segunda-feira, 27 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1321: Humor de caserna (2): a minha vida militar, contada, dava um filme (Vitor Junqueira)


Na sequência do post anterior (1), volto a republicar - devidamente reformulado - o texto do Vitor Junqueira , inserido no Blogue-fora-nada, em 10 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVIII: Humor de caserna: 'A minha vida, contada, dava um filme' (Vitor Junqueira).




Guiné > Empada > CCAÇ 2381 > 1969 > Um exemplo do nosso humor de caserna: o 1º cabo enfermeiro Teixeira, apesar da sua intensa actividade operacional, estava sempre disponível para os outros e arranjava maneira de se divertir e divertir os seus camaradas. Aqui, caricaturando o festival da Eurovisão.

Foto: © José Teixeira (2006). Direitos reservados


1. O Vitor Junqueira (ex-alf mil da CCAÇ 2753 - Os Barões, Madina Fula, Bironque, Saliquinhedim/K3, Mansabá , 1970/72, hoje médico em Pombal), na altura, escreveu-me o seguinte:

Entre os meus papéis encontrei esta lista com os títulos dos filmes que passavam nos principais cinemas do país nos finais da década de 60. Alguém estabeleceu um elo de ligação, irónico, entre esses títulos e certos momentos importantes da vida de um combatente. Quero partilhar o achado convosco.Vitor Junqueira.

2. Comentário de L.G.:

Eu já tive ocasião de dizer ao Vitor que este documento era, de facto, um achado, uma maravilha, uma peça importante para compreender o nosso humor... de caserna!... De facto, quem disse que nós, os tugas, não tínhamos sentido de humor ? Eu acho que o humor, além de ser um sinal de inteligência, constitui também uma forma, muito nossa, portugesa, de ser e de estar que nos ajuda a enfrentar (e aguentar) as situações difíceis, em termos quer individuais quer colectivos... É rindo de nós próprios que afugentamos os maus agoiros, nos livramos dos tristes fados, lidamos com as crises e superamos as dificuldades...

Para um mancebo, a tropa sempre constituiu, entre nós, um verdadeiro ritual de passagem. Ir às sortes e ser apurado para a tropa, era um motivo de orgulho para um jovem, nomeadamente em tempo de paz. A tropa era uma escola de virtudes: virilidade, masculinidade, saúde, autocontrolo, coragem, lealdade, patriotismo, camaradagem...

Para os mancebos da nossa geração, a coisa piava mais fino: ser apurado para todo o serviço militar, implicava em 90 e tal por cento dos casos (tirando os filhos de algo, mais os cegos, os surdos e os mudos) ganhar um bilhete de ida (e nem sempre de volta) até ao Ultramar, ir parar a uma das três frentes da guerra colonial: Angola, Guiné, Moçambique... Em suma, mais dois anos (ou quase) de tropa...

O documento que o Vitor nos mandou é constituído por duas imagens, em formato.jpg, de uma lista, dactilografada, que tem por título A Vida de um Militar na Guiné Através do Cinema. A qualidade da digitalização não é boa, pelo que transcrevo as duas partes, corrigindo alguns erros de ortografia e/ou dactilografia, e procedendo à sua junção e, depois, à sua ordenação alfabética.

Uma das partes da lista é aqui inserida sob a forma de imagem, a título meramente ilustrativo. Esta lista, bem humorada, procura sobretudo fazer a equivalência, jocosa, entre as situações do dia-a-dia de um aquartelamento no mato e os títulos dos filmes que passavam na época nos nossos cinemas... Ainda me lembro de alguns!

Desconhece-se o autor da lista: provavelmente é trabalho colectivo. Possivelmente começou por alguém de transmissões, que tinha tempo e vagar para estas coisas... Talvez um cabo operador cripto, um especialista que não esconde a sua crítica à hierarquia e aos pequenos privilégios que davam as divisas e os galões... No mínimo, é um cinéfilo:

Clube de Sargentos = Casino Royal (possível referência à tendendência para a jogatana e a batota por parte de furriéis e sargentos);
Clube de Oficiais = Hotel Internacional (as instalações dos oficiais eram, sempre, apesar de tudo, melhores do que as barracas e os abrigos onde dormia o Zé Soldado);
Oficiais = Os insaciáveis;
Especialistas = Milionários sem vintém...

Também transparece aqui que a ideia de que ser Sargento de messe (= golpe de mestre à napolitana) era uma forma rápida... e socialmente aceite ou tolerada de aumentar o pé de meia durante a Comissão (que, para o Zé Soldado, era sinónimo de... Noites sem fim)!

O autor é também possivelmente alguém que esteve numa zona quente, junto à fronteira norte ou sul, já que o Turra é aqui identificado com o perigo que vem da fronteira (do Senegal ou da Guiné-Conacri)... O(s) autor(es) não deixa(m) de ser influenciado(s) pela teoria dominante de que a guerra do Ultramar era alimentada do exterior.

Curiosamente não há - como seria de esperar - grande referência à vida concreta dos operacionais no mato e aos perigos que os espreitavam: a emboscada, a mina, a canhoada, a morteirada, a roquetada, a costureirinha, o capim, os feridos, os mortes, o golpe de mão, etc. Há uma referência às Condecorações que, dadas a título póstumo, eram simbolizadas pela Cruz... de Ferro!

Não deixa também de ser interessante a representação da Enfermeira (paraquedista): o amor desceu em paraquedas... Durante a comissão toda, a Enfermeira-paraquedista era a única mulher branca que o Zé Soldado podia ver, ao vivo, de relativamente perto, embora de camuflado e de relance, em caso de evacuação de um ferido grave, quer no mato, quer no aquartelamento... Era, para muitos, uma visão quase celestial e sobretudo altamente erotizada...

Ainda me lembro a perturbação e a excitação que causava, entre os básicos de Bambadinca - nesta expressão, me incluo eu, mais as praças, os sargentos e os oficiais - , a chegada de um helicóptero com uma enfermeira-paraquedista... Em contrapartida, o Furriel enfermeiro da unidade (ou o Médico do batalhão) era associado a carniceiro e assassino...

No caso da CCAÇ 12, o pessoal era mais gentil, embora brincalhão e travesso, pelo que o nosso furriel enfermeiro Martins era simplesmente o Pastilhas - um profissional competentíssimo...mas o que ele sofreu connosco ! (um dia destes hei-de fazer-lhe aqui uma pequena homenagem).

Outra das obsessões do militar na Guiné era a contagem dos dias que faltavam para a chegada dos Periquitos e para o fim da comissão...E, por fim, inevitamente, a referência à ida às Tabancas (= sarilho de fraldas), o convívio com as Bajudas (= amor sem barreiras), o Tabaquinho e o copos (= amores clandestinos), o tempo de lazer e de prazer do Zé Soldado...

De qualquer modo, esta lista deve ser confrontada com a anteriormente publicada, e que nos chegou à mão através da viúva do soldado Rosa Gonçalves (1).


A vida de um militar na Guiné vista através do cinema:

Alojamento = Este é o meu mundo
Apresentações = Eu, eu... e os outros
Ataque ao quartel = A visita
Avião semanal = A esperança nunca morre

Bajudas = Amor sem barreiras
Bissau = Vida sem rumo

Castigos = Adeus ilusões
Chegada à Guiné = As duas faces do perigo
Chegada a Lisboa = Europa de noite
Clube de Especialistas = A grande vitória
Clube de Oficiais = Hotel Internacional
Clube de Sargentos = Casino Royal
Comissão = Noites sem fim
Companhia de Transportes = A ultrapassagem
Comunicações = Este difícil amor
Condecorações = A Cruz de Ferro

Dispensas = Uma réstea de azul

Enfermaria = As loucuras do dr. Jerry
Enfermeiras = O amor desceu em paraquedas
Enfermeiros = O assassino
Especialistas = Milionários sem vintém

Fim da comissão = Com a felicidade na alma
Formaturas = Eram duzentos irmãos

Grupo Operacional Aéreo = Os gloriosos malucos das máquinas [voadoras]

Ida ao mato = Um campista em puros
Ir de férias = O prémio

Justiça e disciplina = Arquivo K

Linha da Frente = Com jeito vai
Louvor = Não sou digno de ti

Médico = O homem da mala preta
Messe = Por favor não comam os malmequeres
Metereologia = E tudo o vento levou

Não ir de férias = Restos de um pecado

Oficiais = Os insaciáveis
Oficial de Dia = Sua Excelência, o Mordomo
Ordem de serviço = Os Dez Mandamentos

Partida de Lisboa = Passaporte para o desconhecido
Partida para Lisboa = África adeus
Passagem à disponibilidade = O adeus às armas
Primeira noite em Lisboa = Um homem e uma mulher
Praças = A família Trapp
Prisão = Longe da multidão

Recolher = Servidão humana

Saída à porta de armas = Duelo ao pôr do sol
Sargento de messes = Golpe de mestre à napolitana
Sargentos = Os profissionais
Secção de Fardamento = Pijama para dois
Secretaria dos TAP = Por favor não incomode
Substituto = O espião que veio do frio

TAP = O último recurso
Tabancas = Sarilho de fraldas
Transmissões = O perigo é a minha profissão
Turras = O perigo vem da fronteira
Vinho, tabaco, etc. = Amores clandestinos

Último dia da Guiné = O dia mais longo
___________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post anterior, de 27 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1320: Humor de caserna (1): O soldado paga com sangue a fama do capitão (Maria Gonçalves, viúva de Rosa Gonçalves, CCAÇ 3566)

Guiné 63/74 - P1320: Humor de caserna (1): O soldado paga com sangue a fama do capitão (Maria Gonçalves, viúva de Rosa Gonçalves, CCAÇ 3566)


Emblema da CCAÇ 3566 e carta manuscrita de Maria Clarinda e Venâncio Gonçalves, viúva do nosso camarada António Joaquim Rosa Gonçalves, que pertenceu àquela, conhecida por Os Metralhas (Empada/Catió, 1972/74) (1).

1. Entre outras coisas, a viúva do Rosa Gonçalves - conhecido por Alentejano, entre os seus camaradas Metralhas - escreveu-me o seguinte, em carta enviada pelo correio:


(...) "Claro que não vejo inconveniente em fazer parte da vossa lista de amigos, será um prazer. Só mostra que a guerra onde vocês, ex-combatentes, estiveram envolvidos, deixou algo de muito bom, a amizade, [a qual] mesmo com o passar do tempo ainda perdura.

"Envio fotocópia de crachá dos Metralhas e de um papel que o meu marido trouxe da Guiné (uma determinação), o que mostra que, apesar de tudo, ainda havia tempo para brincar com coisas sérias... Como deve imaginar, guardo-o religiosamente.

"Como já tinha dito, o que faço em memória do meu marido, é uma forma de manter viva a sua memória, fazendo o que sei o que ele faria" (...)

[Alcácer do Sal,] 10-11-06

2. A nossa amiga Maria mandou-me também, no mesmo correio, um exemplar da Voz do Sado, com um depoimento sobre a guerra na Guiné. A fotocópia do papel do seu marido que ela guarda religiosamente, e que teve a gentileza de me mandar, não é mais do que uma lista de figuras de caserna a que estão associados títulos de filmes da época...

Era então uma forma de os nossos soldados criticarem a instituição militar, denunciando, caricaturando ou ridicularizando alguns dos aspectos mais sinistros, opressivos, cruéis e negativos da sua organização e funcionanamento, através do uso de trocadilhos com recurso a nomes de filmes comerciais (Carecada: E tudo o vento levou; Levantamento de rancho: a revolta dos escravos; Sargento da guarda: o Pai Tirano; Oficial de dia: Gringo não perdoa, etc.).

O emblema dos Metralhas é já, só por si, um tratado de humor castrense! Não sei como passou aos vários controlos da pesada hierarquia militar!

Reproduz-se a seguir a lista com alguns dos ditos de caserna, ditos esses que ao fim e ao cabo remontam a uma tradição popular, muito mais antiga que a guerra colonial... De facto, o nosso povo tem uma amarga experiência secular destas coisas, originando provérbios, de uma grande sabedoria, como:

- Bem parece a guerra a quem não vai nela;
- Da fome, da peste e da guerra... e do bispo da nossa terra, libera nos, Domine [livrai-nos, senhor];
- Em tempo de guerra, mentira é como terra;
- Nem todos os que vão à guerra são soldados;
- O bom soldado tira-o do arado;
- O soldado paga com sangue a fama do capitão...


Regimento de Infantaria nº 14 > Ordem de Serviço nº 5391

Determino e mando publicar:

Cabo Clarim – Trovador maldito
Cabo de Rancho – Ali-bá-bá e os 40 ladrões
Cabos chicos – Os miseráveis
Capelão – Cantiflas, o bom pastor
Carecada - E tudo o vento levou
Caserna – Casa dos infelizes
Comandante – O mais poderoso
Corte de fim de semana – O destino marca a hora

Depósito de géneros – Mercado negro
Desfile militar – Escândalo ao sol
Dia de pronto – O dia da vergonha
Dias de licença – O mundo maluco
Dias de instrução – Sangue, suor e lágrimas

Faxina ao refeitório – O dia mais longo
Fim de semana – Dias e dias no paraíso

Hospital militar – Cemitério dos vivos

Ida para o Ultramar – Que importa morrer
Ir para a Prisão – Os rebeldes

Levantamento de rancho – A revolta dos escravos

Médico de serviço – A morte veste-se branco
Messe de oficiais – Grande hotel
Messe de sargentos – Zona proibida
Meter o Chico – Pacto com o diabo
Mobilização – Passaporte para a eternidade

Oficial de dia – Gringo não perdoa

Passar à Peluda – A maior história de todos os tempos
Piquete – Todos morrem calçados
Plantão na caserna – Cabeça a prémio
Polícia militar – Espionagem maldita
Porta de armas – Cortina de ferro

Rancho melhorado - A grande mentira
Receber correio – De ilusões também se vive
Receber o pré – O dia da vergonha
Reforço ao quartel – Uma morte na escuridão

Sargento da guarda – O pai tirano
Secretaria – A caixa das surpresas
Soldados casados – Sarilhos de fraldas

Tirar o IAO – Aprender a matar
Toque de ordem – Música no coração
Toque de silêncio – Sinfonia incompleta

Uma noite deitado – Os assassinos atacam
______________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de

19 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1087: Rosa Gonçalves, o alentejano (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972) (Quim Pinheiro)

7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1054: Agradecimento da viúva do Rosa Gonçalves (CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada/Catió, 1972/74)

Guiné 63/74 - P1319: Blogoterapia (4): A alegria de encontrar a minha gente de Fá Mandinga e Missirá (Jorge Cabral)

Mensagem do Jorge Cabral, ex-Alf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat 63 (Bambadinca, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71).

Amigo:

Renovo o meu agradecimento. Obrigado, Luís! Graças ao Blogue recuo no tempo, recupero lembranças e reconstituo alguma da minha juventude. Recuo, recupero e reconstituo, mas não me reconstruo. Assumo-me exactamente como fui, não me invento enquanto personagem, nem me atribuo papéis que nunca desempenhei.

Passaram muitos anos mas conservo intactas as opiniões que então formulei sobre quem conheci. Opiniões então fundamentadas, quer no contacto pessoal, quer nas informações prestadas por outros camaradas.

Continuo a ser um leitor compulsivo e adoro ficção, mas nunca por nunca, me permito confundir imaginação com realidade.

Como era eu, em Jovem?

Incorporado aos vinte e três anos, quando frequentava o 4º ano da Faculdade de Direito, dedicava-me porém mais às letras, tendo já publicado poemas e contos. Lia muito e seguia atentamente tudo o que parecia moderno ou diferente, desde o Noveau Roman [, o Novo Romance], principalmente de Robe-Grillet, à poesia concretista.

Amante do teatro do absurdo, idolatrava Yonesco, que vi representado em Lisboa por uma companhia belga. Ia muito ao cinema e delirava com Bergman.

Devia ser um snobe intelectual, insuportavelmente pretensioso, que até se julgava culto. Claro que a curto prazo entendi que a cultura não se mede pelos livros ou filmes, lidos e vistos, mas pela capacidade de compreensão do outro na plenitude da sua diferença.

Dessa forma procedi nos Destacamentos [, Fá e Missirá], e aprendi muito, com os africanos mas também com os furriéis, cabos e soldados metropolitanos.

Jovem universitário urbano, conheci outro Portugal. Com eles agora comento o Blogue, e revisito o nosso Missirá, onde infelizmente nunca ouvimos ópera, nem usufruímos de cozinheiros diplomados, que nos preparassem chá com torradas.

O nosso cozinheiro era um básico posto ali por castigo, que um dia desatou a chorar porque eu, farto da sua manifesta inaptidão, lhe ordenei para o almoço... piças fritas (sic).

Líamos todos intermináveis fotonovelas, e escutávamos uma melodia em crioulo, que repetia escadeirada, escadeirada (1), além da Desfolhada, e do Elvas oh! Elvas, Badajoz à vista. Do Zeca Afonso nada, sabiam lá eles quem era…

Partilhávamos madrinhas de guerra, e um dia hei-de contar a minha correspondência com uma, para a qual inventei um país, com leões, tigres, elefantes e ferozes pigmeus canibais…

São também eles que agora me exigem que fale do nosso Missirá, que foi real e existiu, da nossa amizade e das nossas estórias.

Será talvez só por eles, que tentarei continuar…

Abraço Grande
Jorge Cabral


P.S./1 – Junto estória (Hortelão e Talhante: A frustração do Amaral)

P.S./2 – Na semana passada vivi uma grande alegria. Fui ao Rossio comprar cola e encontrei gente de Fá Mandinga.

_________

Nota de L.G.:

(1) O Jorge deve querer referir-se ao Nho Antone Escaderode, talvez a mais conhecida das coladeiras, de autoria de Gregório Gonçalves, imortalizada por grandes cantores cabo-verdianos como Bana, Tubarões ou Cesária Évora... A sua música - irresistível mesmo para um pé-de-chumbo, como eu - está nos ouvidos de todos nós... O Nho Antone Escaderode está para a coladeira assim como a Sodade está para morna: são duas obras-primas da música de Cabo Verde... A letra já é mais complicado entendê-la e decorá-la, tirando o refrão que é simples... Aqui vai uma ajudinha:

Nho Antone Escaderode(Gregório Gonçalves)


Primera vez
Qu’m ba na Rebera Grande
‘M passa sabe
Fui dente dum reservado

(Refrão:)


Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,
Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,

Nós era três
Que t’ma un estamperode
Quande no sai
Nô ta que palpite descomandode

(Refrão:)

Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,
Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,

Cesária Évora > CD > Café Atlântico (1999)
Copyright Editions Lusafrica

Tenho este CD, mas também é possível encontrar a letra, em crioulo (e a sua versão inglesa) na na página pessoal de... um italiano, apaixonado por Cabo Verde, Eraldo De Gioannini. A página tem justamente como título Cabo Verde > http://www.caboverde.com/... A página é em inglês... Um excerto musical de Nho Antone Escaderode (e de outras canções conhecidas, da Cesária Èvora e outros intérpretes) pode ser ouvido em:
A letra conta a história de um tipo - o senhor António - que a primeira vez que foi à vila e sede de concelho da Ribeira Grande, na Ilha de Santo Antão - justamente conhecida pelo seu grogue ou cachaça - foi beber un copos, num bar manhoso (reservado)... Eles eram três e o pobre do António quando saiu vinha todo... escaderode, que é como quem diz: apanhou uma valente piela...

domingo, 26 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1318: Xime: uma descida aos infernos (2): Op Abencerragem Candente (Luís Graça, CCAÇ 12)

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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972 > Obus 10,5 (ou 105 mm). No aquartelamento do Xime, existiam três obuses deste calibre e um morteiro 81 m/m. Eram estas as armas pesadas que existiam em 1972. As mesmas que existiam em 26 de Novembro de 1970.

Foto: © Sousa de Castro (2005). Direitos reservados.


Extractos da História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II, pp. 41 a 43 (Vd. abreviaturas em anexo).

Texto revisto e anotado por L.G. (1):


(17) Novembro/70: Violenta reacção do IN à penetração das NT em Ponta do Inglês durante a Op Abencerragem Candente

Embora se admitisse que o seu dispositivo no Sector L1 [correspondente ao triângulo Xime-Bambadinca-Xitole] tivesse sofrido importantes alterações, uma vez que se havia manifestado fracamente nos últimos meses, em especial no subsector do Xime, o IN não deixaria, no entanto, de reagir violentamente à penetração das NT em Ponta do Inglês no decurso da Op Abencerragem Candente, causando 6 mortos e 9 feridos [O aquartelemento da Ponta do Inglês, controlando a entrada no Rio Corubal, tinha sido abandonada por decisão do brigadeiro Spínola, logo no início do seu consulado, no último trimestre 1968].

Participaram nesta operação as seguintes forças, constituindo 3 Agrupamentos [num total estimado em cerca de 250 homens]:

(i) a CCAÇ 12 (sedeada em Bambadinca, ao serviço do BART 2917), a 3 Gr Comb (2° e 4º);

(ii) a CART 2715 (aquartelada no Xime), também a 3 Gr Comb;

e (iii) a CART 2714 (aquartelada em Mansambo), a 2 Gr Comb.

A missão era patrulhar a área definida pelo RGeba-Corubal-Buruntoni-Canhala a fim de:

(i) explorar eventuais vestígios IN;

(ii) deixar vestígios da passagem das NT e panfletos de acção psicológica;

e ainda (iii) contactar com a população desarmada, convidando-a a apresentar-se.

Os 3 Agrupamentos actuariam independentemente e por itinerários diferentes mas de modo a apoiar-se em caso de necessidade: Agr A (CART 2714), Agr B (CCAÇ 12) e Agr C (CART 2715).

No planeamento da operação, o Agr B faria a nomadização da região compreendida entre o RGundagué e a estrada (interdita) Xime-Ponta do Inglês, montando emboscadas durante a noite na área de Darsalame Baio e reunindo-se ao Agr C no nosso antigo aquartelamento da Ponta do Inglês, enquanto este bateria a região compreendida entre a referida estrada e o RCorubal, emboscando-se na área do Poindon.

Notícias de elevada classificação admitiam que o IN tivesse retirado do Sector 2 [também conhecido por região do Xitole e já na altura integrado na Frente Xitole / Bafatá ] dois bigrupos (Poindon e Baio) e um grupo de artilharia (Mangai).

De qualquer modo, depois da Op Boinas Destemidas [levada a efeito em Outubro de 1970 pela CCAÇ PARAS 123 na região de Ponta Varela, e da qual resultara a morte de sete guerrilheiros e a captura do respectivo armamento], o IN revelara-se apenas uma única vez (um grupo de 5 elementos tinha flagelado o Xime com armas ligeiras no mês anterior).

Desenrolar da acção:

A 25 [de Novembro de 1970], pelas 7h00, os Agr B e C saíram do Xime, no momento em que Mansambo era atacado com mort 82, LRockets e armas ligeiras por um grupo IN não estimado, atrasando a saída do Agr A.

Em Madina Colhido experimentaram-se os rádios, verificando-se que o do Agr B só ligava com Bambadinca e o do Agr C com o Xime, não havendo ligação entre eles [imprevidência, impreparação, incompetência, acrescednto eu] . Por outro lado, tentando-se também entrar em ligação com o PCV [posto de comando volante], esta não foi conseguida, uma vez que a frequência terra-ar que fora atribuída à operação não estava dentro das gamas de frequência da FA (!).

Em virtude disso, os 2 Agr foram obrigados a seguir juntos [grave erro!, direi hoje, pensando no comprimento de centenas de metros da coluna, em marcha, qual cobra sulcando o alto capim da savana arbustiva da região].

Depois de atingirem a Ponta Varela, contornaram a bolanha em direcção da antiga tabanca de Poindon, não tendo detectado entretanto vestígios recentes de presença IN nem de população. Ao escurecer, e quando as NT se preparavam para montar emboscadas, verificar-se-iam porém dois casos de intoxicação devido às conservas da ração de combate [!], pelo que tiveram de regressar ao Xime, aonde chegaram pelas 21h.

Entrando-se em contacto rádio com o comando de Bambadinca, a comunicar-se o sucedido e a pedir-se instruções, foram dadas ordens para os Agr B e C seguirem para a Ponta do Inglês pela respectiva estrada, ao raiar da madrugada do doutro dia [26 de Novembro], e aonde deveriam aguardar novas instruções [segundo erro, e este o mais grave!].

A 26, pelas 5.45 h da madrugada, iniciou-se de novo a marcha, tendo a progressão decorrido normalmente, e sem se notarem sinais de recente passagem nos trilhos do Baio e nas imediações do acampamento destruído durante a Op Boinas Destemidas em Xime 3C1-29.

Três horas depois, pelas 8.50h, já perto da Ponta do Inglês, o IN desencadearia uma violenta emboscada em L sobre a direita, precedida por um tiro isolado que foi confundido com um sinal de aviso duma eventual sentinela avançada, e que apanhou na zona de morte os 3 Gr Comb do Agr C [ CART 2715] e 1 Gr Comb (4º) do Agr B [CCAÇ 12].

Os primeiros tiros do IN, especialmente de LRockets, atingiram mortalmente o picador e guia do Agr B, Seco Camará, que ia na frente, e os quatro homens que o seguiam, incluindo um graduado [furriel miliciano Cunha], tendo ferido gravemente outro. Com rajadas sucessivas de LRockets e armas automáticas o IN, fixando as NT, lançou-se ao assalto sobre os primeiros homens, mortos ou gravemente feridos, conseguindo apanhar-lhes as armas, e só não os levando devido a pronta reacção das NT.

É de destacar aqui a acção heróica dos soldados Soares (CART 2715), que veio a ser mortalmente ferido, Sajuma (apontador de bazuca do 4º GR Comb/CCAÇ 12) que ficou ferido numa perna, e Ansumane (apontador de dilagrama, também do 4º Gr Comb/CCAÇ 12, ferido ligeiramente nas costas), que se lançaram ao contra-ataque, juntamente com outros camaradas e alguns graduados, a fim de quebrar o ímpeto do IN e de recolher os mortos e feridos.

O ataque durou cerca de 20 minutos, sendo a retirada do IN apoiada com tiros de mort 82 e canhão s/r (!) que incidiram sobre a estrada, e especialmente sobre os 2 últimos Gr Comb (1° e 2º) da CCAÇ 12, assim como rajadas enervantes de pistola-metralhadora, de posições que ainda não se haviam revelado, nomeadamente de cima das árvores.

Pelos elementos da frente foram ouvidos gritos de dor entre as fileiras do IN, tendo o rápido reconhecimento da zona confirmado que este deveria ter tido vários feridos e mortos prováveis [Esta parte do relatório era música, para não desmoralizar ainda mais as NT e sobretudo enganar o comando].

Em consequência da emboscada IN, uma das mais violentas de que há memória na região do Xime, pelo seu impacto sobre as NT, a CART 2715 [Xime] sofreu 5 mortos (l Furriel Mil) e 7 feridos, e a CCAÇ 12 teve 2 feridos (dos quais 1 grave, o Sold Sajuma Jaló), e 1 morto (o picador e guia permanente das NT Seco Camará, na altura ao serviço da CCS do BART 2917, e que do antecedente já tinha dado provas excepcionais de coragem e competência, tendo participado com a CCAC 12 em quase todas as operações a nível de Batalhão no Sector Ll).

Sob a protecçãodo helicanhão (que seguia para Mansambá no momento em que foi pedido o apoio aéreo), os 2 Agr regressaram ao Xime, com 2 Gr Comb do Agr B [1º e 2º da CCAÇ 12] a abrir caminho por entre a mata densa, 1 Gr Comb do Agr C [ 2715] a manter segurança à rectaguarda e os restantes empenhados no transporte dos feridos e mortos, tendo as heli-evacuações sido feitas numa clareira já perto de Madina Colhido e depois de percorridos mais de 5 Km, em condições extremamente penosas [No helicóptero vinha uma ou mais enfermeiras-paraquedistas].

Notícias posteriores [ não se indica a fonte...] admitiam que nesta emboscada o IN tivesse sofrido 6 mortos. Entretanto, desta reacção do IN contra a penetração das NT num dos seus redutos, concluiu-se que aquele foi excepcionalmente bem comandado porque:

(i) escolheu um local que por ser muito fechado dificultava a manobra;

(ii) utilizou pessoal em cima de árvores para ter uma melhor visão e comandamento sobre as NT;

(iii) tinha a retirada preparada com armas colectivas (morteiro, canhão s/r) que só se revelaram na quebra de contacto;

(iv) fez fogo de barragem, especialmente de LRockets, sobre o Gr Comb que seguia na vanguarda, permitindo lançar-se ao assalto.

O que o relatório do comandante da Operação, o segundo comandante do BART 2917, não faz (nem podia fazê-lo!...) era dar a mão à palmatória...


Durante este mês [de Novembro de 1970] a CCAÇ 12 continuou empenhada na segurança aos trabalhos de construção da estrada Bambadinca-Xime [a cargo da empresa TECNIL].

De 1 a 10 [de Novembro de 1970], o 2º Gr Comb esteve de reforço a Missirá juntamente com o Pel Caç 54, patrulhando e montando emboscadas na região de Sancorlã/Salà e margem do RCuio/RGambiel, com a missão de interceptar uma coluna de reabastecimento IN que, segundo notícias que não se vieram a confirmar, seguiria de Madina/Belel para a área de Bafatá.

Realizou-se ainda uma coluna logística até ao Saltinho.

Abreviaturas:

Agr = AgrupamentoBART = Batalhão de Artilharia
CART = Companhia de Artilharia
CCAÇ = Companhia de Caçadores
CCS = Companhia de Comando e Serviços
FA = Força AéreaGr Comb = Grupo de Combate
IN = Inimigo
LRockets = RPG, lança-granadas-foguetes
Mil = Miliciano
Mort = Morteiro
NT = Nossas Tropas
Op = Operação
Pel Caç Nat = Pelotão de Caçadores Nativos
PCV = Posto de comando volante (em geral, de avioneta Dornier)
R = Rio
s/r = (canhão) sem recuo
Sold = Soldado

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post anterior, de 26 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1317: Xime: uma descida aos infernos (1): erros de comando pagam-se caros (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P1317: Xime: uma descida aos infernos (1): erros de comando pagam-se caros (Luís Graça)


Portugal > Caldas da Rainha > 1968 > O futuro furriel miliciano Guimarães, de minas e armadilhas, está a tocar viola, rodeado de camaradas que, como ele, estavam a fazer a recruta no RI 5 das Caldas da Rainha. "Lá ao fundo, à direita e em último plano, uma carinha pequenina, é o Cunha".... Viria a morrer em combate, na região do Xime, na Op Abencerragem Candente, em 26 de Novembro de 1970; pertencia à CART 2715, unidade de quadrícula do Xime)

Foto: © David J. Guimarães (2005). Direitos reservados.


1. Na minha outra encarnação, quando eu fui o furriel miliciano Henriques, e estive na Guiné, entre Maio de 1969 e Março de 1971, no final da minha comissão, ainda em Bambadinca, escrevi a história da minha companhia, que era a CCAÇ 2590, ou melhor CCAÇ 12, uma companhia de nharros, que fazia parte da nova força africana com que Spínola sonhava ganhar... tempo (que não a guerra).

Devo dizer que o meu nome foi sugerido pelo meu Capitão - Capitão de Infantaria, do QP, Carlos Alberto Machado de Brito -, tendo como base a minha experiência, na vida civil, como jornalista... Devo acrescentar que tive acesso a todos os arquivos classificados da companhia, o que só foi possível com a cumplicidade de vários camaradas meus, de um dos sargentos (o Piça, o famoso Piça, minha senhora, para a servir! -, como ele, impecável e delicadamente, fazia questão de repetir, quando alguém do sexo oposto não percebia o seu apelido de família, tipicamente alentejano, e voltava a perguntar Como ?)... Com a cumplicidade até do meu próprio comandante, bom homem, que, embora assustado com o resultado final do trabalho que me encomendara, fechou os olhos à minha ousadia e até me deu um louvor...

Hoje eu estou em condições de compreener a sua delicada posição: devia estar já com os seus 37 ou 38 anos, com 3 comissões no ultramar (se não me engano) e à beira de ser promovido a major (em Janeiro de 1971, lembra-me o Humberto Reis).

Trinta e tal anos depois, em 1994, fui encontrá-lo, em Fão, Esposende, na casa de um dos nossos antigos alferes - o Carlão - no posto de coronel e confessei-lhe, candidamente, que tinha tomado a liberdade de distribuir, na época, uns tantos exemplares, clandestinos, aos tugas da companhia... De facto, ainda em Bambadinca, foram tiradas a stencil (recordam-se desta primitiva técnica de reprografia?) umas escassas dezenas de exemplares da história não autorizada da CCAÇ 12, antes de embarcarmos para a metrópole, em rendição individual (os nossos soldados africanos, esses, continuaram a servir a CCAÇ 12, muitos deles até ao final da guerra, aquartelados no Xime, desde 1973).

Tenho para com estes últimos um sentimento de gratidão e de reconhecimento, mesmo sabendo, na época, que eles estavam do lado errado da guerra e da história. Alguns, desgraçadamente, pagaram com a vida ou a liberdade o terem apostado no cavalo errado.

2. Vou republicar hoje, 26 de Novembro de 2006, o relatório da Op Abencerragem Cadente (que raio de nome esotérico!), desdobrando um texto que, de certo modo, dá o pontapé de saída a este blogue (ou mellhor, ao Blogue-Fora-Nada, que antecedeu o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné) (1)...

Fá-lo homenageando os nossos camaradas que tombaram na Ponta do Inglês: o furriel miliciano Cunha, o soldado Soares e os outros camaradas - cujs nomes não recordo - da CART 2715 (aquartelada no Xime) que morreram na Operação Abencerragem Candente, na madrugada de 26 de Novembro de 1970 (dias depois da invasão de Conacri, a 22, por uma força comandada por Alpoim Galvão e na qual participaram os meus vizinhos da 1ª Companhia de Comandos Africanos, estacionados em Fá Mandinga).

Quando publiquei esse texto - em 25 de Abril de 2005 -, eu tinha alguma dificuldade em me curvar perante a memória do Seco Camará, mandinga do Xime, embora reconhecesse que ele fora um valoroso e competente guia e picador das nossas tropas, durante anos e anos a fio.

Como muitos outros pobres diabos, o Seco fora também um mercenário, um colaboracionista, um torcionário, um homem para os trabalhos sujos da guerra: ele próprio me confessou um dia, com aquela autoridade e candura africanas de homem grande, que nos anos da política de terra queimada, da repressão brutal às populações do Xime que simpatizavam com (ou apoiavam) a guerrilha (Samba Silate, Poindon, Nhabijões...) , ele próprio era encarregue pelo capitão tuga do Xime (sic), para matar, à paulada (sic), em pleno mato, os elementos suspeitos, capturados...

Tenho dificuldade em fazer recuar esses tempos, mas é bem possível que sejam anteriores ao tempo do Governador e Comandante-Chefe, General Arnaldo Schultz (1965-1968),o mesmo é dizer, que devem ser do tempo dos seus antecessores: 1959 - 1962 António Augusto Peixoto Correia (1959-1962) e Vasco António Martínez Rodrigues (1962-1965).

No regresso ao quartel, o capitão, manga de bom pessoal (sic), pagava-lhe um sumol (sic)... O coitado do Seco Camarà, peça insignificante da máquina de guerra colonial, foi ao mesmo tempo um tenebroso carrasco e uma pobre vítima, como muitos outros guinéus, e nomeadamente os pertencentes aos grupos étnicos islamizados...

O Seco Camará morreu ingloriamente em 26 de Novembro de 1970, nesta operação que eu aqui evoco e em que participei. Recordo-o, ainda hoje, com o seu inseparável cachimbo e o seu ar de cão rafeiro... Nunca saberei se alguma vez se sentiu (ou poderia sentir) português. Sei apenas que foi um bravo soldado - ou melhor, auxiliar dos militares portugueses - e eu não posso julgá-lo, sumariamente, com base nos meus valores ou princípios éticos. É claro que também não vou absolvê-lo com base no relativismo cultural: o facto de ser mandinga, descendente de um povo de guerreiros e conquistadores, não lhe davam quaisquer direitos, e muito menos o direito de vida ou de morte...

3. Alguém, da população do Xime - que me desculpe o nosso amigo José Carlos Mussá Biai, que nessa altuta teria 7 anos! -, nos terá traído nessa noite fatídica. A nós e ao Seco Camarà. Ou se calhar nem foi preciso isso: 250 homens em armas são uma multidão ruidosa, a entrar e a sair de um quartel... No mato, na antiga estrada Xime-Ponta do Inglês, são uma cobra gigantesca, de quilómetro e meio...

De qualquer modo, onde quer que o Seco Camrá esteja, no céu ou no inferno dos mandingas, paz à sua alma!

4. Pertencente na altura ao 4º Grupo de Combate da CCAÇ 12 (não tinha uma posição fixa, era uma espécie de suplente, já que era um atirador de... armas pesadas de infantaria, numa companhia de intervenção que não tinha... armas pesadas), fui um dos que resgatei o corpo do furriel miliciano Cunha (que era de Braga, se não me engano). Gostava muito dele, éramos amigos. Tinha passado a noite de 25 para 26 na conversa com ele entre dois copos, no Xime, a fazer horas para a trágica saída na madrugada seguinte.

O segundo comandante do BART 2917 (não vale a pena citar o seu nome, já que ainda pertence ao número dos vivos) obrigara-nos a seguir o mesmo trilho da véspera: escassas horas depois, o Cunha estava morto mais quatro tugas e o guia e picador Seco Camará.

O Cunha, o pequeno e valoroso Cunha, ainda com o seu ar de criança tímida, era o único dos seis que não estava desfeito pelos rockets. Tinha apenas um fiozinho de sangue na testa: o primeiro tiro fora, seguramente, para ele que ia à frente da secção, juntamente com o Seco Camarà. A imagem que tenho dele, era que estava a dormir, exausto, no capim, quando cheguei à sua beira. Ainda lhe dei uma bofetada e sacudi-o energicamente:
- Acorda, meu sacana!

Como garante o Guimarães (da CART 2716, do Xitole), o Cunha que fez a recruta com ele e foi mobilizado para a Guiné no mesmo Batalhão (BART 2917), "deve estar no céu porque era um homem bom".

5. Nunca mais consegui esquecer essa maldita operação, em que até mesmo os meus soldados fulas, que eram bravos soldados, tiveram medo… Foi a maior emboscada que eu sofri, e também a mais mortífera que apanhámos na região do Xime. Mas não dei um tiro. Nunca dei um tiro, na Guiné, a não ser a um desgraçado de um jagudi (abutre) a que nem sequer felizmente acertei…

Recordo esta estória, em homenagem também aos que morreram e aos que sobreviveram, em Portugal, na Guiné e noutros teatros de guerra, aos homens e mulheres que contribuiram, de mil e uma maneiras, para que hoje nós possamos - pelo menos aqui - estar a falar de liberdade, a recordar a guerra e a fazer a paz connosco próprios, a praticar a liberdade com a mesma naturalidade com que respiramos...

6. Na elaboração da história da minha companhia (ex-CCAÇ 2590 e, depois, CCAÇ 12) que é também a história militar do Sector L1 / Zona Leste da Guiné entre meados de 1969 e o 1º trimestre de 1971, segui, em muitos casos, o teor dos relatórios de operações que eram feitos pelos alferes milicianos (com destaque para o Moreira) ou pelo capitão, passado pelo crivo da minha própria experiência como operacional ou do relato dos meus camaradas, furriéis milicianos...

Dentro dos constrangimentos do tempo e do lugar, procurei ser objectivo, recusando tanto quanto possível a tentação da hagiografia que era corrente na história de outras companhias independentes ou de companhias integradas em batalhões: "Fomos os melhores, chegámos, vimos e vencemos!"...

Nesta, como noutras operações, há passagens muito discutíveis como aquela em que se sugere que o IN sofrera baixas prováveis... Há aqui um branqueamento da situação, o que era frequente entre nós: depois da violentíssima emboscada de que fomos vítimas, ninguém estava em condições, físicas e psicológicas, de fazer o reconhecimento do local e, muito menos, de ir em perseguição dos guerrilheiros...

Seis mortos e nove feridos exigem, no mínimo, a afectação de dois grupos e combate (60 homens) para o seu transporte... Esta falsificação da realidade ou, no mínimo, o seu branqueamento era frequente entre oficiais milicianos e do quadro: enganavam-se uns aos outros, enganavam Bafatá (onde estava o comando da zona leste, o COP 7, se não me engano), enganavam Bissau (o quartel-general) e enganavam Lisboa (sede do Governo, não democrático, do país), que por sua vez enganava o Zé Portuga!...

Tudo isso acabava por ter consequências pesadas, para o pessoal no terreno, que era obrigado a executar operações mal planeadas e, por vezes, ainda pior executadas e comandadas...

De facto, não se pode ganhar uma guerra, escamoteando ou ignorando informação! Pessoalmente, eu já sabia isso, desde os meus quinze ou dezasseis anos...A verdade, trágica, terrível e humilhante, é que o IN destroçou ou neutralizou seis grupos de combate (2 agrupamentos), matou seis elementos das NT, feriu outros nove e ainda por cima levou-lhes as armas!... E só não levou os corpos porque houve ainda um resto de coragem física, de solidariedade e de determinação (outros chamam-lhe heroísmo).

No relatório da operação ninguém quis dizer o que era óbvio: os erros de planeamento da operação, as imprevidências, a imprepração da nossa tropa fandanga, a total incompetência e a arrogância militarista do major (periquito) que comandou a operação, lá de cima, arrogante, a partir do seu PCV... Que Deus lhe perdoe...Eu, que não sou Deus, não tenho o poder de perdoar; em contrapartida, não consigo esquecer - por muito que me esforce - essa descida aos infernos do Xime.

As duras palavras que lhe disse, a quente, à noite, no regresso da operação, na parada de Bambadinca, não as vou repetir aqui... Como as pedras que são lançadas contra alguém, essas palavras não têm regresso...mas só fazem sentido no contexto, de grande tensão, física e emocional, que era próprio daquela guerra...

Ainda hoje não consigo perceber por que é que fomos obrigados a fazer aquela operação - três dias depois da invasão de Conacri! - e sobretudo por é que cometemos tantos erros infantis... Na guerra, os erros de comando pagam-se carros...

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Notas de L.G.:

(1)Vd. post de 25 Abril 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)

Guiné 63/74 - P1316: A participação dos paraquedistas na Operação Ametista Real: assalto à base de Cumbamori, Senegal (Victor Tavares, CCP 121)



O ex-1º Cabo paraquedista Victor Tavares (BCP 12, CCP 121, Guiné 1972/74).

Fotos: © Victor Tavares (2006). Direitos reservados.

Texto do Vitor Tavares (1), com data de 15 de Novembro de 2006:


Operação Ametista Real - Assalto à Base de Cumbamori no Senegal

A 17 de Maio de 1973, a Companhia de Caçadores Paraquedistas 121 recebe ordem para se integrar na operação acima referida, tendo-lhe sido atribuída a missão de garantir a segurança de um corredor entre Ujeque e Guidaje, através do qual se processaria a retirada dos Comandos Africanos

Nesse mesmo dia, da parte da tarde, embarcamos em Bissau, em LDG, com destino a Ganturé [, na margem direita do Rio Cacheu, a sul de Bigene], aonde desembarcamos no início da tarde do dia seguinte, partindo de seguida em marcha apeada em direcção a Bigene.

Chegamos aí pelo meio da tarde. Logo de seguida partimos para executar as primeiras acções de patrulhamento e emboscadas, até ao final da tarde do dia 19, sem que o IN se tivesse revelado.

Neste mesmo dia, provenientes de Bissau, chegam as 3 Companhias de Comandos Africanos e o Grupo de Marcelino da Mata (2).

Entretanto as 3 Companhias de Comandos Africanos formam também os agrupamentos seguintes:

-Agrupamento BOMBOX, do Tenente Comando Zacarias Saiegh, comandado pelo Cap Comando Matos Gomes;

-Agrupamento CENTAURO, do Tenente Comando Jamanca, comandado pelo Cap Comando Raul Folques;

-Agrupamento ROMEU, do Tenente Comando Quiseco, comandando Cap Paraquedista António Ramos.

Neste último estavam integrados também o grupo de operações especiais COE, com 25 elementos, comandados pelo Alfero Marcelino da Mata, assim como o Major Comando Almeida Bruno [, hoje general,] que era o comandante desta operação.

Os agrupamentos iniciaram o deslocamento apeado para a operação às 24 horas com intervalo mais ou menos de uma hora entre eles. Pelas quatro da manhã, inicia o seu deslocamento a CCP 121, com destino ao corredor que pretendia manter.

Entretanto ainda com os Paraquedistas dentro da área aonde pernoitámos, as forças do PAIGC atacaram o destacamento de Bigene com uma precisão incrível (não falhavam uma granada), obrigando-nos a sair em marcha acelerada desta zona.

É meu entendimento que foi um erro este ataque ter sido feito pelas forças do PAIGC, uma vez que as nossas tropas já se encontravam na zona, pelo menos o agrupamento que saiu em primeiro lugar deve ter referenciado o local de onde a flagelação estava a ser feita. O dia clareava e a tensão aumentava. Os homens dos agrupamentos estavam já dentro do Senegal, ouvíamos de vez enquanto o roncar de viaturas não muito longe, e o tempo passava sem que se ouvissem tiros ou explosões.

A informação que tínhamos era que esta base de Cumbamori servia de base de apoio aos guerrilheiros que sitiavam Guidaje e que atacavam as colunas que tentavam reabastecer o mesmo, tendo aí concentrados grande quantidades de efectivos das suas melhores forças, assim como de armamento.

Era aqui nesta base que se encontrariam os comandantes deste sector, Chico Té e Manecas, dois dos melhores e mais temidos, a par de Nino Vieira, comandantes do PAIGC.

Pouco passava das 8 horas quando se começam a ouvir o barulho de dois aviões bombardeiros FIAT G-91, acabando estes por bombardear o objectivo, atingindo alguns paóis e provocando varias explosões. Inicia-se então, a partir desta altura, o assalto pelas nossas forças dos Comandos Africanos do agrupamento BOMBOX, e depois pelos restantes agrupamentos.

Estes, pouco depois dos primeiros rebentamentos, entraram ao assalto tendo pouco tempo passado entrado em combate directo com as forças IN que se prolongaram até cerca das 16 horas .

Os comandos, durante os contactos que tiveram e conforme iam avançando, iam destruindo arrecadações de material de guerra de toda a espécie, debaixo de fogo intenso e quase ininterrupto. Foi uma luta encarniçada.

Não quero deixar de referir que, enquanto nos encontravamos emboscados próximos de uma picada, passaram várias viaturas blindadas tipo Panhards.

Por volta das 18 horas regressámos ao destacamento de Bigene, onde nem chegamos a parar, seguindo para Ganturé.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores do Victor Tavares:

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida


(2) Vd. post de 16 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXV: Antologia (16): Op Ametista Real (Senegal, 1973) (João Almeida Bruno)

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1315: Parabéns a você: Fazer anos no mato: os azares do meu amigo Tony Levezinho (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Xime-Bambadinca > 23 de Novembro de 1969 > Na véspera dos seus 22 anos, o Tony Levezinho, furriel miliciano da CCAÇ 12, assiste, impotente, ao atascamento da autogrua Galion, que a Engenharia Militar mandou para Bambadinca... A solução foi passar a noite dos seus anos em plena bolanha ( de Samba Silate / Nhabijões, de má memória) a montar segurança ao monstro... (1)

Guiné > Zona Letse > Sector L1 > Bambadinca > Pelotão de Intendência > 1970 > A autogrua, Galion, a operar no cais de Bambadinca, no rio Geba Estreito. Foto gentilmente cedida pelo Luís Moreira, ex-Alf Mil Sapador da CCS do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72).


Foto: © Luís Moreira(2005). Direitos reservados.

Amigos & camaradas da Guiné:

1. Deixem-me hoje usar do privilégio de editor do blogue - do latim, priviligiu(m), de privus (privado, pessoal) + legem, lex (lei) > lei excepcional feita em favor de uma pessoa singular, um privado...

Refiro-me ao privilégio de (i) poder pôr entre parênteses o interesse colectivo da tertúlia, (ii) atrasar os ponteiros do relógio e (iii) abusar do meu tempo de antena - neste caso, de espaço de postagem - para fazer aqui uma homenagem a um amigo que hoje faz anos. O público e o privado não se devem misturar, mas acontece que o meu amigo também é camarada da Guiné e, mais do que isso, membro desta tertúlia. Convenhamos que não é dos mais activos (e, sobretudo, regulares), mas cumpriu as regras da praxe e figura, de pleno direito, na nossa fotogaleria.

Refiro-me ao António Levezinho (Tony, para os amigos). Faz hoje 59 anos (já lhe dei os parabéns pelo telemóvel) e vive, retirado, com a sua encantadora Isabel, na sua casa do Algarve, em Sagres. Ainda não fui lá visitá-lo, com muita pena minha e apesar da insistência dele. Sabem como é: as desculpas, estafadas, e sempre as mesmas, dos nossos desfasamentos de calendário, de agenda, das nossas vidas trocadas (uns que já se reformaram, outros que ainda trabalham).

Não me esqueço (nem eu nem o Humberto Reis) dos anos do nosso amigo Tony, não por que eu tenha a memória de elefante do Humberto, mas porque há 36 anos atrás, em 24 de Novembro de 1970, a folha do calendário dessa semana ficou para sempre impressa na matriz da minha memória...

Abreviando razões: houve uma sucessão de acontecimentos marcantes: (i) a 22 de Novembro de 1970, Conacri é invadida por forças anfíbias onde participam homens que nós conhecíamos há meses, e que eram nossos vizinhos (a 1ª Companhia de Comandos Africanos, com sede em Fá Mandinga, a Fá do Amílcar Cabral e do Jorge Cabral); (ii) nesses dias estivemos em estado de alerta e multiplicaram-se as acções de segurança e imediata, durante o dia e durante a noite; (iii) o Tony e o Humberto estiveram de serviço com o pelotão deles na Missão do Sono, em Bambadincazinha; (iv) os amigos mais próximos (ou os disponíveis) foram cantar-lhe os parabéns à meia noite, transportando com eles uma garrafeira ambulante; (v) a festa sobrou para a manhã seguinte: fomos todos (já não posso precisar quantos) a Bafafá, almoçar à Transmontana - um almoço bem regado, já que estávamos na fase do repouso do guerreiro...

O problema é que no dia seguinte, dia 25, pelas 7h da manhã, nós os três - eu, o Tony e o Humberto - mais outros 250 camaradas, estávamos a sair do Xime, para uma operação na área definida pelo Rio Geba- Rio Corubal-Buruntoni-Canhala... O resto já é sabido, está escrito no nosso blogue (2)...

De facto, foi a descida aos infernos do Xime... Regresso ao quartel, às 21h00, devido a dois casos de intoxicação alimentar, provocadas pelo mau estado das rações de combate (!), nova partida às 5h45 do dia 26, seguindo o mesmo trilho (!)... Cito a História da CCAÇ 12, de que eu próprio fui o relator:

(...) "Três horas depois, pelas 8.50h, já perto da Ponta do Inglês, o IN desencadearia uma violenta emboscada em L sobre a direita, precedida por um tiro isolado que foi confundido com um sinal de aviso duma eventual sentinela avançada, e que apanhou na zona de morte os 3 Gr Comb do Agr C [ CART 2715] e 1 Gr Comb (4º) do Agr B [CCAÇ 12].

"Os primeiros tiros do IN, especialmente de LRockets, atingiram mortalmente o picador e guia do Agr B, Seco Camará, que ia na frente, e os quatro homens que o seguiam, incluindo um graduado [furriel miliciano Cunha], tendo ferido gravemente outro. Com rajadas sucessivas de LRockets e armas automáticas o IN, fixando as NT, lançou-se ao assalto sobre os primeiros homens, mortos ou gravemente feridos, conseguindo apanhar-lhes as armas, e só não os levando devido a pronta reacção das NT.

"É de destacar aqui a acção heróica dos soldados Soares (CART 2715), que veio a ser mortalmente ferido, Sajuma (apontador de bazuca do 4º GR Comb/CCAÇ 12) que ficou ferido numa perna, e Ansumane (apontador de dilagrama, também do 4º Gr Comb/CCAÇ 12, ferido ligeiramente nas costas), que se lançaram ao contra-ataque, juntamente com outros camaradas e alguns graduados, a fim de quebrar o ímpeto do IN e de recolher os mortos e feridos.

"0 ataque durou cerca de 20 minutos, sendo a retirada do IN apoiada com tiros de mort 82 e canhão s/r que incidiram sobre a estrada, e especialmente sobre os 2 últimos Gr Comb (l° e 2º) da CCAÇ 12, assim como rajadas enervantes de pistola metralhadora, de posições que ainda não se haviam revelado, nomeadamente de cima das árvores" (...).

(...) "Em consequência da emboscada IN, uma das mais violentas de que há memória na região do Xime, pelo seu impacto sobre as NT, a CART 2715 [Xime] sofreu 5 mortos (l Furriel Mil) e 7 feridos, e a CCAÇ 12 teve 2 feridos (dos quais 1 grave, o Sold Sajuma Jaló), e 1 morto (o picador e guia permanente das NT Seco Camará, na altura ao serviço da CCS do BART 2917, e que do antecedente já tinha dado provas excepcionais de coragem e competência, tendo participado com a CCAC 12 em quase todas as operações a nível de Batalhão no Sector L1)" (...).

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 > 1970 > Furriéis Levezinho e Henriques, à civil... "Dois amigos para a vida"...


Foto: © António Levezinho (2006). Direitos reservados

2. Como se pode concluir, os aniversários do Tony (Levezinho), na Guiné - o 22º e o 23º - foram sempre celebrados em condições, no mínimo, insólitas. Eu Setembro do ano passado (1), eu tinha prometido reconstituir esses dias loucos (e trágicos) que se seguiram às copiosas celebrações do seu 23º aniversário (24 de Novembro de 1970, dois dias depois da invasão de Conacri e na véspera da Op Abencerragem Candente) ... Ainda não é desta, talvez por pudor, ou por falta de coragem...Mas as promessas são mesmo para se cumprir...

Hoje vou-me limitar a cantar-lhe os parabéns, em público, no nosso blogue, e dar-lhe aquele abraço caloroso de um "amigo para a vida"... As palavras são dele, extraídas de uma mensagem que ele me mandou já há tempos (11 de Maio de 2006) e que eu não publiquei na altura:

"Meu Velho AMIGO,

"Surpreendeste-me com o teu escrito a meu respeito (3), o qual me suscita o breve, mas muito sentido, comentário seguinte.

"Se por um lado tenho dúvidas quanto ao merecimento das palavras que usaste para a mim te referires, tenho, por outro, a GRANDE CERTEZA de nos podermos considerar DUPLAMENTE FELIZES, a saber: desde logo porque regressámos inteiros do pesadelo (isto apesar de, no meu caso, ter partido o polegar da mão esquerda, numa renhida partida de futebol na catedral de Bambadinca, conforme a foto com o Fernandes documentava); mas, sobretudo, por termos tido a oportunidade de trazer na bagagem AMIGOS PARA A VIDA.

"Mais do que qualquer recordação, mesmo daquelas, poucas talvez(?), que não pertencem ao rol das que se encontram arquivadas no cacifo da memória dosdias dramaticos que partilhamos, guardo daqueles tempos já distantes a plena convicção de que a minha (a nossa) guerra foi ganha, pelas amizades conquistadas.

"Por não ter dúvidas de ser este um sentimento comum de todos os tertulianos, aproveito para te FELICITAR e, ao mesmo tempo, AGRADECER (apesar da minha postura ser mais de voyeur) pelo empenho, trabalho, entusiasmo e muita qualidade que ao longo deste primeiro ano emprestaste a este ESPAÇO DE PARTILHA a que todos já nos habituámos, mesmo aqueles menos activos, como eu.

"BEM HAJAS. Tony Levezinho"

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 20 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CXCVIII: Recordar é viver ou...a memória de elefante do Humberto Reis (Humberto Reis / Luís Graça / António Levezinho)

(...) "Texto do Humberto Reis:


"(...) A Galion a carregar vacas no cais fez-me lembrar o episódio dela no percurso do Xime para Bambadinca. A Galion veio numa LDG [ Lancha de Desembarque Grande] desde Bissau até ao Xime. E daí para Bambadinca ia pelos seus próprios meios . Passou bem pelo destacamento da Ponte do Rio Undunduma, mas quando chegou a meio da bolanha a estrada não aguentou o peso e cedeu. Resultado, a Galion desequilibrou-se e ficou meio enterrada na bolanha. Julgo que isto se passou em Novembro de 69 (dia 24 ou 25 - aniversário do Tony). Tenho este episódio documentado mas, como era hábito naquele tempo, está em diapositivo" (...).

(...) "Comentário meu (L.G.):

"Humberto: O Tony diz que tu tens memória de elefante e eu rendo-me à evidência… Tu lembras-te de coisas do arco da velho que se passaram no cu de Judas… E se havia um sítio, no mundo, que podia ser o cu de Judas, a Guiné era seguramente esse sítio, esse buraco… Lá tudo se enterrava: na lama, no tarrafo, no rio, nas bolanhas e lalas, nas picadas, nos buracos das minas… E quase a sempre a cabeça... no chão! Até a mastodonte da Galion se enterrou no seu passeio do Xime a Bambadinca! (...).

"Texto do Tony (António Levezinho), também da CCAÇ 12:

"Que ninguém duvide! Na verdade o Humberto tem mesmo memória de elefante. Foi todo o dia 24 de Novembro [de 1969] (4) na tentativa desesperada de desatascar a Galion antes que a noite caísse. Os esforços revelaram-se infrutíferos e assim não tivemos outra alternativa que não a de convidar a mosquitada da bolanha a juntar-se a nós para comemorarmos todos (em silêncio, como a situação de emboscada impunha) o meu 22º aniversário.

"À falta de Champanhe serviram-se rodadas de Repelente que, a julgar pela sua ineficácia, funcionou como uma iguaria de entrada para os mosquitos, antes que estes chegassem à nossa pele, já depois de perfurarem até aquela capa de borracha que, creio, chamávamos ponche" (...).

(2) Vd. post de 25 Abril 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) (Luís Graça)

(3) (2) Vd. post de 9 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXV: Amigos para sempre (Tony Levezinho, CCAÇ 12)

(4) Tony: eu acho que esse episódio foi na véspera dos teus anos, ou seja, a 23... Passaste a noite (de 23 para 24), emboscado, mas nesse dia, já ao fim da tarde ou à noite, ainda deu para abrir o espumante: vê a foto inserida no post de 20 de Setembro de 2005, referido em (1)...

Mas isso também não é muito importante: não usávamos calendário... Por outro lado, tens suficientes estórias da Guiné - umas mais divertidas,temerárias ou loucas, outras mais tristes e dramáticas - para contar ao teu primeiro neto que há-de nascer em Janeiro de 2007, que é o meu mês, e que há-de ser um gajo porreiro como o avô materno, um grande ser humano como tu... Não me leves a mal estas (in)confidências e esta intromissão na tua vida privada: o problema é que as nossas estórias - quando tínhamos 21, 22 e 23 anos - estão todas irremediavelmente entrelaçadas... Bom regresso à tua de Ponta de Sagres, onde final tudo começou: a aventura dos Descobrimentos, o princípio, o meio e o fim do Império...Irei lá, seguramente, um belo dia destes, beber um copo contigo e com a tua Isabel...

Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: NPR Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)



Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Saltinho > Sinchã Sambel > Fevereiro de 2005 > A viagem de todas as emoções, começada pelo Paulo Santiago em Fevereiro de 2005, continua no nosso blogue... Hoje, reconstituindo, por exemplo, um raide nocturno ao Pilão... Uma noite de copos em Bissau era um dos poucos luxos que um tuga , a caminho do mato, se podia permitir: não eramos santos nem heróis, também não eramos meninos de coro nem escuteiros... Tínhamos vinte anos, muita adrelina, muita vontade de viver e nenhuma de morrer... Em Bissau, longe do Vietname, como eu costumava escrever...no meu Diário de um Tuga (*).

1. Na minha companhia (a CCAÇ 12) tínhamos uma espécie de acordo tácito, nós, os milicianos e o sargento Piça, que nos arranjava a guia de marcha.

Todos os pretextos era bons, médicos ou não médicos, para se fugir do Vietname: o mais vulgar, era ir a Bissau mudar o óleo (sic), tratar dos dentes, arranjar os óculos, ir a um consulta hospitalar, marcar a tão sonhada viagem de férias à Metrópole, beber uns copos, comer umas ostras e uns camarões, enfim, espairecer as ideias… De quem andava por Bissau, assim sem destino, dizia-se que estava ou era desenfiado... A verdade é que não havia muito mais sítios para um gajo fugir à merda da actividade operacional...

Obrigado ao Paulo por esta estória de copos - que felizmente acabou em bem (afinal, eramos todos bons rapazes e não nos comportávamos como ocupantes...) - e sobretudo por nos reconstituir o roteiro de Bissau by night... Na Orion, nunca pus os pés, mas a chungaria do Chez Toi e a tabanca grande do Pilão tive que as conhecer... Aliás, para além das ostras, dos copos e das verdianas, o que é que havia mais em Bissau ? (1)... Seguramente, que muito mais: nós é que não tivemos tempo (nem imaginação) para o descobrir...

Os protagonistas desta estória são o Paulo e os seus amigos: o comandante Rita, da Orion; um tenente da reserva naval, Alves da Silva; o Martins Julião, nosso tertuliano, alferes da CCAÇ 2701; mais o Cap Tomás, ajudante de campo do Com-Chefe...

 Se quisermos, devemos ainda acrescentar à lista mais três figurantes: o automóvel da D. Helena (Spínola); um alferes em fim de comissão, o Domingos; mais um tenente dos comandos, o Oliveira... Como amigos que são (ou eram) do Paulo, não são (ou não eram) gente de cerimónia... Além disso, são pessoas públicas e o Pilão era o mais público dos sítios públicos de Bissau... Enfim, uma estória que, naquela época, bem se poderia ter passado em Lisboa, entre o Cais do Sodré e o Bairro Alto... Uma estória, em todo o caso, digna de figurar numa antologia (portuguesa) das crónicas dos bons malandros... (LG)


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Campo de futebol > 1971 > "Na foto junta, eu e o Tomás estamos bem direitinhos... era de manhã" (PS)... O Cap Tomás, de pingalim, está atrás de Spínola, a quem o Paulo Santiago bate a pala.

Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Campo de futebol > 24 de Dezembro de 1971, vésperas de Natal > O Caco - alcunha por que era conhecido o Com-Chefe - passa revista. O Alf Santiago segue atrás com o Cap Tomás, ajudante de campo do general Spínola.

Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.




Guiné > Região de Tombali > Rio Cacine > 1971 ou 1972 > NRP Orion > O comandante Rita, "um grande homem, um grande comandante", na opinião de Pedro Lauret, oficial imediato da LFG Orion (1971/73). Na foto, vemos os dois na ponta do navio, a navegar no Cacine. O Cmdt Rita está em segundo plano. O Lauret segura os binóculos.

Foto © Pedro Lauret (2006) . Direitos reservados.


2. Continuação da série Estórias de Bissau (**)

Uma ida ao Pilão

por Paulo Santiago


Foi aí por volta de 30 ou 31 de Março de 1972 que os acontecimentos se passaram. Estava eu em Bissau, de passagem, para mais um mês de férias na Metrópole, embarcava no avião da TAP em 2 de Abril.

O NRP Orion (***) foi onde jantei naquela noite, a convite do Comandante Rita, sendo também convidado oTen RN [reserva naval] Alves da Silva, conhecido entre nós pelo petit-nom de Eduardinho. Não me lembro da ementa, mas foi excelentemente acompanhada pelos belíssimos néctares existentes na garrafeira daquele navio.

O Martins Julião estava em Bissau a chefiar a comissão liquidatária da CCAÇ 2701 [, Saltinho, 170/72]: sabendo que me encontrava a bordo da Orion, apareceu no fim de jantar, ainda a tempo de beber uns uísques.

Por volta da meia-noite, ou ainda mais tarde, resolvemos ir ao Chez Toi, um cabaré chungoso, o que se chama agora casa de alterne. Apanhámos um táxi no porto e lá seguímos para a má vida. O Rita, como habitualmente, ainda poderia beber mais uma garrafa nas calmas, eu, o Alves da Silva e o Julião já estávamos um pouco mal tratados. O cabaré estava repleto, já não cabia mais ninguém. Convencemos o empregado a trazer-nos uma Old Parr, mais quatro copos e ali ficámos encostados ao muro a dar conta da garrafa.

Subitamente chega um carro em alta velocidade, Peugeot 404 preto, que faz uma travagem maluca ali em frente, e donde sai o Cap Tomás, ajudante do Caco. Vinha bastante encharcado, mas deitou a mão à nossa garrafa bebendo uma boa golada. A única pessoa que ele conhecia bem era o Rita. Queria ir para as gaijas, não sei fazer o quê, naquele estado. Convenceu o Comandante e lá entrámos os quatro para o 404, era o carro da D. Helena [Spínola], onde o único meio sóbrio era o meu amigo Rita.

Seguimos em direcção ao Pilão, com o Tomás a fazer uma condução à maluca. Falou numa cabo-verdiana que nenhum de nós conhecia, que ficaria perto da casa da Eugénia, essa conhecia eu bem. Corremos imensas ruas e ruelas do Pilão, eram tantos os saltos que o carro dava que o Rita já dizia estar a apanhar mais pancada que numa tempestade no mar. A determinada altura, uma das rodas do carro cai num buraco com grande violência, ouve-se um barulho de latas e ficamos com menos luz. O Tomás pára o Peugeot e símos para verificar o sucedido. Com a pancada, um dos faróis saltara do encaixe, ficando virado para o solo, preso pelos fios de ligação.

Nenhum problema, continuamos às voltas, à procura das gaijas que nenhum conseguia dizer onde ficavam e o farol acabou por cair, ninguém soube onde. Aí pelas três da manhã, chegamos a um local do Pilão onde se encontrava um grande aglomerado de pessoas, em estado de grande exaltação. Paramos, saímos do carro e vemos no meio daquele maralhal o Alf Mil Domingos, de braço engessado ao peito, prestes a levar, na melhor das hipóteses, uma grande carga de pancada.

O Comandante Rita, graças à sua estatura, vai furando, connosco atrás até chegarmos
ao Domingos, também de cabeça perdida. O que se passara?
- O caralho do Oliveira trouxe-me para aqui, bateu à porta daquela gaja, ela diz que está ocupada, o cabrão manda um pontapé na porta, rebenta-a, a tipa grita, começa a juntar-se este maralhal e o gajo deixou-me sózinho.

Foi complicado acalmar aquela gente mas conseguiu-se. Foi mais um passageiro para o maltratado 404. O Tomás ficou no Palácio e, nós os cinco, viemos beber mais um copo ao Orion. O Domingos embarcava nessa manhã para Lisboa, em fim de comissão.

PS - O Oliveira era Tenente dos Comandos. Pertencera à 26ª e estivera em Fá com o Miquelina Simões a formar a 2ª CCA [Companhia de Comandos Africanos]. O Domingos fora Fur Mil na 4ª CCmds em Moçambique e Alf na 26ª, até apanhar uma porrada e ser transferido para Teixeira Pinto onde teve um acidente do qual resultou um braço partido. Tive com ele várias histórias.

Paulo Santiago
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(...) "Decididamente não queria falar-te de mulheres (e, muito menos, das brancas que, aqui, no cu do mundo, povoam os nossos delírios palúdicos)… Mas como não, se elas são o único antídoto contra a angústia da morte ?!... As paredes das nossas casernas no mato estão forradas de posters de gajas nuas, loiras, de olhos azuis, formas esculturais e pele acetinada, que é “para um gajo não se esquecer da carne branca” (sic)…
"Em contrapartida, a pomada antivenéria (e, claro, a penicilina, em doses de milhões) é o que mais se gasta nos nossos postos de caserna. O bordel é talvez a única instituição castrense verdadeiramente respeitável… Mas se os franceses mandavam para a Argélia putas de campanha juntamente com os seus legionários, nós, tugas, não temos esse problema: fornicamos sem preconceitos raciais, ou não fossemos “um país, muitos povos, uma só Nação”! (...).
18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

(***) Sobre a LFG Orion, vd. os seguintes posts:

31 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)


22 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1202: Ganturé, Rio Cacheu, Maio de 1973 (Pedro Lauret)


5 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1151: Resposta ao Manuel Rebocho: O papel do Orion na batalha de Guileje/Gadamael (Pedro Lauret)


4 de OUtubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1150: Carta a Pedro Lauret: A actuação do NRP Orion na evacuação das NT e da população de Guileje, em 1973 (Manuel Rebocho)


2 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1143: Parabéns, comandante Pedro Lauret, é uma honra tê-lo a bordo (Paulo Santiago)


1 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1137: Do NRP Orion ao MFA: uma curta autobiografia (Pedro Lauret, capitão-de-mar-e-guerra)

Guiné 63/74 - P1313: Estórias cabralianas (14): Missirá: o apanhado do alferes que deitou fogo ao quartel (Jorge Cabral)

Guiné > Zona Leste > Estrada Xime- Bambadinca > 1969 > O Cap Carlos Brito, da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71). Era uma um homem afável e civilizado no trato. Com os seus 37 anos, e três comissões no Ultramar, foi tão explorado pelo comando do Sector L1 como os seus milicianos e os seus soldados da CCAÇ 2590/CCAÇ 12. No final da comissão, lá ganhou, com justiça, os galões de major. Em Fevereiro de 1971.

Foi ele - o "bom do major Brito" - que avisou, no Xime, o Alf Mil Jorge Cabral, do Pel Caç Nat 63, da chegada do novo comandante do BART 2917, militarista, aconselhando-o a cortar as suíças farfalhudas que trazia das férias em Lisboa... Carlos Brito é hoje coronel: espero que ele esteja bem de saúde e que um dia destes ainda possa aparecer por aqui na nossa tertúlia... Revi-o apenas em 1994, em Fão, Esposende .(LG)

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.
Mais um short story (1) do nosso amigo e camarada Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71.


Calores femininos, fogo em Missirá

por Jorge Cabral

Julgo que aconteceu em Março [de 1971]. O dia decorrera em Alegria. Chegara a Missirá uma arca frigorífica a petróleo, oferta do Movimento Nacional Feminino (2), e cedo começaram as libações.

Seriam três ou quatro da manhã, sou abruptamente despertado. Tiros (?). Rebentamentos (?). Fogo! Saio do abrigo nu, e deparo com meio quartel a arder.

Ataque nunca podia ser! O Tigre já estava na Metrópole, Missirá era agora um oásis de paz, vigorando um tácito pacto de não-agressão (3).

Tinha sido a arca… Incendiando-se, provocara a explosão das latas de conserva e das garrafas, e por simpatia, das munições e das granadas, que se encontravam na arrecadação, contígua à cantina.

Alvoraçou-se Bambadinca. Recebi logo uma mensagem a prometer ajuda. E respondi: "Intensidade dos calores femininos arrasaram sólidos e líquidos. Reforços sim, mas bebíveis”. Não sei o que terá pensado o Polidoro Monteiro (4).

Creio, aliás, que uma empatia mútua se havia estabelecido, quando nos conhecemos, em Fevereiro [de 1971].

Chegara de férias e no Cais do Xime, o bom do Major Brito (5) avisara-me:
- Temos um novo Comandante, muito militarista. Não se apresente assim.- É que eu deixara crescer umas farfalhudas suíças que se uniam ao revirado do bigode. Por precaução fui ao quartel do Xime rapar a cara.

Entretanto a Coluna partiu…Meti-me ao caminho a pé, de farda de passeio e com uma mala na mão. Depois de Amedalai, encontrei um ciclista transportando uma velha e duas galinhas, a quem pedi boleia. E assim, tal como na história do velho, do rapaz e do burro, nos fomos revezando, entrando porém em Bambadinca todos na bicicleta, mais as galinhas, cena que foi presenciada pelo Polidoro, que já havia sido alertado para o meu desaparecimento.

Julgo que o Comandante, naquele momento, terá concluído pela impossibilidade de me recuperar, mas o certo é que o meu bizarro comportamento durante os últimos seis meses, foi por ele sempre tolerado.

... O impacto do ataque e do fogo, ou a estranheza da mensagem, chegou a Nova Lamego, e logo na manhã seguinte poisou em Missirá um helicóptero. O Coronel, Comandante do CAOP 2, vinha inspeccionar. Perguntou-me quanto tempo levava de comissão, na altura vinte e dois meses, se tinha problemas com as cargas, e afiançou-me ser impossível uma arca incendiar-se. Claro que instaurou o competente processo de averiguações e o boato correu: havia um alferes tão apanhado que deitou fogo ao quartel.

A minha inocência era, porém, óbvia!

- Apanhado, sim e sempre, mas nunca irresponsável - concluiu mais uma vez S. Polidoro.

Jorge Cabral

______

Nota de L.G.:

(1) Vd. último post da série,28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1128: Estórias cabralianas (13): A Micá ou o stresse aviário (Jorge Cabral)

(2) Sobre a história do Movimento Nacional Feminino (que era muito gozado pela tropa), vd. depoimento da sua fundadora e líder, a Cecília Supico Pinto.

(3) Tigre [de Missirá]: referência à alcunha do Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, que regressou à Metrópole, depois de acabada a su comissão, antes de finais de 1970. O Pel CaçNat 63, comandando pelo Jorge Cabral, esteve em Missirá posteriormente.

(4) O último comandante do BART 2917 , sedeado em Bambadinca (1970/72). Spinolista, era considerado um oficial superior que gozava de respeito e prestígio entre os milicianos e as praças... Infelizmente já não está entre nós, ao que me disseram alguns membros da nossa tertúlia.

(5) O "bom do major Brito", em Fevereiro de 1971, só podia ser o antigo capitão Carlos Brito que comandou a CCAÇ 12 durante a nossa comissão (Maio de 1969/Março de 1971)... Ele foi promovido a major ainda no nosso tempo, - penso que justamente em Fevereiro, na altura da chegada, ao BART 2917, do tenente-coronel Polidoro Monteiro - e provavelmente ficou mais uns tempos em Bambadinca. Nós, milicianos e especialistas, fomos todos rendidos individualmente... De facto, não tenho ideia de o Major Carlos Brito ter embarcado connosco, no Uige, no regresso da casa...

Guiné 63/74 - P1312: Ponte dos Fulas: Estão ali uns gajos que me querem matar (Joaquim Mexia Alves, CART 3492)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > Destacamento da Ponte dos Fulas > CART > 1970 > Uma coluna logística, vinda de Bambadinca, passa pela Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom, a caminho do Xitole (CART 2716, 1970/72).

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.













Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xitole > Destacamento da Ponte dos Fulas > CART 3492 > Março de 1972 > Aqui viveram o Alf Mil Mexia Alves e os homens do seu Gr Comb durante várias semanas... Este como muitos outros destacamentos e aquartelamentos na Guiné seguiam um plano de construção e manutenção incrementalista: que cada unidade que por lá passava ia acrescentando um bidão, uma vala, uma fiada de arame farpado, um telhado de zinco, uma mesa, um banco... Este destacamento era uma espécie de guarda avançada do posto administrativo, tabanca e aquartelamento do Xitole, bem como da ponte sobre o Rio Pulom, imprescindível para manter operacional a estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho. (LG)

Fotos: © Joaquim Mexia Alves (2006)


Texto enviado em 10 de Outubro de 2006, pelo nosso camarada Joaquim Mexias Alves, ex-alferes miliciano de operações especiais, que no período de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973 foi pertencendo sucessivamente à CART 3492 (Xitole / Ponte dos Fulas), ao Pel Caç Nat 52 (Bambadinca, Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e . por fim, à CCAÇ 15 (Mansoa ).


Caro Luís Graça: Anexo umas fotografias da Ponte dos Fulas (1), destacamento do Xitole.

Numa delas vê-se o torreão, à entrada da ponte, onde ficava sempre uma secção do Pelotão a montar segurança 24 horas.

Fui o primeiro da CART 3492, logicamente com o meu Pelotão, a ocupar este destacamento em Março de 1972.

Ao que sei, foi ali o primeiro ataque que o BART 3873 sofreu na Guiné, precisamente nesse mês de Março.

A coisa não teve muita importância, nem consequências, mas lembro-me de ter tido um pensamento estranho, mas muito realista, qualquer coisa como isto:
- Afinal é verdade! Estão ali uns gajos que me querem matar!!!

As condições de vida eram excelentes, como com certeza atestaram muitos dos nossos camaradas que por lá passaram.

Lembro-me sobretudo da bolanha em frente, com umas árvores, que me davam sempre a insegurança de saber que seria o local óptimo para uma flagelação ao destacamento.

Junto ao destacamento, do lado esquerdo da estrada, no sentido para Bambadinca, e para dentro da mata, tive uma forte emboscada que contarei noutra oportunidade.

Abraço do
Joaquim Mexia Alves

_________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 17 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVI: De Lisboa para o Xitole, com amor (Humberto Reis)

(...) "Desde Novembro de 1968 a Agosto de 1969, o itinerário Bambadinca-Xitole esteve interdito. Nessa altura, uma coluna logística do BCAÇ 2852, no regresso a Bambadinca, sofrera duas emboscadas (uma das quais, a primeira, com mina comandada), a cerca de 2 km da Ponte dos Fulas, na zona de acção da unidade de quadrícula aquartelada no Xitole (CART 2413). A coluna prosseguiu com apoio aéreo.

"Nove meses depois, a 4 de Agosto de 1969, a CCAÇ 12 participou na reabertura desse itinerário, que era absolutamente vital para as NT (aquarteladas em Mansambo, Xitole, Saltinho...). Na Op Belo Dia, participou o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (o pelotão do Humberto Reis e do Tony Levezinho) com forças da CART 2339 (Mansambo) - a que pertencia o Carlos Marques dos Santos - formando o Destacamento A. Nessa operação, não foram encontradas minas nem abatizes no itinerário mas o IN emboscou 1 Gr Com do Dest B, constituído por forças da CART 2413 do Xitole, na Ponte dos Fulas, quando as NT estavam a reabastecer-se de água (...).

Comentário do David J. Guimarães (ex-furriel miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole (1970/1972), e pertencente ao BART 2917, sediado em Bambadinca, cometado uma das fotos do Humberto Reis:

" (...) Efectivamente lá ao fundo da fotografia vê-se bem o Fortim, junto à ponte, e em cima dela pelo que vejo é a primeira viatura militar que está na foto.

"[Essa] fotografia foi tirada do ponto mais alto do destacamento da Ponte dos Fulas. Quem tirou a fotografia [o Humberto Reis] tinha um abrigo à sua esquerda e mais atrás o local onde comíamos, reuníamos, limpávamos armas, conversávamos, etc. Era um coberto ao ar livre...

"(...) A estrada passava pelo meio deste acampamento onde nós só estávamos para guardar a ponte sobre o rio Pulom (Ponte dos Fulas). Era um local isolado. Tínhamos um bem: não saíamos em patrulhamento.

"Tínhamos montadas duas Metralhadoras Pesadas Bredas .. Uma dentro do Fortim e outra bem cá em cima junto ao coberto acima referido ... Essa estava apontada para a zona do Xitole, que distava 3 Km dali....

"Foi aqui que comecei a minha comissão no mato, pois o 3º Grupo de Combate a que eu pertencia, foi por sorteio o que calhou ir para ali ao 3º mês... De notar que os Morteiros do Xitole também protegiam aquela zona, estando perfeitamente com orientações para aquela direcção - bem mas isso era com os tipos das armas pesadas. Nunca tivémos ali nenhum ataque e ainda bem, senão tenho a sensação de que estaria aqui a contar outra história ou como ex-prisioneiro ou então... estaria com o Cunha, agora, no outro mundo...

"As colunas para nós eram um espectáculo mesmo (2)... Não mais que isso, pois nada fazíamos senão vermos a passar os carros todos para um lado e, depois ao fim da tarde, para o outro ... Até ao próximo mês... E lá ficavamos nós na Ponte dos Fulas... No meio do silêncio da savana. A beber uns copos, claro...

"Diariamente do Xitole deslocava-se lá um Pelotão que nos ia levar géneros ao almoço e ao jantar... Note-se que tinhamos a noção exacta de que a área circundante e a zona entre o Xitole e a cerca deste destacamento - eram terra de ninguém onde o IN andaria mais ou menos à vontade...

"O único civil que lá recebíamos era o Mamadu, um pescador, bom homem, bem alto ... e que já morreu".

(2) Vd. posts de:

20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho (Luís Graça)

11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXX: As heróicas GMC e os malucos dos seus condutores (CCAÇ 12, Septembro de 1969) (Luís Graça)