quarta-feira, 1 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25465: 20.º aniversário do nosso blogue (13): Alguns dos melhores postes de sempre (IX): Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé): Spínola, o Desejado - II (e última) Parte


Guiné > Região de Bafatá > Fajonquito > 1972 > A equipa juvenil da "Ferrugem", futebol de cinco, orientada pelo 1º cabo Sérgio Rodrigues ("Gasolinas"). De pé: Adama Suntu e Saido ("Barbosa"); ajoelhados: Amadi, Cherno Balde ("Francisco") e um colega que não consigo identificar ainda. 

Legenda do Cherno Baldé. Foto (adaptada) na página do Facebook de Sérgio Rodrigues, publicada na sua página do Facebook, em 28/10/2019, 21:28 (com a devida vénia...) 

Acrescenta o Cherno: "na altura era o Chico que fazia a faxina no quarto do Dias, Augusto Teixeira, Silva e o Elsa enquanto esteve em Fajonquito. Um abraço. A foto deve ser de 1972, pois ainda o teu João não estava connosco."... O ex-1º cabo mecânico Sérgio Rodrigues pertencia à CCAÇ 3549, "Deixós Poisar" (Fajonquito, 1972/74).

Guiné > Região de Bafatá > Fajonquito > Junho de 1972 > CCAÇ 3549 / BCAÇ 3884, "Deicós Poisar" ( Fajonquito, 1972/74) > Equipa dos Condutores e Faxinas: da esquerda para a direita: José Maria, Vasconcelos, Carvalho e Fernando Mandinga. Na primeira fila: Jorge Suleimane, Barbosa (Mama Saido), Braima Banassé e o Francisco (Cherno Dabo).

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2017). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > Antigo quartel das NT > 2010 > Trinta e seis anos depois da "troca de bandeiras" , em 10 de setembro de 1974... Visita do Cherno Baldé e família: Local onde estava situado o pau da bandeira; à esquerda as ruínas do forno de cozer o pão que fazia as delícias do "Chico, menino e moço".

Foto (e legenda): © Cherno Baldé (2010).
Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. No 25 de Abril de 1974, o Cherno Baldé estava em Fajonquito, com os seus 14 ou 15 anos (?) (nem ele sabe o ano exato em que nasceu, c. 1959/60/61) .  Ficou, perplexo, como todos os "djubis", "cães rafeiros do quartel", sem poder (nem querer) acreditar nas vozes que repetiam "A guerra acabou!... A guerra acabou!"... Para logo se interrogar, com angústia: "E agora ?!... O que será de nós?!" (*)...

O sonho daqueles miúdos, fulas de Sancorlã,  era virem a integrar os "Comandos Africanos", o Batalhão de Comandos da Guiné, "manga de ronco"... 

Mas, para ele, Cherno. ainda djubi,  o verdadeiro 25 de Abril já tinha acontecido há pelo menos quatro anos antes, com a aparição fulminante e justiceira, em Fajonquito, numa manhã de nevoeiro, do "Caco Baldé", Spínola, o Desejado.

Ele conta como foi, no poste P11008, de 26 de janeiro de 2013 (**), da sua excecional série, "Memórias do Chico, menino e moço" (uma série que, já o dissemos mais do queuma vez, merecia ser publica em livro)... 

Republicamos, com revisão e fixação de texto, do nosso editor, a segunda (e última) parte (**)

Cherno Baldé, nosso amigo e colaborador permanente do nosso blogue, formado na antiga União Soviética em Planificação e Gestão Económica (Universidade de Kiev, 1990), com uma pós-gradução no ISCTE-IUL (Lisboa, 1992/94), é uma testemunha privilegiada dos acontecimentos do seu tempo, desde miúdo ("djubi"),  quando foi apanhado pela "guerra de libertação" ou guerra colonial ou guerra do ultramra (ao gosto do freguês...), logo em 1964, na sua terra natal, no regulado de Sancorlã.  

De 1964 a 1974 viveu em Fajonquito, tendo-se tornado um "cão rafeiro" do quartel local, fqzendo pequenos serviços, sobretudo ao pessoal da "ferrugem", em troca dos cais, ia partilhndo as sobras do rancho.  Afeiçoou-se aos militares portugueses que passaram por aquele arquartelamento da região de Bafatá, sector de Contuboel, perto da fronteira com o Senegal, e que lhe puseram a alcunha de "Chico"... 

É autor de um notável série, "Memórias do Chico, menino e moço" (de que já publicámos, a partir de 2011, mais de meia centena de postes).  Integra a nossa Tabanca Grande desde 18 de junho de 2009 )**). Tem  lá cerca de 300 (!) referências no nosso blogue, é um dos autores e comentadores mais ativos e regulares. Note-se: nunca foi "combatente", nem chegou a fazer o serviço militar na sua terra, "finalmente liberta do jugo colonialista", como diria a "Maria Turra".

Depois da independência, foi estudar para Bafatá, em 1975 (ciclo preparatório e parte do ensino secundário). Em 1979 vai frequentar o liceu de Bissau, que acaba em 1982. Em 1986 parte como estudante bolseiro para a URSS (Moldávia e Ucrânia). Teria já os seus 26/27 anos (nasceu por volta de 1959/60). Ganhar uma bolsa nesse tempo era a sorte grande de um jovem guineense!

Regressa, com uma licenciatura, ao seu país em 1990, já depois da queda do "muro de Berlim" e a "implosão" da União Soviética. Casa-se em 1992 e faz uma pós-graduação no CEA - Centro de Estudos Africanos /ISCTE, em Lisboa (1992/94).

Em 1998, está em Bissau, a trabalhar como quadro superior na administração pública, mais exatamente no Ministério das Infraestruturas, Transportes e Comunicações onde exerce as funções de director do gabinete de estudos e planeamento. Vive em Brá, no chamado Bairro Militar, com algumas regalias.

No dia 7 de junho de 1998 é apanhado pelo golpe de Estado e a subsequente guerra civil de 1998/99. É obrigado a deixar a sua casa, no Bairro Militar, e sair de Bissau com a família (ele, a esposa, o filho de 3 anos e uma sobrinha de cinco ), mais a família da irmã da sua esposa, de nome Djenaba, num total de 10 pessoas (3 adultos e 7 crianças), refugiando-se na sua terra natal, Fajonquito, regulado de Sancorla, junto à fronteira com o Senegal.

Deixam a casa, em Bissau, no dia 11, chegam a Safim, procurando desesperadamente por um transporte que os leve para longe da guerra, para Fajonquito. Consegue, através dos seus conhecimentos, uma boleia para Mansoa, a 13 de junho, até apanhar um camião, que o leva ao seu "refúgio", em Fajonquito, aonde chega no dia seguinte, passando por Bambadinca e Bafatá. Nesta viagem faz também uma "retrospetiva" do seu passado recente (os anos passados em Bafatá, em 1975/79, e depois na URSS, 1986/90).

Em 2001/02, o Cherno viu-se na contingência de ter de emigrar para Portugal, onde trabalhou na construção civil, como simples "trolha" na construção do complexo Alvalade XXI. É sportinguista de coração.

A sua vida tem sido, afinal, uma dura  pr"ova de obstáculos" que ele vai superando com fé , esperança, coragem, inteligência emocional, amor à família, lucidez e sentido de solidariedade.



Dr. Cherno Baldé, Bissau, foto atual

MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO (43) - O GENERAL SPÍNOLA E A POLITICA “POR UMA GUINÉ MELHOR” - II ( E ÚLTIMA) PARTE  (*)

por Cherno Baldé

O CAPITÃO CARVALHO

Este acaso aconteceu em finais de 69 
ou princípios de 70, não posso precisar, 
e teria eu na altura cerca de 10/11 anos de idade 
e havia poucos meses que tinha mudado 
com os meus pais de Cambajú para Fajonquito. 

Aqui, não nos deixavam entrar no interior do quartel, mas a atracção que causava em nós era tal que não conseguíamos ficar longe dos arames farpados. Para facilitar as coisas o meu pai trabalhava no mesmo edifício comercial que albergava, também, nas suas traseiras, a residência do Capitão e comandante da companhia, assim como a messe dos oficiais e sargentos.

Depois de algumas horas de aulas de manhã, e com o pretexto de ficar a ajudar o meu pai, conseguia esquivar-me dos trabalhos de campo e passar grande parte do tempo a espreitar o movimento da tropa dentro do quartel, usando o espaço da loja e a presença do meu pai como refúgio sempre que um ou outro elemento mais zeloso quisesse importunar-me. Gostava, sobretudo, de acompanhar o vaivém do Capitão no seu pequeno jipe de campanha donde sempre descia saltitando ao lado antes de este se imobilizar por completo. Eram imagens que me fascinavam.

Em Cambajú, onde estava estacionado um pelotão da mesma companhia (a CCAÇ 2435), não existia este fosso de separação entre brancos e pretos, militares e civis,  e por isso, convivíamos de perto com a tropa portuguesa e com as milícias, inclusive já tivera a oportunidade de esfregar as minhas mãos na pele branca e gorda ou agarrar nos cabelos hirsutos das mãos e braços do nosso amigo, o furriel Libural (Liberal?), que frequentava assiduamente a nossa casa, não sabendo ao certo o que o atraía mais, se as simpáticas palavras do meu pai sempre cordial e respeitoso para com as autoridades, fossem elas civis ou militares (que o obrigava a tirar o chapéu da cabeça quando as cumprimentava e num excelente português nos apresentava dizendo “minha filho” quando queria dizer “meu filho”),  ou se eram as minhas primas-irmãs com os seus sorrisos de dentes de marfim, nádegas bamboleantes e seios redondos brilhando em céu aberto.

Em nossa casa toda a gente gostava do furriel Liberal com seu ar bonacheirão que, muitas vezes, trazia consigo uma terrina cheia de comida do quartel para a meninada. Bem, para ser sincero, nem toda a gente apreciava as suas investidas dentro da nossa morança, arvorando os seus “bumdias e buatardes”, mesmo trazendo comida. 

E a primeira pessoa a manifestá-lo fora a minha avó paterna, Eguê, que se insurgia contra a intrusão do branco e, quando isso acontecia, amaldiçoando o destino que não quisera que tivesse morrido mais cedo, dizia sempre num tom de profunda e incontida amargura: 

- Áh Allâ..., e tinha que viver para presenciar isto...!?

Nunca soubemos, ao certo, o que ela queria dizer com “isto”, se era o atrevimento do olhar direto e fulminante com que despia os seus interlocutores, em particular as bajudas, se era a maneira diferente como ele falava, lembrando o som gutural de um pombo apaixonado ou a aparente depravação dos gestos e abraços, as vezes, desmesurados do furriel e dos seus companheiros da tropa. 

O que valia mesmo é que ninguém se preocupava com as palavras da avó Eguê que vivia agarrada ao passado, passando a maior parte do tempo a falar sozinha com pessoas imaginárias, insistindo em trazer de volta os ecos de uma vida que já não existia. 

−  Uoúh…, a velhice é mesmo uma merda!  − arrematava ela, encolhendo os ombros, diante dos risos e da indiferença geral, antes de se refugiar dentro da sua casa escura e com um estranho cheiro a merda.

Em Fajonquito era diferente e, pela primeira vez, via um capitão assim de perto, o comandante dos brancos em pessoa. Muitas vezes, quando ele descia do seu jipe aproximava-me, discretamente, esperando dele um olhar, um sorriso ou um gesto de amizade que nunca aconteciam. Por isso, não me lembro da cor dos seus olhos, escondidos debaixo de umas sobrancelhas fartas, que fugiam do meu olhar, mas lembro-me, mesmo que vagamente, do seu rosto sempre hermético e impenetrável como que querendo dizer-me que não tinha tempo para crianças intrometidas.

O seu nome era capitão Carvalho, estatura baixa, andar pausado, pés firmes no chão, sentidos obscuros e como que carregados de uma missão impossível. Foi a sua companhia (CCAC 2435) que, de facto, construiu o aquartelamento de Fajonquito em 1969, com o reordenamento da aldeia e construção de um dispositivo de defesa que dizia aos inoportunos visitantes nocturnos:

 
− Olha, estamos aqui deste lado, para vos receber com metralha!.

Estes dispersaram-se indo para os lados de Oio e Joladu e nunca mais voltaram.

Ainda na metrópole, antes do embarque, que se esperava fosse tudo menos a Guiné, a divisa que tinham arranjado para a companhia, assim do jeito “pessoal manga-di-ronco”, era qualquer coisa que dizia assim: “Os tigres, juntos venceremos” e por cima destas palavras via-se a cabeça de um tigre ameaçador, mostrando seus dentes aguçados. 

Outra companhia que se lhe seguiu as pegadas usava outro lema do tipo: “Deixós poisar”. Não percebíamos nada desta linguagem de caçadores, no entanto, o nosso avô materno, caçador profissional que participara na guerra contra os Canhabaques em 1935 e que conhecia todos os animais da floresta, nos dissera com ar muito sério: 

− Com os tigres não se brinca”. 

Mas, em Fajonquito e lá para o fim da comissão, estando mais velhos e realistas tinham alterado a mesma divisa para: “Os tigres, juntos resistiremos” e a outra companhia que lhes seguirá nas peugadas dirá mais tarde a todos os que a queriam ouvir: “Deixós-estar”.


O CAPITÃO, SPÍNOLA E O DJINNE DJUNCORE

Devo esclarecer que, de todos os membros da família, o nosso avô materno era o mais bem informado sobre os aspetos bons da presença portuguesa e com ele mantinha um relacionamento íntimo e confidencial, tanto assim que seria dele a ideia magistral de infiltrar-se dentro do quartel com a missão bem definida de coletar uns pequenos pacotinhos de cor verde escura que eram distribuídos à tropa como ração de combate e que mais não eram senão o popular e vulgarmente conhecido caldo de galinha.

A tropa não usava aqueles pacotinhos os quais, invariavelmente, deitava no caixote do lixo juntamente com os comprimidos a que se juntavam, também, e que, por minha conta, passei a colecionar para tratar da saúde contra o vírus da fome.

A missão foi bem sucedida porque juntava o útil ao agradável. O útil era os pacotinhos de caldo de carne que o velho caçador, especialista na arte de conserva e consumo de carnes secas, cego e sentado na sua varanda, tinha descoberto dentro do quartel e com o qual passou a melhorar, substancialmente, os ingredientes e o gosto do seu intragável prato de farinha de milho preto. 

O agradável para mim era a possibilidade de poder ludibriar as sentinelas, deambular impunemente dentro do quartel, enfrentando o perigo das botas da tropa, sempre prontas para enfiar pontapés certeiros no cu dos pobres djubis e, quando calhava, um pedaço de pão com um saboroso chouriço de carnes vermelhas vindo de uma alma caridosa. Para sobremesa serviam as cartelas de comprimidos das rações de combate, doces por fora, amargos por dentro, como o coração dos nossos políticos.

Mas, vamos deixar de lado o meu avô para lembrar que um dos ctos mais temerários, para além das suas frequentes saídas para as matas do Oio e Cola/Caresse por que ficou conhecido o capitão Carvalho, era o rebentamento de granadas. Sim, granadas lançadas a poucos metros de distância. 

Levantava-se numa bela manhã e de repente, como quem cumpria um ritual funesto, ouvia-se um ”buuuum” enorme dentro do quartel e a seguir, no mesmo instante em que o cheiro irritante de pólvora invadia o espaço do refeitório e da messe dos oficiais, viam o capitão a sair do interior de uma gigantesca bola de fumo e poeira, no seu passo pausado e firme de militar, vestido com o seu rigoroso e invariável camuflado. Nunca conseguimos saber que tipo de granadas usava nem descobrir o prazer que este oficial sentia nesses exercícios macabros de lembrar a todos que estávamos em tempo de guerra e de morte.

No meio dos nativos, muitos acreditavam que ele era invulnerável aos estilhaços das granadas. Na opinião de muitos, ele era detentor de um baki-tcham ou seja mesinha contra balas, para outros seria um protegido do próprio Djuncoré, o rei dos Djinnés que habitava o poilão luminoso da bolanha de Sunkudjumá, no prolongamento do rio Canjambari. 

Como sempre acontece em situações de guerra, era difícil separar o trigo do joio, o mito da realidade. O certo, porém, é que,  com conivência ou sem ela, o capitão impunha, a seu belo prazer, a sua lei e as suas ordens na quadrícula a seu mando, excetuando, claro, o território a oeste que o inimigo ia conquistando pouco a pouco alargando o corredor de Sitatô. E, quem se alia ao poder dos Djinnés, mais cedo ou mais tarde terá que pagar as contas, diziam os mais velhos e entendidos na matéria. Seria este o caso do Capitão?

Naquele dia, estava no perímetro habitual, entretido a apanhar pequenas pedrinhas na estrada para as brincadeiras habituais,  quando, de repente, começa um movimento de vaivém da tropa que ocupa o local para uma improvisada parada militar. Da pista de aviação, onde aterrou um ou dois helicópteros, chega um veículo que se imobiliza junto a parada, de onde descem algumas pessoas, dentre as quais um velho oficial em farda de camuflado, corpo ligeiramente dobrado à frente, qual imbondeiro fustigado pelos ventos tropicais, uma bengala na mão direita. Disseram-nos depois que era o general Spínola.

O que aconteceu a seguir foi rápido e indescritível, não me lembro de ter ouvido o som da corneta, não houve discursos para a ocasião e os militares da parada, provavelmente, teriam executado os habituais gestos teatrais que culminavam no “apresentar aaaaaaarma!”, prática marcial que o General não vira ou não tivera tempo de corresponder e, dirigindo-se ao capitão perfilado à sua frente, ter-lhe-ia assestado uma violenta bofetada para depois puxar dos seus ombros as patentes que este orgulhosamente ostentava. 

E, naquele mesmo instante e no mesmo veículo, voltaram para a pista, levando consigo o capitão Carvalho que, talvez pela primeira vez, na sua vida de oficial, viajava nas traseiras de um Unimog e, pior ainda, sem os seus lustrosos galões de comando. 

Mais tarde juntar-se-iam outros elementos do poder local para um desterro de muitos anos. Quando os helicópteros levantaram voo, ouviu-se um convulsivo choro da tropa metropolitana que assim demonstrava, aos olhos da população, os seus sentimentos de grande estima e de apego ao seu comandante de companhia.

Nunca antes, na minha vida, tinha assistido a uma cena tão comovente protagonizada por homens brancos e, como estavam de luto e não tinham nenhuma vontade de comer o guisado de carne de vaca que os esforçados cozinheiros nativos tinham preparado, um grupo de rafeiros famintos foi lá dar uma mãozinha, enchendo cada um a sua marmita bem àmedida.

"Por uma Guiné Melhor", ninguém podia fazer mais e melhor que este show-off público, em nome da justiça e da dignidade dos Guinéus, indiferentemente da cor da pele, da classe social ou do nível da patente militar. Os indígenas tinham ficado confusos e boquiabertos, pois desde os tempos de Mussa Molo que ninguém tinha visto um capitão do exército,  português e branco,  a sofrer uma tão humilhante afronta ao seu estatuto de oficial superior por causa de alegados atropelos aos direitos humanos do gentio rebelde e num território em guerra.

Os discursos vieram depois com a entrada em cena de Issufo Sandem, dos nossos vizinhos mandingas e ferreiro bem conhecido por sua eloquência verbal. Saindo do nada, gesticulando freneticamente as mãos e fazendo jus à sua cidadania, num bem aprimorado português, explicava para a curiosa multidão que entretanto se tinha juntado no local, sobre as atividades e os métodos usados pelo capitão nas sessões de tortura dos presos e que, por conseguinte, ficaria mui célebre:

O capiton pega num gaijo, mete dentro de um bidon d´iagu, cabeças pra baixu e cús pra cima, dipois, com barriga grandi como prenhadas, tira i deita na tchon, piza barrigas com botas de tropa e iagu sair na bocas i na cus (4).

Tá percebido?

De seguida, o grupo dos prisioneiros, que durante a visita do General tinha sido escondido no interior da tabanca, encabeçados por Tchamá ou Intchamá que, pela primeira vez, eram alvo de alguma atenção e envergando roupas mais ou menos decentes e sem o cheiro nauseabundo que lhes era característico, foram apresentados um a um como se fosse a primeira vez que eram vistos, quando na realidade, todos os dias e durante toda a fase da construção do aquartelamento, tinham sido utilizados como mão-de-obra nos trabalhos de escavação dos abrigos, valas, valetas e ainda na limpeza de toda a área que circundava o quartel e para onde estavam apontadas as metralhadoras que defendiam a aldeia.

Claro que aos olhos da população local, estrategicamente guiada e manipulada, tratava-se de turras, catalogados como IN e gente do mato que aterrorizava, matava e pilhava as nossas aldeias e, por isso, simplesmente, não podiam ter qualquer direito de existir e merecer a menor consideração e como tal eram simplesmente invisíveis. Era isto a realidade crua de uma guerra onde cada um tinha que escolher um dos lados, estivesse certo ou errado.

Voltando ao episódio de 69/70 com o capitão, é claro que não vamos aqui afirmar, sem cairmos no risco de um grande equivoco, que aquilo que aconteceu teria sido o mau desfecho de um sinistro contrato satânico, como pensava o Aliu Samba e os restantes indígenas da aldeia no delírio das suas mentes animistas, mas não deixa de provocar certa perplexidade o facto de que, depois deste fatídico acontecimento de mau agouro, não houve nenhum outro capitão que tivesse cumprido a sua missão até ao fim sem problemas, nesse subsector.

O primeiro a chegar, o cap Carlos Borges de Figueiredo (CART 2742, 1970/72), teve um fim trágico a escassos meses do fim da sua comissão, quando estava a trabalhar no gabinete que o próprio tinha construído no local, onde dois anos antes o cap  Carvalho tinha perdido os seus galões. 

O segundo, o cap QEO José Eduardo Marques Patrocínio (CCAÇ 3549 / BCAÇ 3884, 1972/74), com seis meses apenas, seria convocado junto a sede do Batalhão, em Bafatá, para receber uma “porrada” que o arredaria, definitivamente, da sua companhia, obrigando-nos a assistir a mais uma cena de choros e ranger de dentes dos seus desamparados rapazes.

O último, bem, o último tinha sido o cap Pedreiro Martins (2ª C / BCÇ 4514/72, Junho de 1974), a guerra já tinha chegado ao fim e de mais a mais, para uma companhia que tinha participado no trabalho titanesco de furar o cerco de Guidage e tinha depois passado algum tempo no inferno de Gadamael, os irãs, provavelmente, teriam concordado em poupá-los um pouco, deixando-os cumprir com pompa e circunstância a (des)honra que representou, para Portugal e os seus aliados fulas de Sancorlâ, a entrega final do aquartelamento de Fajonquito aos maquisards do PAIGC para que assim se cumprisse a profecia de Cabral e pudéssemos, finalmente, passar de “uma Guiné melhor” com roupagem e estilo neocolonial para “uma Guiné bem pior” revolucionária, conforme estava superiormente predestinado.

Mas, na opinião de Aliu Samba e dos seus conterrâneos, a situação era bem mais complexa que isso e, estavam convencidos que a extinção da luz do poilão luminoso do lago Djuncoré, significava o desaparecimento do rei dos Djinnés, no preciso momento em que o PAIGC teria penetrado no coração sagrado do recinto dos poilões de Canhámina, capital de Sancorlã, marcando assim o fim do regulado e de uma dinastia.

− Viva PAIGC!... 

− Viva!!!

− Viva Titina Silá!... 

− Viva!!!

− Abaixo a FLING!... 

− Abaixo!!!
 
− Abaixo o imperialismo!... 

− Abaixo!!!

−  Viva PAIGC!... ~

− Viva!!!

− Viva Osvaldo Vieira!... 

− Viva!!!

− Abaixo os oportunistas!... 

− Abaixo!!!

−  Abaixo o Colonialismo!... 

− Abaixo!!!

 Viva Amílcar Cabral!... 

− Viva!!!
 
− Vivam os Heróis da luta!... 

− Viva!!!

 −  Abaixo barrigas de meia!... 

− Abaixo!!!

− Abaixo Neocolonialismo!... 

− Abaixo!!!

Aplausos, camaradas , aplausos, enquanto o pano deslisa, pouco a pouco, para cobrir o triste cenário do palco quotidiano da alegria das nossas vidas.

Bissau, 21 de Janeiro de 2013.
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)
__________

Nota do autor
 
(4) - “O Capitão pega num gajo, mete dentro de um bidão cheio d’agua, cabeça para baixo e cu pra cima. Depois, com a barriga cheia e grande como uma mulher grávida, retira-o e deita-o no chão pisando a barriga com as botas de tropa, fazendo sair água na boca e no ânus”.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 30 de abril de 2024 > Guiné 61/74 -. P25463: 20º aniversário do nosso blogue (13): Alguns dos melhores postes de sempre (VIII): Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé): Spínola, o Desejado - Parte I

(**) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje engenheiro em Bissau...

Guiné 61/74 - P25464: Parabéns a você (2266): Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705 (Bissau, Cufar e Buruntuna, 1964/66)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25456: Parabéns a Você (2265): Giselda Pessoa, ex-Sarg Enfermeira Paraquedista da BA 12 (Bissau, 1972/74)

terça-feira, 30 de abril de 2024

Guiné 61/74 -. P25463: 20º aniversário do nosso blogue (13): Alguns dos melhores postes de sempre (VIII): Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé): Spínola, o Desejado - Parte I




Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Fajonquito > s/ d > Cherno Baldé conversando com "Homens Grandes" de Fajonquito.  Adapt. de Foto: © Cherno Baldé (2013).  



Guiné > Região do Oio > Sector 4 (Mansoa > BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) > CCAÇ 2588 > Natal de 1970 > Destacamento de Bindoro > Visita do gen Spínola (atrás de si, o seu ajudante de campo, que nos parece ser o cap Tomás).

Foto (e legenda): © José Torres Neves (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Dr. Cherno Baldé,
em Bissau (2019)

1. No 25 de Abril de 1974, o Cherno Baldé já confessou que estava em Fajonquito, com os seus 14 ou 15 anos,  e que ficou, perplexo, como todos os "djubis", "cães rafeiros do quartel", sem poder (nem querer) acreditar nas vozes que repetiam "A guerra acabou!... A guerra acabou!"... Para logo se interrogar, com angústia: "E agora ?!... O que será de nós?!" (*)... 

O sonho daqueles miúdos, filhos de príncipes, fulas de Sancorlã, era poderem ir ainda a tempo para a tropa,  receber o "crachá" dos "Comandos" e conquistar a "Honra e Glória" na luta contra os "homens do mato"!... Mas, para ele, Cherno. puto rafeiro,  o verdadeiro 25 de Abril já tinha acontecido há pelo menos quatro anos antes, com a aparição fulminante e justiceira, em Fajonquito, numa manhã de nevoeiro, do "Caco Baldé",  Spínola, o Desejado.

(...) "Todavia, na minha visão pessoal, o verdadeiro 25 de Abril, tinha acontecido em princípios de 1970, quando o general Spinola chegou ao aquartelamento de Fajonquito, sem pré-aviso, e na nossa frente deu um tabefe na cara branca e surpreendida do capitão da companhia, arrancando-lhe os galões que ostentava, alegadamente, por abuso de poder sobre a população indígena com cumplicidade do chefe tradicional local." (...) (*)

Já não nos lembrávamos desta história, contada na série "Memórias do Chico, menino e moço"... Mas lá estava, contava em maior detalhe no poste P11008, de 26 de janeiro de 2013 (**). Todo o poste, que vamos dividir em duas partes, merece ser antologizado, nesta efeméride (o 20º aniversário do nosso blogue), como um dos nossos melhores postes de sempre. (***)


MEMÓRIAS DO CHICO, MENINO E MOÇO (43) - O GENERAL SPÍNOLA E A POLITICA “POR UMA GUINÉ MELHOR” - PARTE I (**)
 
por Cherno Baldé


O que a seguir se apresenta é um texto narrativo resultante de recordações sobre as palavras de Aliu Samba ou Samba Kondjam (1) e um testemunho pouco fiável de uma criança “rafeira” de quartel, curiosa e intrometida,  em forma de uma reflexão retrospetiva sobre a política “Por uma Guiné Melhor” que, na minha opinião, se não atingiu o seu objectivo maior, terá contribuido de certa forma, para a mudança das mentalidades, modelando a especificidade da colonização portuguesa na Guiné.

Assim, iniciamos com algumas questões que, esperamos, alguém mais adulto, melhor informado e mais fiável, nos ajudará a responder:

(i) qual seria a perspectiva do General Spínola para a solução do caso da Guiné “portuguesa” durante a guerra colonial que opunha o exército português, envolvido em três frentes de guerra subversiva, e a guerrilha nacionalista conduzida por Amílcar Cabral por intermédio do PAIGC?

(ii) alguma coisa teria falhado nos planos do General para levar ao reconhecimento da autodeterminação e independência total da Guiné-Bissau, ocorrido em 10 de setembro de 1974, ou teria sido uma consequência lógica da sua visão para esta província ultramarina, em particular, e da política colonial portuguesa em geral, como saída para o conflito armado que ameaçava os alicerces do império colonial português? 

Sim ou não, é bem possível que estas e outras questões nunca venham a ter respostas satisfatórias que possam desvendar os segredos do mais velho e enigmático chefe da guerra colonial ou guerra do ultramar português que, com a condução da política “Por uma Guiné Melhor”, tinha conseguido conquistar a confiança de uma parte significativa da população da Guiné, dita portuguesa.

Na Guiné-Bissau independente, nos meses que se seguiram ao 25Abril74, pairou no ar um sentimento ou esperança de que o general Spínola voltaria para resgatar a Guiné das mãos dos independentistas que os militares do exército português na altura, encurralados nos centros urbanos e entrincheirados em alguns quartéis fortificados do interior, como gostava de dizer o PAIGC, na ansiedade de um rápido regresso à metrópole, tinham entregue sem quaisquer condições prévias. 

Ninguém sabia ao certo como seria feito o resgate nem para quando estava isso previsto e, mesmo, se estava previsto.


LEMBRANDO OS HERÓIS DE SANCORLÃ

Mas, como não há nada sobre a terra que dure para sempre, o boato que não se confirmou nos meses que se seguiram, acabou por se diluir na corrente dos rumores que iam surgindo, para de seguida se extinguir lentamente como as nuvens que desaparecem após a chuva, acompanhando a implantação e consolidação do PAIGC, concomitante à eliminação física de centenas de elementos dos ex-comandos, milícias e soldados nativos do exército português, assim como elementos das chefias tradicionais consideradas, potencialmente, perigosas na fase mais crítica da transição e concentração do poder nas mãos do Partido-Estado.

Estas notas servem também para lembrar e honrar a memória dos nossos pais, tios e irmãos, vítimas da repressão feroz e da exclusão politica e social que se abateu sobre os que estiveram, de forma abnegada e valorosa ao lado e ao serviço de um certo Portugal e em nome de uma certa causa em que acreditavam, seguindo os trilhos de homens de coragem que nunca olharam para trás, filhos dignos de Sancorlã omo Guelá Baldé, Bubacar Fanca, Sedjali Cumbael, Mâma Djamarã, Alanso Candé, Bodo Djau  (1) e muitos outros, nascidos nas terras de Ghâlen Soncô e de Buran-Djamé Baldé, onde as mulheres e mães para calarem o choro das crianças que traziam nas costas, simplesmente lhes diziam: 

"Cala meu filho, o teu pai vai mandar-te para os Comandos e, se não puderes ser comando, por livre arbítrio dos brancos, então serás o keledjaurâ (2) da nossa aldeia contra os homens do mato."

O que quer que tenha acontecido durante os golpes e contragolpes em Portugal, após o 25 de Abril, na Guiné a expetativa de um hipotético regresso do general, durante muito tempo, foi uma esperança secretamente alimentada e guardada, pelo menos, no regulado de Sancorlã que, com a independência do território tinha tudo a perder e nada a ganhar diante das rivalidades étnicas e contas antigas a ajustar com os seus vizinhos e rebeldes mandingas do Oio e Cola-Caresse que tinham apostado no cavalo certo na altura certa, investindo tudo na guerra contra o colonialismo, sim, mas também no sentido de recuperar a glória e a coroa perdidas durante as guerras pela posse das terras do reino de Gabú, um século atrás.


SPÍNOLA CONTRA OS IRÃS DE BANDIM


Se esta esperança acabou por desaparecer na cabeça de alguns guineenses, como foi dito mais acima e como seria lógico pensar em tais circunstâncias, parece que nem todos tinham deixado voar as ilusões sobre esta eventualidade e isto seria confirmado com as discretas visitas a terra de Dona Maria, no início dos anos 80, de algumas personalidades religiosas locais com a ajuda de emigrantes, os quais se teriam avistado com Spínola.

Ao certo, não se pode dizer que tivessem feito a viagem somente com esta finalidade, tendo em conta o secretismo que envolvia as deslocações, mas a verdade é que o tema sobre o qual mais se ouviu falar, após o regresso, tinha a ver com as notícias sobre o velho general, “amigo” dos guinéus, que, aparentemente, estaria vivo e de boa saúde, acrescentando, no entanto, que já era um homem com ar cansado, que falava muito pouco e que, embora se lembrasse de todas as pessoas com as quais se tinha privado enquanto governador, parecia estar distante da realidade atual da Guiné, da esperança e dos sonhos de uma hipotética comunidade luso-africana que, em tempos, ajudara a acalentar em alguns espíritos e/ou círculos mais próximos. 

Afinal, sempre os irãs de Bandim tinham conseguido os seus intentos.

O que foi dito até aqui serve o propósito de poder apresentar a ideia, partilhada com muitos, de que não era crível que depois de ter convencido os seus oficiais superiores e a testa de ferro do regime de Lisboa do “bien-fondé” da política por ele conduzida na Guiné, desde que chegara àquela província em 1968 e, depois de tanto trabalho e recursos investidos nos esforços para conquistar a confiança de populações nativas completamente à deriva e confrontadas com uma escolha difícil, o “Caco Baldé” (3) baixasse os braços, deixando a província, cuja população literalmente o idolatrava, a mercê dos seus ex-inimigos e antigos adversários.

É sabido que o contexto internacional bem como a situação real no plano da guerra, num continente em plena mutação politica, não lhe era nada favorável, mas não era menos verdade que os grandes homens sempre se distinguiram na história, por feitos em que muitas vezes a evidência dos factos não lhe era, de todo, favorável. 

E a evidência demonstrara que, a política “Por uma Guiné Melhor”,  sendo uma empreitada que, em muitos aspetos, parecia muito acertada na época, era ao mesmo tempo, de difícil aplicação prática, tratando-se de um ato que,  mesmo não alterando em nada o colonialismo, na sua essência, contrariava muitos dos comportamentos e preceitos coloniais habituais mais em voga,  e que pareciam justificar a própria colonização em si, ao veicular a noção de uma pretensa superioridade racial, baseada na origem e cor da pele, o que era insuportável e humilhante aos olhos dos “quase portugueses” ou assimilados. 

Esta era a verdadeira razão da guerra e tudo o resto viria por arrasto. Nós íamos compreender isto mais tarde, após a independência.

Mas, uma coisa era querer e outra, bem diferente, poder mudar velhas ideias embutidas na cabeça das pessoas durante séculos, num paí
s, também ele atrasado e governado por uma elite dominada por ideias fascistas. 

Assim, a mudança das mentalidades, se não era impossível de todo, no mínimo, era uma tarefa muito complicada. Mas, o general provou que não era dos que desistiam com facilidade, embora tivesse dez anos de atraso em relação ao pacto neocolonial referendado e aparentemente ganho por De Gaule nos territórios vizinhos da AOF (África Ocidental Francesa).

O acaso da história quis que, também em Fajonquito, fôssemos testemunhas desta evidente teimosia e pudéssemos assim sentir, ao lado da nossa população “indígena”, os efeitos de um ato de justiça colonial de tempos novos que, muitos anos depois, e favorecido pelo fracasso da nossa gloriosa independência que custou sangue, suor e lágrimas, segundo os cânones do nosso Partido-Estado,  e o desencanto patriótico que se seguiu, contribuíram para transformá-lo, finalmente, num cto sublime de elevado valor histórico e contributo importante para a mudança das mentalidades, marcando assim, de forma indelével, a sua passagem pelas terras da Guiné, não na cabeça dos eternos “colons”, mas no espírito do povo simples, eternos “indígenas” de uma nação multiétnica e plurirracial sem rumo. (...)
 
(Continua)

Bissau, 21 de Janeiro de 2013.
Cherno Baldé (Chico de Fajonquito)

(Revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do autor:

(1) - Guelá Baldé – Alferes,  comandante do pelotão de milícias de Cambaju, morto em combate em 71 (não há unanimidade sobre a sua patente, muita gente, incluindo familiares, afirma que já tinha sido promovido a capitão de milícias, antes da sua morte).

No cômputo geral, havia no regulado de Sancorlã mais de 5 alferes/tenentes e 1 capitão, todos de 2.ª linha, no comando de pelotões de milícias (Sare-Uale, Sumbundo, Cambaju, Suna e Sare-Djamara) que a realidade do conflito tinha colocado na 1.ª linha da guerra, todos eles príncipes de Sancorlã); 

  • Carlos Bubacar Djau (Bubacar Fanca) 
  • Alf Comando, 2.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; 
  • José Manuel Sedjali Embalo (Sedjali Cumbael) 
  • 2.º Sargento Comando, 1.ª Companhia, fuzilado pelo PAIGC nos anos 70; 
  • Mamadu Baldé (Mama Djamara);
  • Alf Comando, 2.ª Companhia, falecido em Portugal nos anos 90; 
  • Alanso Candé, 2.ª Companhia de Comandos; 
  • Bodo Djau,  Grupo de tropas especiais de Marcelino da Mata.

(2) - Guerreiro, herói e mártir.

(3) - “Caco Baldé” tem origens no meio e língua fulas, é uma alcunha bem conseguida e duplamente interessante. 

Caco, khaco ou haco, originalmente, quer dizer cor castanha (a cor das folhas secas), na língua fula, e servia inicialmente para designar a cor da farda das autoridades administrativas e/ou da tropa colonial. 

Mais tarde, para simplificar, este termo seria simplesmente utilizado para designar, de forma disfarçada e caricatural, as autoridades coloniais ou seus representantes. 

O apelido Baldé seria lindamente encaixado em acréscimo, certamente, seguindo a lógica da brincadeira muito habitual entre grupos que se consideram primos por afinidade (sanguínea ou territorial) - “Sanencuia”. Por exemplo, os Djaló são primos dos Baldé por afinidade sanguínea, da mesma forma que o grupo fula, na sua generalidade, é primo do grupo etnolinguístico mandinga que abrange Saracolés, Soninqués, Bambaras etc., por afinidade territorial.

Também é bastante lógico se tivermos em conta que a maior parte dos chefes tradicionais fulas (régulos) e colaboradores das autoridades coloniais, no chão fula, ou pertenciam a esta linhagem ou tinham este apelido, de modo que é uma homenagem e, ao mesmo tempo, uma caricatura dirigida à linhagem dos Baldé, na minha opinião bem conseguida, por um primo, resultante da brincadeira entre grupos de afinidade, usando a figura da maior autoridade portuguesa, de então, no território da Guiné.
Não tenho a certeza e trata-se de uma conjectura da minha parte como pista para uma pesquisa mais aprofundada.

____________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 29 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25458: No 25 de abril eu estava em... (34): Fajonquito... "A guerra acabou?!"... E, agora, o que será de nós, "cães rafeiros do quartel", que não cumprimos os nossos sonhos de meninos, que eram ser "comandos"? (Cherno Baldé, Bissau)

(**) Vd. poste de 26 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11008: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (43): General Spínola e a política "Por uma Guiné melhor"

(***) Nota atualizada do Cherno Baldé (em comentário ao poste P25458):

Caro amigo Luis,

Não sei se se deve empolar muito esta história que, na altura, nos causou um choque tremendo e muita incompreensão, pois durante todo o período anterior ao gen Spínola, nunca tinha acontecido uma cena igual.

O ex-capitão Carvalho ainda é vivo e residente, ao que parece, na zona de Arruda dos Vinhos, segundo a sua ex-esposa que, na altura, me contatou amigavelmente, mas para desmentir que o capitão tivesse levado uma chapada na cara. 

Acontece que não me contaram, eu vi com os meus olhos estando no mesmo sítio que, curiosamente, estaria mais tarde quando houve o morticínio do dia 2 de abril de 1972, provocado pelo soldado ("comando"?) Almeida e onde morreram o capitao Carlos Borges Figueiredo (CCAÇ 2742), o alferes Félix, (que era muito estimado também e que acompanhava com muita frequência as atividades da nossa escola), o furriel Alcino e mais outros soldados. O primeiro sargento (velha raposa) conseguiu fugir a tempo, mas ainda assim levou com um estilhaço no rabo. Foi a companhia do cap Carvalho que, praticamente, construiu o aquartelamento de Fajonquito e foi uma companhia extremamente sacrificada e, nãoo admira que não tenham representantes no Blogue, se calhar, como nos diz o Joaquim Luís Fernandes, devem estar fartos da guerra e da tropa até aos cabelos, para não falar do desgosto que tiveram com este acontecimento.

Se relatei o caso foi porque me marcou para sempre e fez do incompreendido gen Spínola o meu herói predileto, sobretudo com a dececão que depois tivemos no reinado do PAIGC.

A citação que acabas de recuperar ainda é da actualidade e reconfirmo, pois: 

(...) "Por uma Guiné melhor, ninguém podia fazer mais e melhor que este ´Show-off´' público, em nome da justiça e da dignidade dos Guinéus, indiferentemente da cor da pele, da classe social ou do nível da patente militar.

"Os indígenas tinham ficado confusos e boquiabertos, pois desde os tempos de Mussa Molo que ninguém tinha visto um capitão do exército português e branco a sofrer uma tão humilhante afronta ao seu estatuto de oficial superior por causa de alegados atropelos aos direitos humanos do 'gentio' rebelde e num território em guerra." (...)


Antes de terminar queria dizer que, revendo as datas com a ajuda preciosa do trabalho de pesquisa do amigo José Marcelino Martins, graças ao qual descobri o Blogue, cheguei à conclusão que, a quando da nossa mudançaa de Cambaju para Fajonquito, em 1967, a companhia que estava no subsector de Fajonquito era CCAÇ 1685 ("Os Insaciáveis") do cap Raiano (cap de infantaria Alcino de Jesus Raiano), homem alto e possante que,  sentado no seu pequeno jipe, parecia que estava de pá. Os nossos deram-lhe a alcunha de "Lello Dadhe",  o cabeça inclinada.

Quanto à CCAÇ 2435, alguns dias após o acontecido, foi substituida pela CCAÇ 2436 (a 20 de Abril 1970), do cap inf José Rui Borges da Costa que antes estava em Contuboel, até ao fim da comissão (13/08/1970).

30 de abril de 2024 às 15:11



Guiné 61/74 - P25462: Ser solidário (269): Bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau (7): Em bicicleta atravessar a África Ocidental (Renato Brito)

1. Mensagem com data de 24 de Abril de 2024, enviada ao nosso Blogue por Renato Brito, voluntário, que na Guiné-Bissau integra um projecto de construção de uma escola na aldeia de Sincha Alfa:

Boa tarde Carlos Vinhal,

Venho por este meio dar-lhe notícia de mais um evento com o objectivo de angariar fundos para construir uma escola em Sincha Alfa – Guiné-Bissau.

Desta feita um jantar onde vou apresentar o projecto e onde não vão faltar alguns produtos vindos directamente da Guiné-Bissau como a cabaceira, o hibisco, o caju e o mel.
Neste site pode ver uma ponte direta para fazer chegar o caju desde a mata do Cantanhez até à Itália: https://www.tabanka.it/

Este evento está a ser organizado com a ajuda de um grupo missionário de uma igreja da cidade de Bolzano. Um grupo de gente sénior que recolhe e vende na cave da igreja objectos em segunda-mão. O dinheiro arrecadado é distribuído por diversos projectos, entre os quais vai passar a constar o da escola para Sincha Alfa. Neste vídeo um recorte sobre o trabalho destes “jovens”:

Regali e solidarietà, la formula funziona https://www.rainews.it/tgr/bolzano/video/2023/12/progetti-solidarieta-beneficenza-gruppo-missionario-parrocchia-tre-santi-regali-natale-ail-stelle-natale-leucemia-linfomi-mieloma-abce2b17-5233-42c9-a7eb-8cd6f118db2b.html

Como sempre, com o duplo objectivo de divulgar eventos e dar a conheçer ao mundo o povo da Guiné-Bissau, mais um bilhete-postal. Mais música da Guiné-Bissau com a possibilidade de ouvir cada tema no endereço indicado assim como o documentário que retrata a vida do músico José Carlos Schwarz:

Clicar nas imagens para uma leitura mais cómoda
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Notas do editor:

Post anterior de 14 DE MARÇO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25271: Ser solidário (265): Bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau (6) (Renato Brito)

Último poste da série de 3 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25334: Ser solidário (268): Vamos ajudar a ONGD Afectos com Letras (NIF 509 301 878), consignando-lhe 0,5% do IRS de 2023 (Com o valor consignado em 2022, instalaram duas descascadoras de arroz na Guiné-Bissau o que permitiu que dezenas de meninas passassem a frequentar a escola)

Guiné 61/74 - P25461: Convívios (991): 51.º Almoço/Convívio da CCAÇ 12, Pelotões Daimler e Caçadores Africanos, dia 25 de Maio de 2024, em Mora (Jaime Pereira, ex-Alf Mil Inf)


Caros Companheiros

Este ano, o almoço organizado pelo nosso companheiro Vítor Marques, será em Mora no dia 25 de Maio, seguido de visita guiada ao Fluviário.

Os detalhes do programa encontram-se no documento anexo.

Convidamos para este encontro as esposas e filhos dos companheiros já falecidos, os ex-militares da CCaç12, Pelotões Daimler e Caçadores Africanos e ainda os amigos e companheiros dos BART 2917 e BART 3873 que quiserem participar neste nosso convívio.

Contamos convosco...
Confirmem a vossa presença até ao dia 19 de Maio para um dos seguintes contactos:

Vítor Marques - Email: vtor.marques@gmail.com - Tlm. 964 752 356

José Sobral - Email: mzsobral@sapo.pt - Tlm. 969 800 826

Jaime Pereira - Email: jaimenpereira@gmail.com - Tlm. 917 265 026

Contamos com todos…
Um abraço e até breve
Jaime Pereira




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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25446: Convívios (990): XXXVII Convívio da CART 3494 / BART 3873, dia 8 de Junho de 2024, com concentração no antigo RAP 2, na Serra do Pilar - Vila Nova de Gaia e almoço em Matosinhos (Sousa de Castro, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista)

Guiné 61/74 - P25460: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte XVI: Infandre, de trágica memória


Foto nº 1A


Foto nº 1B


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4A


Foto nº 4


Foto nº 5A


Foto nº 5


Foto nº 6


Guiné > Região do Oio > Mansoa  (1954) > Carta de 1/50 mil  > Posição de Jugudul, Mansoa, rio Mansoa, Braia e Infandre. Braia e Infandre ficavam na estrada Mansoa-Bissorã.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2023)


1. O José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71); missionário da Consolata, foi um dos 113 padres católicos que prestaram serviço no TO da Guiné como capelães. Neste caso, desde o dia 7 de maio  de 1969 a 3 de março de 1971. 

É membro da nossa Tabanca Grande, nº 859, desde 2 de março de 2022. O BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71; divisa: "Nós Somos Capazes") tinha como subunidades de quadrícula: CCAÇ 2587 (Mansoa, Uaque, Rossum e Bindoro, Jugudul, Porto Gole e Bissá),  CCAÇ 2588 (Mansoa,  Jugudul, Uaque, Rossum e Bindoro)  e CCAÇ 2589 (Mansoa, Braia e Cutia).

O nosso camarada e amigo 
Ernestino Caniço (ex-allf mil cav, cmdt  do Pel Rec Daimler 2208, Mansabá e Mansoa; Rep ACAP - Repartição de Assuntos Civis e Ação Psicológica, Bissau, fev 1970/fez 1971, hoje médico, a residir em Tomar) fez amizade  com o Zé Neves. E este confiou-lhe o seu álbum fotográfico da Guiné, que temos vindo a publicar desde março de 2022. São cerca de duas centenas de imagens, provenientes dos seus "slides", digitalizados. 

Já aqui publicados fotos das suas visitas como capelão aos diversos aquartelamentos e destacamentos do Sector Oeste, O4 e outros: Mansoa, Bindoro, Bissá, Braia, Infandre,Cutia, Encheia, Dugal, Enxalé...

Em 19 de março último, o Ernestino Caniço mandou-nos fotos, do Enxalé (que já publicamos anteriormente) (*) e Infandre.  E diz que ainda lá tem 22 de Infandre.



Foto nº 1C

Infandre era um destacamento que ficava na estrada Mansoa - Bissorã, a seguir a Braia (vd. infografia acima). Não sabemos a data das fotos (possivelmente são do 2º semestre de 1969, as do Enxalé). No caso de Infandre,  tudo indica, pela visita de Spínola (Foto nº 1), que foi numa altura em que já estava em fase de adiantamento o reordenamento de Infandre.(**)

Infandre  (temos mais de 20 referências a Infandre no nosso blogue) ficará marcada, na história da guerra colonial na Guiné, pela brutal emboscada do dia 12 de outubro de 1970 (***), no itinerário Braia - Infandre, a duas viaturas Unimog, com militares da CCAÇ 2589 e Pel Caç Nat 58 e com civis, de que resulturam pelo menos 10 mortos, outros tantos  feridos graves e um desaparecido (ou capturado).  Na altura a CCAÇ 2589 era comandanda pelo cap mil art Jorge Picado, um dos históricos da Tabanca Grande.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série 15 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25390: Álbum fotográfico do Padre José Torres Neves, ex-alf graduado capelão, CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa, 1969/71) - Parte XV: Visita ao Enxalé

(**) Vd. poste de 6 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25344: Reordenamentos Populacionais (4): Uma perspetiva mais "securitária", no final do mandato de Arnaldo Schulz: em março e abril de 1968, foram deslocadas e reagrupadas cerca de 3 mil pessoas do "chão balanta"

(***) Vd. postes de:

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25459: Notas de leitura (1686): O islamismo na Guiné Portuguesa, de José Júlio Gonçalves, edição de 1961 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
José Júlio Gonçalves escreve este ensaio dardejando um sem número de advertências quanto aos riscos da islamização na Guiné Portuguesa. Não houve trabalho de campo, é uma escrita oficinal de quem conhece bem as publicações do Centro Cultural da Guiné Portuguesa. Compreende-se, no entanto, como a obra se tornou incómoda logo a seguir à sua publicação, foram sobretudo as hostes muçulmanas quem deram maior apoio às forças portuguesas durante a luta armada, a natureza dos perigos que o autor julga estar a visionar diluiu-se completamente, nem o animismo definhou nem o cristianismo colapsou, pelo contrário, tornou-se no quadro das práticas religiosas a força mais atuante pela sua credibilidade no campo da saúde, da educação e até da cultura - veja-se o caso dos dicionários de crioulo e do estudo das lendas e tradições guineenses. Ironias que o pós-Império tece...

Um abraço do
Mário



O islamismo na Guiné Portuguesa, um olhar de há mais de 60 anos

Mário Beja Santos

A obra intitula-se O Islamismo na Guiné Portuguesa, de José Júlio Gonçalves, a edição é de 1961 e mal se começa a ler percebe-se logo como se tornou obra incómoda para a política do Estado Novo, é uma cartilha de doutrinação para fazer recuar o islamismo na Guiné, encontrando adeptos “civilizados” para lhe fazer frente na linha do catolicismo. É uma obra feita de leituras, embora o autor fale em ensaio sociomissionológico, não há trabalho de campo, baseia-se em doutrina alheia, leu atentamente o que se publicou no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e outros trabalhos alusivos à presença muçulmana na região subsariana. Identifica os métodos catequéticos islâmicos: as escolas corânicas, a pregação através das confrarias religiosas, as prédicas dos chefes religiosos, a identidade dada pela indumentária, o uso da rádio e da imprensa, o aproveitamento da quase completa ausência de missionários europeus, a exploração dos erros da administração europeia.

Falando da indumentária, tece os seguintes comentários:
“Como é que um pobre afro-negro não há-de sentir ganas de se desenraizar, mandar os filhos à mesquita e à escola e tornar-se membro de uma religião que lhe trará elevação social. São impressionantes estes negros atraídos pelo prestígio do balandrau. É vê-los acorrer aos povoados através dos matagais limítrofes; quando se aproximam da povoação aperaltam-se cuidadosamente. Depois entram com solenidade, falsamente aprumados! Lembram algum tanto o ingénuo camponês europeu, quando vai à cidade!”

Adverte quem o lê para os perigos da rádio, a difusão do credo de Mafoma é feita pela rádio Cairo, no fundo estas mensagens acicatam para o nacionalismo, para combater o branco, aguardar a libertação… Estes agentes difusores do Islão infiltram-se através de países fortemente islamizados; e há um inteligente aproveitamento das rivalidades entre os missionários católicos e protestantes; deplora, em linguagem cuidada, a colonização feita por gente iletrada, a sua incapacidade para promover a ocidentalização dos negros-africanos; e, quanto aos erros da administração, elenca a discriminação racial, a manutenção de alguns chefes muçulmanos tendenciosos e a preferência pelos islamizados para servir nas forças públicas.

Procura contextualizar como se tem processado a islamização dos guineenses, faz um enquadramento histórico através do reino de Gana, o império Mandinga e os impérios Songoi e dá seguidamente a relação dos grupos étnicos diferenciados para depois os enquadrar em animistas, animistas ligeiramente islamizados, bastante ou quase completamente islamizados, mostra as resistências dos preponderantes grupos animistas, desde os Felupes aos Bijagós. Temos igualmente um relance sobre a presença do catolicismo a ao papel positivo desempenhado pelos franciscanos a partir de 1932. Diz claramente que não se tem prestado a devida atenção aos problemas religiosos da Guiné Portuguesa, que a presença cabo-verdiana tem sido mal utilizada, eles deviam ser os elementos difusores da cultura portuguesa e do catolicismo. Acha que se devia recorrer a missionários católicos com conhecimentos médicos e outros de idêntica utilidade para os guineenses. Citando Rogado Quintino, acha que é necessário estabelecer um cordão de missões católicas ao longo da linha que separa nitidamente os muçulmanos e os animistas. E não deixa de relevar que cristianizar deve significar aportuguesar. Há para ele um grave perigo com as missões protestantes. A missão que existia ao tempo era anglo-americana, dispondo de amplos fundos e observa que promove uma verdadeira assimilação tecnológica que não se traduz num aportuguesamento. Suspeita dos mouros, vagabundos e comerciantes ambulatórios que percorrem a Guiné Portuguesa, o rosário numa mão, o livro sagrado na outra, infundem respeito e temor, criando em seu proveito uma auréola de prestigiosa admiração. E pior que tudo, mostram-se inimigos irredutíveis da evolução dos guineenses no sentido ocidental.

Discorre com alguma minúcia sobre a ação missionários dos marabus, mouros, jilas, tchernos, almamis, arafãs, entre outros, o papel das confrarias, o trabalho catequético de Fulas e Mandingas, como se desenvolve o seu proselitismo, quando necessário o uso da força, como o Corão influencia as culturas tradicionais, intrometendo-se no próprio direito. É profundamente crítico sobre a influência muçulmana nas artes plásticas guineenses: “O Corão desempenhou um papel preponderante no aviltamento das atividades plásticas dos guineenses, proibiu a representação da figura humana na escultura, até de animais, a escultura é meramente decorativa. Talvez este seja um dos mais evidentes motivos por que a pujante escultura de certos grupos étnicos ditos animistas esmaeceu e só em certos pontos inóspitos ou nas faixas litorálicas e dos arquipélagos costeiros se manteve um pouco mais ao abrigo da forte e operante influência mourisca”. No fundo, as grandes exceções às proibições muçulmanas ainda eram as esculturas Bijagó e Nalu. Mas mesmo assim, observa o autor, a escultura dos Nalus estava em regressão devido à influência dos Fulas e dos Sossos islamizados.

Um tanto fora do contexto, mas sempre com o ar de quem alerta e aconselha os próceres da política ultramarina, lembra os países independentes à volta da Guiné, os apelos do Gana à subversão das elites e das massas da Guiné Portuguesa, enfim, era preciso estar muito atento às provocações e à agitação que estes países independentes iriam suscitar no futuro.

Em jeito de conclusão, parece ao autor que o animismo corre o risco de desaparecer mais cedo ou mais tarde sobre o impacto do Islão; se não houver oposição do cristianismo, o islamismo irá absorver a quase totalidade dos guineenses; impõe-se, pois, ao cristianismo a premência de aumentar a sua ação catequética junto dos animistas. E há delicados problemas políticos, que aparecem aqui enquadrados um tanto paradoxalmente, já que no ensaio não se fez outra coisa do que mostrar os perigos do islamismo na Guiné e agora vem dizer-se que esta corrente pró-muçulmanos colabora amplamente com a administração portuguesa e que o fenómeno independentista não tem tradições na Guiné, não passa de uma inovação de cultura francesa e anglo-saxónica. E como para atenuar o caudal de advertências quanto aos perigos presentes e futuros, parece finalizar com frases tranquilizadoras, dizendo que “O movimento pró-português é, pode dizer-se, desde o século XV, o movimento tradicional das tribos da Guiné Portuguesa que desejaríamos não ver perturbado.”

O rol de contradições que se seguiu à publicação deste ensaio terá contribuído para o relegar às estantes, tais e tantos eram os incómodos que ele poderia suscitar num templo em que as forças islâmicas foram inegavelmente os grandes sustentáculos à luta contra o PAIGC.


Natural de Pampilhosa da Serra, José Júlio Gonçalves nasceu a 19 de janeiro de 1929. Esteve ligado, em 1984, à elaboração da moção da Nova Esperança (de um grupo de figuras do PSD, com Marcelo Rebelo de Sousa, Santana Lopes e Durão Barroso), de alternativa ao grupo de Pinto Balsemão e Mota Amaral. Fez parte do grupo de professores que saíram em divergências com a Universidade Livre e de cuja iniciativa partiu, em 1986 a criação da Universidade Moderna, da qual foi nomeado reitor, tendo sido vogal da Direção no triénio 1991-1993 e Presidente da Direção, no triénio 1997-1999.
Muçulmanos guineenses na reza do Tabaski
Uma mesquita em Bissau
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Nota do editor

Último post da série de 28 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25454: Notas de leitura (1686): Timor Leste, que já foi lugar de desterro e encarceramento (Luís Graça)