. Não era parecido com nada do que já tínhamos visto. E comido. Hoje admiro-me com tanta ignorância. Como era possível?
À hora aprazada, já entardecia, e toda a rapaziada do grupo se dispunha na longa mesa que havia no alpendre por trás da caserna, assistindo à chegada do grande tabuleiro fumegante. O pão magnífico e ainda quente já estava na mesa, bem como as caixas de cerveja fresquinha que mandara comprar à cantina. Todos estavam muito alegres e ansiosos. E mais ainda a equipa de voluntários que se encarregou de toda a logística. Não era caso para menos, pois os momentos como este eram raríssimos e, embora não se passasse fome, já ninguém suportava as salsichas e o fiambre feito de todas as maneiras incluindo grelhado como bife, receita herdada da anterior Companhia de Nhala, que ao princípio se revelara um pitéu, mas que ao longo do tempo se tornou execrável. Também os caçadores nativos pareciam estar combinados com o nosso infortúnio, passando-se meses sem aparecerem com nada. Mas, por mais de uma vez, aconteceu aparecer um com uma vaca e logo outro com um búfalo e outro ainda com mais não sei o quê... Mas isto nunca resultava em grande fartura, porque assim que se esgotava a capacidade das arcas frigoríficas a petróleo, parte da caça tinha de ser recusada.
Foi um festim, o nosso jantar. E quando já nada restava do manjar delicioso, ainda continuámos a molhar pão no molho dourado e picante do tabuleiro, acompanhando com cerveja e muita animação. Os saberes dos cozinheiros surpreendiam-nos e deliciavam-nos. Se ao longo dos meses o rancho nos enfastiava diariamente, só podia ser porque os ingredientes eram dos piores, porque os cozinheiros eram dos melhores. Honra lhes seja feita, e não perco a oportunidade de lhes fazer este elogio: qualquer que fosse a peça de caça que se lhes apresentasse, mesmo tão só uma galinha-do-mato ou meia dúzia de rolas, o resultado era sempre um manjar dos deuses. Sendo certo que não se punha a hipótese absurda de fazerem rolas todos os dias, caso em que voltaríamos à situação enjoativa do fiambre grelhado. Também os padeiros coziam o melhor pão que já comi, estaladiço, bem temperado e a cheirar a pão... Por vezes interrogava-me: será que tivemos sorte com estes “profissionais”, ou serão todos assim? Ou também ajuda a fome que temos?
Uns dias depois, alguém se chega a mim com evidente gozo e diz:
- Aquilo que vocês comeram há dias era uma hiena.
- Como é que sabes? - Perguntei eu, esperançado de que ele não tivesse a certeza.
- Porque um cozinheiro mostrou-me a cabeça e eu reconheci-a.
- O quê?! Eu comi um necrófago?!... - Perguntei, sentindo uma náusea que não percebi se era simulada... - E por que não disseste logo?
- Porque se dissesse tu já não a comias e era uma pena. Não gostaste?
- Tens razão. Se soubesse, não comia. Ou talvez comesse na mesma, mas já não era a mesma coisa.
Fiquei na dúvida se ele não estaria agastado por não ter sido convidado para o banquete.
(continua)
____________
Nota do editor
Último poste da série de 8 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15458: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (32): De 25 de Abril a 5 de Maio de 1974