Guiné > Bambadinca > 1969 > No Zé Maria, comendo lagostins do Rio Geba... A dolce vita dos nharros de 1ª da CCAÇ 12: na ocasião, o Alf Mil Cav Rodrigues (já falecido) e os furriéis milicianos Tony Levezinho e Humberto Reis, nossos queridos tertulianos.
A chapa foi batida - salvo erro - por mim, membro assíduo desta tertúlia gastronómica. O pobre do Zé Maria, que era tuga, tinha fama de ser turra... e fazia-nos pagar caro os lagostins, "pescados em zona de grande risco" (a 50 pesos o quilo!)... O problema depois era subir a rama de acesso ao quartel... (LG)
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)
1. "Mas ainda melhor que as mulheres, é o vinho que faz esquecer as mulheres" (Luís Pacheco)
... E da água de Lisboa, camaradas ? Que me dizeis ? Muitos hectolitros de cerveja (bazuca), vinho verde (!), vinho a martelo, água do Poço do Bispo, surrapa, uísque escocês, uísque de Sacavém , cuba livre, água suja do imperialismo com coca-cola, a gente bebeu, do Cacheu ao Rio Grande Buba, passando pelo Geba e o Corubal !!!
O mote foi deixado pelo Carlos Marques dos Santos, a toupeira de Mansambo... Mas também do Paulo Raposo, que há dias nos mandou esta enigmática mensagem:
"Eh, pessoal! O cabo cripto apanhou ontem outra cadela. Já não tenho mão nele. Está mesmo apanhado do clima. Diga se me ouve, escuto. Correcto afirmativo, mas negativo diga se me compreende, entendido. Alfa charli papa... Eu pergunto, como é que isto era entendido pelo IN? Para que era a cifra? Segue meio aéreo para levar água de Lisboa ao pessoal.
"Meus amigos um bom fim de semana para todos, cuidado que o IN anda nas estradas fardado de GNR".
Assinado: "Os Baixinhos do Dulombi".
Com o seu inegável sentido de humor alentejano, o Paulo mandou-me outro aviso (sério) à navegação costeira:
"Os ingleses dizem que quando um homem sai à rua e nota que os polícias são rapazes novos, quer dizer que já estamos velhos. Por aqui diz-se de outra maneira, quando te esqueces de fechar o fecho das calças, é o primeiro sintoma, o seguinte e último é quando te esqueces do que está lá dentro.
"É a vida, rapaz, o que vale é que tens os registos em ordem para consultares.
"Por aqui temos outra vez problema com o cabo cripto, ontem apanhou outra bebedeira que ninguém o consegue acordar, assim este rádio vai outra vez em claro, eu dá-me ideia que já nem o IN se importa.
"Um grande abraço para ti deste guerrilheiro decadente"...
Parafraseando desta vez um poeta maldito, o portuga Luís Pacheco, bem podíamos dizer que melhor que as bajudas, era a água de Lisboa que nos fazia esquecer as bajudas, todas as bajudas do mundo, as de Lisboa e as de Bafatá, Bolama, Barro, Bambadinca, Guileje, Bigene, Binta, Guidage, Xitole, Mansambo (não havia!!!), Candamã, Afiá, Satecuta, Xime, Fá, Missirá, Sare Gana, Geba, Banjara, Cantacunda, Contuboel, Olossato, Empada, Buba, Mampatá, Quebo, Cansissé, Canjadude, Cheche, Madina do Boé, e por aí fora...
Eu costumo lembrar aos filhos e aos meus amigos mais íntimos que fui para a Guiné com uma mala cheia de livros (à espera de umas férias tropicais!) e ao fim de seis meses estava a beber uma garrafa de uísque por dia... com água de Perrier.
Bom, já me confessei... Espero que o meu fígado me perdõe...
Na Guiné, em Mansambo ou em Madina, o que fazia mal ao fígado fazia bem à alma... Não sei o que teria sido a guerra sem a nossa cachaça... "for the Portugese Armed Forces from Scotland with love"...
2. Há dias esqueci-me de inserir esta mensagem do nosso periquito António (Duarte):
Caro Luís,
Fala num dos seus textos da Helena de Bafatá (1). Se bem me lembro era uma pequenina que era mais ou menos a chefe das outras meninas ???
Que saudades meu Deus !!! Nunca me mais tinha recordado dela.
Desconhecia o drama da morte do vago mestre nos braços da dita pequena. A Ponta Coli era crítica. O 1º morto do BART 3873, o furriel Manuel Bento, foi precisamente nesse local.
+ 1 abraço
A. Duarte
(ex-furriel miliciano da CART 3493 e da CCAÇ 12, Mansambo, Bambadinca e Xime, 1972/74)
________
Nota de L.G.
(1) Vd post de 12 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLIV: A galeria dos meus heróis (3): A Helena de Bafatá
" (...) Amorosa Helena, pequena fula dengosa, ‘salva das garras do Islão’ (sic) por zelosos missionários católicos – mas não da faca da fanateca, que te extirpou, na festa do fanado, o clitóris – para se tornar o colchão de todas as camas, a Vénus negra de batalhões inteiros, a iniciadora sexual de mancebos que as sortes vieram arrancar às saias da mamã, a alegre e traquinas companheira de muitas farras de caserna, correndo nua e lasciva do regaço de tropas bêbedos que nem cachos, para o abrigo mais próximo quando às tantas da madrugada soava o canhão sem recuo!...
"... Bela Helena de Bafatá que sabias pôr na ordem os arruaceiros paraquedistas de Galomaro que te batiam à porta a pontapé quando eu estava contigo, deitado na tua liteira, e me dispensavas pequenas gentilezas – um ronco de missangas, vermelhas, ou uma talhada de papaia que trazias do mercado – sempre que eu ia a Bafatá e procurava a tua companhia, na melhor das hipóteses, uma vez por mês, no dia de folga dos guerreiros… Tu e as tuas amigas de Bafatá que tanto trabalho deram que fazer ao competentíssimo furriel enfermeiro Martins, que nunca punha os pés fora da sua enfermaria e que eu duvido que alguma vez tenha ido a Bafatá, o nosso querido Pastilhas que vivia 24 horas dentro do arame farpado, trabalhando incansavelmente, de bata branca, em prol de uma Guiné Melhor, que nos aturou mil e um travessuras, partidas de mau gosto, brincadeiras estúpidas, bebedeiras de caixão à cova e sobretudo nos curou de alguns valentes esquentamentos…
" … Destes e doutros males de amores, estás perdoada, Helena. Afinal, quem vai à guerra, dá e leva… Tu curavas-nos dos males da alma, o Pastilhas dos males do corpo… Entretanto, quando a guerra acabar, para mim e para os meus camaradas da CCAÇ 12, não terei tido tempo de te devolver a pulseira de missangas vermelhas nem de te dizer um 'Adeus, até sempre', um adeus sem regresso… Guardarei de ti a doce lembrança das tuas estridentes e saudáveis gargalhadas, do cheiro exótico do teu corpo, das tuas sagradas funções de sacerdotiza do amor em tempo de guerra… Imagino que a tua vida não tenha sido fácil depois da independência, se é que lá chegaste com vida e saúde… Nunca mais tive notícias tuas, mas hoje, revendo a minha primeira viagem, por terra, no interior da Guiné, do Xime até Contuboel onde me esperavam os meus queridos 'nharros', ao longo do interminável dia de 2 de Junho de 1969, o teu nome, o teu rosto e as tuas gargalhadas vieram-me à lembrança…
"...Lembrei-te de ti em Ponta Coli, frente à vasta bolanha, agora seara inútil de capim alto, com o cadáver do furriel vagomestre nos braços; lembrei-te de ti e das minhas escapadelas a Bafatá… Também foste, à tua maneira, uma heroína daquela guerra, minha impossível amiga, separada pelos papéis que nos obrigaram a representar na tragicomédia da guerra colonial da Guiné… Daí figurares, contra a toda a ortodoxia (do teu povo fula, dos teus missionários católicos, dos 'tugas' que apenas queriam o teu corpo, dos revolucionários do PAIGC que não te terão perdoado o colaboracionismo com os colonialistas, para mais sendo tu conterrâneo do pai da Pátria, o Amílcar Cabral), daí figurares, dizia eu, na minha galeria de heróis e de heroínas… Com todo o direito, com o direito que ganharam as mulheres do teu país, ofendidas e humilhadas, violentadas pelo sistema, pela guerra, pela dominância dos machos, pelo imperativo da sobrevivência… Aceita esta pequena homenagem da minha parte, onde quer que estejas, na terra, no céu ou no inferno!" (...)
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P552: Uma bebedeira colectiva (Mansambo, Novembro de 1968) (Carlos Marques Santos)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cart 2339 > Novembro de 1968> As longas noites quentes de Mansambo...
© Carlos Marques dos Santos (2006):
"Esquecer, ao menos por uma noite...
Se há uma via de libertação
É através do álcool
Que climatiza os pesadelos
Dos homens que nasceram meninos,
Que não nasceram soldados.
Entre duas bebedeiras e um duche
Ganha-se tempo,
Enquanto os obuses batem os trilhos
Das matas do Xime
E o quarteleiro abre os caixotes de munições
Para a operação
Do dia seguinte..."
Extractos de Esquecer a Guiné... por uma noite
Luís Graça (1971-2005 )
Texto do Carlos Marques dos Santos (ex-furriel mil, CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69):
Luís:
Volto a entrar no blogue mais uma vez enviando uma fotorreportagem de momentos vividos na CART2339 em Mansambo. Por motivos técnicos enviarei uma a uma.
Era Novembro de 1968 e a Companhia voltava a estar reunida, agora num novo aquartelamento, por nós executado de raiz no meio do nada.
O aquartelamento era um charco, as condições de vida eram péssimas e o moral baixo, quer pelo peso do trabalho físico executado, quer pelas sucessivas e difíceis operações em que a companhia esteve envolvida.
Além disso já dois comandantes tinham abandonado a companhia, por vários motivos.
O pessoal andava à deriva.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cart 2339 > Novembro de 1968> Uma longa noite, nos abrigos de Mansambo, com muita água de Lisboa ...
© Carlos Marques dos Santos (2006)
Dias antes, a 11 (dia de S. Martinho), no decorrer da Op Hálito (1), uma coluna ao Xitole tinha sido emboscada, com rebentamento de mina comandada e vários feridos.
A cambança do rio (Pulom) (2) tinha sido efectuada em 4 barcos de borracha e uma jangada, tornando extremamente difícil a sua concretização. Só com a acção de bombardeiros T6 foi conseguido o nosso retorno a Mansambo.
Tudo isto - é necessário imaginar o contexto - nos levou a libertar o extremo stresse. Só podia ser com uma garrafa de whisky (ou melhor, muitas).
Era assim a vida dos combatentes. Não teremos sido os únicos.
Um Abraço.
CMS
_________
Notas de L.G.
(1) Vd post de 22 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXI: Quando até os picadores tinham medo (Mansambo, 1968)
" (...) A Op Hálito (11 de Novembro de 1968) foi outra das operações dramáticas que aconteceram no Sector L1, no tempo do Carlos Marques dos Santos (...). Foi a última coluna logística de Bambadinca para o Xitole, entre Novembro de 1968 e Agosto de 1969. A partir daí a estrada, no troço Mansambo-Xitole, ficou interdita.
"As NT sofreram duas emboscadas, tendo que recorrer a apoio aéreo para poder prosseguir. Os picadores foram obrigados, sob a força das armas, a continuar a picar o itinerário: Cerca das 16.00h foi feita uma distribuição de munições e obrigaram-se coercivamente os picadores a continuarem a picagem...
"Destas duas emboscadas resultaram 1 morto, 1 desaparecido e 12 feridos, além de danos materiais em viaturas e armas" (...).
(2) Afluente do Rio Corubal: vd. mapa do Xime.
© Carlos Marques dos Santos (2006):
"Esquecer, ao menos por uma noite...
Se há uma via de libertação
É através do álcool
Que climatiza os pesadelos
Dos homens que nasceram meninos,
Que não nasceram soldados.
Entre duas bebedeiras e um duche
Ganha-se tempo,
Enquanto os obuses batem os trilhos
Das matas do Xime
E o quarteleiro abre os caixotes de munições
Para a operação
Do dia seguinte..."
Extractos de Esquecer a Guiné... por uma noite
Luís Graça (1971-2005 )
Texto do Carlos Marques dos Santos (ex-furriel mil, CART 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/69):
Luís:
Volto a entrar no blogue mais uma vez enviando uma fotorreportagem de momentos vividos na CART2339 em Mansambo. Por motivos técnicos enviarei uma a uma.
Era Novembro de 1968 e a Companhia voltava a estar reunida, agora num novo aquartelamento, por nós executado de raiz no meio do nada.
O aquartelamento era um charco, as condições de vida eram péssimas e o moral baixo, quer pelo peso do trabalho físico executado, quer pelas sucessivas e difíceis operações em que a companhia esteve envolvida.
Além disso já dois comandantes tinham abandonado a companhia, por vários motivos.
O pessoal andava à deriva.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cart 2339 > Novembro de 1968> Uma longa noite, nos abrigos de Mansambo, com muita água de Lisboa ...
© Carlos Marques dos Santos (2006)
Dias antes, a 11 (dia de S. Martinho), no decorrer da Op Hálito (1), uma coluna ao Xitole tinha sido emboscada, com rebentamento de mina comandada e vários feridos.
A cambança do rio (Pulom) (2) tinha sido efectuada em 4 barcos de borracha e uma jangada, tornando extremamente difícil a sua concretização. Só com a acção de bombardeiros T6 foi conseguido o nosso retorno a Mansambo.
Tudo isto - é necessário imaginar o contexto - nos levou a libertar o extremo stresse. Só podia ser com uma garrafa de whisky (ou melhor, muitas).
Era assim a vida dos combatentes. Não teremos sido os únicos.
Um Abraço.
CMS
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Notas de L.G.
(1) Vd post de 22 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXI: Quando até os picadores tinham medo (Mansambo, 1968)
" (...) A Op Hálito (11 de Novembro de 1968) foi outra das operações dramáticas que aconteceram no Sector L1, no tempo do Carlos Marques dos Santos (...). Foi a última coluna logística de Bambadinca para o Xitole, entre Novembro de 1968 e Agosto de 1969. A partir daí a estrada, no troço Mansambo-Xitole, ficou interdita.
"As NT sofreram duas emboscadas, tendo que recorrer a apoio aéreo para poder prosseguir. Os picadores foram obrigados, sob a força das armas, a continuar a picar o itinerário: Cerca das 16.00h foi feita uma distribuição de munições e obrigaram-se coercivamente os picadores a continuarem a picagem...
"Destas duas emboscadas resultaram 1 morto, 1 desaparecido e 12 feridos, além de danos materiais em viaturas e armas" (...).
(2) Afluente do Rio Corubal: vd. mapa do Xime.
Guiné 63/74 - P551: Notícias da CART 3493 (Mansambo, 1972) e da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1973/74) (António Duarte)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Xime-Bambadinca > O 1º Capitão da CCAÇ 12 (1969/71), o Capitão Brito (hoje, coronel na reforma).
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)
Caro Luís Graça,
Acabei de ler a inserção do meu e-mail, bem como o comentário do Sousa de Castro, no blogue.
De facto estive na CCAÇ 12 desde Janeiro de 1973, primeiro em Bambadinca e a partir de Abril no Xime, após as rotações das companhias, geradas pela transferência para Cobumba da Cart 3493 (minha unidade inicial). Regressei à metrópole em Janeiro de 1974.
Numa breve resenha e procurando arrumar os dados por ordem cronológica, diria que a vida em Mansambo, de Janeiro até Dezembro de 1972, foi com baixa actividade de guerra, no entanto com situações graves e desgastantes.
Accionámos três minas, que custaram três feridos com amputação de membros inferiores. A primeira em Jonbocari (mina antipessoal), com um ferido (1º cabo Ribeiro do 3º Pelotão). Salvo erro em 9 de Maio.
No dia seguinte foi accionada uma mina anti carro por um burrinho, que custou a perna a um furriel do 2º pelotão (Ferreira) e mais 2 feridos com alguma gravidade. Este incidente aconteceu aquando do regresso ao quartel da segurança à operação de capinagem, na estrada de Mansambo a Candamã/Afiá (Candamã era à época uma tabanca em auto defesa, com um pelotão de milícias e uma secção da unidade de Mansambo).
Em Agosto mais uma mina antipessoal accionada em Sanguê Demba (não sei se estará bem escrito), em que ficou ferido um cabo (Silva 2º Pel).
Entretanto no mês de Agosto houve um ataque ao quartel sem incidentes.
Quanto ao ano de 1973 na CCAÇ 12 a acção foi mais animada. Instalados em Bambadinca, naquilo que se classificava de hotel, fazia-se operações sobretudo na zona do Xime. Assim em 3 de Fevereiro tive a primeira emboscada na Ponta Varela em que participaram três grupos de combate da CCAÇ 12 em conjunto com 2 pelotões da Cart 3494 (à época aquartelada no Xime). As NT não registaram feridos mas segundo se apurou em informações recolhidas no Enxalé, o PAIGC teria tido baixas.
A 25 do mesmo mês houve uma outra emboscada numa operação na zona de Ponta Varela/Poidom e Ponta do Inglês/Ponta João da Silva, também com forças semelhantes à anterior, em que registámos 7 feridos, felizmente ligeiros. Foi praticamente toda a minha secção (Bazuca do 3º grupo de combate), que foi tocada. Por infelicidade um RPG 7 rebentou ainda no ar (com era normal), apanhando o pessoal abrigado. Não participei nesta acção, pois estava em Bissau para vir gozar as minhas segundas férias na Metrópole.
Até final do do ano houve mais 3 emboscadas, tendo sido a mais grave na Ponta Coli (segurança à estrada Xime-Bambadinca) e n ataques ao quartel, felizmente com má pontaria, na maioria das vezes.
Salvo erro em 1 de Dezembro de 1973 a tabanca do Xime foi atingida e registaram-se-se várias mortes entre a população. Talvez o José Carlos (que já tem participado no blogue e que era criança à época e vivia no Xime) se lembre.
Agora falando aos velhinhos e fundadores da CCAÇ 12, quero dar-lhes nota que o espírito da Companhia era excelente. Registo a boa convivência dos graduados, de origem portuguesa, com todos os militares, que eram na sua maioria muçulmanos.
No meu pelotão (3º), tinha dois cabos que eram uns senhores na arte da guerra. Eram o Malan Turrè (?) e o Sajá (?). Os dois foram graduados furriéis e integraram a CCAÇ 21 do Ten Jamanca, já perto do final do ano de 73. Segundo me foi dito, não tive oportunidade de confirmar, as coisas teriam sido muito feias para eles, no período pós-independência.
Aproveito para perguntar à velhice da CCAÇ 12 se ainda se recordam de alguns dos soldados e cabos da 12. Aqui vão alguns nomes:
Recordo-me do Arfan Jau (Bazuca do 3º ), Braima Sané (HK 21 do 4º), Mamadu Candé, Iero Jau (3º), Malan Embaló, Mamadu Seidi, João Gerá, Bubacar Colubali, Amadu Baldé, Alfa Sané, Suleiman (Cabo do 4º com excesso de peso),etc.
O comandante da CCAÇ 12 no início de 1972 era o Cap Bordalo, homem de grande carisma, seriedade e bravura. Era um líder. Penso que será ou viverá na região de Lamego.
Para acabar por hoje, quero dar nota que eu serei vosso neto, pois rendi os que vos renderam. De acordo ?
Da próxima vez falarei de outros temas.
Um abraço fraterno para todos,
António Duarte
Sousa de Castro,
Fica descansado. Contactarei o Luciano de Jesus (estava no Enxalé).
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)
Caro Luís Graça,
Acabei de ler a inserção do meu e-mail, bem como o comentário do Sousa de Castro, no blogue.
De facto estive na CCAÇ 12 desde Janeiro de 1973, primeiro em Bambadinca e a partir de Abril no Xime, após as rotações das companhias, geradas pela transferência para Cobumba da Cart 3493 (minha unidade inicial). Regressei à metrópole em Janeiro de 1974.
Numa breve resenha e procurando arrumar os dados por ordem cronológica, diria que a vida em Mansambo, de Janeiro até Dezembro de 1972, foi com baixa actividade de guerra, no entanto com situações graves e desgastantes.
Accionámos três minas, que custaram três feridos com amputação de membros inferiores. A primeira em Jonbocari (mina antipessoal), com um ferido (1º cabo Ribeiro do 3º Pelotão). Salvo erro em 9 de Maio.
No dia seguinte foi accionada uma mina anti carro por um burrinho, que custou a perna a um furriel do 2º pelotão (Ferreira) e mais 2 feridos com alguma gravidade. Este incidente aconteceu aquando do regresso ao quartel da segurança à operação de capinagem, na estrada de Mansambo a Candamã/Afiá (Candamã era à época uma tabanca em auto defesa, com um pelotão de milícias e uma secção da unidade de Mansambo).
Em Agosto mais uma mina antipessoal accionada em Sanguê Demba (não sei se estará bem escrito), em que ficou ferido um cabo (Silva 2º Pel).
Entretanto no mês de Agosto houve um ataque ao quartel sem incidentes.
Quanto ao ano de 1973 na CCAÇ 12 a acção foi mais animada. Instalados em Bambadinca, naquilo que se classificava de hotel, fazia-se operações sobretudo na zona do Xime. Assim em 3 de Fevereiro tive a primeira emboscada na Ponta Varela em que participaram três grupos de combate da CCAÇ 12 em conjunto com 2 pelotões da Cart 3494 (à época aquartelada no Xime). As NT não registaram feridos mas segundo se apurou em informações recolhidas no Enxalé, o PAIGC teria tido baixas.
A 25 do mesmo mês houve uma outra emboscada numa operação na zona de Ponta Varela/Poidom e Ponta do Inglês/Ponta João da Silva, também com forças semelhantes à anterior, em que registámos 7 feridos, felizmente ligeiros. Foi praticamente toda a minha secção (Bazuca do 3º grupo de combate), que foi tocada. Por infelicidade um RPG 7 rebentou ainda no ar (com era normal), apanhando o pessoal abrigado. Não participei nesta acção, pois estava em Bissau para vir gozar as minhas segundas férias na Metrópole.
Até final do do ano houve mais 3 emboscadas, tendo sido a mais grave na Ponta Coli (segurança à estrada Xime-Bambadinca) e n ataques ao quartel, felizmente com má pontaria, na maioria das vezes.
Salvo erro em 1 de Dezembro de 1973 a tabanca do Xime foi atingida e registaram-se-se várias mortes entre a população. Talvez o José Carlos (que já tem participado no blogue e que era criança à época e vivia no Xime) se lembre.
Agora falando aos velhinhos e fundadores da CCAÇ 12, quero dar-lhes nota que o espírito da Companhia era excelente. Registo a boa convivência dos graduados, de origem portuguesa, com todos os militares, que eram na sua maioria muçulmanos.
No meu pelotão (3º), tinha dois cabos que eram uns senhores na arte da guerra. Eram o Malan Turrè (?) e o Sajá (?). Os dois foram graduados furriéis e integraram a CCAÇ 21 do Ten Jamanca, já perto do final do ano de 73. Segundo me foi dito, não tive oportunidade de confirmar, as coisas teriam sido muito feias para eles, no período pós-independência.
Aproveito para perguntar à velhice da CCAÇ 12 se ainda se recordam de alguns dos soldados e cabos da 12. Aqui vão alguns nomes:
Recordo-me do Arfan Jau (Bazuca do 3º ), Braima Sané (HK 21 do 4º), Mamadu Candé, Iero Jau (3º), Malan Embaló, Mamadu Seidi, João Gerá, Bubacar Colubali, Amadu Baldé, Alfa Sané, Suleiman (Cabo do 4º com excesso de peso),etc.
O comandante da CCAÇ 12 no início de 1972 era o Cap Bordalo, homem de grande carisma, seriedade e bravura. Era um líder. Penso que será ou viverá na região de Lamego.
Para acabar por hoje, quero dar nota que eu serei vosso neto, pois rendi os que vos renderam. De acordo ?
Da próxima vez falarei de outros temas.
Um abraço fraterno para todos,
António Duarte
Sousa de Castro,
Fica descansado. Contactarei o Luciano de Jesus (estava no Enxalé).
Guiné 63/74 - P550: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (15): um dia negro para a 15ª Companhia de Comandos (Setembro de 1969)
Guiné > Aldeia Formosa > 1969 > Viatura destruída por mina anticarro. Resultado: dois mortos.
© José Teixeira (2006)
XV Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
Buba, 1 de Setembro de 1969
Empada continua a ser a preferida do IN para brincar às guerrinhas. Ontem, pelas 4.30 h da madrugada, sofreu novo ataque. Foi chamada a aviação que não chegou a intervir.
Empada, 9 de Setembro de 1969
Desde ontem que estou por estas bandas, após dois meses em Buba sem novidade de maior.
O ataque do dia 31 não foi tão perigoso como constou em Buba. Atacaram de Morteiro 60, LGFog e bazooka sem causarem prejuízo. Não caiu nenhuma dentro do quartel.
Na estrada de Fulacunda, mais 8 Comandos e 3 soldados ficaram sem vida. Houve ainda sete feridos graves, entre os quais o meu amigo Zé João, enfermeiro comando. Uma mina anti-carro de grande potência atirou com a viatura cheia de militares, que estiveram comigo em Buba (15ª Companhia de Comandos) contra um tronco de árvore que se debruçava sobre a estrada, matando uma série deles instantaneamente. No buraco feito pela bomba pode-se esconder uma viatura, tal era a sua potência...
A Companhia de Comandos tinha vinda a fazer uma série de operações no Sector e dirigia-se para o Cais no Rio Grande, perto de S.João, para se retirar para Bissau.
Tem tido muito azar esta Companhia de Comandos. O Zé João sempre que sai com a Companhia fazem ronco, mas no regresso tem tido sempre problemas graves. Ainda há pouco tempo, quando estavam em Buba comigo, sairam para uma operação em Saredivane, fizeram um ronco de 15 mortos, apanharam 21 armas, apenas com dois feridos ligeiros, mas no regresso cairam num campo de minas e uma bailarina matou um Furriel e um soldado ficou sem uma perna...
Nesse dia o Zé João foi buscar o morto e ferido ao campo de minas tendo recebido o prémio Governador, que não chegou a gozar devido a este brutal acidente que o afastou da guerra definitivamente.
© José Teixeira (2006)
XV Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
Buba, 1 de Setembro de 1969
Empada continua a ser a preferida do IN para brincar às guerrinhas. Ontem, pelas 4.30 h da madrugada, sofreu novo ataque. Foi chamada a aviação que não chegou a intervir.
Empada, 9 de Setembro de 1969
Desde ontem que estou por estas bandas, após dois meses em Buba sem novidade de maior.
O ataque do dia 31 não foi tão perigoso como constou em Buba. Atacaram de Morteiro 60, LGFog e bazooka sem causarem prejuízo. Não caiu nenhuma dentro do quartel.
Na estrada de Fulacunda, mais 8 Comandos e 3 soldados ficaram sem vida. Houve ainda sete feridos graves, entre os quais o meu amigo Zé João, enfermeiro comando. Uma mina anti-carro de grande potência atirou com a viatura cheia de militares, que estiveram comigo em Buba (15ª Companhia de Comandos) contra um tronco de árvore que se debruçava sobre a estrada, matando uma série deles instantaneamente. No buraco feito pela bomba pode-se esconder uma viatura, tal era a sua potência...
A Companhia de Comandos tinha vinda a fazer uma série de operações no Sector e dirigia-se para o Cais no Rio Grande, perto de S.João, para se retirar para Bissau.
Tem tido muito azar esta Companhia de Comandos. O Zé João sempre que sai com a Companhia fazem ronco, mas no regresso tem tido sempre problemas graves. Ainda há pouco tempo, quando estavam em Buba comigo, sairam para uma operação em Saredivane, fizeram um ronco de 15 mortos, apanharam 21 armas, apenas com dois feridos ligeiros, mas no regresso cairam num campo de minas e uma bailarina matou um Furriel e um soldado ficou sem uma perna...
Nesse dia o Zé João foi buscar o morto e ferido ao campo de minas tendo recebido o prémio Governador, que não chegou a gozar devido a este brutal acidente que o afastou da guerra definitivamente.
domingo, 19 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P549: Memórias do antigamente (Mário Dias) (2): Uma serenata ao Governador
Guiné > Bissau > Praça do Império > Monumento ao “Ao Esforço da Raça” > O Mário Dias sentado do "local do crime", o local da improvisada serenata a Sua Excelência...
© Mário Dias (2006)
Continuação das memórias do Mário Dias relativamente à sua experiência na Guiné, como civil, na década de 1950. O Mário foi depois sargento comando durante a guerra (Brá, 1963/66) (1)
A Serenata
Nos idos dos anos 50, Bissau, cidade pacata e ordeira, onde muito se trabalhava e muito nos divertíamos, era palco de cenas impensáveis de acontecerem noutro qualquer lugar. O progresso demorava a chegar. Não havia uma só rua alcatroada, uma só gota de alcatrão que fosse. A ponte-cais, que serviria para atracação dos barcos, estava ainda em construção. Os navios que quinzenalmente chegavam (nesse dia era dia de S. Vapor, como dizíamos) fundeavam ao largo, frente ao ilhéu do Rei e os passageiros e carga eram transportados para o Pijiguiti em pequenas embarcações a motor e até a remos. E o cais do Pijiguiti dessa época ainda não tinha ainda a actual cabeça que forma o “T”. Era um simples paredão. Electricidade? Luxo só possível das seis da tarde à meia-noite.
Apesar disso, sentíamo-nos lá como no paraíso. Diariamente nos juntávamos para os nossos passeios pela cidade e arredores, de bicicleta ou a pé, bebíamos umas cervejas nas esplanadas, especialmente na pastelaria Império, na praça do mesmo nome (o proprietário era o senhor Estácio, tio do nosso amigo António Estácio que já interveio no blogue) no Hotel Portugal, mais conhecido por hotel do Espada (nome do proprietário) ou ainda na esplanada existente ao fundo da avenida principal na placa central que então existia. A configuração desta avenida era bem diferente daquela que os nossos amigos desta tertúlia conheceram mais tarde. A seu tempo falarei sobre isso.
Um dos nossos pontos de encontro favoritos era na marginal, junto às ruínas de uma ponte de atracação de barcos da qual só existiam alguns pilares no meio do rio, já meio enterrados no lodo, e o encontro de onde a ponte partia. Disseram-me ter sido um navio alemão que se pôs em movimento desatracando sem que os cabos estivessem completamente soltos, que levou pedaços dessa ponte atrás de si arruinando-a. Foi antes de eu ter chegado à Guiné que assim se viu privada de uma infraestrutura indispensável. O local a que me estou a referir é onde hoje fica um pequeno largo em formato de meia-laranja existente na marginal de Bissau. Se consultarem o mapa disponível no blogue facilmente o encontrarão.
Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência. (Vd. mapa ampliado na página sobre sobre Bafatá e Bissau)
© A. Marques Lopes (2005)
Uma noite de sábado, depois do jantar, reunimo-nos nesse local como era nosso hábito, e, por não se trabalhar no dia seguinte, prolongámos um pouco mais a paródia. Anedotas, aventuras que cada um ia narrando, até que às tantas, alguns (entre os quais eu) puxaram das gaitas-de-beiços e vá de tocar com todas as nossas ganas. A noite estava convidativa, o calor não era muito e o luar ajudava. As pessoas que passavam iam parando para nos ouvir e aplaudir. Alguém sugeriu que podíamos ir pela avenida acima até à praça do Império. De acordo. Lá fomos nós sempre a tocar, a cantar e a rir. O mundo era nosso.
Chegados à praça do Império, já a meia-noite estava próxima, instalámo-nos naquele arremedo de degraus existentes no monumento “Ao Esforço da Raça” que ainda lá se encontra embora com outra designação e dedicatória.
Faço um pequeno parêntese para contar um dito jocoso que então corria sobre esse monumento, dito esse da autoria de um tio meu que uns anos antes da minha ida tinha sido escrivão no tribunal de Bissau. No monumento em causa encontra-se um busto de mulher, e que farto busto, empunhando nos braços erguidos uma coroa de louros. Qual o significado? Aquilo queria dizer que a Guiné deu e continuava a dar de mamar a muita gente. Voltemos à nossa história.
Encarrapitados no monumento, virados para o palácio do governador que ainda estava em construção, embora quase pronto, (Já agora: o palácio inicialmente não era assim pois tinha terraço em vez de telhado mas, não sei qual o motivo, um engenheiro acabou por alterar a planta) prosseguimos a serenata.
O governador (Raimundo Serrão)(2) residia numa grande vivenda existente ao lado direito não muito longe, portanto, do nosso improvisado palco. Toca, canta, canta e toca, viva a alegria, vimos que de nós se aproximava um polícia, um segurança, como eram mais conhecidos. Chegado disse mais ou menos isto:
- O senhor governador manda dizer para não fazerem tanto barulho porque já é tarde e quer dormir.- Perdemos o pio e pedimos desculpas. Mas, como ainda era cedo, meia-noite de sábado para malta nova é dia, por lá ficámos embora sossegados. Foi então que alguém se lembrou, era quase uma hora:
-Eh pá, o governador já deve estar a dormir; vamos lá tocar e cantar mais um pouco. -Dito e feito, embora com menos decibéis que anteriormente. Estávamos nisto quando vimos um vulto, de roupão, saindo do quintal da vivenda com toda a calma vir em nossa direcção. A serenata continuou até que reparamos no vulto que já estava próximo. Era o governador. Ficámos gelados, paralisados. Vai-nos mandar prender, pensava eu. Qual quê?
- Boa noite, rapazes! - cumprimentou. Levantámo-nos, aterrorizados e respeitosos e retorquimos:
- Boa noite, senhor governador.
- Como não me deixam dormir, venho para aqui, sempre ouço melhor. Vá lá continuem a tocar.
E tocámos com todo o esmero de que éramos capazes. Uma música, outra e mais outra todos ufanos pois de cada vez o governador aplaudia. Até que após a execução do quarto número, que, ainda me lembro, foi a valsa do imperador, ele nos disse:
- Bom, rapazes, gostei muito de vos ouvir, mas já é tarde. Vão-se deitar porque a cacimba faz mal.
E foi assim que fizemos uma serenata ao Governador da Guiné.
_________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite
(2) Raimundo António Rodrigues Serrão foi Governador da Guiné entre 1951 e 1953
© Mário Dias (2006)
Continuação das memórias do Mário Dias relativamente à sua experiência na Guiné, como civil, na década de 1950. O Mário foi depois sargento comando durante a guerra (Brá, 1963/66) (1)
A Serenata
Nos idos dos anos 50, Bissau, cidade pacata e ordeira, onde muito se trabalhava e muito nos divertíamos, era palco de cenas impensáveis de acontecerem noutro qualquer lugar. O progresso demorava a chegar. Não havia uma só rua alcatroada, uma só gota de alcatrão que fosse. A ponte-cais, que serviria para atracação dos barcos, estava ainda em construção. Os navios que quinzenalmente chegavam (nesse dia era dia de S. Vapor, como dizíamos) fundeavam ao largo, frente ao ilhéu do Rei e os passageiros e carga eram transportados para o Pijiguiti em pequenas embarcações a motor e até a remos. E o cais do Pijiguiti dessa época ainda não tinha ainda a actual cabeça que forma o “T”. Era um simples paredão. Electricidade? Luxo só possível das seis da tarde à meia-noite.
Apesar disso, sentíamo-nos lá como no paraíso. Diariamente nos juntávamos para os nossos passeios pela cidade e arredores, de bicicleta ou a pé, bebíamos umas cervejas nas esplanadas, especialmente na pastelaria Império, na praça do mesmo nome (o proprietário era o senhor Estácio, tio do nosso amigo António Estácio que já interveio no blogue) no Hotel Portugal, mais conhecido por hotel do Espada (nome do proprietário) ou ainda na esplanada existente ao fundo da avenida principal na placa central que então existia. A configuração desta avenida era bem diferente daquela que os nossos amigos desta tertúlia conheceram mais tarde. A seu tempo falarei sobre isso.
Um dos nossos pontos de encontro favoritos era na marginal, junto às ruínas de uma ponte de atracação de barcos da qual só existiam alguns pilares no meio do rio, já meio enterrados no lodo, e o encontro de onde a ponte partia. Disseram-me ter sido um navio alemão que se pôs em movimento desatracando sem que os cabos estivessem completamente soltos, que levou pedaços dessa ponte atrás de si arruinando-a. Foi antes de eu ter chegado à Guiné que assim se viu privada de uma infraestrutura indispensável. O local a que me estou a referir é onde hoje fica um pequeno largo em formato de meia-laranja existente na marginal de Bissau. Se consultarem o mapa disponível no blogue facilmente o encontrarão.
Guiné-Bissau > Bissau, capital do país. Planta da cidade, pós-independência. (Vd. mapa ampliado na página sobre sobre Bafatá e Bissau)
© A. Marques Lopes (2005)
Uma noite de sábado, depois do jantar, reunimo-nos nesse local como era nosso hábito, e, por não se trabalhar no dia seguinte, prolongámos um pouco mais a paródia. Anedotas, aventuras que cada um ia narrando, até que às tantas, alguns (entre os quais eu) puxaram das gaitas-de-beiços e vá de tocar com todas as nossas ganas. A noite estava convidativa, o calor não era muito e o luar ajudava. As pessoas que passavam iam parando para nos ouvir e aplaudir. Alguém sugeriu que podíamos ir pela avenida acima até à praça do Império. De acordo. Lá fomos nós sempre a tocar, a cantar e a rir. O mundo era nosso.
Chegados à praça do Império, já a meia-noite estava próxima, instalámo-nos naquele arremedo de degraus existentes no monumento “Ao Esforço da Raça” que ainda lá se encontra embora com outra designação e dedicatória.
Faço um pequeno parêntese para contar um dito jocoso que então corria sobre esse monumento, dito esse da autoria de um tio meu que uns anos antes da minha ida tinha sido escrivão no tribunal de Bissau. No monumento em causa encontra-se um busto de mulher, e que farto busto, empunhando nos braços erguidos uma coroa de louros. Qual o significado? Aquilo queria dizer que a Guiné deu e continuava a dar de mamar a muita gente. Voltemos à nossa história.
Encarrapitados no monumento, virados para o palácio do governador que ainda estava em construção, embora quase pronto, (Já agora: o palácio inicialmente não era assim pois tinha terraço em vez de telhado mas, não sei qual o motivo, um engenheiro acabou por alterar a planta) prosseguimos a serenata.
O governador (Raimundo Serrão)(2) residia numa grande vivenda existente ao lado direito não muito longe, portanto, do nosso improvisado palco. Toca, canta, canta e toca, viva a alegria, vimos que de nós se aproximava um polícia, um segurança, como eram mais conhecidos. Chegado disse mais ou menos isto:
- O senhor governador manda dizer para não fazerem tanto barulho porque já é tarde e quer dormir.- Perdemos o pio e pedimos desculpas. Mas, como ainda era cedo, meia-noite de sábado para malta nova é dia, por lá ficámos embora sossegados. Foi então que alguém se lembrou, era quase uma hora:
-Eh pá, o governador já deve estar a dormir; vamos lá tocar e cantar mais um pouco. -Dito e feito, embora com menos decibéis que anteriormente. Estávamos nisto quando vimos um vulto, de roupão, saindo do quintal da vivenda com toda a calma vir em nossa direcção. A serenata continuou até que reparamos no vulto que já estava próximo. Era o governador. Ficámos gelados, paralisados. Vai-nos mandar prender, pensava eu. Qual quê?
- Boa noite, rapazes! - cumprimentou. Levantámo-nos, aterrorizados e respeitosos e retorquimos:
- Boa noite, senhor governador.
- Como não me deixam dormir, venho para aqui, sempre ouço melhor. Vá lá continuem a tocar.
E tocámos com todo o esmero de que éramos capazes. Uma música, outra e mais outra todos ufanos pois de cada vez o governador aplaudia. Até que após a execução do quarto número, que, ainda me lembro, foi a valsa do imperador, ele nos disse:
- Bom, rapazes, gostei muito de vos ouvir, mas já é tarde. Vão-se deitar porque a cacimba faz mal.
E foi assim que fizemos uma serenata ao Governador da Guiné.
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Nota de L.G.
(1) Vd. post de 9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite
(2) Raimundo António Rodrigues Serrão foi Governador da Guiné entre 1951 e 1953
Guiné 63/74 - P548: Do Larinho ao Olossato ( Blogue de Paulo Salgado)
Guiné-Bissau > 2006 > Rio Olossato
© Paulo Salgado (2006)
1. Mensagem do Paulo Salgado:
Meu Caríssimo Luís,
Durante esta tarde de sábado - no intervalo de algum trabalho - a minha mulher e a Maria Paula (as duas tertulianas) ajudaram-me (ou foram elas?!) a construir o modestíssimo blogue Do Larinho ao Olossato.
Espero ter contributos de amigos, como tu, para arrancar com este espaço. Não vai ser fácil, é certo.
Entretanto, a nossa bloguista, Maria Paula, fez as provas de doutoramento e saiu distinta em Oxford. É bonito ver os filhos crescer - esta não era, nem é, uma geração rasca. Parabens a ela.
Um abraço de Amizade.
Paulo Salgado
2. Comentário do L.G.
Do Larinho ao Olossato > Blogue de Paulo Salgado
Parabéns!... A lusoblogosfera está mais rica! Só preciso que me expliques uma coisa: o Olossato, sei onde fica (embora nunca lá tenha ido); o Larinho, não faço ideia, a menos que seja o diminuitivo do Lar, Doce Lar, do teu Dulcíssimo Lar... É isso ?
Eu meu nome e em nome dos restantes tertulianos (refiro-me à nossa tertúlia, Luís Graça & Camaradas da Guiné...), desejo-te boa saúde e boa navegação em mais esta... aventura.
Prometo vir cá mais vezes blogar contigo, convosco, que a família, para ti, não se deixa em casa nem se confunde com a mobília.
Porque blogar é preciso, sobretudo quando se trata da saúde, da educação, da cooperação com África, e em especial com a nossa querida Guiné. Cooperação que, como tu muito bem dizes, se escreve com muitos "Ós", que se constroi com muitos nós (e vós), que se escreve com todas as letras dos nossos alfabetos...
Aproveito para mandar um xicoração às tuas mulheres e felicitar a Paula pelo seu brilhante doutoramento em Biologia, em Oxford. Paulo e Conceição: vocês bem podem orgulhar-se dessa menina (que eu ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente).
Um abraço, camarada e amigo.
Luís
Guiné 63/74 - P547: Zélia, um caso de amor e paixão (III)
Texto da Zélia Neno, publicado no JN - Jornal de Notícias, em 19 Agosto de 1992
GUINÉ - TãO LONGE E TãO PERTO!
AFRICA! Quem nunca ouviu falar deste Continente, cheio de mistérios, outrora desbravado pelos nossos colonizadores e onde os portugueses enraizaram quinhentos anos da sua História?
Pois milhares de nós passaram por lá. Uns voluntariamente, procurando melhores condições de vida, pois África tinha muito para oferecer; outros, jovens que aos vinte anos, quando começavam a despertar para a vida, foram para lá empurrados, sem terem tempo sequer para compreender porque lhes haviam colocado uma arma na mão.
É com um destes jovens que me casei há dezassete anos, depois de haver cumprido o serviço militar na Guiné. Daí para cá tenho ouvido as suas narrativas pormenorizadas dos bons e maus momentos vividos no interior daquele mato, onde tudo lhes era adverso, pois para além da companhia dos colegas, só tinham a arma como "fiel companheira" e a solidão própria daquela situação.
Apesar disto, penso eu, a maior parte deles aprendeu o verdadeiro valor das palavras Amizade e Solidariedade, pois o viver em conjunto todos aqueles momentos, alguns bem difíceis de suportar, tentando sobreviver conforme podiam, auxiliando-se mutuamente, fez com que adquirissem valores morais que ainda hoje prevalecem no seu dia-a-dia, sendo frequente ouvi-los recordar com uma certa nostalgia esses anos vividos no seio da guerra, quando em cada dia existia a incerteza do dia seguinte.~
Apesar de tudo isto, os que sobreviveram, ainda aproveitaram algo de bom como o conhecerem um pouco terras africanas, pessoas de outras raças onde abundam várias etnias, cada uma com seu dialecto e seus ancestrais costumes, bem característicos do continente africano, onde tudo é tão diferente, até o ar que se respira.
E foi com este saudosismo de meu marido, a minha curiosidade, pois quis ser como S.Tomé -“ver para crer”, que nasceu o sonho de umas férias na Guiné. Mas Férias destas não são muito fáceis de se realizarem para pessoas que, como nós, vivem de ordenados médios, criando dois filhos adolescentes com todos os gastos inerentes à sua educação, pagando empréstimo pela compra da casa e com as despesas normais de qualquer família. Mas como “o sonho comanda a vida” e com muita vontade, sacrificando muitas saídas nos fins-de-semana durante vários meses, o sonho tornou-se realidade no passado mês de Abril. Juntamente com outro casal amigo, (eles, homens, companheiros de guerra) então partimos rumo àquele país, onde outrora se via desfraldada a Bandeira das Quinas.
Sempre tive espírito de aventura, mas não minto se disser que tinha um certo receio pelo que poderíamos ir encontrar, pois era a primeira vez que ia a um pais africano e obviamente conviver com pessoas diferentes e com outro estilo de vida, além da duvida como iríamos ser recebidos, já que eles eram ex-combatentes.
Tudo isto se dissipou logo no primeiro momento de contacto com aquela terra pois desde a saída do avião as novas sensações que experimentei foram tantas que este espaço é pequeno para as enunciar.
Depois de uma volta por Bissau, que já não era aquela mesma cidade que eles conheceram entre 1972 e 74, pois agora é uma capital pobre, suja, com o piso das ruas muito degradado aguardando conserto sabe-se lá para quando, mas onde não vi pedintes nem crianças subalimentadas como as que sabemos existir noutros países africanos, já que a televisão isso nos mostra nos noticiários, coincidentemente quando a maioria das famílias está a jantar, partimos de barco para uma das muitas ilhas do Arquipélago de Bijagós, daquelas ditas de paradisíacas. E aí, sim, pensei estar no Paraíso, se é que ele existe. Lá conhecemos quatro casais portugueses, dois dos quais em lua-de-mel, e que haviam escolhido aquele local para passar uns dias de férias, inesquecíveis para todos nós.
Desfrutamos de um mar estupendo com águas quentes e calmas banhando um extenso areal onde a sombra das palmeiras se projectava de dia, e à noite era iluminado por um luar que antes eu nunca tinha visto. Este cenário real tinha como musica de fundo o chilrear da passarada exótica abundante naquelas zonas e que nos transmite uma sensação de paz e tranquilidade só possível de encontrar em locais como aquele.
Mas, além desta aguarela africana, o que de mais forte me impressionou foi o espírito aberto e generoso dos guineenses, com a sua espontânea vontade de serem gentis para connosco e dizendo-se honrados por já terem sido portugueses.
Quantos de nós sabem ou ainda se lembram do nome dos rios, seus afluentes, onde nascem e desaguam que atravessam Portugal e que aprendemos na escola primária? Pois alguns desses “homens grandes” (assim chamam aos mais velhos) com quem passei horas a conversar, conhecem mais sobre o nosso país do que muitos cá da terra. Isto porquê? Porque o sentimento que têm por um povo ao qual chamam de irmão não deixa que o cordão umbilical que nos uniu enquanto mesma nação ainda não esteja cortado, passados que estão quase vinte anos desde a sua independência.
Tudo isto se torna mais notável para mim, ao pensar que estas gentes sofreram e consequentemente ainda sofrem, no corpo e na alma os malefícios de uma guerra evitável para ambas as partes, mas para eles o inimigo era Portugal, na realidade era quem o governava, mas para eles era os que por lá andavam de arma na mão.
Mesmo no interior da ilha, pude ver como vivem as populações indígenas no seu habitat natural, praticamente sem contacto com o exterior, comendo do que a terra produz e o mar lhes dá. Ali mesmo e uma vez mais, vi a alegria daqueles homens e mulheres por estarem a falar connosco, não no seu dialecto mas em português, língua que lhes é muito querida por todo um passado recente.
Depois deste dias, pouco para quem queria conhecer muito mais daquele pequeno país, regressei ao meu que muito amo, mas trouxe muita saudade daquela terra e da sua gente, além de uma enorme vontade de poder lá voltar.
Agora já consigo entender todos aqueles que um dia por lá passaram e trouxeram um pedaço no coração, pois a Guiné embora esteja longe está bem mais perto do que parece.
Zélia Neno
GUINÉ - TãO LONGE E TãO PERTO!
AFRICA! Quem nunca ouviu falar deste Continente, cheio de mistérios, outrora desbravado pelos nossos colonizadores e onde os portugueses enraizaram quinhentos anos da sua História?
Pois milhares de nós passaram por lá. Uns voluntariamente, procurando melhores condições de vida, pois África tinha muito para oferecer; outros, jovens que aos vinte anos, quando começavam a despertar para a vida, foram para lá empurrados, sem terem tempo sequer para compreender porque lhes haviam colocado uma arma na mão.
É com um destes jovens que me casei há dezassete anos, depois de haver cumprido o serviço militar na Guiné. Daí para cá tenho ouvido as suas narrativas pormenorizadas dos bons e maus momentos vividos no interior daquele mato, onde tudo lhes era adverso, pois para além da companhia dos colegas, só tinham a arma como "fiel companheira" e a solidão própria daquela situação.
Apesar disto, penso eu, a maior parte deles aprendeu o verdadeiro valor das palavras Amizade e Solidariedade, pois o viver em conjunto todos aqueles momentos, alguns bem difíceis de suportar, tentando sobreviver conforme podiam, auxiliando-se mutuamente, fez com que adquirissem valores morais que ainda hoje prevalecem no seu dia-a-dia, sendo frequente ouvi-los recordar com uma certa nostalgia esses anos vividos no seio da guerra, quando em cada dia existia a incerteza do dia seguinte.~
Apesar de tudo isto, os que sobreviveram, ainda aproveitaram algo de bom como o conhecerem um pouco terras africanas, pessoas de outras raças onde abundam várias etnias, cada uma com seu dialecto e seus ancestrais costumes, bem característicos do continente africano, onde tudo é tão diferente, até o ar que se respira.
E foi com este saudosismo de meu marido, a minha curiosidade, pois quis ser como S.Tomé -“ver para crer”, que nasceu o sonho de umas férias na Guiné. Mas Férias destas não são muito fáceis de se realizarem para pessoas que, como nós, vivem de ordenados médios, criando dois filhos adolescentes com todos os gastos inerentes à sua educação, pagando empréstimo pela compra da casa e com as despesas normais de qualquer família. Mas como “o sonho comanda a vida” e com muita vontade, sacrificando muitas saídas nos fins-de-semana durante vários meses, o sonho tornou-se realidade no passado mês de Abril. Juntamente com outro casal amigo, (eles, homens, companheiros de guerra) então partimos rumo àquele país, onde outrora se via desfraldada a Bandeira das Quinas.
Sempre tive espírito de aventura, mas não minto se disser que tinha um certo receio pelo que poderíamos ir encontrar, pois era a primeira vez que ia a um pais africano e obviamente conviver com pessoas diferentes e com outro estilo de vida, além da duvida como iríamos ser recebidos, já que eles eram ex-combatentes.
Tudo isto se dissipou logo no primeiro momento de contacto com aquela terra pois desde a saída do avião as novas sensações que experimentei foram tantas que este espaço é pequeno para as enunciar.
Depois de uma volta por Bissau, que já não era aquela mesma cidade que eles conheceram entre 1972 e 74, pois agora é uma capital pobre, suja, com o piso das ruas muito degradado aguardando conserto sabe-se lá para quando, mas onde não vi pedintes nem crianças subalimentadas como as que sabemos existir noutros países africanos, já que a televisão isso nos mostra nos noticiários, coincidentemente quando a maioria das famílias está a jantar, partimos de barco para uma das muitas ilhas do Arquipélago de Bijagós, daquelas ditas de paradisíacas. E aí, sim, pensei estar no Paraíso, se é que ele existe. Lá conhecemos quatro casais portugueses, dois dos quais em lua-de-mel, e que haviam escolhido aquele local para passar uns dias de férias, inesquecíveis para todos nós.
Desfrutamos de um mar estupendo com águas quentes e calmas banhando um extenso areal onde a sombra das palmeiras se projectava de dia, e à noite era iluminado por um luar que antes eu nunca tinha visto. Este cenário real tinha como musica de fundo o chilrear da passarada exótica abundante naquelas zonas e que nos transmite uma sensação de paz e tranquilidade só possível de encontrar em locais como aquele.
Mas, além desta aguarela africana, o que de mais forte me impressionou foi o espírito aberto e generoso dos guineenses, com a sua espontânea vontade de serem gentis para connosco e dizendo-se honrados por já terem sido portugueses.
Quantos de nós sabem ou ainda se lembram do nome dos rios, seus afluentes, onde nascem e desaguam que atravessam Portugal e que aprendemos na escola primária? Pois alguns desses “homens grandes” (assim chamam aos mais velhos) com quem passei horas a conversar, conhecem mais sobre o nosso país do que muitos cá da terra. Isto porquê? Porque o sentimento que têm por um povo ao qual chamam de irmão não deixa que o cordão umbilical que nos uniu enquanto mesma nação ainda não esteja cortado, passados que estão quase vinte anos desde a sua independência.
Tudo isto se torna mais notável para mim, ao pensar que estas gentes sofreram e consequentemente ainda sofrem, no corpo e na alma os malefícios de uma guerra evitável para ambas as partes, mas para eles o inimigo era Portugal, na realidade era quem o governava, mas para eles era os que por lá andavam de arma na mão.
Mesmo no interior da ilha, pude ver como vivem as populações indígenas no seu habitat natural, praticamente sem contacto com o exterior, comendo do que a terra produz e o mar lhes dá. Ali mesmo e uma vez mais, vi a alegria daqueles homens e mulheres por estarem a falar connosco, não no seu dialecto mas em português, língua que lhes é muito querida por todo um passado recente.
Depois deste dias, pouco para quem queria conhecer muito mais daquele pequeno país, regressei ao meu que muito amo, mas trouxe muita saudade daquela terra e da sua gente, além de uma enorme vontade de poder lá voltar.
Agora já consigo entender todos aqueles que um dia por lá passaram e trouxeram um pedaço no coração, pois a Guiné embora esteja longe está bem mais perto do que parece.
Zélia Neno
Guiné 63/74 - P546: Zélia, um caso de amor e de paixão (II)
Guiné-Bissau > > 2005 > O Xico Allen em convívio com antigos combatentes do PAIGC .
© José Teixeira (2005)
Texto da Zélia Cardoso, mulher do Xico Allen, e nossa mais recente tertuliana.
Gaia, 15 de Janeiro de 2006
Como é normal em circunstâncias destas, começo por me apresentar: meu nome é Zélia Neno, tenho 52 anos, 2 filhos (1 casal de 28 e 27 anos), casada há 30 com o Xico Allen, ex-combatente (Empada, 1972/74) e que alguns dos tertulianos, de quem costumamos ambos ler os seus relatos no blogue, já bem conhecem (1).
Após casada, comecei a ter que conviver com os seus pesadelos que me conseguiam acordar e a ver quanto se assustava com o rebentar de um simples foguete no ar. Então comecei a pedir que me fosse contando aquela passada mas recente vivência que ainda o atormentava, pois receava que tal se mantivesse ao longo dos anos, o que me assustava, como é obvio.
Dizem que o tempo cura as feridas mas casos há em que é necessário abri-las, fazendo-as sangrar até, para limpar com um anti-séptico e então esperar que curem completamente.
E assim, durante anos, algumas vezes já deitados e antes do sono chegar, comecei a ouvir os seus relatos, revivendo os 27 meses vividos num cenário de guerra, sofrendo com toda aquela adversidade, onde para ele e todos os outros o estar vivo no dia seguinte era incerteza constanste.
Falar disto aos jovens de hoje pouco lhes diz pois foram crescendo vendo a guerra dos filmes, onde quase todos os enredos são ficcionados e quando aparece o END, viram costas e entram noutra.
À época, o Xico e eu, além de vizinhos, unia-nos uma amizade fraternal, mas quer por ele como por todos os nossos amigos distribuídos pelas várias colónias, eu também sofri e chorei, quer no momento da partida, quer pela saudade que a ausência provoca, quer com o que podiam contar nos aerogramas que me enviavam, alguns dos quais ainda guardo religiosamente.
Quase todos puderam vir passar as tão merecidas férias, mas já se notava que alguns tinham sido "apanhados pelo clima", e passado esse curto período tudo se repetia, com um "Adeus até ao meu regresso"...
Voltando ao tema das horas passadas ouvindo o Xico relembrar alguns dos momentos maus,outros menos maus, alguns divertidos e até caricatos, especialmente enquanto "periquito", a alegria que sentia ao rever um companheiro, pelo que quase logo tomou a iniciativa de os ir juntando anualmente num almoço de confraternização, nos quais eu também participava, despertando em mim cada vez mais curiosidade por aquele pedaço de terra, que lá a 4.000 Kms, se estava a tornar saudoso e nostálgico e que para mim era virtual.
Marrocos, a caminho da Guiné-Bissau > 2005 >Uma paragem técnica para revisão das viaturas. De pé, o Xico Allen (à esquerda) e o Camilo (à direita).
© José Teixeira (2005)
Decidimos então começar uma poupança para poder realizar um sonho que então já ambos alimentávamos, pois com 2 filhos adolescentes, pagar as prestações da casa, e os gastos inevitáveis na manutenção duma família, tivemos que sacrificar saídas nos fins-de-semana, férias fora do país e outras coisas, pois nunca devemos de abandonar os nossos sonhos sem nada fazermos para os tentar realizar, mesmo que alguns nunca se concretizem: - Não é o sonho que comanda a Vida ?
Em Abril de 1992, com outro casal amigo, ele fora companheiro do Xico em Empada, o Artur Ribeiro, depois de tratados todos os requisitos exigidos, desde vacinas a vistos de autorização no passaporte, lá partimos embora com alguns receios pois para nós, mulheres, era a primeira visita a um país africano, para os dois ex-combatentes era a dúvida como nos iriam receber uma vez que lá tinham combatido como inimigos.
Aterrámos era 1 da manhã, no mesmo velho e degradado aeroporto donde eles haviam partido, de regresso a casa, em Junho de 1974, na altura sem qualquer vontade de lá voltar, mas como "o coração tem razões que a própria Razão desconhece", ali estavam e mal as portas do avião se abriram, os receios se dissiparam.
Apesar da hora tardia encontrámos pessoas afáveis, educadas e gentis, instalando-nos no melhor e mais recente hotel de Bissau, o Sheraton Hotel, hoje Hotel Hotti, com atendimento e condições óptimas, condizentes com o nome que tinha.
No dia seguinte e como era óbvio, fomos dar uma volta pela cidade e falando com uns e com outros todos faziam questão de dizer que eram nossos irmãos, pois acabara a guerra mas as condições de vida e o próprio país caira na decadência bem visível aos nossos olhos, pois Bissau tornara-se numa cidade feia, com as ruas degradadas, mal cheirosas, onde o lixo se amontoava servindo de alimento aos abutres, o que nunca havia visto e infelizmente revi quando em 92, também na minha primeira visita ao Brasil, e no interior da Baía por onde andei 2 meses, me confrontava diariamente com estas degradantes situações.
Deixando Bissau, rumamos a um verdadeiro paraíso que são as Ilhas Bijagós, com praias de areia branca sobre as quais se debruçam palmeiras e coqueiros, banhadas por águas quentes e serenas das quais é extraído muito e variado peixe e cujo marulhar só se mistura com o chilrear da passarada exótica que ali existe, formando assim um cenário paradísíaco convidativo ao descanso do corpo e da mente.
Ali, assim como pelo interior da Guiné, onde verdadeiramente a guerra se desenrolou já não se via lixo mas sim os nativos semi-nus, vivendo nas tabancas, onde não existe luz nem água canalizada e cuja base de alimentação é fundamentalmente o arroz e frutos, como os deliciosos mangos e a fruta do cajueiro, cujo sumo é uma delicia, para além das suas propriedades benéficas para a saúde e que depois de fermentado se torna em vinho.
Guiné-Bissau > > 2005 > O Xico Allen (à direita) em convívio com habitantes locais, o Kebá (antigo milícia, à esqterda) e o Braima (antigo ajudante de enfermagem, vestido de azul, ao meio).
© José Teixeira (2005)
Nunca esquecerei esta primeira ida à Guiné, e lamento que poucas famílias portuguesas por ali passem, pois ao dar-lhes um lápis, uma aspirina ou um rebuçado recebemos como agradecimento um grande sorriso franco e terno e vemos um brilho no seu olhar que só aquelas gentes nos podem proporcionar, transmitindo-nos uma energia que nos faz meditar e crescer espiritualmente, pois vivemos noutra parte do mesmo mundo, rodeados pelas novas tecnologias mas onde reina uma ambição sem limites, geradora de ódios, crueldades e muita pouca Paz.
Será isto um dos mistérios que faz nascer a paixão por África a quem a visita pela 1ª vez? Em mim a dita paixão virou quase doença e assim em 94 lá voltamos, já 3 casais e novas experiências vivemos. Desta vez conseguimos ir a Empada, onde os nossos 3 homens tinham perdido talvez o melhor tempo da sua juventude interrompida.
Encontraram entre a população alguns ex-milícias da nossa tropa e outros, ex-combatentes mas do lado inimigo e então ali frente a frente, entre abraços, risos e algumas lágrimas, reviveram factos passados, distanciados pelo tempo mas sem dor nem rancor. Pediram que voltássemos mais vezes, dissemos que o faríamos sempre que a vida tal nos proporcionasse e assim, 2 anos volvidos, em 96,lá estávamos novamente, acompanhados por mais um outro casal amigo, de Viana, e que também ele estivera em Empada.
Em Maio de 98, só os dois lá fomos e como costume, super carregados de roupas, brinquedos, medicamentos e alguns comestíveis, tudo para por lá distribuir. Xico sempre se zangava comigo na hora da partida pois parecia que eu desconhecia que de avião cada passageiro só pode levar 30 kgs de bagagem a não ser que pague o excesso. Mas eu, confiando sempre na minha boa estrela, deixava-o resmungar pois logo se veria, já que pagar é que não fazia parte dos nossos planos. Chegados ao balcão do chek-in e pesadas as malas, o peso total atingia quase 130 kgs. Que fazer?
Enquanto ele resmungava pois sentia-se envergonhado perante tal situação, eu fui conversando com o gentil assistente, dizendo o que levava e porque o fazia, pois ia ao encontro de tantas carências quando as podia amenizar um pouco com tudo que ali estava, levando assim um pouco de felicidade e muita alegria sobretudo às crianças que nunca tinham tido um brinquedo de verdade. A minha argumentação conseguiu que a sua sensibilidade ultrapassasse o cumprimento das regras impostas e, já que não havia risco de perigo, pois se uns levam peso a mais outros levam a menos, o facto é que conseguimos levar tudo sem pagar mais por isso.
Lá chegados, passamos uns 2 dias em Bissau e num jipe alugado viajámos para o interior, tendo como destino Empada, onde estivemos 2 dias. Aí sim, a experiência foi única até hoje, pois dormimos, comemos e tomamos alguns banhos na tabanca, onde luz só a da lua, das estrelas e da nossa lanterna pois desde a saída da tropa portuguesa não mais houve energia assim como outros bens essenciais, desde material escolar, medicamentos e alimentação. Os banhos, se assim se podem chamar, eram feitos despejando cabaceiras cheias de água retirada de um poço que gentilmente algumas mulheres nos iam entregando, fazendo-os passar por cima de um cercado e que funcionava como banheiro e não só...
Quis cozinhar um almoço pois havia levado 1 kg de esparguete, o que causou muita alegria entre os homens já que não comiam tal coisa desde 74 e para tal pedi que matassem 2 "pica no chão" mas de tão pequeninos que eram mais pareciam pintos e então comecei a minha aventura.
Sentada numa das pedras que rodeiam a fogueira comunitária, situada no centro duma palhota onde as mulheres grandes fazem a comida e sob um calor intenso que rondava os 40 graus, eu lá consegui distribuir e estufar aqueles pedacitos de frango em 2 grandes tachos, colocando num o esparguete e no outro arroz e ainda hoje não sei como saiu tudo gostoso e se houve algum milagre como o da multiplicação dos pães, já que somente aquele esparguete e igual quantidade de arroz conseguiu chegar para mais de 40 pessoas, na maioria homens e alguns até repetiram.
Nunca tinha vivido nada assim, mas senti-me imensamente feliz. Afinal a Felicidade não é mais do que o conjunto de momentos felizes que vivemos durante a nossa vida. No sábado regressámos a Bissau, onde outra grande aventura nos aguardava mas é demasiado longa assim como tantas outras para as inserir aqui, regresso esse devido a que no domingo à noite, com a chegada do avião,iria juntar-se a nós um grupo de 10 pessoas, 7 deles ex-combatentes, na sua 1ª romagem de saudade, que como todos os outros era a concretização de um sonho, sendo um deles o Sr. Casimiro, aqui do Porto, que se fez acompanhar pelo seu jovem genro, o Carlos, e outros seus amigos e companheiros de guerra, tendo então eu a oportunidade de conhecer o Sr.Armindo, de Moreira de Cónegos, o Sr. Camilo, do Algarve, o Sr. Pauleri, de Vizela, o Sr.Amílcar, aqui de Gaia, único que levou a esposa sendo assim eu beneficiada pois tive companheira para o resto da estadia e dos restantes lamentavelmente não me recordo dos nomes.
O que não esquecerei nunca, foi poder ver a alegria misturada com a emoção, quando chegámos a Jumbembem, local bem conhecido deles, pois mais não me pareciam do que crianças irrequietas em pleno Portugal dos Pequeninos, tentando ver todo o canto e recanto onde viveram outrora.
Esta foi até hoje, 2006, a minha ultima visita à Guiné. Porquê ? Porque um amigo convence outro e este mais outro e outro, e estas viagens passaram a ser anuais, 3 das quais foram por via terrestre em jipes referenciados como Missão Humanitária pois têm ido carregados de material escolar e medicamentos e penso que iria empecilhar o grupo, devido à ausência feminina. Não sei se isto acontece por falta de vontade dos maridos ou das esposas pensando que não vale a pena ir à Guiné já que existem tantos destinos para passar férias bem mais conhecidos ! ! !
Posso afirmar que para nós mulheres, que já lá estivemos, em momento algum nos arrependemos de o ter feito, bem antes pelo contrário, não só pelas experiências vividas no contacto com um povo cuja vida, costumes e ideais são tão diferentes dos nossos mas também porque a partir de então, ouvir nossos maridos falar daquele pedaço de chão com cerca de 36.000 klms quadrados, já visualizamos o cenário que para nós deixou de ser virtual.
Para os homens estas viagens, além de "romagem de saudade",servem para alguns deles exorcizarem algum fantasma da guerra que infelizmente tem destruido a saúde e a vida de muitos ex-combatentes e consequentemente de suas famílias, pois embora sem rosto visível tem nome-: Stress de guerra pós-traumático.
Não sendo perita neste assunto que em cada ano que passa faz mais vitimas, a minha opinião é que todos aqueles que podem e ainda têm saúde para isso, voltem a esses lugares, sejam em Angola, Moçambique ou Guiné.
Entretanto a próxima ida do Xico, via terrestre, está para breve com os preparativos já a decorrer mas com ele irão uns 5 ou 6 amigos, entre os quais o Sr.Armindo e o Hugo, filho do Sr.Albano, da Foto Guifões, que apesar de tão jovem já é a 2ª vez que lá vai e os restantes do grupo, Sr.Casimiro e C.A. seguirão de avião após uns dias, tentando chegar a Bissau em simultâneo, Até lá que Deus a todos acompanhe.
Perdoem esta minha intromissão e tão alongado texto, mas como meu marido diz, sou um perigo a falar ou escrever sobre a Guiné, pois não me canso de o fazer mas devo cansar quem me empresta os ouvidos, neste caso os olhos.
Zélia Neno
_____________
Notas de L.G.
(1) Vd posts de
16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVI: O Xico de Empada, grande amigo dos guinéus (Albano Costa)
31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDV: a tertúlia do Porto
Guiné 63/74 - P545: Zélia, um caso de amor e de paixão (I)
A Zélia, de quem eu já tinha ouvido falar, no último Natal, na nossa minitertúlia do Porto-Matosinhos-Gaia, é o que se pode chamar, com toda a justiça, uma mulher de armas, uma mulher do Norte, uma caso sério de amor e de paixão (pelo seu Allen mas também pela Guiné e o seu povo)... Foi, por mor (como se diz no Norte) da guerra e do stresse pós-traumático da guerra, que ela acompanhou o marido à Guiné, em 1992, e já lá voltou várias vezes...
Fico muito honrado por publicar esta carta e, por desde já, convidá-la sem mais demoras a figurar no quadro de honra da nossa tertúlia (a ela e ao Allen, pois claro!). A Zélia (trato-o como se a conhecesse há anos!...) mandou-me mais documentos que serão inseridos no blogue ainda este fim de semana.
Quanto às lendas fulas e mandingas (que eu adoro!), recolhidas por Manuel Dias Belchior, deve haver exemplares nas nossas bibliotecas públicas, a começar pela Biblioteca Nacional. Depois tratamos disso.
Zélia: Fiquei muito sensibilizado pela tua carta. A partir de agora, como nova tertuliana,e de acordo com as regras do nosso blogue e da nossa tertúlia, o tratamento é por tu, com o respeito que é devido a qualquer camarada, independentemente do género e da arma. Um xicoração para o Xico (Allen). Luís Graça
_________________
Porto, 2006-02-16
De: Zélia Maria Neno Cardoso
Luís Graça:
Achará estranho receber este email enviado por uma mulher fã do Blogue-Fora-Nada, onde se encontram largas centenas de quilómetros de palavras sobre a Guiné.
O senhor não me conhece, o mesmo não acontece comigo, pois não só através da escrita como por foto. Sou casada com o Xico Allen, que o senhor conhece mas ainda não é tertuliano, mas foi ele que há meses me alertou para a existência deste blogue e como sou uma verdadeira amante da Guiné e da sua História, passada, presente e futura, que lamentavelmente teima em não vir a ser bem mais favorável para aquele seu povo tão sofredor, estou quase viciada a diariamente ler o que vão contando no blogue.
Por influência do Sr. Albano [Costa] e até do Sr. [José] Teixeira, que conheço pessoalmente pois ambos já foram à Guiné com o meu marido, fui incentivada a escrever contando algumas (pois são muitas) das minhas vivências naquela maravilhosa terra que conheci em Março de 92, conforme conto no texto inicial e que enviei para o senhor no passado dia 15 Janeiro [por erro no endereço de -mail, não deve ter chegado, pelo que se volta a enviar].
Não abordo factos da guerra que não vivi, embora seja esse o tema do blogue, mas com ela está relacionado, pois por ela ter existido é que já lá fui 4 vezes. A principal intenção foi dar um empurrãozinho a quem ainda quer mas tem receio de lá ir e de algumas esposas de ex-combatentes
também o poderem fazer, pois nada há a recear.
Nós, dois casais, fomos quase pioneiros destas viagens, pois em Bissau já alguns ex-combatentes tinham ido, especialmente por razões de trabalho, mas bem lá no interior nunca mais por lá passara nenhum branco ex-combatente, muito menos acompanhados pelas mulheres e em férias.
Desta primeira viagem vou tentar enviar ao senhor um outro texto que escrevi na altura e saiu publicado no Jornal de Notícias, em 19 Agosto de 1992, onde desde logo se pode verificar o sentimento que me deixou ligada à Guiné.
Para além de já ter lido alguns livros sobre os anos desta guerra sem sentido, (teria para alguns!!!), pois meu marido tem uma substancial biblioteca sobre este assunto, nesta ocasião estou a ler um pequeno livro, fotocopiado de um original muito antigo e que me foi oferecido há alguns anos por um jovem colega da Portugal Telecom, cujo pai então já falecido, cumprira o serviço militar na Guiné quando a Guerra iniciou e de lá trouxera o tal exemplar cujo titulo é: Grandeza Africana - Lendas da Guiné Portuguesa - fulas e mandingas, escrito por um tal Dr.Manuel Dias Belchior que viveu a sua carreira administrativa no Ultramar entre 1932 e 1961, tendo sido investigador da Junta de Investigações do Ultramar e foi nessa condição que na Guiné fez um levantamento de antigas lendas (Sec.XIII,XIV e XV), juntando as devidas anotações históricas e etnográficas. O prefácio sido escrito pelo seu amigo de então, Major Carlos Gomes Bessa, Comissário Adjunto para o Ultramar da Mocidade Portuguesa.
Como diz o autor,"...elas fazem parte do património histórico e intelectual dos mandingas e fulas da Guiné Portuguesa...". Hoje haverá algum fula ou mandinga que conheça este dito património? Será que algures ainda existe um exemplar deste livrinho?
Para mim ou pessoas como eu, que gostando das estórias que fazem a História de qualquer país lêem isto pelo prazer, tal não será muito importante, mas talvez alguns guineenses gostassem de as conhecer para descobrir a origem e como nasceu aquele pedaço de chão a que foi posto o nome de Guiné.
Se eu puder contribuir par tal, não me importo de as transcrever, só não sei para onde e talvez aí o senhor me possa dar a sua opinião, que desde já agradeço.
Parabéns pelo blogue e a todos que nele contribuem com seus depoimentos dando a possibilidade aos interessados no assunto de ficarem a saber mais e aos nossos jovens que vivem ligados à Internet, por procura ou casualidade lá passem, leiam para se convencerem que a guerra que alguns de seus pais sofreram no corpo e na alma não é ficção.
Para finalizar e segundo julgo saber, o senhor ainda não foi à Guiné do pós-guerra. Porquê? Não esqueça que O POVO MAIS GENTIO É O DA GUINÈ !!
Atenciosamente.
Zélia
Fico muito honrado por publicar esta carta e, por desde já, convidá-la sem mais demoras a figurar no quadro de honra da nossa tertúlia (a ela e ao Allen, pois claro!). A Zélia (trato-o como se a conhecesse há anos!...) mandou-me mais documentos que serão inseridos no blogue ainda este fim de semana.
Quanto às lendas fulas e mandingas (que eu adoro!), recolhidas por Manuel Dias Belchior, deve haver exemplares nas nossas bibliotecas públicas, a começar pela Biblioteca Nacional. Depois tratamos disso.
Zélia: Fiquei muito sensibilizado pela tua carta. A partir de agora, como nova tertuliana,e de acordo com as regras do nosso blogue e da nossa tertúlia, o tratamento é por tu, com o respeito que é devido a qualquer camarada, independentemente do género e da arma. Um xicoração para o Xico (Allen). Luís Graça
_________________
Porto, 2006-02-16
De: Zélia Maria Neno Cardoso
Luís Graça:
Achará estranho receber este email enviado por uma mulher fã do Blogue-Fora-Nada, onde se encontram largas centenas de quilómetros de palavras sobre a Guiné.
O senhor não me conhece, o mesmo não acontece comigo, pois não só através da escrita como por foto. Sou casada com o Xico Allen, que o senhor conhece mas ainda não é tertuliano, mas foi ele que há meses me alertou para a existência deste blogue e como sou uma verdadeira amante da Guiné e da sua História, passada, presente e futura, que lamentavelmente teima em não vir a ser bem mais favorável para aquele seu povo tão sofredor, estou quase viciada a diariamente ler o que vão contando no blogue.
Por influência do Sr. Albano [Costa] e até do Sr. [José] Teixeira, que conheço pessoalmente pois ambos já foram à Guiné com o meu marido, fui incentivada a escrever contando algumas (pois são muitas) das minhas vivências naquela maravilhosa terra que conheci em Março de 92, conforme conto no texto inicial e que enviei para o senhor no passado dia 15 Janeiro [por erro no endereço de -mail, não deve ter chegado, pelo que se volta a enviar].
Não abordo factos da guerra que não vivi, embora seja esse o tema do blogue, mas com ela está relacionado, pois por ela ter existido é que já lá fui 4 vezes. A principal intenção foi dar um empurrãozinho a quem ainda quer mas tem receio de lá ir e de algumas esposas de ex-combatentes
também o poderem fazer, pois nada há a recear.
Nós, dois casais, fomos quase pioneiros destas viagens, pois em Bissau já alguns ex-combatentes tinham ido, especialmente por razões de trabalho, mas bem lá no interior nunca mais por lá passara nenhum branco ex-combatente, muito menos acompanhados pelas mulheres e em férias.
Desta primeira viagem vou tentar enviar ao senhor um outro texto que escrevi na altura e saiu publicado no Jornal de Notícias, em 19 Agosto de 1992, onde desde logo se pode verificar o sentimento que me deixou ligada à Guiné.
Para além de já ter lido alguns livros sobre os anos desta guerra sem sentido, (teria para alguns!!!), pois meu marido tem uma substancial biblioteca sobre este assunto, nesta ocasião estou a ler um pequeno livro, fotocopiado de um original muito antigo e que me foi oferecido há alguns anos por um jovem colega da Portugal Telecom, cujo pai então já falecido, cumprira o serviço militar na Guiné quando a Guerra iniciou e de lá trouxera o tal exemplar cujo titulo é: Grandeza Africana - Lendas da Guiné Portuguesa - fulas e mandingas, escrito por um tal Dr.Manuel Dias Belchior que viveu a sua carreira administrativa no Ultramar entre 1932 e 1961, tendo sido investigador da Junta de Investigações do Ultramar e foi nessa condição que na Guiné fez um levantamento de antigas lendas (Sec.XIII,XIV e XV), juntando as devidas anotações históricas e etnográficas. O prefácio sido escrito pelo seu amigo de então, Major Carlos Gomes Bessa, Comissário Adjunto para o Ultramar da Mocidade Portuguesa.
Como diz o autor,"...elas fazem parte do património histórico e intelectual dos mandingas e fulas da Guiné Portuguesa...". Hoje haverá algum fula ou mandinga que conheça este dito património? Será que algures ainda existe um exemplar deste livrinho?
Para mim ou pessoas como eu, que gostando das estórias que fazem a História de qualquer país lêem isto pelo prazer, tal não será muito importante, mas talvez alguns guineenses gostassem de as conhecer para descobrir a origem e como nasceu aquele pedaço de chão a que foi posto o nome de Guiné.
Se eu puder contribuir par tal, não me importo de as transcrever, só não sei para onde e talvez aí o senhor me possa dar a sua opinião, que desde já agradeço.
Parabéns pelo blogue e a todos que nele contribuem com seus depoimentos dando a possibilidade aos interessados no assunto de ficarem a saber mais e aos nossos jovens que vivem ligados à Internet, por procura ou casualidade lá passem, leiam para se convencerem que a guerra que alguns de seus pais sofreram no corpo e na alma não é ficção.
Para finalizar e segundo julgo saber, o senhor ainda não foi à Guiné do pós-guerra. Porquê? Não esqueça que O POVO MAIS GENTIO É O DA GUINÈ !!
Atenciosamente.
Zélia
sábado, 18 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P544: Um periquito da CCAÇ 12 (António Duarte / Sousa de Castro)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Destacamento do Rio Undunduma > 1970 > CCAÇ 12 > O Humberto Reis e pessoal do seu pelotão (o 2ºGrupo de Combate)
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)
1. Através do Sousa de Castro, chegou-nos a seguinte mensagem (que muito nos alegra, pelo menos à malta da CCAÇ 12):
Caro Sousa de Castro
Fui seu companheiro na Guiné.
Fui furriel da CART 3493, tendo estado em Mansambo. Antes da companhia seguir para o sul (suponho Cobumba), fui para a CCAÇ 12 (1) onde acabei por passar a rendição individual e regressar [à Metrópole] em Janeiro de 1974 enquanto que o BART 3873 regressou só em Abril.
Quero dar-lhe os parabéns por ser um activista das nossas recordações, quer através do blogue do Luís Graça, quer noutras paragens na Net. Afigura-se-me que nos faz bem.
Da sua companhia [CART 3494] tenho encontrado o ex-furriel Luciano, que trabalha em seguros, na CGD. Recordo também com muita saudade o Bento, que esteve comigo na especialidade em Vendas Novas. Faleceu em 22 de Abril de 1972.
Um abraço, de camarada para camarada,
António Duarte
2. Resposta do Sousa de Castro ao Duarte:
Antes demais existe uma regra no blogue-fora-nada (Luis Graça & Camaradas da Guiné) que é tratarmo-nos por tu: afinal somos todos mais ou menos da mesma idade, portanto estás à vontade para blogar.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972 > O Sousa de Castro, 1º cabo radiotelegrafista da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74)
Como deves calcular, eu pertenci à CART 3494 do Xime que, depois da CART 3493 transitar para Cobumba, foi ocupar a vossa zona - Mansambo.
O Luís Graça que é o grande obreiro da muita documentação publicada no blogue, também pertenceu à CCAÇ 12 [Bambadinca, 1969/71].
Quanto ao ex-Furriel Luciano creio que estás a falar do Luciano José Marcelino de Jesus, certo? Faz o convite a ele, por mim, para entrar no blogue e tu também... Sou o único da CART 3494 [Xime e Mansambo, 1972/74] que tem estado mais ou menos activo. Precisamos que contem as vossas estórias passadas no teatro de operações na Guiné. Como disseste, isto faz-nos bem. Temos muitas fotos da época publicadas no blogue .
Fui 1º cabo radiotelegrafista e moro em Vila Fria - Viana do Castelo. Manda para o Luis Graça uma pequena estória e uma foto da época e outra actual, para a tertúlia.
Fala com o Luciano para fazer o mesmo, diz-lhe também que o próximo convívio da CART 3494 será realizado em Vila Nova de Gaia pelo ex-Furriel de TRMS Luís Coutinho Domingues, no dia 10 de Junho 2006.
Alfa Bravo,
Sousa de Castro
____________
Nota de L.G.
(1) O António Duarte é o primeiro graduado da CCAÇ 12, da época de 1972/74, que chega até nós. Pessoalmente, fico muito feliz, eu e os demais velhinos (se é que me é permitido falar em nome deles, o Humberto Reis, o António Levezinho, o Joaquim Fernandes...) já que fomos nós a formar a CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Vamos ter muito que conversar, Duarte, se estiveres disposto a isso... Pels minhas contas, ainda passaste nove meses com os nossos queridos nharros, entre Abril de 1973 e Janeiro de 1974... Foi isso ? Nove meses que, imagino, não terão sido fáceis...
Recorde-se que em Abril de 1973, segundo informações do Sousa de Castro, a CART 3493 foi para o sul, a companhia dele, que estava no Xime (CART 3493) foi para Mansambo, sendo substituída no Xime pela CCAÇ 12 até à data da independência. Nessa época o Xime continuou ainda a ser mais atacado.
Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)
© Humberto Reis (2006)
1. Através do Sousa de Castro, chegou-nos a seguinte mensagem (que muito nos alegra, pelo menos à malta da CCAÇ 12):
Caro Sousa de Castro
Fui seu companheiro na Guiné.
Fui furriel da CART 3493, tendo estado em Mansambo. Antes da companhia seguir para o sul (suponho Cobumba), fui para a CCAÇ 12 (1) onde acabei por passar a rendição individual e regressar [à Metrópole] em Janeiro de 1974 enquanto que o BART 3873 regressou só em Abril.
Quero dar-lhe os parabéns por ser um activista das nossas recordações, quer através do blogue do Luís Graça, quer noutras paragens na Net. Afigura-se-me que nos faz bem.
Da sua companhia [CART 3494] tenho encontrado o ex-furriel Luciano, que trabalha em seguros, na CGD. Recordo também com muita saudade o Bento, que esteve comigo na especialidade em Vendas Novas. Faleceu em 22 de Abril de 1972.
Um abraço, de camarada para camarada,
António Duarte
2. Resposta do Sousa de Castro ao Duarte:
Antes demais existe uma regra no blogue-fora-nada (Luis Graça & Camaradas da Guiné) que é tratarmo-nos por tu: afinal somos todos mais ou menos da mesma idade, portanto estás à vontade para blogar.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972 > O Sousa de Castro, 1º cabo radiotelegrafista da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74)
Como deves calcular, eu pertenci à CART 3494 do Xime que, depois da CART 3493 transitar para Cobumba, foi ocupar a vossa zona - Mansambo.
O Luís Graça que é o grande obreiro da muita documentação publicada no blogue, também pertenceu à CCAÇ 12 [Bambadinca, 1969/71].
Quanto ao ex-Furriel Luciano creio que estás a falar do Luciano José Marcelino de Jesus, certo? Faz o convite a ele, por mim, para entrar no blogue e tu também... Sou o único da CART 3494 [Xime e Mansambo, 1972/74] que tem estado mais ou menos activo. Precisamos que contem as vossas estórias passadas no teatro de operações na Guiné. Como disseste, isto faz-nos bem. Temos muitas fotos da época publicadas no blogue .
Fui 1º cabo radiotelegrafista e moro em Vila Fria - Viana do Castelo. Manda para o Luis Graça uma pequena estória e uma foto da época e outra actual, para a tertúlia.
Fala com o Luciano para fazer o mesmo, diz-lhe também que o próximo convívio da CART 3494 será realizado em Vila Nova de Gaia pelo ex-Furriel de TRMS Luís Coutinho Domingues, no dia 10 de Junho 2006.
Alfa Bravo,
Sousa de Castro
____________
Nota de L.G.
(1) O António Duarte é o primeiro graduado da CCAÇ 12, da época de 1972/74, que chega até nós. Pessoalmente, fico muito feliz, eu e os demais velhinos (se é que me é permitido falar em nome deles, o Humberto Reis, o António Levezinho, o Joaquim Fernandes...) já que fomos nós a formar a CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Vamos ter muito que conversar, Duarte, se estiveres disposto a isso... Pels minhas contas, ainda passaste nove meses com os nossos queridos nharros, entre Abril de 1973 e Janeiro de 1974... Foi isso ? Nove meses que, imagino, não terão sido fáceis...
Recorde-se que em Abril de 1973, segundo informações do Sousa de Castro, a CART 3493 foi para o sul, a companhia dele, que estava no Xime (CART 3493) foi para Mansambo, sendo substituída no Xime pela CCAÇ 12 até à data da independência. Nessa época o Xime continuou ainda a ser mais atacado.
Guiné 63/74 - P543: Nha fidju i fidju de soldado (Paulo Salgado)
Guiné > Olossato > 1970 > O Alf Mil Cav Salgado, dando uma mãozinha ao pessoal dos serviços de saúde da CCAV 2721.
© Paulo Salgado (2005)
Camaradas e Amigos:
Quero contar-vos uma estória. Em 1991, corria um Fiat Uno vermelho na picada, então muito boa, de Varela para S. Domingos [na região do Cacheu]. Lá dentro um casal. Seriam quatro da tarde. O sol ainda aquecia e o carrinho não tinha ar condicionado, apenas o ventinho quente aligeirava a modorra dentro da viatura, entrecortada pelos monossílabos que o casal ia trocando.
De repente, após uma curva, sob o peso de um jigo de verga de palmeira bem carregado de nadas (suponho), uma mulher gritava:
- Bolem, bolea!- .O condutor parou adiante, ajudou a colocar o cesto na bagageira, a arrumar a mulher no banco de trás. A mulher do condutor:
- Boa tarde, boa tarde; tome estas bolachas... para onde vai?
- Pa S. Domingos... - respondeu a convidada. O condutor:
- Manga de calor! - E ela:
- Calor, tchiu! - O condutor:
- A nôs portuguesis... - E ela:
- Ah, nha fidju i fidju de soldado. I lebal pa Lisboa. I na cuida del. I na manda dinheru um bokadu…
O condutor e a mulher ficaram estarrecidos. Aquele soldado... Lá de Portugal... grande exemplo de grandez... Verdadeira, esta estória. Comovente. Rememoro-a, a propósito do que ultimamente se tem falado no nosso blogue .
E queria acrescentar algo. Se me permitis, camaradas. Um aquartelamento. Arame farpado à volta. Saídas para emboscadas, patrulhamentos, golpes de mão; ou sofrer ataques, alguns bem perto, direi mesmo ao arame, ou de longe com mísseis…E, pelo menos 150 tipos entre os 20 e 25 anos (no caso de uma companhia sediada em tabanca). O quê de isolamento, o quê solidão, o quê de sexo – como aguentar tal sofrimento, tal ansiedade?!
Já reparastes como é sofrida uma guerra neste particular aspecto? Tanta coisa aconteceu, camaradas. Algumas estórias não nos dignificam, camaradas. Ainda que nada seja tabu, demos ter algum recato quando falamos de terceiros, de outras pessoas que estão vivas, que deverão ser respeitadas. E a dignidade passa por nós próprios. Nada é tabu. Mas tudo deve ser (re)contado com muita dignidade.
Paulo Salgado (2006)
Recorde-se que, para além de antigo Alf Mil Cav da CCAV 2721, comandada pelo então Cap Cav Tomé (nos idos tempos de 1970/72, lá para os lados do Olossato, a sudoeste de Farim, e depois em Nhacra, a nordeste de Bissau), o Paulo é também, hoje em dia, um cooperante activo, solidário e empenhado, na Guiné-Bissau, estando à frente do Hospital Nacional Simão Mendes (LG)
© Paulo Salgado (2005)
Camaradas e Amigos:
Quero contar-vos uma estória. Em 1991, corria um Fiat Uno vermelho na picada, então muito boa, de Varela para S. Domingos [na região do Cacheu]. Lá dentro um casal. Seriam quatro da tarde. O sol ainda aquecia e o carrinho não tinha ar condicionado, apenas o ventinho quente aligeirava a modorra dentro da viatura, entrecortada pelos monossílabos que o casal ia trocando.
De repente, após uma curva, sob o peso de um jigo de verga de palmeira bem carregado de nadas (suponho), uma mulher gritava:
- Bolem, bolea!- .O condutor parou adiante, ajudou a colocar o cesto na bagageira, a arrumar a mulher no banco de trás. A mulher do condutor:
- Boa tarde, boa tarde; tome estas bolachas... para onde vai?
- Pa S. Domingos... - respondeu a convidada. O condutor:
- Manga de calor! - E ela:
- Calor, tchiu! - O condutor:
- A nôs portuguesis... - E ela:
- Ah, nha fidju i fidju de soldado. I lebal pa Lisboa. I na cuida del. I na manda dinheru um bokadu…
O condutor e a mulher ficaram estarrecidos. Aquele soldado... Lá de Portugal... grande exemplo de grandez... Verdadeira, esta estória. Comovente. Rememoro-a, a propósito do que ultimamente se tem falado no nosso blogue .
E queria acrescentar algo. Se me permitis, camaradas. Um aquartelamento. Arame farpado à volta. Saídas para emboscadas, patrulhamentos, golpes de mão; ou sofrer ataques, alguns bem perto, direi mesmo ao arame, ou de longe com mísseis…E, pelo menos 150 tipos entre os 20 e 25 anos (no caso de uma companhia sediada em tabanca). O quê de isolamento, o quê solidão, o quê de sexo – como aguentar tal sofrimento, tal ansiedade?!
Já reparastes como é sofrida uma guerra neste particular aspecto? Tanta coisa aconteceu, camaradas. Algumas estórias não nos dignificam, camaradas. Ainda que nada seja tabu, demos ter algum recato quando falamos de terceiros, de outras pessoas que estão vivas, que deverão ser respeitadas. E a dignidade passa por nós próprios. Nada é tabu. Mas tudo deve ser (re)contado com muita dignidade.
Paulo Salgado (2006)
Recorde-se que, para além de antigo Alf Mil Cav da CCAV 2721, comandada pelo então Cap Cav Tomé (nos idos tempos de 1970/72, lá para os lados do Olossato, a sudoeste de Farim, e depois em Nhacra, a nordeste de Bissau), o Paulo é também, hoje em dia, um cooperante activo, solidário e empenhado, na Guiné-Bissau, estando à frente do Hospital Nacional Simão Mendes (LG)
Guiné 63/74 - P542: os relatórios militares e a História (Zé Neto)
Texto do José Neto
Meu caro Luis:
Deste-me corda, agora tens de me aturar. Na tua conversa com o Pepito puseste em evidência um facto que eu tenho sentido ao longo deste terço final da minha vida e não o tinha classificado com a clareza do teu experimentado raciocínio: Nós, os que vivemos os factos, temos pressa de transmitir as nossas estórias porque quando se escrever a História já não podemos voltar das tumbas e dizer: Mentiroso!!!
Já aqui li que é uma pena as autoridades militares tardarem em abrir os seus arquivos históricos. Para quê? O que decerto lá consta é o produto do Relatórios e todos nós sabemos quem e como os elaboravam.
Exemplo? Aí vai: Quando em princípios de 1968 Guileje estava a ferro e fogo aterrou na pista uma biela (Dornier) e ficou na placa de manobra com o motor em funcionamento. Quando nos acercamos da aeronave vimos que o passageiro era o coronel comandante do Sector (nesse tempo sediado em Bolama) que gritava pelo comandante e pelo primeiro sargento da CART 1613. A conversa berrada no que me tocou foi:
- Trate de pôr na sua Ordem de Serviço que eu visitei o aquartelamento. - Dito isto ordenou ao piloto que se fizesse aos ares. Nem um saco de correio (a mercadoria mais preciosa que os aviões nos levavam) nos deixou...
- Coronel manda, sargento redige, escriturário bate à máquina e capitão assina.
Na O.S. do Batalhão, passados dias, lá vinha a transcrição: Visitou o aquartelamento de Guilege no passado dia x o Excelentíssimo Coronel y, Comandante do Sector. ´
No aconchego de Santa Luzia (QG/CTIG) ficou-se a saber que as tropas do Sudeste estavam a ser devidamente inspeccionadas. Essa visita consta da História do BART 1896, documento classificado como Confidencial, de que possuo um exemplar.
Mais palavras para quê? Era um artista português, cheio de...pressa.Entretanto ainda voltarei a este tema Relatórios, de outra guerra, a de Angola, mas que julgo significativo.
Um abração e até breve.
Zé Neto
Meu caro Luis:
Deste-me corda, agora tens de me aturar. Na tua conversa com o Pepito puseste em evidência um facto que eu tenho sentido ao longo deste terço final da minha vida e não o tinha classificado com a clareza do teu experimentado raciocínio: Nós, os que vivemos os factos, temos pressa de transmitir as nossas estórias porque quando se escrever a História já não podemos voltar das tumbas e dizer: Mentiroso!!!
Já aqui li que é uma pena as autoridades militares tardarem em abrir os seus arquivos históricos. Para quê? O que decerto lá consta é o produto do Relatórios e todos nós sabemos quem e como os elaboravam.
Exemplo? Aí vai: Quando em princípios de 1968 Guileje estava a ferro e fogo aterrou na pista uma biela (Dornier) e ficou na placa de manobra com o motor em funcionamento. Quando nos acercamos da aeronave vimos que o passageiro era o coronel comandante do Sector (nesse tempo sediado em Bolama) que gritava pelo comandante e pelo primeiro sargento da CART 1613. A conversa berrada no que me tocou foi:
- Trate de pôr na sua Ordem de Serviço que eu visitei o aquartelamento. - Dito isto ordenou ao piloto que se fizesse aos ares. Nem um saco de correio (a mercadoria mais preciosa que os aviões nos levavam) nos deixou...
- Coronel manda, sargento redige, escriturário bate à máquina e capitão assina.
Na O.S. do Batalhão, passados dias, lá vinha a transcrição: Visitou o aquartelamento de Guilege no passado dia x o Excelentíssimo Coronel y, Comandante do Sector. ´
No aconchego de Santa Luzia (QG/CTIG) ficou-se a saber que as tropas do Sudeste estavam a ser devidamente inspeccionadas. Essa visita consta da História do BART 1896, documento classificado como Confidencial, de que possuo um exemplar.
Mais palavras para quê? Era um artista português, cheio de...pressa.Entretanto ainda voltarei a este tema Relatórios, de outra guerra, a de Angola, mas que julgo significativo.
Um abração e até breve.
Zé Neto
Guiné 63/74 - P541: Bajudas, nem vê-las! (Carlos Marques dos Santos)
Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Sare Gana > 1968 > o Fur Mil Marques dos Santos (CART 2339, Fá e Mansambo, 1968/69)
© Carlos Marques dos Santos (2006)
1. Acabo de ler um texto sobre Sara Gana (1) e lembrei-me de aditar um conjunto de fotos que atestam a minha passagem por essa tabanca, muito antes de vós e felizmente sem os problemas como os que foram descritos posteriormente.
Guiné > Zona leste > Subsector de Geba Sare Gana > Putos da tabanca armados em "autênticos guerrilheiros"...
© Carlos Marques dos Santos (2006)
Estive aí muito poucos dias, pois a nossa missão era reforçar o sector de Geba.
São fotos de uma vida calma, da infância que aí vivia na altura.
A foto da disputa de comida que eu vi, com os meus olhos, impressionou na altura.
O que estava em disputa era somente uma terrina de sopa, sobra do almoço do meu Pelotão.Aquela disputa era a sério. Seria fome? (2)
Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Sare Gana > 1968 > CART 2339 (Fá e Nansambo,m 1968/69) > Crianças disputando comida da tropa...
© Carlos Marques dos Santos (2006)
2. Em relação ao tema que lançaste sobre as relações sexuais, não tenho nada a dizer.
Até nisso fomos privilegiados. Estivemos sempre dentro do arame farpado e sem população, excepto os picadores e suas mulheres. Bajudas, nem vê-las!
No final da comissão ainda houve duas saídas para Bafatá, para fim de semana.
Ao meu pelotão não chegou a vez.
Melhor ainda. Viemos embora para casa. Tinha terminado o mato. Esperava-nos Bissau e o Uíge, em contraposição com o Ana Mafalda de ida, de vómitos e sofrimento de toda a Companhia.
Foi a minha estreia em cruzeiros. No regresso fomos tratados com senhores.
Só que não vieram todos.
Um Abraço
Carlos Marques dos Santos
______
Nota de L.G.
(1) Vd post de 17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLII: Fátima, a furtiva gazela
"(...) Os dias em Sare Ganà [ no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá] ainda vão sendo suportáveis, à aparte o calor, as moscas e o estado de sítio...As noites, essas, é que são longas e penosas (...) Resta-me a companhia silenciosa e furtiva da Fátima, uma das mulheres do comandante da milícia (...)".
Vd. também post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu
(2) Vd post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXII: As aldeias fulas em autodefesa
" (...) Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.
"É a única maneira de fugir ao universo concentraccionário da sua tabanca,e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do Suleimane me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).
"Fome, subnutrição, doença, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...) contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, já que as praças são desarranchadas. Tivemos de o comer em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor, e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!" (...).
© Carlos Marques dos Santos (2006)
1. Acabo de ler um texto sobre Sara Gana (1) e lembrei-me de aditar um conjunto de fotos que atestam a minha passagem por essa tabanca, muito antes de vós e felizmente sem os problemas como os que foram descritos posteriormente.
Guiné > Zona leste > Subsector de Geba Sare Gana > Putos da tabanca armados em "autênticos guerrilheiros"...
© Carlos Marques dos Santos (2006)
Estive aí muito poucos dias, pois a nossa missão era reforçar o sector de Geba.
São fotos de uma vida calma, da infância que aí vivia na altura.
A foto da disputa de comida que eu vi, com os meus olhos, impressionou na altura.
O que estava em disputa era somente uma terrina de sopa, sobra do almoço do meu Pelotão.Aquela disputa era a sério. Seria fome? (2)
Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Sare Gana > 1968 > CART 2339 (Fá e Nansambo,m 1968/69) > Crianças disputando comida da tropa...
© Carlos Marques dos Santos (2006)
2. Em relação ao tema que lançaste sobre as relações sexuais, não tenho nada a dizer.
Até nisso fomos privilegiados. Estivemos sempre dentro do arame farpado e sem população, excepto os picadores e suas mulheres. Bajudas, nem vê-las!
No final da comissão ainda houve duas saídas para Bafatá, para fim de semana.
Ao meu pelotão não chegou a vez.
Melhor ainda. Viemos embora para casa. Tinha terminado o mato. Esperava-nos Bissau e o Uíge, em contraposição com o Ana Mafalda de ida, de vómitos e sofrimento de toda a Companhia.
Foi a minha estreia em cruzeiros. No regresso fomos tratados com senhores.
Só que não vieram todos.
Um Abraço
Carlos Marques dos Santos
______
Nota de L.G.
(1) Vd post de 17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLII: Fátima, a furtiva gazela
"(...) Os dias em Sare Ganà [ no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá] ainda vão sendo suportáveis, à aparte o calor, as moscas e o estado de sítio...As noites, essas, é que são longas e penosas (...) Resta-me a companhia silenciosa e furtiva da Fátima, uma das mulheres do comandante da milícia (...)".
Vd. também post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu
(2) Vd post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXII: As aldeias fulas em autodefesa
" (...) Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.
"É a única maneira de fugir ao universo concentraccionário da sua tabanca,e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do Suleimane me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).
"Fome, subnutrição, doença, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...) contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, já que as praças são desarranchadas. Tivemos de o comer em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor, e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!" (...).
Guiné 63/74 - P540: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (A. Marques Lopes, cor inf , DAF, na reserva)
A. Marques Lopes, coronel, DFA, na reserva.
Selecção e comentários do A. Marques Lopes:
Também sei dos massacres da UPA no Norte de Angola, e acho que ninguém os esqueceu. O Mário Dias (1) não sabe, mas eu também sei do massacre de Mueda, em 16 de Junho de 1960, em que as autoridades coloniais mataram centenas de nativos; do massacre da Baixa do Cassange, em Janeiro de 1961, durante uma revolta dos trabalhadores da Cotonang, tendo a tropa e a aviação matado, segundo o MPLA, mais de 10.000 angolanos; ou do massacre de Wiriamu, em 1973.... e também sei de quem, em Barro, matou, duma vez, 10 elementos de população civil controlada pelo PAIGC. Preto também foi massacrado...
Este é o texto que o Luís Cabral (2) escreve no seu livro Crónica da Libertação” (Lisboa: O Jornal. 1984. 65-73) a propósito do massacre de Pidjiguiti (3). Ele fala em mais de 50 mortos. Como ele refere nem a PIDE acreditou que a greve tivesse sido espontânea. E vejam-se os nomes que ele refere como empregados da Casa Gouveia, além dele próprio. E a Casa Gouveia é que tinha a maior parte dos marinheiros amotinados, também refere.
1. Excertos de Crónica da Libertação, de Luís Cabral (1984):
(...) A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos; o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de "civilizado». Os restantes membros da tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.
O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para mafé, quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.
Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.
Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho, se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas quanto à sua açção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.
A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido [ PAIGC ] tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.
A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné [Conacri] e seguia os preparativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.
Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.
A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pijiguiti. Os homens desembarcavam confiantes em si próprios e nas cerimónias certamente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas sacrificadas teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproximava. Os capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer que os tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.
Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens estavam estacionados no recinto do cais de Pijiguiti. Nos seus espíritos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindicações.
Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia, mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. Homens como os que se encontravam ali, no Pijiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar a luta.
As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer - mais pão, mais justiça.
No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.
A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.
Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem, voltaram de novo a recompor-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.
A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.
Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas automáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heróicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.
Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.
À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.
À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais, iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pijiguiti. Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.
Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais de Pijiguití e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin (4) e outros colegas. Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.
Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.
Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.
Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pêlos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.
Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides [Pereira] e o [Fernando] Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau. Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Conakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar [Cabral] que se encontrava nesse momento em Angola. No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.
Entretanto, o Aristides tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.
Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse atribuir tal responsabilidade ?
O director-geral da PIDE insistiu para que o seu representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as. informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto. O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia, no próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo —disse o director-geral — e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.»
Toda a gente sabia o que eram os interrogatórios da PIDE, em Lisboa. Quantos não foram os patriotas portugueses e africanos que sucumbiram às torturas e maus tratos da polícia fascista!
O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela policia.
Carlos saiu nesse mesmo instante à minha procura. Foi primeiro à minha casa, embora isso tivesse sido imprudente, pois se alguém o visse a entrar no fim da tarde no prédio de três andares onde eu era o único africano residente, saberia logo que ele só podia dirigir-se à minha casa; procurou-me em seguida em casa da dra. Sofia Pomba Guerra.
A noite acabava de cair bruscamente quando finalmente me encontrou na Sede do Benfica. Chuviscava um pouco, mas mesmo assim saí à rua para falarmos longe de possíveis ouvidos curiosos. Carlos estava acompanhado de um amigo, quando me pôs ao corrente da situação. Disse-lhe que fosse imediatamente esconder-se e que só se mostrasse quando eu mandasse chamá-lo. Pedi-lhe o seu impermeável, e confirmei que tudo seria tratado de forma que ele pudesse sair do país ainda naquela noite.
Tomava-se indispensável encontrar o Elysée Turpin, o homem do nosso grupo capaz de conseguir um meio de transporte. Com a ajuda do meu irmão Toi, que tinha uma motorizada, saímos à procura do Elysée que sempre considerámos o homem mais difícil de encontrar em Bissau, depois das horas de trabalho. Encontrámo-lo finalmente e, informando-o da situação, disse-lhe que tinha de conseguir um carro para pôr o Carlos na fronteira naquela mesma noite. O único indivíduo das suas relações que tinha uma camioneta era conhecido notoriamente pelas relações com a polícia, mas não tínhamos outra escolha e não havia tempo para hesitações. Ficou combinado que o Elysée pediria o carro explicando abertamente qual o objectivo da missão. Confiámos assim nas boas relações existentes entre os dois, e também porque o Carlos era um jovem com muita simpatia e respeito, em Bissau, para o que concorria, além da sua idoneidade moral, o facto de ser um excelente praticante do futebol.
Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem. Terminados os preparativos para a sua saída imediata, precisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos. Estava muito escuro e continuava a chuviscar. Aproximava-me da casa da sua mãe, no Chão de Papel. Ia todo envolvido no seu impermeável, quando senti que um carro se aproximava muito devagar atrás de mim. Não parei. Os faróis chegaram tão perto que pareciam queimar-me. O pára-choques do carro quase bateu nas minhas pernas, quando parou.
Voltei-me então e vi que se tratava de um jipe militar cheio de homens fardados; pensei logo que a sua chegada estava relacionada com a prisão do Carlos. Os militares riam quando arrancaram de novo, continuando a sua ronda em direcção à Central Eléctrica. Confesso que, apesar do fresco da chuva, estava a transpirar dentro do impermeável de borracha. Felizmente, os homens só quiseram divertir-se à minha custa.
Voltei para trás e aproximei-me da casa do Carlos. Tive de pedir ao irmão que o fosse procurar. É que eu tinha-lhe dito que se escondesse bem, mas não ficou estabelecido onde.
O Elysée apareceu confirmando que tinha conseguido o carro. Ele seguiria pela estrada do Aeroporto e o Carlos, na sua motorizada, iria juntar-se-lhe, logo que o víssemos. Ficou ainda assente que o Elysée faria tudo para estar de regresso antes das sete da manhã, para não faltar ao trabalho, não fosse a polícia ligar a sua ausência com a fuga do seu colega de serviço.
Chegou finalmente o Carlos. Via-se que estava preocupado, apesar da sua calma aparente. Dei-lhe o dinheiro e o impermeável, abraçámo-nos, tomou a motorizada e partiu. Eram mais ou menos dez horas da noite. O seu irmão mais novo devia passar pela Gouveia à hora da abertura dos escritórios para dizer que o Carlos estava doente.
Foi só depois da partida do Carlos, quando regressava a casa na pequena motorizada conduzida pelo meu irmão, que me apercebi dos erros e imprudências que foram cometidos: ele andou à minha procura em minha casa e noutros lugares e era muito natural que nos tivessem visto juntos conversando à porta do Benfica; entretanto, na manhã seguinte, nada se sabia do Carlos em Bissau. Convenci-me de que a PIDE, a famigerada PIDE que acabava sempre por saber tudo, facilmente me identificaria como sendo uma das pessoas que intervieram directamente na fuga do Carlos.
O meu estado de excitação era, pois, bastante grande no dia seguinte. Tentava imaginar como seria interrogado pela polícia e ia formando mentalmente as respostas que daria às suas perguntas. Recorri à dra. Sofia e ela aconselhou-me a tomar um calmante que me ajudaria a controlar. Arranjou-me um medicamento a que chamou a «pastilha da felicidade». Eu precisava de facto de muita calma, no caso de ser interpelado pela PIDE...
À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7.30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda.
Antes das oito horas, já o irmão do Carlos aparecia para dizer que ele estava doente e não podia apresentar-se na Gouveia. Alguns minutos depois, chegavam os homens da PIDE. Contactaram a direcção e perguntaram pelo Carlos. Saíram imediatamente e foram à casa da sua mãe, mas o Carlos tinha desaparecido sem deixar rastos.
O Elysée, entretanto, pedira licença para sair. Ia dormir...
Logo que recebeu a comunicação sobre o massacre de Pijiguiti, o Amílcar fez-nos saber que passaria por Bissau o mais breve possível, para fazermos o balanço dos acontecimentos e definir o caminho a seguir. (...)
Comentário do A. Marques Lopes:
Naturalmente, as consequências trágicas desta greve foram aproveitadas pelo PAIGC. Como refere o Luís Cabral, a páginas 75 e 76 do seu livro:
2. Excertos de Crónica da Libertação:
O massacre de 3 de Agosto, com todo o seu terrível conteúdo de horror e desespero, servira para acordar a consciência de muitos nacionalistas hesitantes. Veio provar a necessidade de lutar por todos os meios para destruir o colonialismo, o que exigia um trabalho longo e duro, pleno de sacrifícios.
Guiné > Amílcar Cabral (1924-1973), o líder do PAIGC, soube tirar as devidas ilações dos terríveis acontecimentos do dia 3 de Agosto de 1959. Ainda hoje se discute se a greve dos marinheiros e trabalhadores portuários do Pidjiguiti foi conduzida pelo PAIGC, ainda em fase incipiente de organização, ou se foi apenas aproveitada pelo PAIGC, em termos políticos... (LG)
Foto: © CaboVerdeOnline.com(2001-2006). Com a devida vénia...
Na reunião com o Amilcar (19/9/959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios domártires de Pijiguiti.
Não podíamos brincar com um inimigo que provara mais uma vez ser de uma crueldade sem limites. Quando tivéssemos de agir contra ele, tínhamos de estar preparados para todas as eventualidades e ser capazes de não nos deixarmos matar impunemente.
Não restavam dúvidas que a repressão à greve de 3 de Agosto, e a maneira pronta como ela pôde ser organizada, provaram-nos que, na capital, o inimigo era e seria sempre mais forte do que nós. Tinha o seu exército, a sua polícia, os seus carros, o seu dinheiro para comprar a consciência de muitos dos nossos compatriotas. Quase toda a população urbana dependia das autoridades e das empresas coloniais para viverem; tudo isto colocava o grupo de patriotas nacionalistas numa situação de inferioridade manifesta.
Ao contrário, nas imensas zonas rurais onde vivia a maioria esmagadora do nosso povo, o homem não dependia dos colonialistas para viver: era, ao contrário, o homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o colonialista. Era do campo que vinham o arroz, a mancarra, o coconote, as hortaliças, e grande parte do dinheiro dos impostos. A população ali, não só não dependia dos colonialistas, como ainda não se identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do tempo de escravatura ao dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários, encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era lá que encontrava as forças para resistir à poderosa influência do inimigo.
A lição mais importante tirada do massacre de Pijiguiti, dizia-nos, portanto, que seria junto da população camponesa do nosso país que teríamos de procurar as forças necessárias para combater e vencer o colonialismo. Não devíamos sacrificar os nossos homens, o capital mais precioso da nossa vida, numa confrontação desigual na cidade. Devíamos, sim, organizar a nossa gente cada vez melhor, prepará-la cuidadosamente para a grande batalha que seria desencadeada, primeiro, no campo, onde acumularia as forças necessárias para se alastrar às cidades.
Impunha-se, desde então, começar a seleccionar os jovens mais capazes que teriam de sair do país, para receberem no estrangeiro uma preparação especial com vista à realização da grande tarefa que tínhamos à nossa frente. Depois da criminosa e sangrenta repressão aos corajosos grevistas de 3 de Agosto — mártires da gloriosa libertação do nosso povo — íamo-nos preparar cuidadosamente para entrar com força irreversível numa nova fase da luta (5).
____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)
"Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto) (...).
(2) Luís de Almeida Cabral, meio-irmão de Amílcar Cabral (1924-1973), nasceu a 10 de Abril de 1931, tendo sido o primeiro presidente da República da Guíné-Bissau (1973-1980). Na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal reconhece, em 10 de Setembro de 1974, de jure e de facto, a independência da sua antiga província ultramarina (colónia, até 1951).
Luís Cabral assumiu a liderança do PAIGC após o assassinato de Amílcar, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973. Foi derrubado em 1980 por um golpe militar, liderado por João Bernardo Vieira ('Nino' Vieira), que jogou a facção guineense contra a facção dita cabo.verdiana do PAIGC . Após 13 meses de detenção, foi para o exílio, primeiro em Cuba e depois em Portugal. Voltou à sua terra em 1999, depois de 'Nino' Vieira ter sido, ele próprio, derrubado por um outro golpe de estado...
Luís Cabral era empregado da Casa Gouveia, contabilista, em 3 de Agosto de 1959.
Vd. ainda a cronobiografia de Amílcar Cabral, em formato.pdf, disponível no sítio da Fundação Mário Soares.
(3) Repare-se que na edição de O Jornal, de 1984, a grafia que é usada é Pijigutí... Opta-se por usar a mais corrente ou vulgarizada (Pidjiguiti), mesmo que não seja a mais correcta, do ponto de vista lexicográfico...
(4) Sobre este fundador do PAIGC, vd posts de:
(i) 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC
" (...) O intensificar de actividades e constantes movimentações políticas levaram a que a PIDE reforçasse as perseguições e, consequentemente, muitos activistas foram sendo aprisionados e torturados nas diferentes celas de prisões. Este facto e outros, nomeadamente os acontecimentos de Pidjiguiti em 1959, levaram à tomada de decisão do Partido de instalar a sua Direcção no país vizinho independente - Guiné Conakry" (...).
(ii) 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVIII: Memórias de Turpin e da Bissau do seu tempo
"Mais informações, pormenorizadas, sobre o Turpin, por parte do Sargento Mário Dias, dos comandos, ex-camarada do Virgínio Briote (por cujo intermédio chegou esta mensagem) (...)
(5) Hoje esta data é feriado nacional na Guiné-Bissau e no local foi construído ao monumento aos heróis do Pidjiguiti.
Selecção e comentários do A. Marques Lopes:
Também sei dos massacres da UPA no Norte de Angola, e acho que ninguém os esqueceu. O Mário Dias (1) não sabe, mas eu também sei do massacre de Mueda, em 16 de Junho de 1960, em que as autoridades coloniais mataram centenas de nativos; do massacre da Baixa do Cassange, em Janeiro de 1961, durante uma revolta dos trabalhadores da Cotonang, tendo a tropa e a aviação matado, segundo o MPLA, mais de 10.000 angolanos; ou do massacre de Wiriamu, em 1973.... e também sei de quem, em Barro, matou, duma vez, 10 elementos de população civil controlada pelo PAIGC. Preto também foi massacrado...
Este é o texto que o Luís Cabral (2) escreve no seu livro Crónica da Libertação” (Lisboa: O Jornal. 1984. 65-73) a propósito do massacre de Pidjiguiti (3). Ele fala em mais de 50 mortos. Como ele refere nem a PIDE acreditou que a greve tivesse sido espontânea. E vejam-se os nomes que ele refere como empregados da Casa Gouveia, além dele próprio. E a Casa Gouveia é que tinha a maior parte dos marinheiros amotinados, também refere.
1. Excertos de Crónica da Libertação, de Luís Cabral (1984):
(...) A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos; o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de "civilizado». Os restantes membros da tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.
O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para mafé, quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.
Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.
Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho, se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas quanto à sua açção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.
A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido [ PAIGC ] tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.
A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné [Conacri] e seguia os preparativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.
Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.
A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pijiguiti. Os homens desembarcavam confiantes em si próprios e nas cerimónias certamente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas sacrificadas teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproximava. Os capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer que os tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.
Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens estavam estacionados no recinto do cais de Pijiguiti. Nos seus espíritos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindicações.
Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia, mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. Homens como os que se encontravam ali, no Pijiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar a luta.
As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer - mais pão, mais justiça.
No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.
A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.
Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem, voltaram de novo a recompor-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.
A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.
Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas automáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heróicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.
Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.
À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.
À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais, iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pijiguiti. Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.
© Paulo Salgado (2005)
Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais de Pijiguití e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin (4) e outros colegas. Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.
Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.
Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.
Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pêlos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.
Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides [Pereira] e o [Fernando] Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau. Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Conakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar [Cabral] que se encontrava nesse momento em Angola. No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.
Entretanto, o Aristides tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.
Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse atribuir tal responsabilidade ?
O director-geral da PIDE insistiu para que o seu representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as. informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto. O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia, no próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo —disse o director-geral — e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.»
Toda a gente sabia o que eram os interrogatórios da PIDE, em Lisboa. Quantos não foram os patriotas portugueses e africanos que sucumbiram às torturas e maus tratos da polícia fascista!
O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela policia.
Carlos saiu nesse mesmo instante à minha procura. Foi primeiro à minha casa, embora isso tivesse sido imprudente, pois se alguém o visse a entrar no fim da tarde no prédio de três andares onde eu era o único africano residente, saberia logo que ele só podia dirigir-se à minha casa; procurou-me em seguida em casa da dra. Sofia Pomba Guerra.
A noite acabava de cair bruscamente quando finalmente me encontrou na Sede do Benfica. Chuviscava um pouco, mas mesmo assim saí à rua para falarmos longe de possíveis ouvidos curiosos. Carlos estava acompanhado de um amigo, quando me pôs ao corrente da situação. Disse-lhe que fosse imediatamente esconder-se e que só se mostrasse quando eu mandasse chamá-lo. Pedi-lhe o seu impermeável, e confirmei que tudo seria tratado de forma que ele pudesse sair do país ainda naquela noite.
Tomava-se indispensável encontrar o Elysée Turpin, o homem do nosso grupo capaz de conseguir um meio de transporte. Com a ajuda do meu irmão Toi, que tinha uma motorizada, saímos à procura do Elysée que sempre considerámos o homem mais difícil de encontrar em Bissau, depois das horas de trabalho. Encontrámo-lo finalmente e, informando-o da situação, disse-lhe que tinha de conseguir um carro para pôr o Carlos na fronteira naquela mesma noite. O único indivíduo das suas relações que tinha uma camioneta era conhecido notoriamente pelas relações com a polícia, mas não tínhamos outra escolha e não havia tempo para hesitações. Ficou combinado que o Elysée pediria o carro explicando abertamente qual o objectivo da missão. Confiámos assim nas boas relações existentes entre os dois, e também porque o Carlos era um jovem com muita simpatia e respeito, em Bissau, para o que concorria, além da sua idoneidade moral, o facto de ser um excelente praticante do futebol.
Guiné-Bissau > Bissau > Planta da cidade, da época a seguir à independência.
© A. Marques Lopes (2005)
Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem. Terminados os preparativos para a sua saída imediata, precisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos. Estava muito escuro e continuava a chuviscar. Aproximava-me da casa da sua mãe, no Chão de Papel. Ia todo envolvido no seu impermeável, quando senti que um carro se aproximava muito devagar atrás de mim. Não parei. Os faróis chegaram tão perto que pareciam queimar-me. O pára-choques do carro quase bateu nas minhas pernas, quando parou.
Voltei-me então e vi que se tratava de um jipe militar cheio de homens fardados; pensei logo que a sua chegada estava relacionada com a prisão do Carlos. Os militares riam quando arrancaram de novo, continuando a sua ronda em direcção à Central Eléctrica. Confesso que, apesar do fresco da chuva, estava a transpirar dentro do impermeável de borracha. Felizmente, os homens só quiseram divertir-se à minha custa.
Voltei para trás e aproximei-me da casa do Carlos. Tive de pedir ao irmão que o fosse procurar. É que eu tinha-lhe dito que se escondesse bem, mas não ficou estabelecido onde.
O Elysée apareceu confirmando que tinha conseguido o carro. Ele seguiria pela estrada do Aeroporto e o Carlos, na sua motorizada, iria juntar-se-lhe, logo que o víssemos. Ficou ainda assente que o Elysée faria tudo para estar de regresso antes das sete da manhã, para não faltar ao trabalho, não fosse a polícia ligar a sua ausência com a fuga do seu colega de serviço.
Chegou finalmente o Carlos. Via-se que estava preocupado, apesar da sua calma aparente. Dei-lhe o dinheiro e o impermeável, abraçámo-nos, tomou a motorizada e partiu. Eram mais ou menos dez horas da noite. O seu irmão mais novo devia passar pela Gouveia à hora da abertura dos escritórios para dizer que o Carlos estava doente.
Foi só depois da partida do Carlos, quando regressava a casa na pequena motorizada conduzida pelo meu irmão, que me apercebi dos erros e imprudências que foram cometidos: ele andou à minha procura em minha casa e noutros lugares e era muito natural que nos tivessem visto juntos conversando à porta do Benfica; entretanto, na manhã seguinte, nada se sabia do Carlos em Bissau. Convenci-me de que a PIDE, a famigerada PIDE que acabava sempre por saber tudo, facilmente me identificaria como sendo uma das pessoas que intervieram directamente na fuga do Carlos.
O meu estado de excitação era, pois, bastante grande no dia seguinte. Tentava imaginar como seria interrogado pela polícia e ia formando mentalmente as respostas que daria às suas perguntas. Recorri à dra. Sofia e ela aconselhou-me a tomar um calmante que me ajudaria a controlar. Arranjou-me um medicamento a que chamou a «pastilha da felicidade». Eu precisava de facto de muita calma, no caso de ser interpelado pela PIDE...
À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7.30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda.
Antes das oito horas, já o irmão do Carlos aparecia para dizer que ele estava doente e não podia apresentar-se na Gouveia. Alguns minutos depois, chegavam os homens da PIDE. Contactaram a direcção e perguntaram pelo Carlos. Saíram imediatamente e foram à casa da sua mãe, mas o Carlos tinha desaparecido sem deixar rastos.
O Elysée, entretanto, pedira licença para sair. Ia dormir...
Logo que recebeu a comunicação sobre o massacre de Pijiguiti, o Amílcar fez-nos saber que passaria por Bissau o mais breve possível, para fazermos o balanço dos acontecimentos e definir o caminho a seguir. (...)
Comentário do A. Marques Lopes:
Naturalmente, as consequências trágicas desta greve foram aproveitadas pelo PAIGC. Como refere o Luís Cabral, a páginas 75 e 76 do seu livro:
2. Excertos de Crónica da Libertação:
O massacre de 3 de Agosto, com todo o seu terrível conteúdo de horror e desespero, servira para acordar a consciência de muitos nacionalistas hesitantes. Veio provar a necessidade de lutar por todos os meios para destruir o colonialismo, o que exigia um trabalho longo e duro, pleno de sacrifícios.
Guiné > Amílcar Cabral (1924-1973), o líder do PAIGC, soube tirar as devidas ilações dos terríveis acontecimentos do dia 3 de Agosto de 1959. Ainda hoje se discute se a greve dos marinheiros e trabalhadores portuários do Pidjiguiti foi conduzida pelo PAIGC, ainda em fase incipiente de organização, ou se foi apenas aproveitada pelo PAIGC, em termos políticos... (LG)
Foto: © CaboVerdeOnline.com(2001-2006). Com a devida vénia...
Na reunião com o Amilcar (19/9/959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios domártires de Pijiguiti.
Não podíamos brincar com um inimigo que provara mais uma vez ser de uma crueldade sem limites. Quando tivéssemos de agir contra ele, tínhamos de estar preparados para todas as eventualidades e ser capazes de não nos deixarmos matar impunemente.
Não restavam dúvidas que a repressão à greve de 3 de Agosto, e a maneira pronta como ela pôde ser organizada, provaram-nos que, na capital, o inimigo era e seria sempre mais forte do que nós. Tinha o seu exército, a sua polícia, os seus carros, o seu dinheiro para comprar a consciência de muitos dos nossos compatriotas. Quase toda a população urbana dependia das autoridades e das empresas coloniais para viverem; tudo isto colocava o grupo de patriotas nacionalistas numa situação de inferioridade manifesta.
Ao contrário, nas imensas zonas rurais onde vivia a maioria esmagadora do nosso povo, o homem não dependia dos colonialistas para viver: era, ao contrário, o homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o colonialista. Era do campo que vinham o arroz, a mancarra, o coconote, as hortaliças, e grande parte do dinheiro dos impostos. A população ali, não só não dependia dos colonialistas, como ainda não se identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do tempo de escravatura ao dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários, encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era lá que encontrava as forças para resistir à poderosa influência do inimigo.
A lição mais importante tirada do massacre de Pijiguiti, dizia-nos, portanto, que seria junto da população camponesa do nosso país que teríamos de procurar as forças necessárias para combater e vencer o colonialismo. Não devíamos sacrificar os nossos homens, o capital mais precioso da nossa vida, numa confrontação desigual na cidade. Devíamos, sim, organizar a nossa gente cada vez melhor, prepará-la cuidadosamente para a grande batalha que seria desencadeada, primeiro, no campo, onde acumularia as forças necessárias para se alastrar às cidades.
Impunha-se, desde então, começar a seleccionar os jovens mais capazes que teriam de sair do país, para receberem no estrangeiro uma preparação especial com vista à realização da grande tarefa que tínhamos à nossa frente. Depois da criminosa e sangrenta repressão aos corajosos grevistas de 3 de Agosto — mártires da gloriosa libertação do nosso povo — íamo-nos preparar cuidadosamente para entrar com força irreversível numa nova fase da luta (5).
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)
"Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto) (...).
(2) Luís de Almeida Cabral, meio-irmão de Amílcar Cabral (1924-1973), nasceu a 10 de Abril de 1931, tendo sido o primeiro presidente da República da Guíné-Bissau (1973-1980). Na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal reconhece, em 10 de Setembro de 1974, de jure e de facto, a independência da sua antiga província ultramarina (colónia, até 1951).
Luís Cabral assumiu a liderança do PAIGC após o assassinato de Amílcar, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973. Foi derrubado em 1980 por um golpe militar, liderado por João Bernardo Vieira ('Nino' Vieira), que jogou a facção guineense contra a facção dita cabo.verdiana do PAIGC . Após 13 meses de detenção, foi para o exílio, primeiro em Cuba e depois em Portugal. Voltou à sua terra em 1999, depois de 'Nino' Vieira ter sido, ele próprio, derrubado por um outro golpe de estado...
Luís Cabral era empregado da Casa Gouveia, contabilista, em 3 de Agosto de 1959.
Vd. ainda a cronobiografia de Amílcar Cabral, em formato.pdf, disponível no sítio da Fundação Mário Soares.
(3) Repare-se que na edição de O Jornal, de 1984, a grafia que é usada é Pijigutí... Opta-se por usar a mais corrente ou vulgarizada (Pidjiguiti), mesmo que não seja a mais correcta, do ponto de vista lexicográfico...
(4) Sobre este fundador do PAIGC, vd posts de:
(i) 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC
" (...) O intensificar de actividades e constantes movimentações políticas levaram a que a PIDE reforçasse as perseguições e, consequentemente, muitos activistas foram sendo aprisionados e torturados nas diferentes celas de prisões. Este facto e outros, nomeadamente os acontecimentos de Pidjiguiti em 1959, levaram à tomada de decisão do Partido de instalar a sua Direcção no país vizinho independente - Guiné Conakry" (...).
(ii) 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVIII: Memórias de Turpin e da Bissau do seu tempo
"Mais informações, pormenorizadas, sobre o Turpin, por parte do Sargento Mário Dias, dos comandos, ex-camarada do Virgínio Briote (por cujo intermédio chegou esta mensagem) (...)
(5) Hoje esta data é feriado nacional na Guiné-Bissau e no local foi construído ao monumento aos heróis do Pidjiguiti.
Guiné 63/74 - P539: Os filhos de branco (Zé Neto)
1. Mensagem do Ze Neto:
Luis:
Acabo de ler a tua conversa com o Zé Teixeira. E apanhei-te na primeira falha. Então tu não sabias, nunca ninguém te disse, que os nascituros de raça negra vêm ao mundo tão branquinhos como nós?. É verdade. Adiante.
Se te for possível diz ao Zé Teixeira, aliás já o disseste, mas eu gostaria que ele soubesse que sou um grande apreciador dos seus escritos não só pelo sentido humano que lhe é intrínseco (não se inventa) como também pela minha enorme admiração pelos pastilhas, os abnegados enfermeiros militares.
Por alguma razão os meus Fur Mil Cadima Ferreira e 1ºs cabos Soares da Silva, Gentil Fernandes e Celso Igreja, arrecadaram à sua conta 7 (sete) louvores por feitos em combate. E não dispararam um tiro!
Quanto aos nossos descendentes furtivos (desgraçadamente deixei um em Macau) disse-me o Pepito que o Dauda foi sempre tratado por Viegas pela população, era camionista (tinha um camião em Cacine) e morreu em Junho do ano passado antes de atingir os quarenta anos de idade.
A Sona, sua mãe, ainda é viva e está em Guileje. Também é justo referir que o pai teve conhecimento do nascimento do filho, fez algumas diligências para o trazer, mas a esposa, então em Bissau, se opôs terminantemente.
Boa noite e até breve.
O sacramental abraço do Zé Neto
2. Comentário de L.G.:
Zé: Infelizmente o meu curriculum vitae é muito mais pequeno do que o teu... Ou, pelo menos, andámos por sítios diferentes a fazer coisas diferentes. O mais importante é esse sentimento de confiança e essa auto-estima que tu transmites. Bem podes dizer, como o poeta Pablo Neruda: Confesso que vivi!
Obrigado
PS - Essa dos putos negros nascerem brancos, eu já tinha lido... Mas não me ocorreu... Pensei que o Zé Teixeira estivesse a insinuar que o pai da criança poderia ser um tuga.. De qualquer modo, não sendo médico, nunca assisti a nenhum parto africano... Poderia ter acontecido, andei também por algumas tabancas em autodefesa com os meus nharros e privei, com alguma intimidade, com a respectiva população.
Luis:
Acabo de ler a tua conversa com o Zé Teixeira. E apanhei-te na primeira falha. Então tu não sabias, nunca ninguém te disse, que os nascituros de raça negra vêm ao mundo tão branquinhos como nós?. É verdade. Adiante.
Se te for possível diz ao Zé Teixeira, aliás já o disseste, mas eu gostaria que ele soubesse que sou um grande apreciador dos seus escritos não só pelo sentido humano que lhe é intrínseco (não se inventa) como também pela minha enorme admiração pelos pastilhas, os abnegados enfermeiros militares.
Por alguma razão os meus Fur Mil Cadima Ferreira e 1ºs cabos Soares da Silva, Gentil Fernandes e Celso Igreja, arrecadaram à sua conta 7 (sete) louvores por feitos em combate. E não dispararam um tiro!
Quanto aos nossos descendentes furtivos (desgraçadamente deixei um em Macau) disse-me o Pepito que o Dauda foi sempre tratado por Viegas pela população, era camionista (tinha um camião em Cacine) e morreu em Junho do ano passado antes de atingir os quarenta anos de idade.
A Sona, sua mãe, ainda é viva e está em Guileje. Também é justo referir que o pai teve conhecimento do nascimento do filho, fez algumas diligências para o trazer, mas a esposa, então em Bissau, se opôs terminantemente.
Boa noite e até breve.
O sacramental abraço do Zé Neto
2. Comentário de L.G.:
Zé: Infelizmente o meu curriculum vitae é muito mais pequeno do que o teu... Ou, pelo menos, andámos por sítios diferentes a fazer coisas diferentes. O mais importante é esse sentimento de confiança e essa auto-estima que tu transmites. Bem podes dizer, como o poeta Pablo Neruda: Confesso que vivi!
Obrigado
PS - Essa dos putos negros nascerem brancos, eu já tinha lido... Mas não me ocorreu... Pensei que o Zé Teixeira estivesse a insinuar que o pai da criança poderia ser um tuga.. De qualquer modo, não sendo médico, nunca assisti a nenhum parto africano... Poderia ter acontecido, andei também por algumas tabancas em autodefesa com os meus nharros e privei, com alguma intimidade, com a respectiva população.
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