Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 31 de outubro de 2007
Guiné 63/74 - P2232: PAIGC: O Nosso Livro da 2ª Classe (2): O Morés e os amigos da Europa do Norte (Luís Graça / Paulo Santiago)
Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > Uma escola numa "região libertada". Imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson (com a devida autorização do Nordic Africa Institute, Upsala, Suécia). A fotografia não traz legenda. Tudo indica que tenha sido tirada na Guiné-Conacri, numa base de rectaguarda do PAIGC, ou mesmo em Conacri, onde havia desde Março de 1965 uma escola-internato para os filhos dos guerrilheiros.
No interior, nas "regiões libertadas", não havia estruturas, escolas, hospitais ou outros equipamentos sociais, de pedra e cal... Pela simples razão, que eram um alvo fácil para a aviação portuguesa, e porque eram difíceis os caminhos que levavam às bases de rectaguarda, tanto no Senegal como na Guiné-Conacri. Além disso, sabemos que eram duríssimas as condições de vida tanto das populações controladas pelo PAIGC como pelos guerrilheiros... A propaganda para consumo externo, naturalmente, contava outra história... Tanto a propaganda do PAIGC como das autoridades portuguesas da época.
Fonte: Nordic Africa Institute / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)
Guiné > PAIGC > Novembro de 1970 > Uma escola de mato, algures numa "Região Libertada".
Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)
Reprodução da Lição nº 8 - Morés, pp. 28-29.
Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.
Um exemplar deste manual escolar do PAIGC, O Nosso Livro - 2ª Classe, foi-me enviado, pelo correio, pelo Paulo Santiago (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72) (1). Estou à espera que ele me conte onde o encontrou: possivelmente no decurso de uma operação, num zona de controlo do PAIGC, no triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, junto ao Rio Corubal.
O livro foi elaboradao e editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné (sic). Tem o seguinte copyright: © 1970 PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)...
Como já referimos (1), a primeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares, tendo sido impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB.
Não é novidade para ninguém que a Suécia e a Holanda foram dois países europeus ocidentais que apoiaram muito o PAIGC, durante a guerra de guerrilha, não só politica e diplomaticamente, como em termos materiais (nomeadamente, no campo da educação e saúde).
A foto reproduzida acima foi tirada pelo fotógrafo norueguês Knut Andreasson que juntamente com uma delegação sueca (tendo à frente a antiga líder do parlamento sueco, Birgitta Dahl) visitou as "regiões libertadas" da Guiné-Bissau, em Novembro de 1970.
Segundo o sítio da Nordic Africa Institute (uma agência dos países nórdicos, com sede na Suécia), esta visita deu-lhe as a oportunidade de falar com Amílcar Cabral, em pleno palco da luta pela independência, e ficar a conhecer melhor o PAIGC, a guerrilha e a sua implantação no terreno. Andreasson e Dahl publicaram mais tarde um livro em sueco sobre essa viagem. Andreasson, por sua vez, realizou uma exposição fotográfica e publicou um álbum fotográfica sobre esta visita. A maior parte das fotos deste período foram doadas ao Nordic Africa Institute pela viúva de Andreasson.
A exposição foi doada à Fundação Amílcar Cabral pelo Nordic Africa Institute, sendo apresentada por Birgitta Dahl, a antiga líder do Parlamento Sueco, por ocasião das celebrações do 80º aniversário de Amílcar Cabral, em Setembro de 2004.
Retomando as imagens correspondentes à Lição nº 8 de O Nosso Livro - 2ª Classe, percebe-se a importância que o mítico Morés (2) teve na fundação na nacionalidade guineense, na formação ideológica e na motivação dos combatentes do PAIGC. Porquê o Morés e não Samba Silate ou o Poidon, na região do Xime ? Pela simples razão de que o Morés - uma aldeia a nordeste de Mansoa - ficava em pleno coração do Oio, o coração da resistência dos oincas contra o Capitão Diabo, Teixeira Pinto, que os massacrou em 1913.
O Morés, na memória e no imaginário dos povos do Oio, foi pois local de martírio e centro de resistência. Para os portugueses, era também um nome que se soletrava com um misto de admiração e de temor...
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 27 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2221: PAIGC: O Nosso Livro da 2ª Classe (1): Bandêra di Strela Negro (Luís Graça / Paulo Santiago)
(2) Vd. post de 4 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1920: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (A. Marques Lopes / António Pimentel) (3): O mítico Morés
(3) Vd. post de 20 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1615: O Capitão Diabo, herói do Oio, João Teixeira Pinto (1876-1917) (A. Teixeira Pinto)
terça-feira, 30 de outubro de 2007
Guiné 63/74 - P2231: Blogoterapia (34) : Os Ieros Jaus que trouxemos na nossa memória pisada (José Morais)
Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.
Mensagem, com data de 19 de Setembro, de José Morais, um camarada do qual só sabemos que também andou por aquelas terras. Fica o nosso convite para se juntar a esta tertúlia ou Tabanca Grande. vb
fixação de texto: vb
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Assunto - Iero Jau
[Luís Graça]:
Numa deriva pela Net, por razões profissionais, fui parar ao seu blogue, onde acabo de ler o seu belíssimo texto/poema Descansa em paz, Iero Jau (1).
Não pude deixar de pensar, enquanto lia devagar, com tempo bastante para criar fugazmente dentro de mim a ilusão de recuperar o tempo (perdido), que todos nós, os que passámos por lá, trouxemos na nossa memória pisada o nosso Iero Jau...
Deixe-me também dar-lhe os parabéns pelo excelente blogue que criou e mantém.
É certamente um "lugar de [re] encontro" para muitos de nós, lugar de reflexão sobre a saga que nos coube viver de um século para o outro, entre continentes, nós que, pelo ADN que invoca, pertencemos, queiramos ou não, a este povo português...
Cordialmente,
José Morais
Assessor DGIDC NCI
213.934.603
PS - Adorei a sua «invenção» Herr Spínola!
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Nota do co-editor vb:
(1) Vd. post de 14 Outubro 2005. 10 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)
Descansa em paz, Iero Jau
Descansa em paz, Iero Jau
A guerra.
Essa coisa tão primordial que é a guerra.
Que estaria inscrita no teu ADN,
Segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução
Por outros meios,
Dirão os entomólogos,
Especialistas em insectos sociais,
Para quem a morte de um
Ou de um milhão
De formigas ou de seres humanos,
É-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
Um projecto de ADN
Musculado.
Para mim, a guerra é
A aprendizagem da morte.
Aos vinte e dois anos.
É a inocência que se perde
Para sempre
Ao ver morrer pela primeira vez
Um homem, a teu lado.
É o impossível luto.
É a descoberta do mal absoluto.
Fight or flight.
Não precisei de fugir nem de lutar.
Recusei o egoísmo genético.
Recusei a lógica absurda
De matar ou morrer.
Recusei o cinismo.
Recusei a fria e calculista resignação
Com que se juntam e amortalham
Os cadáveres seguintes.
E se contam nas paredes da caserna
Os dias que faltam para a peluda.
Trinta e tal anos depois,
Venho dizer-te
As palavras que ninguém te disse
No teu grotesco enterro:
- Descansa em paz, Iero Jau,
Meu herói!
Soldado atirador
Do 2º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
Que virá mais tarde a chamar-se
CCAÇ 12.
Companhia de tropa-macaca,
A minha companhia,
Os meus camaradas,
O meu bando de primatas sociais,
Territoriais, predadores.
Fazíamos parte da nova força africana
De Herr Spínola, o prussiano,
Como eu lhe chamava,
Ao nosso Comandante-Chefe.
Não, não ligues,
São outros contos, outras estórias,
Outros ajustes de contas
Com as nossas doridas memórias.
Dscansa em paz,
Iero Jau,
Debaixo do poilão secular
Na tua tabanca,
No chão fula,
Belíssimo poilão de uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Julgo que eras do regulado de Badora.
Ou seria Cossé,
Lá para os lados de Galomaro ?
Desculpa-me ter esquecido
O nome da tua tabanca.
E a cara dos teus filhos
E o rosto das tuas mulheres,
Agora órfãos e viúvas,
Sozinhos neste mundo.
Os teus campos estão tristes e inférteis.
Já não dão o milho painço nem o fundo,
Nem a mancarra
Nem a noz de cola.
Os homens partiram para guerra.
Voltam agora numa caixão de pinho.
Restam os macabros jagudis,
Poisados no alto da tua morança,
Cheirando a morte,
Pressagiando a desgraça
Sete de Setembro de 1969.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia (2).
Morreste em linha.
Aprumado como o teu poilão.
No assalto a um aquartelamento temporário do IN,
Próximo da Ponta do Inglês.
IN ? Que estranho termo ou expressão…
Uso-o por força do hábito,
Por comodidade,
Por lassidão,
Por economia de análise.
Curioso, nunca soube a tua idade.
Não tinhas bilhete de identidade
De cidadão português.
Eras um fula preto, um fula forro,
Não creio que fosses futa-fula.
Mas eu levei-te a enterrar na tua aldeia,
Mais os teus camaradas,
Que foram dizer-te o último adeus.
Com honras militares, tiros de salva,
E a bandeira verde-rubra dos tugas
Por cima do teu caixão.
De pinho.
Do verde pinho de Portugal.
Nem isto te deixaram fazer
À maneira dos teus.
Portugal ? Ainda te lembras,
Os senhores que vieram do norte
E do lado mar.
Não, já não tens que saber de geografia.
Nem de história. Nem de geopolítica.
No sítio onde moras, debaixo do teu poilão.
Mas eu, mesmo ao fim destes anos todos,
Eu deveria saber o nome da tua aldeia,
No chão fula.
O teu nome, esse não esqueci,
Iero Jau.
Esqueci foi o lugar onde nasceste,
Talvez Sinchã ou Sare qualquer coisa,
Mas faz mal.
O que interessa é que chorei por ti,
Confesso que chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
Teu irmão,
Pela mão.
E que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Não comias carne de porco
Nem bebias água de Lisboa.
Eras apenas um guinéu,
Um nharro,
Soldado-atirador
De 2ª classe.
Ganhavas 600 pesos de pré.
Um saco de arroz por mês
Para alimentar a tua família.
Para mim, eras apenas um homem,
Da espécie Homo Sapiens Sapiens.
A única que chegou até aos nossos dias.
O que primeiro que eu vi morrer a meu lado.
Nunca mais chorei por ninguém.
Chorei por ti, Iero Jau.
Chorei de raiva.
Nascemos meninos,
Mas fizeram-nos soldados.
Azar o meu e o teu,
Por termos nascido
No sítio errado,
No tempo errado.
Imagino-te puto
À volta da fogueira,
Na morança do marabu ou do cherno
Da tua tabanca,
Decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas
Que eu trouxe da tua terra,
E que eu guardo na minha memória,
São os meninos à volta da fogueira,
Soletrando tabuínhas em árabe.
Lembro-me de quereres aprender
As letras dos tugas
Para poderes ser soldado arvorado
E um dia chegares a cabo.
E de repente, o capim.
O capim alto.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue.
Pobre Iero,
Morto por um dilagrama dos nossos.
Alguém branqueou a tua morte.
Alguém salvou a honra da companhia.
Um dilagrama rebentou no ar,
Na tua cara.
Acidente de serviço
No auge da batalha,
Quando avançavas em linha,
No assalto ao acampamento
Do IN,
Levando pela corda
O teu turra, o teu guia, o teu prisioneiro,
Ainda mais jovem do que tu.
Malan Mané, mandinga (3),
Tão crente como tu,
Tão observador dos preceitos corânicos
Como tu, meu querido nharro.
E agora, Iero,
Que foste poupado
À humilhação da derrota
E não viste o teu país
Sentar-se de pleno direito
À mesa do mundo...
Que farias tu com esta independência
Contra a qual lutaste
Sem querer,
Sem saber,
Sem poder ?
Onde estarão os teus filhos, e as tuas mulheres ?
E os teus netos ?
E os homens grandes da tua tabanca de Badora ?
E os líderes do teu povo
Que te obrigaram a combater ao lado dos tugas ?
Herr Spínola, o homem grande de Bissau,
Esse já morreu há uns anos atrás.
Não lês os jornais,
Não chegaste a aprender o alfabeto latino
E a juntar as letrinhas e ler,
Com a torre de Belém ao fundo:
- Esta é a minha pátria amada…
Pois é, o homem grande de Bissau morreu,
Não de morte matada, como a tua,
Mas de acordo com a lei natural das coisas.
Quanto ao teu régulo,
Devem-no tê-lo miseravelmente fuzilado
Na parada de Bambadinca,
O poderoso régulo de Badora,
Tenente de milícias,
Que havia trocado o cavalo branco
Da gesta heróica do Futa Djalon,
Por uma prosaica motorizada japonesa
De 50 centímetros cúbicos...
Dono de centenas cabeças de gado
E de uma harém de cinquenta mulheres,
Uma em cada aldeia de Badora…
Dizia-se que o puto Umaru
Era filho dele,
O Umaru e mais soldados da CCAÇ 12.
Hoje os heróis do passado sucumbem
Sob o peso das cruzes de guerra.
Ou pedem esmola nas ruas de Bissau,
Tal como os teus filhos e netos.
Ou morrem de desespero e insolação
Às portas do templo da deusa Europa,
Em Ceuta e em Melilla,
Em Lisboa ou em Paris.
Que voltas o mundo deu, meu soldado,
Desde esse dia já distante
Em que a tecnologia da guerra
Ou a lotaria do ADN
Te ceifou a vida.
Porquê tu, meu herói,
Três meses depois de jurares bandeira
E te comprometeres, por tua honra,
A defenderes uma pátria que não era tua,
Até à última gota do teu sangue ?
E do Malan Mané não tenho notícias,
Se é isso que queres saber,
Mas duvido que ele tenha sobrevivido
Aos graves ferimentos do dilagrama dos tugas.
E agora deixa-me dizer-te, amigo,
À laia de despedida:
Não sei se um dia
Ainda terei coragem de voltar
À tua terra, ao teu chão.
Mas se porventura o fizer,
Gostaria de perguntar pela tua aldeia,
E de procurar-te
E de ter tempo para conversar contigo,
Só tu e eu,
Debaixo do teu poilão.
Luís Graça
__________
(2) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
(3) Vd. post de 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga
Guiné 63/74 - P2230: Questões politicamente (in)correctas (36): RTP: Homens como o Paulo Raposo e o Victor Junqueira não foram ouvidos (Rui Felício)
Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados
1. Mensagem , de 25 de Outubro, do Rui Felício que, juntamente com o Paulo Raposo, o Victor David e o Jorge Rijo, faz(ia) parte dos famosos baixinhos de Dulombi, os quatro alferes milicianos da CCAÇ 2405 (1)
Lisboa, 25 de Outubro de 2007
Meu Caro Luis Graça,
PREÂMBULO
Como sabes, de cada vez que te escrevo, conto pequenos episódios que se passaram durante a minha passagem pela Guiné, procurando fazê-lo numa linguagem e estilo despretenciosos, leves e o mais possível acessíveis à imediata compreensão (2).
Salvo uma ou outra excepção, tenho escolhido o lado picaresco e às vezes cómico dessas situações e não me canso de te agradecer a honra de publicação que lhe tens concedido. Porventura imerecidamente...mas que me desvanece.
Tal não significa que não esteja atento ao lado sério da guerra que levou a nossa geração a África e que indelevelmente a marcou até ao fim das nossas existências.
Mas tenho preferido não entrar no debate, às vezes polémico, que num ou noutro caso se acende em torno dos mais diversos temas relacionados com a origem, condução e termo dessa guerra.
O espaço do teu blogue, tão participado, activo e bem documentado, tem qualidades que não encontro noutros, de similares objectivos, e esse mérito a ti pertence, pelo sacrifício, trabalho e competência que com a sua organização e condução tens tido.
O PROGRAMA PRÓS E CONTRAS E O PAULO RAPOSO
Vem isto a propósito de, hoje, infringindo essa regra que a mim próprio me impus, te vir falar de assunto mais sério.
Tem a ver com a série do Joaquim Furtado e do Programa Prós e Contras que antecedeu a passagem na RTP do 1º episódio dessa série de documentários [A Guerra, argumento e realização de Joauqim Furtado].
Li nos dias seguintes alguns mails que o Paulo Raposo te enviou (2) e de que me deu conhecimento, tecendo comentários acerca do referido programa televisivo.
Julgo conhecer bem o Paulo Raposo a quem reconheço e garanto, entre muitas outras, duas excelentes qualidades que o caracterizam e se destacam na sua personalidade:
- Uma extrema simpatia e educação, com que fácil e rapidamente estabelece laços de amizade com quem se relaciona;
- Um conhecimento da história contemporânea e uma cultura geral acima da média, predicados que se preocupa em não exibir, o que bem demonstra o seu carácter. Só as pessoas que estão seguras do seu conhecimento resistem à tentação de, por mero exibicionismo, o evidenciarem...
Tenho procurado, sem êxito, no teu blogue, alguma referência a esses mails do Raposo.
Bem sei que os critérios de edição dos textos são da tua exclusiva competência. Nem de outro modo deveria ser.
Mas esperava vê-los divulgados porque as teses do Paulo Raposo neles defendidas revelam uma perspectiva diferente e interessante quanto às causas remotas da guerra e aos motivos e estranhas coincidências que aparentemente, e quem sabe propositadamente, terão originado o seu arrastamento durante vários anos, mantendo uma situação que desaguou na revolução de Abril de 1974.
UMA PERPSECTIVA DIFERENTE DA GUERRA
Foi nessa altura do 25 de Abril que os seus autores definiram e estabeleceram os argumentos “politicamente correctos” que ainda hoje, como no citado programa Prós e Contras, são defendidos a outrance exactamente por muitos daqueles que, por força da sua natureza de militares profissionais, maiores responsabilidades tiveram nesse arrastamento da guerra e na forma ignominiosa como lhe foi posto fim.
Que não se veja neste meu reparo qualquer intransigência na defesa de qualquer tese específica sobre a guerra de África, mas o que me custa aceitar é que nunca seja feito o confronto e o contraponto às teses correntes que é comum ouvir naquele tipo de programas.
Começa a angustiar que os intervenientes nestes debates sejam sempre os mesmos e conhecidos militares que a todo o preço pretendem convencer-nos da sua heroicidade, do seu profissionalismo ( ... foi ali dito por um militar de Abril: “ nós não perdemos a guerra”... ) da sua resistência política ao anterior regime, como se alguma má consciência os obrigue a constantemente se autoelogiarem.
Por tudo isto, considero que as teses explanadas pelo Paulo Raposo deveriam ser debatidas. Daí, certamente muita da luz que tem estado oculta pudesse vir iluminar as consciências...ou pelo menos dar-lhes uma perspectiva diferente e, quiçá, mais verdadeira das razões da guerra.
Não esquecerei nunca o que ouvi da boca do nosso camarada Junqueira que, no almoço da herdade da Ameira, afirmou com orgulho e sem qualquer preconceito aquilo que não se ouve nunca nestes debates televisivos.
Se bem te lembras, ele estava emigrado em França e de motu proprio regressou a Portugal para ser mobilizado para a guerra de África, porque esse era o seu dever (4)...
Bem poderia ele ter ficado em França e ter escapado a esse sacrifício, à semelhança de tantos que a ela fugiram e que agora têm o desplante de se considerarem heróis por terem tido essa coragem de fugir...
Mas o Junqueira era um homem de carácter.. E essa é a diferença... E quantos “Junqueiras” não haverá ?
No Prós e Contras não me lembro de ter sido convidado nenhum . Ou se o foi, não foi ouvido...
Desculpa a crescente azia que a minha escrita revela, mas fi-lo ao sabor do sentimento, sem reconsiderar nas palavras que fui deixando deslizar...
Um abraço do teu camarada e amigo
Rui Felício
_________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi (Rui Felício)
(2) As deliciosas e picarescas Estórias de Dulombi > vd. posts de:
30 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2073: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (8): O Fula, a galinha e o vestido
8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi (Rui Felício)
27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo
18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG
5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço
19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua
14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili
9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral
(3) Vd. post de 28 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2227: Questões politicamente (in)correctas (34): RTP: Guerra Colonial, do Ultramar, de Libertação ou de África ? (Paulo Raposo)
(4) Vd. post de 31 de Outubro de 2006> Guiné 63/74 - P1224: Blogue: não ao politicamente correcto (Vitor Junqueira)
segunda-feira, 29 de outubro de 2007
Guiné 63/74 - P2229: Questões politicamente (in)correctas (35): RTP: o (im)possível debate sobre a guerra (Joaquim Mexia Alves)
Em 17 deste mês enviei o mail abaixo. Como não obtive qualquer resposta e o assunto me parece ser actual, fiquei na dúvida se o receberam.
Sei muito bem que nem todos os mails que enviamos são objecto de publicação e, seja qual for o critério dos editores, concordo à partida desde já com eles.
Sei que este assunto é polémico mas também sei que se não enfrentarmos as coisas que vivem nas nossas vidas, dificilmente alcançaremos a paz sobre o nosso passado.
Nós não fomos políticos, fomos apenas os soldados que foram chamados a combater pela sua Pátria, independentemente da razão ou não razão da mesma. Em todas as guerras há sempre diversas visões e a maior parte delas colidem umas com as outras. Para termos paz, pelo menos eu, não podemos atribuir virtudes só a um dos lados e o outro ser o condenado.
Por isso falo em termos militares, puramente militares, pois apenas vejo, (parece-me), grandes feitos de um lado, e defeitos do outro, ao qual eu pertencia.
É muito dificil explicar onde quero chegar, e sei, repito, que o assunto é polémico, mas não há dúvidas que falta essa análise sem vergonhas, nem sentimentos de culpa.
Estarei enganado? É possivel, mas a verdade é que sempre me incomodou dar certas coisas como adquiridas, por isso digo que se calhar ainda é cedo para uma análise desapaixonada deste ponto de vista.
Repito que nada disto implica com a condenação da guerra, (esta e qualquer outra), que ainda bem terminou e nunca devia ter acontecido.
Abraço amigo do
Joaquim Mexia Alves
Termas de Monte Real
Tel: +351 244 619 020 / fax: +351 244 619 029
2. Mernsagem de 17 de Outubro, enviada pelo Joaquim Mexias Alves:
Assunto: Prós e Contras
Caro Luís e Camaradas da Guiné:
Também assisti ao [programa] Prós e Contras, mas confesso que me começou a faltar a pachorra e fui-me deitar.
Como o Luís, também acho que aquele formato de programa, já não dá. Fico sempre com a impressão que o programa se podia chamar "Fátima e os seus convidados", pois a maior parte das vezes ela fala mais que os convidados e constantemente interrompe o discurso e linha de pensamento dos mesmos.
Bem esta é a minha apreciação, outros verão de modo diferente!
Quanto ao debate: Apesar de já ter passado muito tempo, provavelmente ainda é pouco, porque se nota que as paixões estão à flor da pele. Ou seja todo o debate está eivado de política e por isso mesmo muitas vezes carece de objectividade.
Claro que seria difícil falar de uma guerra destas sem falar da política ou do ponto de vista político, mas a guerra não se resume apenas à política.
Passaram a maior parte do tempo a discutir se a guerra era do ultramar, se colonial, se de libertação.Ora, abóbora, conforme o pensamento de cada um ela terá a designação que cada um lhe quer dar: (i) Do ultramar, porque uns acreditavam ou queriam acreditar servindo os seus interesses, que aqueles territórios eram parte integrante do "todo nacional"; (ii) Colonial por aqueles que viam ou queriam ver, servindo os seus interesses, aqueles territórios como colónias; (iii) De libertação por aqueles que, sendo desses países a fizeram, porque aqueles que sendo desses países os apoiaram, mas lembrando que alguns, sendo desses países, com ela não concordavam, e por isso não seria para eles de libertação.
Como foi chamada a guerra das Malvinas? Do ultramar pelos ingleses, colonial pelos argentinos, de libertação pela população, ou alguma população?
Não me parece que isso seja muito importante, pelo menos para mim não é.
Agora pode-se discutir esta guerra do ponto de vista político, do ponto de vista militar e do ponto de vista politico-militar.
Naquele debate parece-me ter-se discutido apenas do ponto de vista político e, como tal, deu em nada. Acaba por se ver e ouvir sempre os mesmos a dizerem as mesmas coisas, citando outros, mas sem grandes provas que eles o tenham dito, servindo-se de frases muitas vezes tiradas de contexto, etc, etc.
E os milicianos? E aqueles que não eram militares profissionais e oriundos de diversos pensares e vivências? O que pensam eles? Alguém viu? Alguém sabe? Alguém quer saber?
Afinal quem fez a guerra, na sua esmagadora maioria, foram os militares de carreira ou os milicianos?
Com isto não estou de modo nenhum a colocar de lado os militares profissionais, que os há e muitos, cheios de competência e dignidade, e que me orgulho de ter servido sob o seu comando.
Mas a verdade, e é a minha opinião, é que a maior parte tenta sempre demonstrar que a guerra estava perdida, e isso cheira-me muitas vezes a uma qualquer justificação!
Claro que a guerra estava perdida! Estava perdida politicamente, como qualquer guerra daquele tipo, e pelo desgaste e a pressão internacional, estaria também perdida militarmente, pois demorasse o tempo que demorasse acabaria na independência daqueles povos.
Mas agora, e era isso que gostava de ver debatido com verdade e sem paixões políticas e outras, verdadeiramente porque se diz que a guerra estava perdida militarmente na Guiné?
É uma afirmação permanente, com a qual eu não concordo, e até agora ninguém me demonstrou o contrário.
Com isto não quero dizer que não fico muito feliz com a independência da Guiné, (gostava de ver um país próspero e um povo feliz), mas sim que se pode analisar a situação, não por dois ou três lugares ou acontecimentos, mas pelo todo.
Vejamos a titulo de exemplo:
Estive de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973 na Guiné e durante esse tempo, que eu saiba, não houve nenhuma emboscada ou ataque a qualquer coluna na estrada Bambadinca/Xitole, ou Bambadinca/Bafatá, ou Xitole/Saltinho, ou, julgo eu, Bafatá/Gabu (Nova Lamego)
Não houve, que eu me lembre, qualquer ataque a barcos no Geba, entre o Xime e Bafatá.
Em Mansoa estávamos a abrir a estrada de Jugudul, (salvo o erro), Portogole e a mesma avançava, claro que com algumas acções de guerra, mas nada que a impedisse.
Montei várias vezes protecções a colunas na estrada entre Mansoa e Mansabá, na zona do Morés e as colunas passaram sem incidentes.
Isto são só alguns exemplos que logicamente não retratam também o que se passava em toda a Guiné, mas parece-me que os trágicos episódios de Gadamael, Guileje e Guidage acabaram por determinar essa informação que a Guerra estava perdida militarmente.
Em muitas guerras, em muitos lugares, ao longo da história do mundo, se perderam algumas praças, mas não se perdeu a guerra.
Em Angola a guerra estava perfeitamente controlada e isto penso que é opinião geral. Em 74 e 75 fiz milhares de quilómetros no interior de Angola e nem um pequeno incidente aconteceu. Assim o esforço militar que se estava a fazer em Angola, podia ser desviado em parte para a Guiné, mormente Força Aérea com outras capacidades, o que poderia mudar muita coisa na Guiné.
Com isto não estou a dizer que queria que a guerra continuasse! Não, nem tal me passa pela cabeça, ainda bem que acabou, para todos nós, Guineenses e Portugueses!
Apenas quero dizer que, na minha opinião, a guerra militarmente não estava perdida, ou pelo menos ainda não mo conseguiram demonstrar.
Sei que esta é uma abordagem polémica, e que a análise que aqui faço, (se é que se pode chamar análise a este arrazoado de ideias), não demonstra coisa nenhuma, mas talvez suscite discussão sã sobre os méritos ou deméritos das Forças Armadas Portuguesas, às quais pertencemos, embora alguns dos seus elementos nos queiram esquecer.
Agora, Luís, deixo-te isto escrito para fazeres o que quiseres, no sentido de que só com serenidade, com distância política e emocional é possível fazer uma verdadeira discussão e análise ao que foi a Guerra da Guiné.
Eu sinceramente não sei se tenho essa distância, sobretudo emocional, para me abalançar à discussão. Mas se não formos nós que estivemos no terreno, quem o fará?
Abraço forte do camarigo [camarada e amigo]
Joaquim Mexia Alves
PS - Ah, não revejo o texto, não me apetece, e se calhar se o revir já não o mando.
Perdoem-me também qualquer imprecisão de tempos e lugares, mas a memória já não é o que era.
3. Comentário de L.G.:
O direito à palavra é a regra de ouro da nossa tertúlia! Obrigado, Joaquim, e desculpa o atraso. Deixa-me só dizer-te duas ou três palavras, de amizade e de camaradagem:
(i) Percebo o teu desconforto: como é que vais justificar os três anos da tua vida numa tropa, "tão comprida e tão cumprida", como a tua, como a minha, como a nossa, que até meteu uma guerra pelo meio...
(ii) Concordo contigo: um debate a preto e branco sobre essa guerra só pode levar ao seu enviesamento e emprobrecimento... Debates como os do Prós e Contras são uma armadilha letal, são um espectáculo deprimente... Eu recuso-me, não os vejo, não sou masoquista, não sou maniqueísta...
(iii) Resta-nos fazer as pazes connosco próprios, encontrando entre os velhos camaradas, o maior denominador comum, que são as nossas (contraditórias mas não necessariamente antagónicas) vivências...
(iv) Não escondemos - a generalidade de nós, milicianos e soldados do contingente geral - que partimos com a morte na alma... Parafraseando a letra do teu belíssimo fado da Guiné: Lembras-te bem daquele dia / Enquanto o barco partia / E tu morrias no cais // Braço dado com a morte / Enfrentavas tua sorte / Abafando os teus ais... Impossível esquecer a tua condição de português, mas também acreditando no futuro e na história: Que o suor do teu valor / Que vai abafando a dor / Que te faz manter de pé, // Seja massa e fermento / Desse nobre sentimento / Que nutres pela Guiné.
Guiné 63/74 - P2228: PAIGC - Instrução, táctica e logística (5): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (V Parte): Flagelações (A. Marques Lopes)
Foto e legenda: Luís Cabral, Crónica da Libertação. Lisboa: O Jornal. 1984 (Imagem digitalizada por A. Marques Lopes) (com a devida vénia ao autor e ao editor...). A legenda diz o seguinte: "A condecortação dos corajosos combatentes que em Fevereiro de 1968 realizaram a primeira operação contra o aeroporto de Bissau. O Secretário Geral do Partido [, Amílcar Cabarl,] apõe a medalha ao comandante Joaquim N'Com que secundou André Gomes na direcção da importante operação".
Mensagem de 14 de Setembro de 2007, do A. Marques Lopes (natural de Lisboa, hoje coronel DFA, na reforma, e residente em Matosinhos), com mais um texto extraído do Supintrep, nº 32, de Junho de 1971:
PAIGC > Instrução, táctica e logística > V parte (1)
[Fixação do texto: A.M.L. e editor L.G.]
FLAGELAÇÕES
(1) Generalidades
Ainda que muitas vezes indetectáveis, o IN realiza normalmente reconhecimentos prévios à zona a flagelar, os quais dispensa se por hábito conhece o local onde vai actuar.
São acções normalmente de pouca duração, violentas, lançadas vulgarmente ao anoitecer ou durante a noite, tendo-se no entanto verificado ultimamente a realização de algumas flagelações durante o dia. Em função da violência e dos efectivos cada vez maiores que o IN emprega nestas acções, não é de estranhar da sua parte venha a procurar o assalto, o que aliás já tem tentado.
Embora em numerosas flagelações o IN seja feliz na justeza com que efectua o tiro, é normal o tiro não ser "justo", obviamente sem consequências para as NT. Normal é também a utilização de observadores avançados que, por intermédio de linhas telefónicas ou E/R tipo SHARP, efectuam regulação de tiro.
O dispositivo empregue é variável com o terreno e com os meios utilizados; podemos dizer que normalmente será articulado em três escalões: (i) o dos atiradores com armas ligeiras e lança granadas foguete; (ii) um segundo escalão com canhões sem recuo; e (iii) um terceiro, mais recuado, com morteiros. Isto para ma flagelação em que foram empregues todos os tipos de armas que o IN utiliza.
Outras há em que apenas são utilizados canhões ou morteiros, em acções que o inimigo denomina de “bombardeamento" incluindo-se nestas as flagelações com foguetão 122, também conhecido por GRAD ou Artilharia pesada. A retirada é feita dos escalões mais recuados para os mais próximos, aqueles a coberto dos fogos destes e feita para local previamente escolhido como ponto de recolha e ulterior fuga.
(2) Procedimentos adoptados segundo declarações do capturado Carlos Silva
Normalmente nas flagelações contra os aquartelamentos o IN adopta o seguinte dispositivo:
- Os elementos de infantaria (bigrupo) divide-se em dois grupos que se instalam próximo do aquartelamento. Estes elementos dispõem de LGFog, MP ou ML e armas ligeiras;
- Os Canhões S/R são colocados atrás da infantaria e a uma certa distância, procurando o melhor local;
- Os Morteiros são colocados à rectaguarda dos canhões.
A uma hora fixada as armas pesadas abrem fogo e em seguida faz fogo a infantaria. A duração da acção está condicionada à quantidade de munições existentes e à reacção das NT. A retirada é feita rapidamente, retirando primeiro as armas pesadas sob a protecção da infantaria. Após a retirada o pessoal reune-se no local previamente determinado. Por vezes esses locais não são utilizados, pois a reacção das NT obriga-os a retirar desordenadamente, pelo que regressam aos seus acampamentos conforme as possibilidades.
(3) Esquemas representativos de técnicas doutrinárias
De um caderno de apontamentos pertencente ao chefe de grupo João Landim, foi extraído o seguinte esquema representativo de um ataque a um aquartelamento das NT:
Comentário: O esquema mostra-nos o desenrolar de um ataque feito por um destacamento IN a um aquartelamento das NT, o qual se encontra figurado a azul. O ataque foi lançado a partir de uma base, sendo o deslocamento do destacamento IN representado pelo tracejado a vermelho.
O deslocamento do “grosso” terá sido precedido por um grupo de exploração, sendo representados os diferentes grupos de ataque, as posições dos morteiros e do canhão s/r e juntodestas dois grupos de protecção.
De notar a montagem de um emboscada no itinerário de acesso ao aquartelemento. É representada a entrada de 2 grupos no interior do aquartelamento.
(4) Método de referenciação de objectivos
Ainda do caderno de apontamentos de João Landim, foi extraído um esquema de referenciação de ob jectivos que o IN elabora com vista à flagelação de aquartelamentos ou povoações:
Comentário: O esquema mostra-nos um método de referenciação expedita de objectivos utilizado pelo IN. A linha N/S corresponde à linha 06HORAS–12 HORAS do relógio. A referência a vermelho é portanto a linha de 15 HORAS.
Os objectivos estão referenciados relativamente à linha de referência por horas, negativas ou positivas conforme se acham no quadrante da esquerda ou direita.
A distância do ponto de estação (centro do relógio) é assinalada, provavelmente, em metros.
FLAGELAÇÕES - CASOS REAIS
(1) Casos reais baseados em relatórios das NT e documentação capturada ao IN
(1a) Táctica prevista pelo IN para o ataque a BUBA em 10 de Outubro de 1969
1. Tradução de documentos capturados ao Capitão do Exército Cubano Pedro Rodriguez Peralta (2)
Documento N.º 1
Informação [do IN]:
Operação realizada no quartel de Buba em 10 de Outubro de 1969. Ao partir da fronteira no dia 2 de Outubro mandou-se, vinte dias antes, um grupo de exploração que tinha por missão obter todos os dados da mesma.
Croquis com áreas em volta, colocação possível para a infantaria, artilharia, além de realizar uma operação artilheira normal [?] e ao mesmo tempo [?] os pontos onde se instalariam os m[orteiros] 82 e GRAD [, foguetão 122 mm] (3)e o posto de observação.
Para isto se designou um companheiro capaz, à frente disto se pôs Júlio – caboverdeano e artilheiro de M [orteiro] e GRAD e o chefe da região, companheiro Chuchu.
À nossa chegada o trabalho realizado deste croquis estava mal, pois que foi feito de noite e não se podia fazer uma boa apreciação.
Discutimos com Nino, até que se ordenou uma nova exploração que depois confrontámos com os companheiros de segurança. Junta-se o plano mais as possíveis forças que defendiam que são aproximadamente mais de quatro centos e picos homens.
Com todos estes dados reunimo-nos, Manuel, Júlio e eu, e depois de analisar a situação do quartel e a sua possível defesa devo declarar que a nossa apreciação foi correcta já porque analisámos todos os possíveis [ pontos ?] de tiro de armas pesadas, o que se comprovou na prática.
Depois analisámos como actuaria a Infantaria e não concordámos porque eles opinavam realizar o ataque por uma única direcção, coisa que lhe expusemos na nossa discussão. Concentrar 5 bigrupos num só lugar serão muitas as baixas da nossa parte, já que era uma frente de 200 metros. Depois propusemos uma variante, fazer o ataque da mesma forma em 2 escalões. Isto foi desejado já que depois de discutir e ao expor-lhe razões de pouca preparação dos bigrupos corríamos um grande risco de baixas pelas nossas próprias forças, mas insistiram no seu planeamento inicial.
Coube-nos a nós fazer a nossa proposta que foi a seguinte: Os portugueses pela situação do quartel deviam ter a seguinte forma de defesa: (i) Pela parte da frente do mesmo mas sobre a direita, por ter mais visibilidade, devia ter sectores de tiro encruzados de autometralhadoras; (ii) Pela rectaguarda um sector de tiro em idênticas condições aproveitando a limpeza e podendo bater todo o rio em caso de tentativa de travessia; (iii) A possibilidade com uma autometralhadora que cobrirá o embarcadouro que está a 50 metros do quartel e uma ou duas peças entre o quartel do lado que dá para a população.
Analisando tudo isto a infantaria devia atacar em duas direcções uma principal e outra secundária, como se segue:
(i) Concentar bigrupos reforçados com bazooka RPG7, metralhadora libiana [=líbia ?,](3) pela porta do quartel e onde termina a pista de aviação, onde pela sua situação ressalta a possibilidade que a ponta da pista não pode ser minada, nem os seus arredores, como medida de segurança podia avançar até chegar a 50 metros do quartel; este seria o golpe principal.
(ii) O secundário seria com o resto dos dois bigrupos e o resto, entrariam por onde se encontra população avançada para entraraz em cunha em relação o outro; desta forma entendíamos que os portugueses não tinham saíd[a] desta situação.
Manuel disse que era correcta mas havia planeado antes, menos Júlio que estava plenamente de acordo. Decidimos apresentar o plano a Nino com tudo o que foi feito e ele, como chefe, decidiria.
Este depois de ver o terreno e tudo o que havia sido feito decidiu que o ataque se fizesse em duas direcções, quer dizer, de acordo com a nossa apreciação, e ordenou as disposições finais e discutimos como devia avançar a infantaria e como se realizaria o fogo no arame, que é como se segue:
(i) Os Combatentes com o RPG7 em primeira linha, com apoio de metralhadora libiana varreriam todos os ninhos de metralhadoras e pontos de resistência no meu avanço.
(ii) Ao terminar isto a infantaria encontrar-se-ia perto do quartel e com as AK em tiro a tiro e apoio de metralhadora libiana avançaria rapidamente para o mesmo. Isto jogava com o tiro de artilharia que explicaremos depois.
Para isto pôs-se o comandante Chuchu, chefe da região, e o companheiro Baro, caboverdeano, como responsável da infantaria, e nos bigrupos que avançariam por ambas as direcções um companheiro em cada um dos comandos como quadros intermediários para dar ordens aos bigrupos para iniciar o combate. Como meio de comunicações teriam desde os responsáveis e os dois companheiros dos bigrupos rádio “Bobitoqui” [walkie-talkie ?] que estavam bons e a comunicarem na perfeição. Também se precisou a hora em que estariam em posição (Esta dá-la-emos com o tiro A.)
Documento N.º 2
Notas sobre o ataque a Buba
Homens inimigos 400 ou mais
Ordem de fogo
B-10 tiro directo 180 granadas
Mort 82 180 granadas
A. X 7 foguetes
Depois de 90 granadas M-82 = tiro comprido, encurtar a distância como se segue:
1.º tiro 150 metros para além do quartel; 2.º tiro 50 metros menos; 3.º tiro 50 metros menos; 4.º tiro 50 menos menos.
Simultaneamente, quando os tiros de morteiro encurtarem, a infantaria avança até entrar em acção depois de terem terminado os morteiros.
Colocar dois bazookeiros na pista de aviação, um RPG7, um RPG2, com um atirador AK, um canhão [s/r] B-10 em tiro directo para o embarcadouro, para evitar a entrada de barco.
2 bigrupos como protecção da artilharia [?] e encarregados da mesma = 12 DCK = AA.
Documento n.º 3
2. Ensinamentos colhidos (do relatório das NT)
A acção empreendida pelo IN em 12 de Outubro de 1969 foi indubitavelmente das melhores planeadas que se têm efectuado contra este aquartelamento e, tanto quanto saibamos, foi a primeira vez que foi tentada uma acção contra Buba utilizando duas forças actuando em coordenação.
Analisando o procedimento IN é de notar a inteligente disposição dos Canhões S/R e Morteiros na foz e margem direita do Rio Mancamã, distanciados cerca de 1800 metros e actuando em coordenação com observação avançada conforme o esquema junto dá ideia.
De notar também o cuidado com que foi realizada a progressão das forças de assalto que, evitando trilhos e picadas, progrediam a corta mato até muito próximo do aquartelamento.
De salientar o número elevado de homens empenhados nesta acção última. Com efeito o trilho de aproximação e retirada detectado revela ter sido utilizado por grande número de elementos, todos calçados de igual – possivelmente botas de cabedal de rasto de borracha com desenho semelhante à das NT mas mais miúdo.
Da observação cuidadosa desse trilho resulta não nos parecer exagerada a afirmação de que a força que tentou o assalto ao aquartelamento era composta por cerca de 200 elementos.
3. Esquema dos itinerários de aproximação retirada do IN
(1b) Táctica prevista pelo IN para o ataque a BEDANDA
(Extraído dos documentos capturados ao Capitão do Exército Cubano Pedro Rodriguez Peralta)
(1c) Modos de actuação contra JABADÁ
1. Do estudo e interpretação de vários relatórios das flagelações a JABADÁ [, a nordeste de Tite,]e das declarações de capturados nelas intervenientes, concluiu-se:
As actuações contra o aquartelamento de JABADÁ podem considerar-se divididas em várias fases, correspondentes aos segunintes períodos:
(i) Até meados de Dezembro de 1968: As flagelações eram feitas com todos os elementos;
(ii) De meados de Dezembro de 1968 até final de Janeiro de 1969:
Este período correspondeu à permanência de Nino na região, tendo as flagelações passado a ser feitas do seguinte modo:
- As Armas Pesadas (Can S/R e Mort 82) eram colocadas a cerca de 3 Kms do aquartelamento, do lado Sul, e o tiro era regulado por um cubano;
- Os elementos de infantaria (bigrupos), armados com LGFog, MP, ML e Arm Lig, instalavam-se perto da povoação, do lado direito da estrada (conforme consta na figura junta);
- A acção era iniciada pelas armas pesadas que deixavem de fazer fogo pouco depois de as NT iniciarem a reacção.
- Quando as NT diminuíam a intensiddade de fogo (ou cessavam a reacção), os elementos instalados próximos da povoação abriam por sua vez fogo, aproveitando assim o gasto de munições por parte das NT.
Estes elementos IN eram protegidos ou não pelo fogo de Mort 82, mas nunca pelo de Can S/R. Faziam geralmente pontaria baixa.
(iii) A partir de Fevereiro de 1969:
- A partir deste período as NT passaram a montar emboscadas, com certa frequência, na região de FLAQUE AMEDÉ e o IN deixou de utilizar o dispositivo habitual e começou a actuar simultaneamente sobre o nossso aquartelamento e sobre a região de FLAQUE AMEDÉ. Estas acções passaram a ser desencadeadas, novamente, de longe.
- Na acção do dia 9 de Agosto de 1969, o IN utilizou bases de fogos diferentes das habituais e cruzou os fogos, actuando de diversas zonas simultaneamente.
2. Segundo as declarações do capturado Domingos Bolo (que era chefe de um bigrupo que actuou diversas vezes contra o aquartelamento de JABADÁ), antes das acções, um grupo IN faz o reconhecimento a fim de verificar se as NT têm montadas emboscadas, pois que se tal acontece não realizam a acção.
Referiu ainda que as acções eram desencadeadas sempre de Oeste da estrada, porquanto de Este o terreno não lhes garantia tirar bons rendimentos nas acções nem uma fácil retirada.
Das declarações deste capturado (que actuou sobre as ordens de Nino nas flagelações a JABADÁ) foi feito o seguinte esquema do dispositivo IN:
(1c) Planeamento para a condução de uma acção contra o aquartelamento de EMPADA
Transcrem-se duas cartas escritas por Júlio César de Carvalho (Julinho) ao omandante do bigrupo Quintino Gomes e que foram capturadas durante uma operação das NT:
TOMBALI, 22 de Dezembro de 1970
Caro camarada Quintino:
Saudações para todos os camaradas e votos de boa saúde.
Comunico-te o seguinte: Pensamos realizar missão em EMPADA com forças de Artilharia e Infantaria: para isso tens a seguinte missão:
1.º Juntamente com o camarada Mamaly, comandante de bigrupo, acompanhado de dois chefes de grupo, devem reconhecer o objectivo para a actuação da Infantaria. Devem realizar a missão o mais depressa possível, para cumprirmos a missão antes do fim do ano;
2.º Indicar um local seguro onde podemos reunir munições de Mort 82 e B-10 [Canhão S/R B-10 ou BEDIS ?] (2) dois ou três dias antes da operação;
3.º Comunicar a quantidade de munições M62 [ Morteiro 62 ] e OB-10 que podemos contar naquele sector, em bom estado.
4.º O camarada Mamaly deve regressar imediatamente após o cumprimento do reconhecimento.
5.º Como sempre, manter o máximo de segredo, mesmo junto de outros camaradas, desta missão.
É só isso.
Saudações combativas para todos.
Um abraço do camarada amigo
Ass)
TOMBALI, 27 de Dezembro de 1970
Caro camarada Quintino:
Saúde e votos de bom trabalho.
Recebi a tua carta, satisfeito pelo conteúdo. Hoje, dia 27, segirão os camaradas da Bataria com as respectivas peças e munições; com eles vai o Bigrupo de Mamaly.
Deverão contactar-se imediatamente e juntamente com os camaradas Casimiro Cordeiro, Rachide e Mamaly deverão resolver o seguinte:
1.º Contactar om os camaradas Dinis (CP) e Tomaz (Comércio) para conseguir todo o arroz necessário. A fim deles estarem avisados vou escrever-lhes nesse sentido.
2.º Transportar os 55 obuses de OB-10 juntá-los com as munições destinadas para a operação.
3.º Contactar com o camada Diniz para, se possível, enviar amanhã a canoa grande que foi lançada à água nesses dias.
4.º Ver um local onde podemos deixar o médico com o seu equipamento de modo a servir tanto a infantaria como a artilharia.
5.º Preparar todos os teus homens que, juntamente com a nossa Infantaria, tomarão parte no ataque.
É só isso.
Saudações para todos e votos de que consigam cumprir tudo.
Vosso camarada amigo
Ass)
As duas cartas que se transcrevem dizem respeito a uma ordem de missão relativa a uma acção sobre o nosso aquartelamento de EMPADA, a qual foi realizada em 30 de Dezembro de 1970.
Da análise das referidas cartas ressalta o seguinte:
- O cuidado posto no planeamento da acção;
- O reconhecimento prévio das posições das forças de Infantaria bem como do local onde seriam colocadas as munições para as armas pesadas dias antes do ataque;
- As recomendações dadas quanto à manutenção do segredo da operação;
- A preocupação em assegurar a alimentação das forças que se iriam deslocar para o local da concentração;
- A escolha do local onde ficaria o médico numa posição em que “servisse tanto para a Infantaria como a Artilharia”;
- Da acção, conduzida com violência, resultaram elevados danos materiais.
________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
22 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2124: PAIGC - Instrução, táctica e logística (1): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (I Parte) (A. Marques Lopes)
24 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2126: PAIGC - Instrução, táctica e logística (2): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (II Parte) (A. Marques Lopes)
1 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2146: PAIGC - Instrução, táctica e logística (3): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (III Parte) (A. Marques Lopes)
8 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2164: PAIGC - Instrução, táctica e logística (4): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (IV Parte): Emboscadas (A. Marques Lopes)
(2) Capitão Pedro Rodriguez Peralta: cubano, capturado pelos pára-quedistas do BCP 12/ CCP 122, em 18 de Novembro de 1969, no sul da Guiné (Operação Jove). Gravemente ferido, foi depois transferido para Lisboa, e condenado pelo Tribunal Militar de Lisboa em dois anos e dois meses de prisão, sob a acusação de pertencer ao PAIGC. Só foi libertado depois do 25 de Abril de 1974.
(3) Vd. post de 27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1890: PAIGC: Gíria revolucionária... ou como os guerrilheiros designavam o seu armamento (A. Marques Lopes)
domingo, 28 de outubro de 2007
Guiné 63/74 - P2227: Questões politicamente (in)correctas (34): RTP: Guerra Colonial, do Ultramar, de Libertação ou de África ? (Paulo Raposo)
Olá, Luís.
Há muito que tenho estado afastado destas lides. Depois de ver o programa [da RTP1, Prós e Contras,] (2), estou a enviar os meus comentários ao que lá foi dito.
Guerra Colonial, do Ultramar ou de Libertação: Foram as opções que nos deram, mas o nome tem de ser consensual e nacional. Uma coisas são os regimes, outra é a Pátria.
Realmente a nossa Guerra em África teve o seu começo na II Guerra Mundial. Se esta foi um grande terramoto, a nossa foi a sua réplica.
Assim, comecemos. A Alemanha teve sempre na mira duas coisas, as suas grandes aspirações:
1 - A Gross Deutschland, ou seja, crescer a Alemanha para leste: para isso lançaram colonatos pela Rússia dentro e ao longo do rio Volga.
2 - Ter um porto de mar de águas quentes que estivesse fora do alcance dos ingleses. O único porto, antes dos Pirinéus, com essas características, é o porto de Bordéus.
Hitler foi tão popular, porque prometeu ao povo alemão estes dois objectivos e conseguiu.
Agora vejamos a vaga de fundo que isto causou. Para o exército alemão entrar na Rússia, o Estado Maior forjou umas cartas trocados com o Estado Maior do exército vermelho, dando a impressão que este facilitaria a entrada dos alemães por território russo com última intenção de derrubar o comunismo.
Arranjaram maneira de que estas cartas chegassem às mãos de Estaline por mero descuido. Estaline acreditou e em consequência decapitou os seus oficias superiores, ou seja, decapitou o seu exército.
A entrada dos alemães pela Rússia foi pão com manteiga até... O General Von Paulus chegou a S. Petersburgo e cercou a cidade a sul, e a norte foi cercada pelos finlandeses. Esperavam que a cidade se rendesse pela fome.
Acontece que os russos conseguiram, apenas por um fio, continuar a alimentar a cidade que resistiu comandada por Kruschef às ordens de Estaline. Neste premeio os alemães convidaram Costa Gomes e Spínola a visitar esta frente e possivelmente entraram em contacto com Van Paulus.
E aqui, em S. Petersburgo, levantou-se uma vaga de fundo que arrastou os alemães até ao Rio Elba. Parou aqui porque estavam as tropas inglesas e americanas, senão só teriam parado em Bordéus.
Foi no levantar nesta vaga de fundo que apareceu pela primeira vez a palavra Descolonização. Pois à medida que os russos avançavam iam descolonizando ou limpando os colonatos alemães a leste.
Diz-se também que, quando Von Paulus se rendeu, ele e o seu Estado Maior começaram a trabalhar para os russos ocupando o lugar dos oficias superiores russos executados.
Portanto a palavra colonato ou descolonização está carregada de ódio entre russos e alemães.
Não nos diz respeito, aqueles são potências continentais e nós estivemos sempre ligados às potências marítimas. É outro campeonato.
Portanto, recuso Guerra Colonial. Pode ser Guerra do Ultramar, está mais correcta mas não é consensual. Guerra da Libertação, muito menos. O nosso inimigo da altura chamava-lhe luta da libertação, não guerra.
Pois guerra implica duas forças beligerantes.De um lado estávamos nós e do outro?
Também não lhe chamaram Guerra Civil, porquê?Portanto acho para ser mais consensual será Guerra de África , ou do Ultramar, se quisermos incluir a invasão de Goa.
Vou tentar escrever sobre cada um dos assuntos que foram tratados no debate.
É a minha opinião que é tão válida como outra qualquer.
Luís, já que tens tido a paciência de nos aturar e a perseverança de manter esta chama, venho pedir um favor: Não podes lançar em CD os documentário e filmes que se produziram durante o nosso tempo de luta?
Um abraço amigo do
Paulo
Paulo Lage Raposo
Alf Mil Inf
BCAÇ 2852 / CCAÇ 2405
Guiné 68/70
Tel 266898240
Herdade da Ameira
7050 Montemor O Novo
2. Comentário de L.G.:
Paulo:
É bom saber de ti e de voltar a partilhar o teu gosto pela análise geoestratégica. Aqui fica a tua posição sobre a questão (que não é meramente semântica) do nome a dar à nossa guerra: Colonial ? Civil ? Do Ultramar ? De Libertação ? De África ? Como eu tenho aqui defendido, na nossa caserna virtual, a terminologia fica ao gosto do freguês, ou seja, de cada um... Eu não tenho qualquer direito de te impor o meu ponto de vista, e vice-versa.... Não é preciso repetir, até à exaustão, que somos uma tertúlia plural e tolerante... O que nos une não é a ideologia, mas a camaradagem...
Tenho no entanto a obrigação (editorial) de chamar a atenção por o facto (histórico) de que houve, por parte do Estado Novo, uma clara mudança de terminologia em 1951, face à percepção dos novos ventos da história: (i) recorde-se que o Acto Colonial (sic) é o primeiro documento constitucional do Estado Novo, promulgado a 8 de Julho de 1930, pelo Decreto n.º 18 570, numa altura em que Oliveira Salazar assume as funções de Ministro Interino das Colónias; (ii) o termo colónias sempre foi usado tanto pela Monarquia como pela I República; (iii) a II Guerra Mundial e as primeiras independências de antigas colónias britânicas (por exemplo, a Indía, em 1947) vão obrigar o Estado Novo a revogar o Acto Colonial, na revisão da Constituição de 1933 feita em 1951 (3).
Quanto ao teu pedido, não sei se estarei em condições de satisfazê-lo... O material audiovisual sobre a nossa guerra está disperso, o mais importante estando nas mãos da RTP e do exército... Eu acho que a nossa geração, que combateu na Guiné, em Angola e em Moçambique, tem direito a visionar esses documentários e filmes... Vamos estar atentos à série A Guerra, que começou a ser apresentada pela RTP... Quanto a nós, vamos estar atentos aos documentários que nos chegarem às mãos ou ao nosso conhecimento... Ainda há umas semanas atrás, o Carlos Marques dos Santos me mandou alguns pequenos filmes do ex-Alf Mil Cardoso, da CART 2339 (Mansambo, 1968/69)...Houve malta nossa que fez, na Guiné, pequenos filmes em 8 mm... Esse material pode ser hoje recuperado... Aqui fica, pois, o teu e o meu apelo.
Daqui vai , de Lisboa até à tua querida Ameira, aquele quebra-ossos... Para o Almansor de Montemor, com a amizade e a camaradagem do Luís.
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Notas de L.G.:
(1) Paulo Raposo: ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).
Vd. post de 10 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1060: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (19): regresso a Lisboa e à vida civil (fim)
(2) Vd. post de 17 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2184: A Guerra do Ultramar no programa Prós e Contras (RTP1, 15 de Outubro de 2007): o debate dos generais (Inácio Silva)
(3) Acto colonial 1930. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2007. [Consult. 2007-10-28].Disponível em http://www.infopedia.pt/$acto-colonial-1930.
Guiné 63/74 - P2226: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (13): Um filme sério, honesto, positivo, inacabado (Hélder Sousa)
Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.
1. Mensagem do Helder Sousa (ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72) (1)
Assunto As duas faces da guerra - Filme/Documentário
Caros Amigos
Sem qualquer reticência ou reserva mental considero que achei uma grande honestidade na forma e no conteúdo do trabalho, principalmente depois de anotar e aceitar o que a Diana disse sobre o facto de se tratar de uma obra necessariamente incompleta pela enormidade das coisas que havia a referir, a exibir, a mostrar.
É certo que muitos de nós gostaríamos de ver mais, de ver traduzidas em imagens a beleza da paisagem estranha que tanto nos cativou, as dificuldades de atravessar as bolanhas, o tarrafo, a floresta-galeria, a angústia das esperas nas emboscadas, a incerteza das flagelações, enfim, também todo o trabalho de assistência às populações (independentemente se isso era parte da "psícola" ou também muito de nós próprios), mas isso seria certamente um outro filme.
É claro também (e já foi escrito no nosso Blogue) que alguns dos episódios passados durante os longos 11 anos de guerra dariam bons temas para bons filmes, épicos, dramáticos, heróicos, etc., (os americanos fizeram vários filmes sobre o Vietnam, quem não se lembra de "O Caçador", "Platoon", "Apocallipse Now" e outros) mas isso poderão ser propostas para outros trabalhos que não este que observámos. Uma coisa de cada vez! Quem sabe se não se lança agora a semente duma iniciativa desse género?
Por outro lado é bom não esquecer também que está em marcha o "Projecto Guiledje" o qual vai muito mais no sentido do futuro, ou seja, recordar a guerra, como e onde as "coisas" se passaram mas agora para consolidar a paz obtida e construir o futuro.
Conhecendo a postura anti-guerra manifestada pela co-realizadora e sabendo do divulgado impacto emocional que lhe causou o visionamento do monumento com os nomes dos jovens mortos em Geba, dois dos quais no dia do seu 20º aniversário, parece-me que houve, da parte dela e portanto da forma como se reflecte no trabalho apresentado, uma caminhada no sentido de respeitar aqueles que lá estiveram, que sofreram, que lutaram, que morreram ou ficaram feridos (no corpo e na alma), independentemente da posição que tinham sobre a justeza ou não da guerra, da sua presença ali, e que, para muitos, foi o verdadeiro local de consciencialização da necessidade de mudança que veio a acontecer.
Não acho, como alguns amigos manifestaram o receio, de que "mais uma vez fomos apresentados como os maus da fita", pelo contrário, não me lembro de ter visto algo que referisse a acção dos nossos jovens militares como "criminosa".
Vi sim, e muitas vezes, a referência ao "não ódio" entre as partes, mesmo no tempo em que os acontecimentos se desenrolavam, e também agora no tempo presente. Vi inclusivamente a teorização de que "guerra é guerra", agora já tudo passou!
Portanto, é um trabalho sério, honesto, positivo, inacabado (no sentido que pode ter mais matéria para discussão) que se recomenda vivamente para fomentar essa discussão, levar ao conhecimento de amigos, familiares e público em geral o que foram esses tempos que muitos de nós vivemos e a que raramente nos referíamos, até para, inclusivamente, levar as autoridades a colocar dignidade e respeito na memória de toda uma geração de portugueses que fizeram História e que agora escrevem a história dessa época.
Cumprimentos a todos os amigos e camaradas da Guiné e, já agora, aproveito para prometer ao Luís Graça que, se não me distrair, não volto a chamar lhe
"comandante"... para ele não ficar embaraçado!
Hélder Sousa
Notas dos editores:
(1) Vd. posts de:
20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)
26 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1702: A guerra também se ganhava (ou perdia) nas ondas hertzianas (Helder Sousa, Centro de Escuta e de Radiolocalização, Bissau)
11 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1652: Tertúlia: Três novos candidatos: José Pereira, Hélder Sousa e Jorge Teixeira
(2) Vd. último post desta série > 27 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2223: A nossa Tabanca Grande e as Duas Faces da Guerra (5): A minha luta diária com a Maria Turra, no HM241 (Carlos Américo Cardoso)
Guiné 63/74 - P2225: Antologia (65): Tribulações de um balanta, um conto de Fernando Rodrigues Barragão (1951) (A. Marques Lopes)
BARRAGÃO, Fernando Rodrigues
Tribulações de um balanta / Fernando Rodrigues Barragão
In: Boletim Cultural da Guiné Portuguesa.- vol. 6, nº 22 (Abr. 1951), p. 399- 404
1. Mensagem do A. Marques Lopes, de 25 de Outubro:
Caros camaradas:
Neste período em que a guerra colonial e as guerras de libertação das
ex-colónias portuguesas têm estado em algumas parangonas ("Prós e Contras" e "A Guerra"), em altura em que muitos, e jovens, já viram "As Duas Faces da
Guerra", tão especial para nós que estivemos na Guiné, dou-vos a conhecer
este texto, que muito me espantou.
Na Guiné, sabemos, havia a Casa Gouveia (CUF), que explorava os seus
naturais na mancarra e no coconote, os comerciantes libaneses (Taufik Saads
e outros...) que os exploravam pelo comércio. Mas este texto fez-me lembrar
o Landorf, nazi fugido da Alemanha, que tinha um comércio em Geba e actuava como o "caixeiro" deste texto.
E o meu grande espanto vem do facto de isto ter sido publicado no "Boletim
Cultural da Guiné Portuguesa", Volume VI, nº 22, de Abril de 1951, relatando
as agruras de um balanta esfaimado e a forma como um comerciante branco se aproveitou disso para o explorar. Frisa a submissão dos mais velhos, por
força da tradição secular, e os desejos de liberdade deste balanta jovem
face à exploração a que era submetido.
O autor é Fernando Rodrigues . Do descobrimento aos dias de hoje. Encontrei o texto no blogue Senegâmbia (Boletim Cultural da Guiné-Bissau e regiões vizinhas - Senegal, Casamansa, Gâmbia, Guiné-Conakri e Cabo Verde) que recomendo.
Abraços
A. Marques Lopes
2. Tribulações de um balanta, por Fernando Rodrigues Barragão
Com o olhar morto, sem simpatia nem rancor, olhou a companheira estendida a um canto.
Acabara de sová-la. De sová-la ferozmente, numa ira súbita que não explicaria. Nem o álcool pode ser acusado. Há muito que não bebe. Onde o dinheiro?
Mas sovara-a. Por nada. Talvez porque a fome o aperta num círculo de fogo. Talvez porque a desordem que lhe vai no espírito se sinta acalmada depois de uma violência qualquer.
Ele sabe que o arroz, todo o arroz da sua colheita farta, se esgotou de repente. Sabe porque o não vê e sente no estômago a sua falta. Mas não compreende.
Por mais voltas que dê, pensando e pensando, não compreende. Servindo-se de pequeninas pedras, fez as suas contas. Mas, a meio já a confusão era tanta que as repetiu. E foi repetindo, vezes e vezes, até desistir.
Só então, entrando em casa, abruptamente sovou o primeiro ser que encontrou.
Os gritos da mulher, rasgando a quietude da «morança» e ecoando longe, mais o enfureceram. E a impunidade - que os vizinhos são sempre surdos - deu-lhe asas e forças.
E agora, olhando aquele corpo estendido, parou. Parou e ficou atónito sem saber o que fazer das mãos calosas que o escaldam. Rosnou qualquer monossílabo a meia voz e saiu.
Cá fora, o sol, a pino sobre a tabanca, empresta-lhe bafos de forno. E põe centelhas em todas as coisas. Pinta de cores gritantes as raras ervas, o colmo fumegante, o chão poeirento e vermelho. Longe, nas «bolanhas» desertas, flutuam vapores ténues e ágeis.
Bovinos famintos e sedentos mugem desoladamente. Um porco, vestido de crostas, refocila o chão ressequido. Crianças nuas amodorram nas raras sombras. Voejam, no ar parado, moscardos zumbidores. Nada mais.
Sob o sol impiedoso, a tabanca tem o ar fanado e triste das coisas mortas. Das coisas irremediavelmente mortas. Uma dor morrinhenta, constante e má, aperta-lhe o estômago e provoca tonturas.
Por momentos, uma indecisão suave e embaladora, leva-o a vacilar. Depois, um repente atira-o para a vereda, dura de muitos passos, que leva à loja. O caixeiro, gordo e vermelho, fuma tranquilamente. Tem uma camisa leve, de estreitas riscas azuis, enxovalhada e suja, e barba de muitos dias.
Quando Clodjê entrou, atirou-lhe um olhar indiferente e interrogou-o com um gesto de cabeça, violento como uma agressão. Clodjê, as mãos apoiadas no balcão, um esgar de dor a contorcer-lhe o rosto ossudo, não respondeu de pronto. Passou o olhar pelas prateleiras desconjuntadas, pelos panos garridos, por toda a loja.
Depois, de jacto, como se procurasse ver-se livre das próprias palavras, atirou:
- Arroz. Empresta. A fome é muita.
O outro teve um sorriso calmo. Chupou, deliciado, uma fumaça funda e semicerrou os olhos numa concentração grave.
- Já não empresto mais. Acabou. Acabou tudo.
Clodjê demorou a perceber. Apenas as últimas palavras lhe ficaram a martelar os tímpanos, repetidas, até ecoarem, surdas e átonas, no cérebro nebuloso.
- Fome é dor cansada. Tem paciência ...
E a sua voz chorosa, suplicante, tinha o som morno de melodia estranha. E aflitiva.
De novo a dor, funda e funda, roía-o. As pernas, que a fome tornara frágeis, tremiam. Todo ele tremia no receio da recusa, na perspectiva angustiosa de ter de internar-se no mato para devorar o que quer que fosse.
Foi só quando deitou a ponta pela janela que o caixeiro ditou as condições. Sem pressas. Sem interesse. Eram uns chatos. Arroz, arroz. Que diabo faziam às brutas colheitas? Vendiam ? Pagavam os empréstimos ? Bom. Mas porque não lavravam mais ? Sim, porque não lavravam? Não tinham? Lérias! Ralaços! Bêbados!
Resmungava, sonolento e acalorado, arrastando os chinelos de manufactura indígena. E, cínico, saboreava o seu poderio sobre aquele pequeno feudo que esmagava. Repetiu as condições. Pagamento a dobrar, uma galinha de gratificação por cada «bushel» [1] de arroz, promessa de compra de aguardente.
Clodjê hesitou. Voltava a ter de lavrar só para pagamentos ... Recuou até à rua, procurou pedrinhas, embrenhou-se em cálculos. Para comer e semear ... duas, quatro ... talvez vinte «bushels». As vinte pedrinhas comprimiam-se sob a sua mão trémula. Contou mais vinte e juntou-as. Era já um montículo considerável que o tornava atónito e derramava calafrios nas costas em arco.
Devia ainda - recordou de súbito - a manta que comprara nas chuvas para não esticar de frio. Mais duas pedras engrossaram a soma. Teria de vender algum, para arranjar dinheiro. Quanto?
Balançou, na mão em concha, quatro ou cinco pedras. Olhava, besta de pasmo, para o caixeiro sorridente e para a sua mão hesitante. Depois, atirou-as para junto das outras. Passou as mãos no monte e olhou em volta. Tinha o ar torvo e pânico de animal encurralado. O caixeiro ria e o pretito, praticante de balcão, gargalhava com pequeno gritos sincopados e histéricos.
Clodjê fitou-o. Era um garoto enfezado e petulante, rescendente a perfume. O riso alvar e ruidoso, doeu-lhe. E uma raiva funda, dolorosa como a fome, mais dolorosa que a fome, cresceu e toldou-lhe o olhar. Os seus músculos, longos como cordas, desenharam-se sob a pele suada. Um formigueiro estranho, como coceira de sarna, esquentou-lhe o sangue em ondas grossas que subiram até à garganta.
Depois, inexplicavelmente, deixou escapar um riso gutural, forçado, que mais parecia um soluço. Resolveu-se a contar as pedras. Eram muitas. O desânimo tomou conta do seu corpo, machucou-lhe os ombros e atirou a cabeça de encontro ao peito opresso.
Não. Não dava jeito. Mal acabasse a colheita ficaria, de novo, a braços com a fome. Para as chuvas ainda faltava um tempo comprido. Luas e luas viriam antes que chegasse o tempo da sementeira. E todos os dias tiraria arroz para comer. Sabe que é assim. Quem passa fome com arroz em casa?
Quando a «bolanha» tivesse água, já pouco haveria para semear. E só para pagamentos eram aquelas pedras todas. Não. Não dava jeito!
O caixeiro viera até à porta e acendera outro cigarro. E ficou-se a sacudir a caixa de fósforos, compassadamente, com um solo de massas em rumba idiota. Clodjê dispersou as pedras com um pontapé distraído e deu alguns passos. Mantinha ainda o queixo colado ao peito. Os braços tombados balouçavam rente ao corpo, ao abandono.
No largo, o sol irisava o chão de pequenas centelhas faiscantes. E a tal ponto, que dir-se-ia que o solo havia sido tauxiado de seixos. O ar, morno. e irrespirável, vinha em lufadas. Um cajueiro, em frente, parecia vergar sobre o braseiro.
O rio, ao fundo, corria calmo, barrento e sujo, sob o mangal enorme e compacto. Duas garças olhavam as águas estupidamente. Sob o peso da perspectiva atroz, Clodjê caminha quebrado, os nervos tensos, o espírito alvorotado e confuso. Nos olhos parados, uma luz baça de melancolia. E fome!
Mas não. Não pode receber o empréstimo. Ficará, daqui a pouco quase sem semente. Terá uma colheita pobre, de míseras espigas que a loja absorverá. E aquela história das galinhas, dadas assim sem mais nem quê, turva-lhe, mais e mais, o raciocínio lento e emaranhado.
Sob o cajueiro imóvel, estaca de chofre, agarrado por uma ideia súbita que o sacode. E se, de noite, entrar no armazém? Deve ser fácil. Os portões enormes, seguros por um cadeado pequeno e ridículo, serão fraco obstáculo. Mas logo, volumoso e quente, cresce um receio. E a tal ponto o sufoca - esse receio pueril.- que sacode, angustiado, a cabeçorra enorme. O lojeiro queixar-se-á no Posto. E os trabalhos virão. Ainda há pouco pediu o empréstimo. Será o primeiro a ser procurado, ele sabe. E teme.
O lojeiro aumentará - tem a certeza - a quantidade do roubo. Quando o Encanha roubou, uma vez, dois cabazes de arroz, aquele «branco» cachorro foi ao Posto dizer que lhe faltavam dois sacos. E Encanha, que confessou, pagou mesmo dois sacos. O Chefe não acreditou na história dos dois «balaios»[2]. Ladrão não merece confiança. Ninguém mais ouve suas razões.
E se... Ah! Assim, sim. Porque só agora se lembra desta saída? Os olhos brilham. Os seus músculos relaxam-se. Uma avalanche de calma derrama-se sobre ele. Deixa de notar a luz hílare da tarde, as crianças que amodorram, o calor asfixiante que esmaga os homens e as coisas.
Agora, só tem olhos e sensibilidade para a ideia que lhe surgiu e se impõe. Um riso sereno rasga-lhe o rosto cansado. Irá ao Posto queixar-se do lojeiro. Contará aquela conversa das galinhas e da «cana» [3] . Não se deixará roubar. O Posto fará justiça. Quem sabe se até aquela história do pagamento a dobrar não é malandrice?
Pronto, irá ao Posto. Pelo caminho do mato, andando teso, chegará ao cair do sol. Exultava. De soslaio, olhou a loja. Pachorrento, o caixeiro coçava o peito cabeludo e bocejava alto, roído de preguiça. O aprendiz. de olhos vermelhos, efeminado e parvo, afagava a carapinha perfumada e piolhosa.
Sente que os odeia. Com ódio frio e lúcido que tem anos e anos e que geraçôes acumularam. Tem agora o passo rápido e elástico, o andar felino das horas boas.
Sob a calabaceira [5] enorme, dormitam quatro «grandes» [4]. Urna necessidade imperiosa de dar largas à íntima satisfação, leva-o até eles.
Sincopadamente, narra a ideia feliz e o intento inadiável. Riem-lhe os olhos, de novo brilhantes, e a boca sequiosa. Todo ele se distende e crispa em gargalhadas sonoras que anavalham a paz morna da tarde.
Mas os velhos não acompanham a sua alegria ruidosa. Ficam a olhá-lo, incrédulos e pasmados, levemente curvados em atitude hostil. O velho Ranga Inteque, indolentemente - que o calor pesa nos homens e esmaga-os - sacode a cabeça, branca e branca como se, sobre ela, houvesse poisado toda a sumaúma que o vento arrancou dias atrás, E baixo, quase em murmúrio - que o silêncio fechou o mundo e deu à tabanca o ar triste das coisas mortas - sentencia:
- Que tem o Posto com a tua vida? Branco de loja é «branco» mau, tu sabes ? Não, tu não irás.
Nada mais. Recuou para o silêncio, fechou os olhos e, serenamente, aspirou o tabaco que picara. Clodjê olhou-o atónito. O velho parecia ignorá-lo. Bem encostado ao tronco da árvore, fechara-se num mutismo de morto. Olhou os outros. Guardavam também um silêncio opressivo e tácito. Como se dormissem, tinham as pálpebras caídas, o corpo imóvel, a respiração compassada. Lentamente, recompôs-se da surpresa. Teve um leve erguer de ombros, e seguiu.
Os velhos não o compreendiam. Não podiam sentir a sua sede de libertação, a sua ânsia de .justiça. Pesavam, neles, séculos de fatalismo e de muda resignação. Não se habituariam, jamais, a contar com as autoridades.
Entrou em casa, atirou para os ombros a manta garrida, agarrou no terçado [6] e saiu de novo. A tarde em meio, animou-o. Chegaria antes da noite. Atravessou a tabanca, contornou a vedação e rumou direito às «bolanhas». Depois delas, quando passasse a prancha sobre o rio, a vereda abrir-se-ia no matagal.
O restolho queimava-lhe os pés. Dir-se-ia que, momentos antes, uma queimada gigantesca varrera a planície dourada. De longe em longe, minúsculos tufos de vegetação raquítica e amarelada faziam negaças aos bovinos infelizes. Do rio negro de lama subia um gemer monótono de remos.
De súbito, uma ameaça de vómito levou-o a contrair-se. Ondas de fogo, volumosas e coleantes, sobem-lhe do estômago revolto e enovelam-se na garganta. Em momentos, o sofrimento cavou sulcos profundos e estampou, nos olhos sem brilho, o estigma da derrota.
Acocorado, aperta a mãos ambas a cabeça que parece estalar a cada pancada que o peito recebe. Por momentos, tem a impressão que o velho Ranga, sereno e indiferente, está mesmo ali, falando naquela voz ciciada e fria que todos acatam. Sente agora que é mau escutar os «grandes».
O Posto é longe, muito longe, lá do outro lado do mato. Não chegará. Nem hoje. Nem nunca. O velho disse. E ali a dois passos, quase junto de sua casa, os armazéns abarrotam. Todos foram à loja e aceitaram. Nos outros anos foi ele também? Porque não aceitar agora?
Vida de negro é vida cansada. E lojeiro branco mau ... Os armazéns estão perto. Mas talvez o caixeiro já não o atenda. Esquecido de tudo, num esforço violento que arranca lágrimas, retrocede. E caminha agora aos sacões, como um cavalo mal ferrado em rumo à manjedoura. Uma névoa translúcida parece aureolar as copas e as casas, como se o mundo se houvesse fechado numa rodoma de vidro levemente embaciado. E uma pontada aguda e cáustica raspa-lhe o estômago.
Quando, trôpego e sem fôlego, entrou no estabelecimento, o caixeiro sorriu e teve uma piscadela cúmplice para o negrito perfumado e imbecil que o acolitava.
Fernando Rodrigues Barragão
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Notas de A.M.L. / L.G.:
[1] O “bushel” é uma medida de capacidade usada para os cereais, equivalente a, mais ou menos, 35 litros; ou, como medida de volume, equivalente a cerca de 27 quilos. (AML)
[2] O “balaio” é um cesto de palhinha ou verga. (AML)
[3] Aguardente de cana (LG)
[4] Homens grandes (LG)
[5] Baobá, embondeiro (LG)
[6] Uma espécie de espada curta e larga; catana (LG)