Na sequência do post anterior (1), volto a republicar - devidamente reformulado - o texto do Vitor Junqueira , inserido no Blogue-fora-nada, em 10 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVIII: Humor de caserna: 'A minha vida, contada, dava um filme' (Vitor Junqueira).
Foto: © José Teixeira (2006). Direitos reservados
1. O Vitor Junqueira (ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões, Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, hoje médico em Pombal), na altura, escreveu-me o seguinte:
Entre os meus papéis encontrei esta lista com os títulos dos filmes que passavam nos principais cinemas do país nos finais da década de 60. Alguém estabeleceu um elo de ligação, irónico, entre esses títulos e certos momentos importantes da vida de um combatente. Quero partilhar o achado convosco.Vitor Junqueira.
2. Comentário de L.G.:
Eu já tive ocasião de dizer ao Vitor que este documento era, de facto, um achado, uma maravilha, uma peça importante para compreender o nosso humor... de caserna!... De facto, quem disse que nós, os tugas, não tínhamos sentido de humor ? Eu acho que o humor, além de ser um sinal de inteligência, constitui também uma forma, muito nossa, portugesa, de ser e de estar que nos ajuda a enfrentar (e aguentar) as situações difíceis, em termos quer individuais quer colectivos... É rindo de nós próprios que afugentamos os maus agoiros, nos livramos dos tristes fados, lidamos com as crises e superamos as dificuldades...
Para um mancebo, a tropa sempre constituiu, entre nós, um verdadeiro ritual de passagem. Ir às sortes e ser apurado para a tropa, era um motivo de orgulho para um jovem, nomeadamente em tempo de paz. A tropa era uma escola de virtudes: virilidade, masculinidade, saúde, autocontrolo, coragem, lealdade, patriotismo, camaradagem...
Para os mancebos da nossa geração, a coisa piava mais fino: ser apurado para todo o serviço militar, implicava em 90 e tal por cento dos casos (tirando os filhos de algo, mais os cegos, os surdos e os mudos) ganhar um bilhete de ida (e nem sempre de volta) até ao Ultramar, ir parar a uma das três frentes da guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique... Em suma, mais dois anos (ou quase) de tropa...
O documento que o Vitor nos mandou é constituído por duas imagens, em formato.jpg, de uma lista, dactilografada, que tem por título A Vida de um Militar na Guiné Através do Cinema. A qualidade da digitalização não é boa, pelo que transcrevo as duas partes, corrigindo alguns erros de ortografia e/ou dactilografia, e procedendo à sua junção e, depois, à sua ordenação alfabética.
Uma das partes da lista é aqui inserida sob a forma de imagem, a título meramente ilustrativo. Esta lista, bem humorada, procura sobretudo fazer a equivalência, jocosa, entre as situações do dia-a-dia de um aquartelamento no mato e os títulos dos filmes que passavam na época nos nossos cinemas... Ainda me lembro de alguns!
Desconhece-se o autor da lista: provavelmente é trabalho colectivo. Possivelmente começou por alguém de transmissões, que tinha tempo e vagar para estas coisas... Talvez um cabo operador cripto, um especialista que não esconde a sua crítica à hierarquia e aos pequenos privilégios que davam as divisas e os galões... No mínimo, é um cinéfilo:
Clube de Sargentos = Casino Royal (possível referência à tendendência para a jogatana e a batota por parte de furriéis e sargentos);
Clube de Oficiais = Hotel Internacional (as instalações dos oficiais eram, sempre, apesar de tudo, melhores do que as barracas e os abrigos onde dormia o Zé Soldado);
Oficiais = Os insaciáveis;
Especialistas = Milionários sem vintém...
Também transparece aqui que a ideia de que ser Sargento de messe (= golpe de mestre à napolitana) era uma forma rápida... e socialmente aceite ou tolerada de aumentar o pé de meia durante a Comissão (que, para o Zé Soldado, era sinónimo de... Noites sem fim)!
O autor é também possivelmente alguém que esteve numa zona quente, junto à fronteira norte ou sul, já que o Turra é aqui identificado com o perigo que vem da fronteira (do Senegal ou da Guiné-Conacri)... O(s) autor(es) não deixa(m) de ser influenciado(s) pela teoria dominante de que a guerra do Ultramar era alimentada do exterior.
Curiosamente não há - como seria de esperar - grande referência à vida concreta dos operacionais no mato e aos perigos que os espreitavam: a emboscada, a mina, a canhoada, a morteirada, a roquetada, a costureirinha, o capim, os feridos, os mortes, o golpe de mão, etc. Há uma referência às Condecorações que, dadas a título póstumo, eram simbolizadas pela Cruz... de Ferro!
Não deixa também de ser interessante a representação da Enfermeira (paraquedista): o amor desceu em paraquedas... Durante a comissão toda, a Enfermeira-paraquedista era a única mulher branca que o Zé Soldado podia ver, ao vivo, de relativamente perto, embora de camuflado e de relance, em caso de evacuação de um ferido grave, quer no mato, quer no aquartelamento... Era, para muitos, uma visão quase celestial e sobretudo altamente erotizada...
Ainda me lembro a perturbação e a excitação que causava, entre os básicos de Bambadinca - nesta expressão, me incluo eu, mais as praças, os sargentos e os oficiais - , a chegada de um helicóptero com uma enfermeira-paraquedista... Em contrapartida, o Furriel enfermeiro da unidade (ou o Médico do batalhão) era associado a carniceiro e assassino...
No caso da CCAÇ 12, o pessoal era mais gentil, embora brincalhão e travesso, pelo que o nosso furriel enfermeiro Martins era simplesmente o Pastilhas - um profissional competentíssimo...mas o que ele sofreu connosco ! (um dia destes hei-de fazer-lhe aqui uma pequena homenagem).
Outra das obsessões do militar na Guiné era a contagem dos dias que faltavam para a chegada dos Periquitos e para o fim da comissão...E, por fim, inevitamente, a referência à ida às Tabancas (= sarilho de fraldas), o convívio com as Bajudas (= amor sem barreiras), o Tabaquinho e o copos (= amores clandestinos), o tempo de lazer e de prazer do Zé Soldado...
De qualquer modo, esta lista deve ser confrontada com a anteriormente publicada, e que nos chegou à mão através da viúva do soldado Rosa Gonçalves (1).
A vida de um militar na Guiné vista através do cinema:
Alojamento = Este é o meu mundo
Apresentações = Eu, eu... e os outros
Ataque ao quartel = A visita
Avião semanal = A esperança nunca morre
Bajudas = Amor sem barreiras
Bissau = Vida sem rumo
Castigos = Adeus ilusões
Chegada à Guiné = As duas faces do perigo
Chegada a Lisboa = Europa de noite
Clube de Especialistas = A grande vitória
Clube de Oficiais = Hotel Internacional
Clube de Sargentos = Casino Royal
Comissão = Noites sem fim
Companhia de Transportes = A ultrapassagem
Comunicações = Este difícil amor
Condecorações = A Cruz de Ferro
Dispensas = Uma réstea de azul
Enfermaria = As loucuras do dr. Jerry
Enfermeiras = O amor desceu em paraquedas
Enfermeiros = O assassino
Especialistas = Milionários sem vintém
Fim da comissão = Com a felicidade na alma
Formaturas = Eram duzentos irmãos
Grupo Operacional Aéreo = Os gloriosos malucos das máquinas [voadoras]
Ida ao mato = Um campista em puros
Ir de férias = O prémio
Justiça e disciplina = Arquivo K
Linha da Frente = Com jeito vai
Louvor = Não sou digno de ti
Médico = O homem da mala preta
Messe = Por favor não comam os malmequeres
Metereologia = E tudo o vento levou
Não ir de férias = Restos de um pecado
Oficiais = Os insaciáveis
Oficial de Dia = Sua Excelência, o Mordomo
Ordem de serviço = Os Dez Mandamentos
Partida de Lisboa = Passaporte para o desconhecido
Partida para Lisboa = África adeus
Passagem à disponibilidade = O adeus às armas
Primeira noite em Lisboa = Um homem e uma mulher
Praças = A família Trapp
Prisão = Longe da multidão
Recolher = Servidão humana
Saída à porta de armas = Duelo ao pôr do sol
Sargento de messes = Golpe de mestre à napolitana
Sargentos = Os profissionais
Secção de Fardamento = Pijama para dois
Secretaria dos TAP = Por favor não incomode
Substituto = O espião que veio do frio
TAP = O último recurso
Tabancas = Sarilho de fraldas
Transmissões = O perigo é a minha profissão
Turras = O perigo vem da fronteira
Vinho, tabaco, etc. = Amores clandestinos
Último dia da Guiné = O dia mais longo
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post anterior, de 27 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1320: Humor de caserna (1): O soldado paga com sangue a fama do capitão (Maria Gonçalves, viúva de Rosa Gonçalves, CCAÇ 3566)