Queridos amigos,
Nota-se que o Boletim Official incorpora mais relatos sobre os Estabelecimentos de Cacheu e Bissau, há noticiários mensais, fala-se em missionação, e no caso concreto há uma referência ao régulo de Bolor que se converteu ao catolicismo, as notícias de saúde ganharam realce, a doença do sono, a varíola, as úlceras e a sífilis, há vigilância e policiamento no rio Geba, abriu-se uma delegação da conservatória de Sotavento (Cabo Verde) e encontrou-se um relato vibrante, com muita terminologia naval do comandante do iate de S. Pedro enviado ao Capitão dos Portos da Província, é um documento surpreendente que nos dá a possibilidade de entender os tormentos do transporte marítimo naquele ponto da costa ocidental africana.
Um abraço do
Mário
Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos de 1867 e 1868) (11)
Mário Beja Santos
É por estes anos que se regista uma nova atitude do Governo Geral de Cabo Verde relativamente aos Estabelecimentos de Cacheu e Bissau, estes têm tido sempre um tratamento residual nas matérias versadas pelo Boletim, dizem respeito a nomeações, licenças para tratamento, movimento marítimo, questões associadas às pautas aduaneiras, enfim, formalidades, só muito raramente se noticiam beligerâncias, acordos de paz, ocupação do território, agricultura. A problemática da saúde passa a ser objeto de informação e começam mesmo a surgir relatórios mensais transmitidos da Costa da Guiné para a cidade da Praia, mas não haja ilusões, tudo com grande lentidão e omissão, como se tem vindo a referir, não há menção do que se passa no Casamansa, esporadicamente se aflora o assunto dos tumultos à volta de Bissau e Cacheu, sabe-se que há uma colónia cabo-verdiana no Rio Grande de Bolola, fruto das fomes que avassalaram o arquipélago, mas a discrição é a alma do negócio.
No Boletim n.º 40, de 5 de outubro de 1867, o Secretário do Conselho Inspetor da Instrução Primária envia uma circular a todos os administradores dos concelhos para se lhe remeter com a maior brevidade um mapa formulado segundo o modelo que se juntava sobre o movimento das escolas de instrução primária. Mais adiante, no Boletim n.º 44, de 2 de novembro, recolheu-se um extrato das informações sobre o estado da Guiné Portuguesa quanto aos meses de agosto e setembro:
“O rei e toda a tribo gentílica de Bolor, na margem do rio de Cacheu, haviam abraçado o catolicismo, sendo batizados pelo reverendo Vigário-Geral, o Cónego Joaquim Vicente Moniz, que em tal acto celebrou uma solene missa, a primeira naquelas paragens.”
Neste mesmo número do Boletim dá-se a notícia de que faleceu em S. Belchior, em 15 de agosto, o Segundo-Tenente do Batalhão de Artilharia, António Luís Menezes. Por muito que se procure documentação sobre estes destacamentos no rio Geba (Geba propriamente dito, Fá e Ganjarra e S. Belchior), até à data nada se encontrou.
Elemento muito curioso nos surge no Boletim e que tem a ver com as vicissitudes do transporte marítimo na Guiné, com o uso de terminologia naval, um texto surpreendente a todos os títulos. Trata-se de um relato endereçado em 26 de junho ao Capitão dos Portos da Província, vem assinado por Francisco Resende Costa, Comandante do iate S. Pedro:
“Em cumprimento das ordens que me foram dadas, no dia 26 de Março pretérito, pelas 10 horas, depois de ter recebido a bordo os governadores da Guiné e Cacheu, e mais funcionários públicos, mandei suspender o navio do meu comando com destino a Bissau. No dia 28, pelas 24 horas, mostrou-se o mar muito agitado e vento forte do Norte, a ponto de se arrebentarem as driças do traquete e vela grande, desta forma só navegámos com as velas da proa, aguentando para o Norte até que no dia 30, pelas 2 horas, o mar abonançou e pude então mandar enviar de novo as driças.
No dia 1 de abril, mandei sondar, e encontrou-se 11 braças, que pelo fundo reconheci estar ao norte do Cabo Roxo. Continuando assim a navegar, até encontrar 8 braças, mandei fundear, à espera do dia para navegar para o Sul.
Pelas 18 horas, mandei suspender e naveguei até 24 horas do dia 2 que obtive a minha latitude; e na mesma ocasião, pela espessa cerração que então cobria a costa, a muito custo pudemos avistar o Cabo Roxo. Assim navegámos até que pelas 4 horas e 30 minutos do dia seguinte avistámos as ilhetas, continuando a cerração.
Estando ao meio do canal e sendo a maré desfavorável, mandei andar a E.N.E. da agulha, a fim de encontrar menos fundo para ancorar.
Sendo bem impetuosa a força do corrente, e descuidando-se o homem do prumo, o navio encalhou em Bossis às 10 horas do referido dia, onde estivemos até 16 horas, e obtivemos enchente para safarmos, não tendo o navio sofrido avaria alguma.
No dia 4, pelas 24 horas, tendo maré de enchente, mandei suspender, bordejando com o vento O.S.O. até pôr-nos ao meio canal. Continuei a navegação até ao dia 5, no qual ancorámos em Bissau pelas 8 horas, sem mais ocorrência de consideração a mencionar.
No dia 12 de abril, recebendo as ordens do Governador da Guiné, suspendemos para Cacheu, com um prático acordo, levando o Governador da referida Praça de Cacheu, o condutor de obras públicas, e um oficial subalterno. Navegando com vento N.O., pelas 18 horas do dia 15, fundeámos em Cacheu, sem novidade.
No dia 24, recebendo as ordens do Governador de Cacheu, suspendemos pelas 14 horas para Bissau.
Navegando no dia 25, pelas 19 horas, descuidando-se o prático, o navio tocou-se nos baixos de Jufunco, de onde pudemos safar pelas 20 horas, tendo a maré de enchente, até 24 horas que ancorámos. Suspendemos no dia 26, bordejando com a maré de vazante até 6 horas do mesmo dia, do qual fundeámos por falta de maré.
No dia 27 pela 1 hora (estando ancorado) o mar bastante agitado e muito vento, perdemos o ferro de estibordo; e sendo substituído com o de bombordo e aumentando o tempo; pelas 5 horas e 30 minutos perdemos também este com 30 braças de amarra, ficando apenas com um ancorote. Vendo-nos obrigados a navegar por falta de ferro. Navegando no dia 28 pelas 8 horas, fundeámos em Bissau com o referido ancorote; requisitando em seguida ferros, sendo-me satisfeito um.
Necessitando rever-se o fundo do navio, e conforme as ordens do Governador da Guiné, encalhámos no dia 3 de maio, em frente da praça, encontrando-se somente arruinado o cadasta, e uma braça de quilha desforrada. Não se procedendo logo ao conserto, por ter o navio que seguir para o Rio Grande de Bolola, levar o destacamento; largando para aquele ponto no dia 6 às 14 horas, chegámos com 24 horas de viagem.
No dia 10, pelas 20 horas, tendo recebido ordens do Governador da Guiné e tomando algumas praças de pré, tabuado e plantas para esta cidade, largámos para Bissau onde chegámos com 48 horas. Encalhou-se novamente o navio no dia 24, para fazer obra no cadaste e na quilha, a qual se concluiu no dia 25, levando uma sobreposta no cadaste e duas folhas de cobre na quilha, ficando a obra bem arranjada e o forro de cobre em bom estado.
Recebendo as ordens no dia 6 do corrente e tendo a bordo passageiros, mandei suspender pelas 16 horas para esta cidade, trazendo onze dias de viagem.
Os mastros acham-se em mau estado, com especialidade o de traquete que está podre debaixo da romã, os quais precisam ser cortados ou substituídos por outros novos. Deus guarde a Vossa Senhoria.”
Estamos agora no ano de 1868. No Boletim n.º 5, de 1 de fevereiro, retiro do extrato das notícias da Guiné:
“Alcançam a 14 do corrente mês as notícias recebidas naquele distrito, e comunica o respectivo Governador que era regular o estado sanitário, bom o alimentício, sofrível o do comércio, e que em todo o distrito reinava sossego e tranquilidade pública; que o filho do régulo de Badora se lhe tinha apresentado, acompanhado de alguns grandes do território, solicitando em nome do mesmo régulo a paz (interrompida desde a guerra de 1861) o que daria em resultado a entrega dos presídios de Fá e Ganjarra, desde aquela época em poder dos Biafadas de Badora, e que ele Governador só espera a escuna Bissau para nela se dirigir a Geba e concluir aquela negociação; que as colheitas de arroz e mancarra continuavam, que não haviam sementeiras e plantações por não ser o tempo próprio para elas.”
Temos agora o Boletim n.º 9 de 29 de fevereiro, portaria n.º 35 A. Reza o seguinte: “Tendo o decreto de 2 de Outubro de 1867 estabelecido no Julgado de Bissau uma delegação da conservatória de Sotavento, havendo sido nomeado Pedro Augusto Macedo d’Azevedo para interinamente exercer o cargo de ajudante privativo, encarregado da mencionada delegação, havia agora que procurar o edifício para a delegação.” Era, portanto, determinado ao Governador da Guiné que procurasse um edifício para a delegação reunindo as necessárias condições. E no Boletim n.º 11 de 14 de março, texto do Presidente da Junta de Saúde para o Secretário do Governo Geral dá-se a informação de que grassa em Geba, no Rio Grande e em Bolama a varíola.
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Notas do editor:
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