quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3131: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - III Parte: Cabedú... até ao nosso regresso (Norberto Costa)


Norberto Gomes da Costa
ex-Fur Mil At Inf
CCAÇ 555
Cabedú
1963/65



GUERRA DA GUINÉ

MEMÓRIAS DA COMPANHIA DE CAÇADORES 555

CABEDÚ – 1963-1965

4 - Cabedú

(Continuação)

iv-Alimentação

A alimentação, embora, de algum modo, repetitiva, podia considerar-se, dadas as circunstâncias, razoável. Em situações de guerra não se espera comida de hotel, nem, tão pouco, uma confecção à base de produtos frescos, que a distância dos centros onde os havia tornava impossível. Ainda assim, consumindo, é certo, muitas conservas, tínhamos possibilidades de conseguir dietas de peixe fresco, de carne das mais variadas espécies, adquiridas aos indígenas, marisco da bolanha e até caça, como se sabe.

O peixe que era pescado junto à costa e nos canais (ou braços de mar) e rios que recortam o território guineense, e não no mar alto, não era, como é obvio, de grande qualidade, pois andava à volta da tainha (em grande parte) e, de quando em vez, de alguma corvina. Provinha de pescadores indígenas que, com as suas tarrafas (redes artesanais que em Portugal também se chamam chumbeiras) e em cima de frágeis canoas que construíam dos troncos de grandes árvores, não muito longe dos métodos usados pelo Homem do Neolítico, conseguiam grandes quantidades de pescado. Esses pescadores, a quem se comprava o produto da sua faina, eram credenciados pela Companhia.

Claro que às tantas já estávamos enjoados das conservas, mas também da tainha frita, que, é bom dizê-lo, não agradava por aí além. As restantes alternativas, por acontecerem de longe a longe, sabiam a pouco.

Foto 12 > Por um dia eram esquecidas as salsichas e as sardinhas de conserva

O modo como se faziam as compras dos animais para suprir as necessidades, que eram muitas, de carne fresca, envolve algumas curiosidades. As galinhas, que eram excelentes (penso que nunca mais comi aves daquela qualidade) e criadas ao ar livre em redor das tabancas, praticamente só iam à mesa dos graduados, que tinham, como sabem, uma messe à parte, dotada de verbas diferentes, ou seja, a importância que o Estado atribuía, por dia, para a alimentação, a uma praça, não era a mesma que cabia a um oficial ou mesmo a um sargento.

Como as galinhas eram sempre poucas, tornava-se impossível fazer-se com elas refeições para a messe geral. Mas como eram então compradas? Normalmente as populações das tabancas não queriam vendê-las, fosse por que preço fosse.

As “brigadas” de compra, chefiadas por um furriel (responsável pela messe, nesse mês), levavam consigo o famoso cão Galinheiro, que a Companhia anterior nos legou, treinado (não por nós, juro) para caçar galinhas sem as estragar. À ordem de: “agarra”, o cão investia e abocanhava a maior que descortinasse. O dono, vendo o galináceo na nossa mão, acedia imediatamente a fazer negócio, pagando nós a importância que ele exigisse. Recorrendo sucessivamente a este estratagema, voltávamos ao quartel com galinhas suficientes para o jantar de domingo.

Claro que o capitão Ritto não sabia nem sonhava como conseguíamos comer tantas vezes galinha de chabéu, pois, de contrário, acabava-se o petisco. A uma distância temporal destas, já nos podemos permitir confissões que, à altura, seriam incómodas.

Quanto aos carneiros, porcos e vacas, esses negócios eram assunto para o vagomestre, na pessoa do nosso amigo Teófilo Silveira, visto que se destinavam a ser consumidos no rancho geral. No entanto, lembro que as vacas provinham da ilha de Melo, onde viviam em liberdade, apesar de terem dono, e eram transportadas até à península de Cabedú em canoas, num trajecto considerável e arriscado.

De qualquer modo, garantia-se a compra a quem decidisse lá ir buscar um ou mais animais, independentemente de a quem pertencessem, para assim aumentarmos a manada que já tínhamos em carteira. Havia até uma pessoa encarregada de tratar dos bovinos, o nosso companheiro “vaqueiro”, de quem não recordo o nome.

E com esta diversificação conseguia-se uma alimentação, como disse, razoável e equilibrada, que não estava ao alcance da maior parte das companhias. Ainda assim, havia quem não se sentisse confortável com o que comia e, pelo contrário, os que nunca se tinham alimentado tão bem na vida.

Como a imagem abaixo testemunha, fabricava-se pão nas nossas instalações. Era um excelente produto resultante da mestria de três camaradas nossos que davam o melhor de si próprios, para que, todos os dias, o tivéssemos bem fresco às refeições.

Foto 13 > Os três padeiros em acção

Um episódio, no mínimo hilariante, aconteceu durante o almoço num dia de visita do comandante-chefe, brigadeiro Louro de Sousa, à nossa unidade em Cabedú. Estavam os soldados espalhados pela parada, com as suas marmitas entre as mãos, saboreando o repasto, que, naquele dia, constava de grão-de-bico, com não sei o quê. O brigadeiro, aproximando-se do nosso companheiro, que eu, francamente, não me recordo quem fosse, mas que tinha sempre resposta pronta para tudo, faz uma observação: “com que a então a saborear um belo dum gravanço. Está com um belíssimo aspecto”.O soldado, que não era da mesma opinião, quanto à qualidade do pitéu, não se calou: “Pois é, meu brigadeiro, é pena é o grão estar cru; está bom é para meter na G-3 e servir de balas”. Perante a risada geral, o comandante-chefe, com um sorriso amarelo, meteu a “viola no saco” e desandou. Não quer dizer que as palavras proferidas fossem, exactamente, estas, todavia, o sentido do diálogo corresponde inteiramente à verdade.

Como consta doutro capítulo, havia um grupo que ia muito à caça, que se traduzia quase sempre, dada a abundância de espécies, em belas caçadas, passe a redundância. Todavia, o entusiasmo levava-nos, por vezes, a pôr a nossa segurança em perigo, ao afastar-nos muito do perímetro considerado aceitável para um pequeno grupo (dois, três militares), se arriscar.

Recordo que um dia ultrapassei esse limite, acompanhado pelo nosso guia, Mamadú Canté, chegando até próximo da tabanca de Cacisse, onde havia uma bolanha, que quase sempre tinha gazelas a pastar. Um tiro certeiro fez tombar uma que, pelo seu elevado peso, não foi possível, a mim e ao meu acompanhante, transportá-la até à base. Assim, enquanto ele próprio foi à tabanca procurar alguém que nos auxiliasse nessa tarefa, eu esperei só, já de noite, junto do troféu. Dois habitantes de Cacisse, bem musculados, lá levaram a gazela até ao quartel, onde já tinham dado pela nossa falta e, com a noite a cair, havia até uma certa preocupação, enquanto o autor do leviano acto e o seu cúmplice respiravam de alívio. Confesso que nesse dia tive medo e jurei a mim mesmo que nunca mais cometeria semelhante loucura. Facilmente podíamos ter sido apanhados.

Fui, como não podia deixar de ter sido, censurado e bem pelo capitão Ritto, que, a partir daí, preocupado, começou a limitar-nos o campo de acção nas surtidas da caça. Por fim, quando já estava próxima a partida para Bissau, para embarcarmos, proibiu mesmo qualquer militar de sair para a caça, pois, pelo que nos disse, recebera a informação de que o IN se preparava para nos “caçar”. Episódios que acabaram bem, mas que podiam ter “dado para o torto”.

Ainda dentro da problemática da alimentação, às vezes, o azar aparente transforma-se em sorte para uns tantos. Tínhamos, como se sabe, uma boa reserva de galinhas que o Galinheiro e os seus mentores tinham criado e que estavam à espera de melhor ocasião para fazerem parte daquele chabéu, que um pequeno grupo costumava saborear ao domingo. Num dos vários ataques a que estivemos sujeitos, durante os quase dois anos em Cabedú, uma morteirada, talvez do famoso 82 mm, acertou em cheio na capoeira que ficava perto da secretaria. Resultado: todas as galinhas mortas, algumas despedaçadas. Mas, e esta é a parte agradável do acontecimento, estavam todas em condições de os cozinheiros fazerem com elas um excelente almoço para todos, ou seja, mesmo para aqueles que não estavam destinados a “meter-lhe o dente”, e que assim festejaram o tiroteio de véspera.

A hora das refeições, nomeadamente entre pessoas amigas ou conhecidas, comporta sempre um ritual que as retira do afã do dia-a-dia para as colocar num ambiente que envolve alguma serenidade, descontracção e, sobretudo, comunhão de sentimentos. Em plena guerra e nas matas da Guiné, com todas as diferenças que essas circunstâncias originavam, esse estado de espírito não era assim tão diferente. Porém, o clima de tensão que esse ambiente proporciona requer sempre, da parte de todos, uma actuação cuidadosa, em que o bom senso prevaleça, de modo a evitar conflitos ou a resolvê-los quando surgem.

Guardo um desses momentos demonstrativos da hipersensibilidade a que estávamos sujeitos: estava-se a servir o almoço ao pessoal e eis senão quando, por alguma falta de cuidado do cozinheiro que distribuía pelas marmitas a refeição ou, eventualmente, por o nosso companheiro, que não consigo identificar, ter desviado a mão que a segurava, a verdade é que parte do almoço, que, como é compreensível, estava bem quente, caiu-lhe em cheio no braço. Porque o soldado estivesse, eventualmente, num dia mau, no que respeita a esse stress, que nos afectava a todos; porque tivesse achado que o cozinheiro teria feito aquilo de propósito; enfim, por qualquer sentimento que só o protagonista poderia explicar, criou-se ali um momento de alguma violência física, que envolveu não só os dois actores principais, mas muitos outros que acorreram, tentando sanar o conflito. Uma cena de uma certa altercação, que acabou por ensombrar o ambiente de acalmia e confraternização que o almoço sempre proporcionava. Terei presenciado este episódio (não posso precisar) por estar de sargento-dia, que assistia à distribuição do rancho, ou então por ter passado por ali, aquando da eclosão deste momento um pouco mais quente.

Precisamente por ter reflectido sobre o assunto, tenho uma explicação que vai um pouco mais além das que, normalmente, nos acorrem numa situação destas. Como sempre acontece numa companhia militar composta, como se sabe, por diversas especialidades e funções, que em situações de guerra estão sujeitas a diferentes graus de perigosidade, sentia-se uma tensão latente, embora controlada, entre os que saiam constantemente para operações militares (os atiradores e os conhecidos elementos de apoio) e aqueles que raramente, ou nunca, tomavam parte nessas acções, não se expondo assim ao mesmo perigo que os primeiros (os cozinheiros, por exemplo). Sem se poder atribuir a culpa a ninguém, já que as funções correspondiam à especialidade que se tinha, mesmo assim, todos os momentos eram bons para expressar esses sentimentos. De qualquer modo, este tipo de acontecimentos, dentro da tal tensão referida, foram muito poucos e sem expressão visível.



v-Acontecimentos marcantes

Durante dois anos numa guerra de desgaste permanente, quer físico, quer psicológico, há sempre momentos que marcam para o bem ou para o mal a vida e a memória de quem os viveu.

O primeiro momento, penso eu, difícil e marcante para o grupo que o sofreu, foi o ataque ao barco em que viajávamos para Cabedú, em frente da ilha do Como, já atrás referido, até pelas consequências que teve: um nosso companheiro atingido gravemente por uma bala, que o terá incapacitado, segundo julgo saber, para o resto da vida. Também por ser, digamos, o nosso baptismo de fogo, que acaba por gerar sempre momentos de grande emoção.

Um outro momento, e não sigo uma ordem cronológica, terá sido a grande operação do Cantanhês, com fuzileiros, pára-quedistas, força aérea e marinha, durante alguns dias, com um desgaste muito grande para todos, apesar de não ter resultado em grandes danos físicos para os grupos de combate.

Provavelmente, o primeiro ataque ao quartel, quer pela novidade que constituiu, embora o esperássemos mais dia menos dia, quer como teste à nossa capacidade de reacção, que acabou por ser boa, embora fosse uma incógnita, dada a ansiedade que percorre cada ser humano, nos momentos difíceis, melhor controlada por uns do que por outros, também resultou num marco importante na nossa vida de combatentes.

Uma ou outra operação mais complicada que, a esta distância no tempo não posso precisar, entraram igualmente como referências no conjunto de memórias que guardamos. Porém, recordo uma em que até a nossa companhia não entrou, mas em que a pista de aeronaves serviu não só de base para o eventual reforço de homens e material, mas também de evacuação de mortos e feridos. Guardo o sentimento de tristeza que senti ao assistir à transferência de vários jovens mortos ou muito feridos, que iam chegando no helicóptero para a avioneta estacionada, para seguirem para Bissau. Para quem, como nós, está numa situação em que corria um perigo semelhante ao daqueles infelizes companheiros, é deveras traumatizante assistir a um espectáculo desta natureza. A operação referida ter-se-á realizado numa área junto do rio Cacine, se bem me recordo.

A queda de uma avioneta ainda no perímetro do quartel, levando a bordo um tenente do exército, um sargento e um cabo da força aérea, ao levantar voo, depois de terem recolhido mensagens de Natal para serem passadas na rádio, e que resultou na morte horrível dos três militares, carbonizados dentro da aeronave, em virtude do incêndio que deflagrou, após o seu contacto com o solo, terá sido o momento mais dramático vivido em Cabedú. Tudo isto se deu à nossa vista, poucos minutos após os três militares, que pertenciam ao sector encarregado destas acções meritórias destinadas a porem os combatentes em contacto com os seus familiares, se despedirem com grande simpatia da Companhia 555. Assistir ao dramático acidente sem poder fazer absolutamente nada por eles, marcou-nos, posso afirmá-lo, durante bastante tempo. A exumação dos cadáveres foi feita em Cabedú, onde os corpos permaneceram até serem transportados para Bissau. A guarda de honra foi feita por secções, em sistema de roulement. Até as próprias refeições dos dias seguintes, pelo menos para alguns (os mais sugestionáveis), foram fortemente afectadas. Havia sempre quem tivesse brincadeiras de mau gosto, lembrando o que eles sabiam condicionar esses tais mais sensíveis. Enfim, a juventude a tudo se permite. Eu conto isto, porque pertencia ao tal grupo que suportou, com uma paciência infinita, as “bocas” desses inveterados brincalhões.


vi-Dificuldades / Contras

África foi sempre e continua a ser um continente muito susceptível de, no seu território, se desenvolverem muito tipos de febres, provavelmente devido às características do clima, à má qualidade das águas, à possibilidade de mordedura de muitos insectos, ou mesmo à falta de higiene na confecção dos alimentos. O paludismo é uma dessas febres e aquela a que os militares mais estavam sujeitos. Porém, dada a boa cobertura de vacinações, os medicamentos disponíveis no âmbito das Forças armadas, o cuidado que se tinha em nunca beber água sem a submeter a filtros, fervura ou desinfectantes, evitou que esses problemas de saúde assolassem a Companhia. Tirando um caso ou outro, não foi um problema sério que tivéssemos de enfrentar. Mesmo assim era um risco que esteve presente, e com ele tivemos que viver durante todo o tempo da comissão.

O clima quente e húmido e um tanto ao quanto insalubre, o terreno pantanoso que nos criava obstáculos muito sérios na movimentação de tropas, (veja-se o caso de todos conhecido e que poderia ser complicado se a intervenção não fosse rápida, em que o Joaquim Rézio ficou enterrado num lamaçal, ao atravessar um rio na maré baixa e já não conseguia, por si só, sair dali, sendo então puxado por cordas e libertado da situação embaraçosa em que se encontrava), a pluviosidade abundante na época das chuvas, alagando muitas zonas por onde teríamos que passar, algumas carências alimentares (pouca diversificação e falta de produtos frescos), um inimigo aguerrido e razoavelmente bem equipado, foram dificuldades já apontadas ao longo deste trabalho.

Ao elenco de contrariedades sentidas pelos militares em terras guineenses há a acrescentar, apesar de parecerem marginais e até caricato enunciá-las, a acção maléfica de certos insectos, que no mínimo nos faziam a “vida negra”: as melgas, as matacanhas, as formigas (térmitas) e as abelhas africanas. Provavelmente haveria outros que também incomodariam o suficiente para merecerem aqui referência, porém é a estes, e com graus de nocividade diverso, que pretendo dedicar algumas linhas.

As melgas, esse bichinho “simpático” que nos punha os nervos em franja, merecem, da minha parte, uma referência especial, dadas as noites terríveis que me fizeram passar, não muito diferentes daquelas que proporcionavam aos meus colegas. Quando se dormia no aquartelamento, o mosquiteiro colocado nas camas obstava a que o “massacre” se realizasse, mas nas operações em que se tinham passar uma ou várias noites fora e em plena mata, onde a concentração desses insectos era enorme, aí, sim, sentia-se, e de que maneira, a sua presença. No que a mim diz respeito, confesso, com risco de parecer demagógico, que temia mais uma noite passada no exterior, em que tinha a certeza que ia ser mordido em todos os centímetros quadrados do corpo, do que o próprio inimigo. Refira-se que elas conseguiam morder mesmo através do camuflado, não havendo, portanto, nada que conseguisse travar os seus maléficos intentos. Havia uma rede que se levava para colocar na cabeça e sobre as partes descobertas, mas que não evitava, como se disse, que fôssemos atingidos seriamente. A época das chuvas era a pior no que respeita a este flagelo, já que a humidade, aliada ao calor abafado que se fazia sentir, proporcionava o ambiente ideal para o seu desenvolvimento.

As formigas, se tínhamos necessidade de nos abrigarmos atrás duma termiteira, essas construções curiosas (conhecidas por montes baga-baga) que erguiam para suas moradas, para nos protegermos dum ataque inimigo ou para melhor tomar posição para fazer fogo contra esse mesmo inimigo, e de alguma forma intervir no seu afã constante de reforçar o seu stock alimentar, podiam seriamente causar danos a esses incautos ou vítimas involuntárias. Estas formigas são perigosas, se atacam em conjunto e em simultâneo, de tal modo que podem causar a morte a essas pessoas. Porque só acidentalmente se poderia ter contacto com estes xilófagos insectos, não eram de molde a constituir grande problema, se para tal houvesse a devida atenção.

Quanto às abelhas, e quase pela mesma razão, que se traduzia em que só muito acidentalmente e por algum descuido se podia assanhar o enxame que, normalmente, se localizava em árvores velhas e carcomidas, poucas vezes houve incidentes, que não foram, mas podiam ser muito desagradáveis. É conhecida a ferocidade destas abelhas que, tal como as formigas, podem levar à morte de quem, incautamente, interferir no trabalho da colónia.

As matacanhas privilegiavam os pés que estivessem em contacto com a terra, portanto, o chão. Ou seja, as vítimas eram quem andasse descalço. Constava duma larva que se alojava no interior da pele dos pés. Tornava-se incómodo, mas evitável se houvesse algum cuidado. Para a sua extracção recomendava-se uma pequena cirurgia, que o Dr. Matos Ferreira ou o nosso amigo Rafael Mendes (carinhosamente alcunhado por nós de “Pastilhas”, pelos LM’s que receitava para toda e qualquer doença que surgisse), com toda a mestria executavam.

Os rios também ofereciam alguns perigos que, se atravessados em certas zonas, podiam ser efectivos. Na Guiné os crocodilos infestam a maior parte dos cursos de água, portanto este sáurio é sempre uma ameaça para o ser humano. As piranhas, muito abundantes na ex-colónia portuguesa, podiam igualmente potenciar alguma preocupação, se utilizássemos regularmente os rios e canais para fazer atravessamentos, o que não era o caso: os nossos espaços de actuação eram, preferencialmente, a mata e a bolanha.

Quanto a animais selvagens e ferozes, nem vê-los: algumas cobras, e pequenas (lembro-me apenas de uma, de um porte razoável, que encontrámos e matámos), uma onça ou outra fugidia e mais nada que mereça referência e que a minha memória retenha.

E, quanto a perigos e dificuldades, não me recordo de mais nada que mereça ser referido. Normalmente, recordamos mais e mais facilmente aquilo que nos correu menos bem, todavia aqueles momentos sérios que, digamos, fizeram mossa, não foram assim tantos como isso. Consequência dum bom planeamento e duma boa actuação, como já foi amplamente dissecado? Provavelmente, sim.


vii-A despedida

O regresso a Bissau para aguardar embarque para a Metrópole (2º e último grupo), que se dá em finais de Setembro de 1965 foi, não só no que a mim diz respeito, mas também pelo que senti em relação a companheiros nossos, um misto de alegria, já que significava o início do regresso a casa, e de nostalgia, para não dizer tristeza, de deixar pessoas que confiavam em nós e que nos consideravam amigos. Vi gente a chorar (os Mamadús, por exemplo), parecendo já, de algum modo, antever o drama que se haveria de abater sobre eles, a partir de 1974. Como é sabido, a colaboração com os militares portugueses havia de custar-lhes muito caro, o que implicou, segundo julgo saber, na maior parte dos casos, a perda da própria vida. Foi um dos assuntos mal defendido ou, de todo, irresponsavelmente negligenciado pelo Estado português (potência colonizadora), aquando das negociações para a independência da ex-colónia.

Aquela comunidade identificou-se muito connosco, provavelmente pela política da Companhia, que foi sempre a de eleger a componente psicossocial como prioritária para resolver, ou ajudar a resolver, um conflito que tinha vindo para ficar e levou àquilo que todos conhecemos.

Quem acha que o teatro de guerra não permite relações sociais equilibradas, amizades profundas e humanidade no tratamento daqueles que, duma maneira ou de outra, se encontram no campo do inimigo, está redondamente enganado. Será, admito-o, uma característica tipicamente portuguesa, que nos distingue de outros povos e de outras culturas, e que é o darmo-nos e sentirmo-nos bem em qualquer ambiente e situação e conviver sem preconceitos com outras culturas, religiões e etnias muito diversa das nossas, mas também o de termos um comportamento humano para com os nossos inimigos.

Foto 14 > Cumprimentos de despedida: o comandante com alguns “homens-grandes”

Há a ideia generalizada e assumida, mas nunca é demais lembrá-la, de que as populações civis são sempre as maiores vítimas das guerras, sejam elas de que tipo forem, em que época e em que lugar se desencadeiem. Encontram-se entre os dois fogos, são olhadas com desconfiança pelos contendores e sofrem as represálias de um ou de outro lado, conforme optam por colaborar com qualquer parte do conflito. A guerra de África e, concretamente, a da Guiné foi, neste particular, exemplar no passar à prática esta teoria. Foi uma realidade, a nível da Província, nem sempre bem compreendida pelos militares portugueses, talvez pela situação vivida, pelo stress que a guerra origina em todos e em cada um de nós. Cabedú, também nesse aspecto, pelo menos enquanto estivemos lá, foi diferente e, quanto a mim, desenvolveu a melhor política.

Por vezes interrogo-me se os que nos substituíram seguiram os métodos desenvolvidos pela CCAÇ 555 ou se, pelo contrário, abandonou à sua sorte aquelas comunidades indefesas e à mercê de métodos pouco ortodoxos e desumanos que os independentistas utilizavam para as obrigar a ter do seu lado. Tenho na memória o que fizeram, num período já muito próximo da nossa partida, ao incendiar a tabanca Sosso, obrigando os seus habitantes a refugiarem-se junto ao quartel e a ficarem sob a nossa protecção e responsabilidade.

Assim sendo, o que me resta? Falar de sentimentos (meus e dos demais) da tal dualidade de sensações que refiro, da tristeza que vi estampada no rosto de muitos, da incerteza no amanhã que adivinhei nos semblantes daqueles que nos foram acompanhar ao cais onde embarcaríamos numa lancha da marinha com destino a Bissau.

Ao afastar-me do tarrafe que cobre as margens do riozinho, ou braço de mar, que permitia que os barcos entrassem e saíssem de Cabedú, dei comigo a interrogar-me qual o futuro que caberia àquela terra e àquelas gentes já martirizadas pela guerra, mas que ainda iria durar mais nove anos e, agora sabemo-lo, pelo que se iria seguir que, como constatámos e continuamos a constatar, não foi e continua a não ser risonho.

Ainda a propósito dessa despedida, não consigo esquecer a atitude do guia Mamadú Canté (e será também por isso que eu guardo o sentimento que aqui expressei) ao pedir-me que o trouxesse connosco para a Metrópole. Passava, se bem me lembro, ele próprio por uma fase de algum abatimento psicológico, o que tornava as coisas menos fáceis para quem partia e deixava um colaborador fiel em todas as circunstâncias, inclusivamente, nas já comentadas aventuras, que ambos vivemos nas caçadas às gazelas e às galinhas de mato. Todas aquelas pessoas que, ao fim e ao cabo, nos ajudaram a suportar os dois anos de guerra com a sua colaboração, com a sua companhia, com as sua histórias, que ouvíamos com muito interesse, e (porque não?) com a sua amizade, e nos viram partir, estou certo, com mágoa, deram-nos certeza que algo fizemos, ou ajudamos a fazer, de útil por elas, o que constitui um marco positivo e muito importante da nossa passagem por terras guineenses.

Gostaria muito de descrever esses momentos do adeus a Cabedú com pormenores, concretizando atitudes, discursos, acções, enfim, produzir um relato que nos transpusesse para aquele dia, vivendo-o com muita realidade. Todavia, isso é, de todo, impossível: aquilo que se passou já se apresenta aos meus olhos dum modo difuso, muito distante no espaço e no tempo.


5 - Conclusão

A mobilização para a guerra de África provocou nos militares reacções de receio, mas também de curiosidade. Os portugueses em geral ainda tinham de África, por altura dos princípios da década de 60, ideias povoadas de mitos e fantasias construídos acerca de populações estranhas, que habitavam lugares infestados de animais selvagens e, portanto, perigosos. Passou a acrescer a essa realidade, em certa medida virtual, a situação de insurreição armada lançada a partir de 1961, essa sim real, que obrigava os militares a enfrentarem um inimigo perigoso, até em certos momentos, sanguinário. Todo este caldo de cultura não ajudava em nada a moral de jovens camponeses e citadinos, que se prepararam o melhor possível, mas, porventura, não o suficiente, para viver e combater no teatro de guerra africano.

No que respeita à Guiné, e concretamente a nós, Companhia 555, pouco a pouco foram-se desconstruindo os clichés, as ideias criadas pelo desconhecimento e, não raras vezes, pela ignorância de quem as difunde e começa-se a ter contacto com uma realidade que não é bem aquela que nos tinham vendido, nem tão pouco a que pensávamos existir. Só o perigo se mantinha e, provavelmente, maior do que julgávamos ser possível. Mas até esse interiorizámos bem, tomando as medidas que se impunham para que os dois anos em contacto com essa realidade não interferissem negativamente no regresso, que se desejava feliz.

O dia-a-dia, o nosso dia-a-dia no quartel do mato passava-se, como ficou amplamente expresso, entre as tarefas da segurança, as operações militares e a rotina dos longos dias. Felizmente que a pressão da guerrilha não nos tirava duma normalidade que construímos e que cultivávamos em cada dia que passava (lembram-se do içar e do arrear da bandeira, com honras militares, como se estivéssemos num quartel normal na Metrópole?), como parecia não acontecer em certos pontos da Guiné.

Assim, os dias cumpriam-se no contacto com as populações, nas idas ao bar, na troca de correspondência com os familiares e a namorada, na prática de algum desporto e até na caça. Tudo isto intervalado de perigos iminentes, de descargas de fogo impiedosas, de morteiradas, de lançamentos de granadas foguete, dum lado e do outro, de tiros de canhão.

Os quartéis do mato e, concretamente, o de Cabedú, reproduziam um pouco, se estivermos atentos, a cultura e modo de ser e estar dos seus ocupantes, ou seja, de nós mesmos. Não se lembram das vacas que pastavam, ali mesmo, junto ao arame farpado? Das galinhas que haveriam de ter um fim triste? Da horta que se cultivava? Enfim, daqueles rituais transportados das nossas aldeias e também cidades para o interior da mata guineense.

Chegados a casa, interrogámo-nos se daquele tempo que passámos na guerra tirámos algo de útil para as nossas vidas futuras. Pondo de parte aquele princípio, que não se discute ou, pelo menos, não se discutia, e que era o termos a certeza do dever cumprido para com a Pátria, não haveria mais nada, além disso? Pessoalmente acho que sim, que beneficiámos com a passagem pela guerra. Senão vejamos: não teremos crescido como homens? Quanto valem as amizades que fizemos, que perduram até ao fim das nossas vidas? O próprio conhecimento de terras muito diferentes da nossa, de culturas estranhas e, por vezes, exóticas, mas dum valor enorme para a nossa própria formação? O contacto com uma flora e uma fauna riquíssimas?. Costumo dizer que ganharam todos os que conseguiram regressar vivos e com saúde; perderam os que tiveram a infelicidade de as coisas para eles não correrem da melhor maneira. Para esses e para aqueles que já não estão entre nós, resta-nos curvar-nos perante a sua memória.


6 - Glossário

Bajuda: rapariga indígena ainda virgem
Bate-estrada: aerograma
Bolanha: terreno plano e alagadiço para cultivar arroz
“Cana”: aguardente de cana-de-açúcar
Chabéu: molho de baga de palmeira para cozinhar frango
“Chuvas“: anos de vida
“Homens-grandes”: chefes de etnia ou de tabanca
“Maçarico”: militar com pouco tempo de guerra
Matacanha: larva africana que se infiltra na pele dos pés
Tabanca: aldeia guineense
Tarrafe: vegetação rasteira junto aos rios ou braços de mar


7 - Mapa da Guiné

Foto 15 > Mapa da Guiné

Norberto Gomes da Costa
Mestre em História
Ex-Fur Mil Inf
CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65

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Nota de CV:

Vd. Postes anteriores de 11 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)

12 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3130: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú, 1963/65 - II Parte: O nosso quotidiano em Cabedú (Norberto Costa)



Norberto Gomes da Costa
ex-Fur Mil At Inf
CCAÇ 555
Cabedú
1963/65



GUERRA DA GUINÉ

MEMÓRIAS DA COMPANHIA DE CAÇADORES 555

CABEDÚ – 1963-1965

4 - Cabedú


Dar um aspecto mínimo de conforto e segurança ao local, onde haveríamos de permanecer cerca de 2 anos, foi a primeira decisão, e em boa hora tomada, pelo comando da Companhia. Recordo o entusiasmo com que todos, desde o responsável máximo até ao elemento mais modesto, tomou em ombros essa tarefa, já que não havia tempo a perder: construção de abrigos com cobertura de palmeiras, à prova de morteiros e LGF, junto das casernas e quartos; colocação de chuveiros feitos de bidões em espaço aberto para todos; abertura de poços com água suficiente para as necessidades, que eram muitas; compra e instalação de um gerador de electricidade; postes de iluminação eléctrica em toda a extensão à volta do quartel que nos permitia ver até bem dentro da mata, que fora desbastada num perímetro considerável; um cais acostável e uma pista para aeronaves larga e com extensão suficiente; um forno de cozer pão e outras infra-estruturas melhoradas ou feitas de novo. Será de todo imperioso realçar o esforço hercúleo dispendido por todos os elementos da Companhia, sem as máquinas e as ferramentas eléctricas ou mecânicas que hoje existem, mas à força de braços e equipamento rudimentar, para que a nossa “fortaleza”, como lhe chamo, nos garantisse o mínimo de segurança e fosse um lugar, de certo modo, agradável para se viver.

Enfim, foram tomadas medidas que se provaram fundamentais para o êxito da missão. A frase “VISITE CABEDÚ”, pintada nos telhados das casernas, funcionou durante todo o tempo como chamariz demonstrativo da simpatia com que seriam recebidas todas as pessoas que nos visitassem. São estes pequenos pormenores que, por vezes, fazem a diferença, pelos efeitos positivos que se conseguem. Todos os pilotos achavam graça ao convite e era a Cabedú que sempre iam de bom grado.

Foto 3 > “Fortaleza” de Cabedú

i-Acções militares.

Os primeiros tempos envolvem normalmente um misto de curiosidade e algum receio da realidade existente, mas não conhecida em toda a sua extensão, mais a mais, num contexto de guerra de guerrilha, que começava a tornar-se complicada para as tropas portuguesas, em todo o território da então província da Guiné. E isso notava-se nas acções que voluntariamente empreendíamos ou a que éramos forçados a responder. Pertencíamos ao famoso grupo dos “maçaricos” (nome do conhecido pássaro, muito abundante na Guiné, de cor esverdeada, como o nosso fato camuflado, ainda novo e limpo). Denominação que, evidentemente, repudiávamos, por ser um insulto à nossa condição de militares “experimentados” e “corajosos”. Todavia, cumprindo as regras assumidas na gíria militar, ainda levaria algum tempo até que deixássemos de o ser.

Foto 4 > Visita do Comandante-Chefe a Cabedú: o General Schulz com o Cap Ritto

Pouco tempo após a nossa chegada começámos a ser “visitados” por grupos de guerrilheiros, como se estivessem ansiosos por nos darem as “boas vindas”. Fustigavam, durante horas, o quartel, já com armas de calibre apreciável, que incluíam o famoso morteiro 82 de fabrico russo, criando algum alvoroço nos primeiros tempos, mas que, passada a surpresa do primeiro choque, se transformou em rotina, apesar de nos obrigarem a uma resposta à altura das circunstâncias, que, normalmente, se saldava por alguns mortos deixados no campo de batalha, da parte do inimigo, acompanhados de muito material, igualmente abandonado. Apesar deste cenário se repetir ao longo do tempo em que permanecemos em Cabedú, as vítimas do nosso lado foram mínimas, não obstante numa dessas investidas, um soldado africano ter sido atingido mortalmente. Não me recordo de mais situações dignas de registo.

Num dos ataques ao nosso aquartelamento, tomou parte, como sabemos, o actual Presidente da Guiné- Bissau, Nino Vieira, na altura comandante, penso, da região sul, na estrutura da guerrilha. Foi ferido e veio um helicóptero da vizinha Guiné Conacri recuperá-lo num local bem perto das nossas posições. Foi visível a aeronave baixar e levantar de seguida, com toda a certeza levando a bordo o Nino, na altura já uma personalidade importante na hierarquia do seu partido. Comunicado o facto ao comando de Bissau, foi mandado, se não estou equivocado, um avião de combate em sua perseguição que, no entanto, não chegou a tempo de interceptar o hélio, escapando assim Nino Vieira de ter caído nas nossas mãos. Uma guerra faz-se de êxitos e fracassos, mas também de acontecimentos curiosos e este foi, sem dúvida, um deles.

Foto 5 > Grupo de Combate em acção de reconhecimento

As flagelações ao nosso quartel eram feitas sempre de noite e a altas horas. Querendo surpreender-nos a horas mortas, pensando que a vigilância seria menor da nossa parte, a verdade é que esses ataques, que eram feitos com muitos efectivos e com grande quantidade de material, nunca constituíram um grande problema para a nossa defesa. O sistema estava bem montado, mesmo antes de termos o pelotão de artilharia, que a determinada altura veio reforçar a estrutura militar de Cabedú. Eram sempre repelidos com perdas importantes de homens e de material, visíveis ao nascer do dia, quando se fazia o reconhecimento dos despojos da refrega, deixados no terreno. A partir do conhecimento de que o inimigo tinha morteiros, e aconteceu pouco tempo após a nossa chegada a Cabedú, a instabilidade emocional das nossas tropas cresceu um pouco, na medida em que eles podiam ter feito muito estragos, se a precisão de tiro fosse melhor, o que, felizmente, nunca aconteceu.

A zona de intervenção da nossa Companhia era, como todos sabemos, das mais activas, no que à guerrilha diz respeito, dado os dois grandes centros de concentração de efectivos do PAIGC, Ilha do Como e Cantanhês, (onde, alternadamente, tiveram sempre grande domínio), se encontrarem perto da nossa base. Foi um problema com que tivemos de conviver, durante todo o tempo da nossa permanência aí, com soluções à medida das necessidades.

Inúmeras operações militares foram desencadeadas pela nossa Companhia, quer individualmente (só a 555 ou alguns dos seus pelotões), quer em conjunto com os pára-quedistas, fuzileiros, marinha e força aérea. A operação Tornado, em plena mata do Cantanhês, foi disso um exemplo, na medida em que envolveu toda essa panóplia de efectivos, durante alguns dias. Recordo a Companhia de fuzileiros, comandada pelo já famoso (nem sempre pelos melhores motivos) 1º tenente Alpoim Calvão, militar que, mais tarde, no princípio da década de 70, já no tempo do General Spínola governador e comandante-chefe, se haveria de destacar ao comandar a força que invadiu a Guiné-Conacri e libertou os militares portugueses que estavam nas prisões de Sekou Touré, não conseguindo, no entanto, todos os objectivos a que se propusera.

Tenho presente ainda duas acções militares, de alguma envergadura, em que tomámos parte: a operação Remate que foi desencadeada pela nossa Companhia em conjunto com os Fuzileiros navais e que correu bem, pelo menos no que diz respeito aos nossos militares; igualmente me recordo da operação Tufão, aqui com a Força Aérea e a Marinha, não havendo, mais uma vez, danos físicos para a Companhia.

Chegados a Cabedú, demos conta de uma grande operação na Ilha do Como, de que ouvíamos apenas os rebentamentos e tiros constantes e as aeronaves a cruzarem o espaço aéreo do nosso aquartelamento de Cabedú. Soube tratar-se da importante operação Tridente, uma das maiores feitas na guerra da Guiné, em que tomaram parte forças do Exército, Marinha e Força Aérea. Como o teatro de operações não era muito distante da nossa zona, tivemos oportunidade de acompanhar, embora à distância, o desenrolar desses combates, servindo, inclusivamente, para ficarmos cientes, se é que ainda não estávamos, da zona perigosa em que a Companhia estava inserida na função de quadrícula. Porém, lá no fundo, pelo menos alguns de nós, estávamos a gostar e sentíamo-nos, de certo modo, vingados com o tratamento impiedoso que estavam a ter os guerrilheiros do PAIGC, que nos tinham atacado poucos dias antes, ao passarmos de barco em frente à Ilha. Aliás, foi a partir daí que o Como deixou de ser uma zona importante, como local de refúgio, e que os independentistas ocuparam grande parte do Cantanhês (vidè Guerra Colonial, de Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes), trazendo complicações para os aquartelamentos de Bedanda, Catió e Cabedú. (Tinha que sobrar para nós!.)

Foto 6 > Içar da bandeira portuguesa em Cabedú

Na minha modesta opinião, umas das razões - talvez a mais determinante - no relativo sucesso da Companhia ter regressado com um número mínimo de baixas, sem deixar de cumprir as missões que lhe foram atribuídas, foi o bom senso demonstrado pelo seu comandante, ao longo de toda a comissão, e que se traduziu em nunca nos ter arrastado levianamente para situações que poderiam ser complicadas, e até com desfechos dramáticos, como aconteceu, infelizmente, com companheiros de outras companhias, em vários pontos da Guiné. Cumprir com seriedade, sem falsos heroísmos, foi o lema, com o qual todos saímos beneficiados. É o que penso, admitindo que outra ou outras razões se sobreponham à que aqui expresso.

Em dois anos foram muitas, como acima refiro, as acções militares desencadeadas por nós, algumas delas não deixando sequer memória, por serem de pouco aparato ou envergadura, ou então por terem corrido bem, não deixando sequelas nos efectivos comandados por António Ritto. De qualquer modo, ponderando toda a missão, na área de intervenção do nosso grupo, os resultados são, sem dúvida, positivos. Nem tudo do que aconteceu nos podemos orgulhar (é assim em todas as guerras); todavia, dadas as circunstância em que decorria a nossa acção, o que a Companhia fez, seguindo as orientações de Lisboa através de Bissau, é de molde a deixar-nos minimamente com o sentimento do dever cumprido.

ii-Relações sociais

No aspecto social – relação dos militares com as populações das tabancas vizinhas – os contactos tiveram sempre um carácter amistoso. Havia a relação institucional do comando da Companhia, no âmbito da chamada acção psicossocial, com os “homens grandes” representantes das etnias que constituíam a sociedade indígena, que estava, como sabemos, muito dependente da tropa. Penso que essa relação funcionou sempre bem e até com frutos para o nosso lado. Porém, o que aqui merece ser realçado, digamos assim, é o relacionamento das populações com todos os elementos da Companhia. E esse, como se disse, funcionou sempre bem, tirando alguns, poucos, episódios desagradáveis, que foram sanados rapidamente (lembremos até alguns castigos bastantes duros aplicados a companheiros nossos, por assédio sexual sobre bajudas, usando a força da sua condição de militares).

Foto 7 > Convívio entre jovens das duas comunidades

De entre todas aquelas pessoas havia duas figuras para mim incontornáveis, representantes de etnias muito significativas da localidade: o velho Mansoa, de etnia balanta, e Seco Aidara, líder influente dos Sossos. Outros líderes havia, mas importa falar um pouco sobre estas duas personalidades interessantes, que me marcaram bastante, embora de modos diferentes. Mansoa, com muitas “chuvas” contadas, com um rol impressionante de mulheres no activo, ao longo da sua vida (a poligamia era normalmente praticada), em que a mais nova do grupo que então pertencia ao seu “harém” era uma jovem que, à vontade, podia ser sua neta, bebia “cana” como nós bebemos água, o que lhe garantia a embriaguês permanente. Diziam os seus amigos ou vizinhos que o velho homem que um dia (que ele já não conseguia recordar) chegou a Cabedú, vindo da cidade de Mansoa – daí a sua alcunha – só tinha apanhado uma bebedeira, que ele conseguia manter com toda a boa disposição e eficácia, ao longo da sua já longa vida. Claro que Mansoa teria outras qualidades, que o tornariam útil no seio da sua comunidade, pois a sua importância não derivaria apenas das aqui referidas, mas que nós desconhecíamos.

Seco Aidara, de um comportamento social irrepreensível, era, provavelmente, a pessoa que o comandante mais ouvia e com quem mais contava para um bom relacionamento, que, ao fim e ao cabo, sempre se desenvolveu entre os militares e a comunidade indígena. Seguidor da região islamita (os balantas eram animistas), já tinha ido a Meca, o que lhe outorgava um estatuto que nem todos possuíam. Este homem, recordo, teve sempre a preocupação dum relacionamento próximo, quer com o comando da Companhia, quer mesmo com muitos outros militares. Sabendo da minha paixão pela caça, um dia foi ao quartel oferecer-me uma perdiz, que tinha caçado na sua plantação de mancarra. Fiquei-lhe eternamente grato, como devem calcular, pois merecer uma honraria destas não acontecia todos os dias.

Estes dois personagens despertaram-me sempre a atenção, por razões particulares e nem sempre coincidentes. Todavia, outros ”homens grandes”, como já referi, havia, e com importância no seu meio: Lamina Sissi, Braima Camará, Bacra e muitos outros, que exerciam autoridade nas suas comunidades.

As bajudas (jovens ainda virgens) e as mulheres mais velhas com os seus trajes coloridos e, por vezes, exóticos, davam um ar festivo ao quartel, durante as suas visitas para vender produtos e comprar panos e outros artigos necessários à sua vida, nas casas comerciais (Gouveia e Ultramarina) que se mantinham abertas no interior das nossas instalações. Jovens do sexo masculino ou mesmo homens novos escasseavam nas tabancas, o que teria a ver com o recrutamento (muitas vezes à força), que a guerrilha fazia, principalmente para tarefas de apoio logístico aos grupos de combate.

A este respeito, convém lembrar que a situação das populações civis que viviam no mato, perto das bases da guerrilha não era, nem de perto nem de longe, satisfatória. Se colaboravam connosco sofriam represálias, de certo modo violentas, dos independentistas; se a sua atitude era de apoio à causa nacionalista, tinham-nos “à perna”. Restava-lhes manter o equilíbrio, sem se comprometerem muito, mas dando a entender a um lado e ao outro que estavam com eles.

Foto 8 > Militares entre a comunidade indígena

De entre os produtos que nos eram vendidos, saliente-se animais criados nas suas tabancas, como porcos, carneiros, mas também camarão e outros mariscos recolhidos nas bolanhas, aquando da baixa-mar. Se se tratava de Balantas, o dinheiro (pesos) era, quase na sua totalidade, gasto na compra de “cana”, bebida no local e levada para casa, onde afogavam as mágoas que os atormentavam.

Todo este intercâmbio servia as duas comunidades, no que respeita à vida do dia-a-dia das pessoas envolvidas, mas também tinha outro efeito, para mim mais importante, que era o facto de estes contactos servirem para manterem a nossa sanidade mental em bom estado, em virtude de induzirem um ambiente de alguma normalidade, como contraponto ao isolamento a que estávamos sujeitos. É preciso não esquecer, e penso que já foi referido, que alguns de nós entraram em depressão: estou a lembrar-me do nosso companheiro “Toirão” (Eleutério dos Santos Marçal) que, atingindo um nível demencial relevante, fugiu para a margem dum rio, relativamente distante do quartel, e só foi localizado com a ajuda de um helicóptero. Foram momentos de muita preocupação para todos nós, que, embora tristes com a situação do nosso companheiro, terminaram em bem.

iii-Actividade lúdica

O divertimento é sempre muito importante, seja em que situação for que se encontrem as pessoas que dele podem usufruir. Em situações de guerra, então, é fundamental ter-se momentos de descontracção e lazer, que ajudem a suportar outros de enorme responsabilidade e preocupação. Estes momentos de disponibilidade eram sempre vividos com uma grande entrega, de modo a tirar deles o máximo de prazer e bem-estar. Numa comunidade de cerca de centena e meia de pessoas, com alguma diversidade no âmbito cultural e nos interesses sociais, dificilmente se consegue uma identidade total entre todos os seus elementos. De modo que se formavam sempre grupinhos, maiores ou menores que, pela maior identidade de pontos de vista, se sentiam mais próximos. Jogos de cartas pela noite fora, jogos de futebol, em que, muitas vezes, as equipas se faziam tendo como base a simpatia pelos grandes clubes portugueses; outras por pelotões, e até por especialidade!.. Tudo servia, o importante era jogar.

Não me esqueço das conversas (cá estão os tais grupinhos que referi) até tarde, em que se falava de tudo: de cinema, de música (ter em conta que os Beatles apareceram nessa altura), de política (pouco, que as paredes tinham ouvidos), de mulheres, claro. Passeios pela parada, em que se discutiam maneiras de salvar o planeta, de vivermos (todos os seres humanos) em paz e felicidade, de acabar com as injustiças no mundo. A juventude tem destas coisas: é sempre bem intencionada, solidária, mas infinitamente ingénua. O cepticismo, o calculismo e, sobretudo, o realismo chegam mais tarde.

Foto 9 > O descanso dos “guerreiros”

Ainda acerca dos momentos de ócio, tenho uma vaga ideia, correndo o risco de estar enganado, de que, pelos menos, uma vez fez-se um jogo com jovens das tabancas, os que o PAIGC ainda considerava muito novos para levar para a mata.

Tanto talento era exibido nessas “peladinhas” e quantos “fora de série” se perderam pelo caminho!..No que respeita aos jovens indígenas, observava-se claramente um jeito inato para o desporto. A etnia africana, no seu conjunto, foi sempre, e será, um alfobre de predestinados para o futebol. Todavia, e agora centrando-me nos nossos camaradas, havia muita gente com jeito para a bola. Não me lembro de todos os que, nas minhas observações (era para isso que eu tinha mais jeito), referenciei como tendo algumas qualidades para a prática do futebol, mas, pelo menos, o Nunes (condutor), o Júlio Fontes, o João de Matos (apesar de ter mais queda para o rugby), o José Oliveira, o “Mestiço” (João Manuel Moreira da Silva) e o “Porto” (António da Costa Baptista) não eram toscos de todo.

A caça, que desde os primórdios da humanidade sempre ocupou os homens, exerce um fascínio muito grande em muita gente que, desde a juventude, experimentou esse desporto, hoje cada vez menos interessante, dada a escassez de espécies cinegéticas. Por isso, alguns levaram de cá esse vício e, logo que foi possível, ei-los a demonstrar as suas aptidões na caça às gazelas, galinhas de mato, perdizes, patos e pombos verdes. O Joaquim Rézio, eu próprio, o “Bigodes” (Agostinho Félix), o Vidaúl Andrade e não sei se mais alguém, demos algum desbaste nessas espécies, para nosso gáudio mas, sobretudo, para satisfação de todos, em virtude do rancho melhorado em dias de caça grossa.

Foto 10 > Está visto que o almoço do domingo seguinte foi arroz de pato..

A alimentação do espírito também conta muito, particularmente para os crentes, sobretudo em situações de aperto, que o mesmo é dizer, de perigo iminente, a que estávamos expostos. O capelão do batalhão (padre Pinho, se não estou equivocado), sedeado em Catió, de quando em vez, lá estava em Cabedú a celebrar missa ao ar livre, em plena parada, para muitos militares que, normalmente, seguiam o sacerdote com uma certa atenção.

E quem não se lembra dos filmes que vimos em sessões, igualmente, ao ar livre, e com agrado geral? O Costa do Castelo, o Pátio das Cantigas, o Leão da Estrela, com actores que ainda hoje fazem as delícias de quem gosta de cinema: António Silva, Ribeirinho, Vasco Santana, Milú e tantos outros talentos portugueses, que fazem corar de vergonha alguns que hoje exercem essa profissão. Eram, sem sombra de dúvida, momentos de grande satisfação e divertimento para mais de uma centena de pessoas, entre as quais havia quem nunca tivesse visto um filme.

A chegada do barco com os mantimentos era sempre recebida com grande alvoroço e emoção. Pudera, era a sobrevivência garantida por mais um mês!...E o correio, com os “bate-estradas”, trazendo notícias da família, e as cartas, em papel de seda, da namorada ou da madrinha de guerra? Tenho presente a imagem da rapaziada à volta do Encarnação, que lia o nome ou número do militar a quem se dirigia a missiva: quantos saltos de alegria e quantas lágrimas teimosas a despontarem, quando a esperada notícia não chegava!...No dia da aterragem da avioneta, pilotada pelo Honório, pelo Melo ou outro qualquer piloto, que ia a Cabedú (dito por eles) sempre com muito agrado, olhava-se para o céu à hora prevista, procurando descortinar no horizonte qualquer pontinho que denunciasse a chegada iminente de algo que nos aquecesse a alma ou repusesse o ânimo perdido por dias de incerteza. Enfim, tentava-se “matar” o tempo o melhor possível, contando os dias, ou melhor, descontando-os no calendário, tendo na mente os momentos de fim de comissão.

Foto 11 > Chegada do correio: “assalto” da rapaziada, ávida de notícias, à avioneta

Fotos e legendas: © Norberto Costa (2008). Direitos reservados.


Além disso, tínhamos direito a trinta dias de férias, que, normalmente, se gozavam na Metrópole, com a família, ou em Bissau. Houve muitos (a esmagadora maioria) que nem sequer as aproveitou e acabou por não sair de Cabedú, em todo o tempo da comissão. Uma viagem até Lisboa de avião ficava bastante dispendiosa, e havia a circunstância de o regresso à guerra, após as férias, ser muito penoso, de modo que poucos utilizaram essa alternativa. Passá-las em Bissau também era agradável e não havia os inconvenientes apontados. Conseguia-se, se assim o desejássemos, alojamento gratuito nas muitas instalações militares que havia na capital da Província, ou então tínhamos hotel ou pensões, a preços não muito elevados. No que a mim diz respeito, as férias do primeiro ano foram passadas na Metrópole com a família; as segundas, em Bissau, que, se bem me recordo, foram óptimas, e guardo delas boas recordações.

Para isso, claro, tínhamos que sair de Cabedú. E como? Conseguia-se com certa facilidade transporte para Bissau na avioneta que ia levar o correio ou fazer outro serviço, marcando com antecedência, já que havia sempre muita concorrência nos quartéis do mato onde a aeronave fazia escala. Nesse aspecto, os pilotos eram normalmente atenciosos para o pessoal de Cabedú, e raramente negavam uma boleia a quem dela necessitasse. Era, por sinal, um passeio sempre muito agradável o que se fazia de avioneta, de onde se desfrutava uma deslumbrante vista sobre o território da Guiné, com a sua vegetação compacta e completamente verde, recortada pelos inúmeros canais e rios e salpicada de bolanhas e tabancas, que lhe davam um aspecto curioso, mas infinitamente belo.
Igualmente se podia viajar para a capital da Província de barco (batelão ou lancha da marinha), que, pelo menos uma vez por mês, tocava o nosso porto. Porém, pelo tempo que demorava e pela perigosidade que oferecia (lembremos o ataque em frente à Ilha do Como), não era aconselhável, e raramente se optava por este meio.

Mesmo em ambiente de guerra se podem fazer coisas que, em princípio, estão vocacionadas para tempos de paz e de estabilidade emocional dos protagonistas. À partida seria impensável que em plena zona de conflito, no interior da mata africana, se poderia improvisar uma escola, em que os professores e os alunos, nas horas de descanso dos seus afazeres militares, se dedicassem (uns a ensinar, outros a aprender) a essa nobre tarefa de tornar homens mais úteis à sociedade. Estimulados pelo comandante da Companhia, criou-se um pequeno corpo de professores, oriundos do quadro de graduados, pessoas que na sua maioria, para não dizer na sua totalidade, nunca tinham exercido essa função, estando, no entanto, à altura de ensinar as matérias exigidas.

Eu próprio, o Joaquim Moura Lopes, o Joaquim Rézio, o António Ferreira, de entre um conjunto de elementos que, francamente, não consigo identificar na totalidade, dava o melhor de si para, como disse, valorizar aqueles homens que, nas circunstâncias descritas, quiseram aproveitar denodadamente o que lhes era oferecido.

Então, apareceram soldados que pretendiam completar a instrução primária (4ª classe) e até cabos que se candidataram a fazer o primeiro ciclo (2º ano) dos liceus. É certo que uma parte desistiu ou não conseguiu passar no exame; porém, o resultado foi francamente positivo. A esta distância temporal é praticamente impossível contabilizar com exactidão o número dos que concluíram com êxito os seus estudos. Todavia, penso que posso afirmar, sem receio de faltar à verdade, que vários acabaram a instrução primária e, pelo menos, dois fizeram o 2º ano dos liceus: o Joaquim Flores Bispo e o José da Silva Correia.

Como é expectável, foi uma alegria muito grande para os principais interessados, aqueles que viram os seus esforços coroados de êxito, mas também para os que para isso contribuíram, quem ofereceu tempo do seu período de lazer para que isso fosse possível.

Os exames realizavam-se em Bissau, e para isso os nossos homens tinham que se deslocar à capital da Província, a fim de prestarem as respectivas provas.

Desconheço se mais alguma unidade sedeada no interior, em zona de guerra permanente, se mobilizou no sentido que acabo de descrever. Porém, se tal aconteceu, os casos afirmativos devem contar-se pelos dedos duma mão. Uma coisa era a tropa que estava em Bissau, essencialmente em funções administrativas, e que até podia frequentar aulas com professores diplomados, outra bem diferente era o que os nossos companheiros fizeram, em plena zona de guerrilha, nas situações físicas e psicológicas que todos conhecemos. Também nesse aspecto fomos diferentes: deve-se ao comandante, mas também, penso eu, ao bom grupo de militares que se conseguiu reunir.

Num dos capítulos deste trabalho farei referência a um dos elementos da pequena matilha (3 cães) sedeada no nosso quartel, concretamente ao sempre muito útil Galinheiro. Porém, de modo algum poderia deixar de falar desse carismático cão, verdadeiro líder dos seus pares, chamado Zorro. Era um bonito exemplar de cor branca, tamanho médio, meigo e companheiro de quem, no seu insondável critério canino, o merecesse. Nunca consegui compreender, confesso-o, por que este cão, já de uma idade avançada, só acompanhava com graduados. Como facilmente se entende, esta atitude garantia-lhe a hostilidade, mais ou menos velada, da esmagadora maioria da Companhia e o carinho dos poucos que faziam parte da sua selecção de amigos. Recordo com alguma saudade os passeios que com ele dei pelos terrenos adjacentes ao aquartelamento, mas, sobretudo, as noitadas de ronda às sentinelas que velavam pela nossa segurança, tendo como companhia o velho Zorro. Ele fazia questão de estar sempre por perto quando se iniciava essa importante tarefa, parecendo que conhecia a própria escala de serviço. Estes cães foram-nos legados pela anterior companhia e, do mesmo modo, os transmitimos a quem nos sucedeu em Cabedú.

(Continua)
_________________

Nota de CV

(1) - Vd. Primeiro poste da série de 10 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3129: Tabanca Grande (82): Jorge Fontinha, Fur Mil Inf da CCAÇ 2791 (Bula e Teixeira Pinto, 1970/72)



Jorge Fontinha
Fur Mil Inf
CCAÇ 2791
Bula e Teixeira Pinto
1970/72



1. Mensagem de Jorge Fontinha no dia 8 de Agosto de 2008, dirigida ao Editor Luís Graça

Por mero acaso, dei de caras com o teu Blog.
Trato-te por tu, por tua sugestão como camarada de guerra, embora te não conheça pessoalmente.
Todavia, somos mais ou menos do mesmo tempo e pelo que me parece partilhamos dos mesmos princípios e opiniões sobre a nossa e não só... Guerra do Ultramar.

Estive na Guiné, de finais de Setembro de 1970 a finais do mesmo mês, de 1972, como Furriel Miliciano de Infantaria.
Bula e Teixeira Pinto, foram base de apoio da minha Companhia, a CCAÇ 2791.

Tenho muitas histórias e relatos, mas abstenho-me agora de contar seja o que for, até porque a minha guerra começa em Angola, no dia 15 de Março de 1961, então com 12 anos de idade, numa fazenda no interior de Nambuangongo.

A minha intenção ao enviar este mail é tão só, pretender poder contribuir com alguma das memórias nunca esquecidas, das vivências dessas duas etapas da minha vida.

Moro em Peso da Régua e nasci em 28 de Outubro de 1948.
Reformado do BPSM/MILLENNIUMbcp, dedico-me a navegar na Internet e a fazer uns pequenos trabalhos para uma empresa de rotulagens.

Agradecia que me contactasses no sentido de me poder tornar em mais um colaborador do Blog e me poder tornar num dos Amigos dos Camaradas da Guiné.

Um grande abraço,
Jorge Fontinha

2. Mensagem de resposta para o nosso novo camarada, com data de 10 de Agosto de 2008

Caro Fontinha
É para nós reconfortante quando um novo camarada se nos dirige.
O Luís Graça assumiu a missão de reunir no seu Blogue tantos ex-combatentes da Guiné, quanto possível, para que todos tenham oportunidade de escrever o que retêm na memória, desses tempos tão difíceis.
Ao mesmo tempo que se contribui com a narração das nossas experiências para memória futura, podemos sem nos aperceber livrarmo-nos de velhos traumas, pois o acto de escrever também é libertador.

Na nossa Página do lado esquerdo tens à tua disposição para consulta, as nossas Dez Normas de Conduta e Aquilo que (não) Somos. Digamos que é a nossa Cartilha.
Envia-nos uma foto do teu tempo de tropa e outra actual, tipo passe de preferência.
Quando quiseres e puderes, começa a enviar as tuas estórias, que poderão ser acompanhadas de fotografias, devidamente legendadas.

Recebe um abraço de boas vindas em nome de toda Tertúlia.
O camarada
Carlos Vinhal
Co-editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné

3. Hoje mesmo o nosso camarada Fontinha enviou-nos as fotos da praxe pelo que fazemos a sua apresentação formal à Tertúlia.

Guiné 63/74 - P3128: Antropologia (8): Exposição Bijagós no Museu Afro Brasil, São Paulo

Mensagem do dia 22 de Julho de 2008 da Casa da Guiné em Coimbra (1), recebida no nosso Blogue:

Exposição Bijagós - A arte dos povos da Guiné-Bissau, no Museu Afro Brasil
São Paulo, início 19 de Julho de 2008








Máscara Vaca-Bruto, madeira policromada, chifre, vidro e fibra vegetal



Bijagós: mestres da escultura

A Associação Museu Afro Brasil e a Secretaria de Estado da Cultura apresentam a exposição Bijagós – a arte dos povos de Guiné-Bissau, em cartaz no Museu Afro Brasil de 19 de Julho a Novembro de 2008. São exibidas 78 peças de uso ritualístico e em festividades, todas elas recém adquiridas pela instituição. Com curadoria de Emanoel Araújo, a mostra reúne máscaras, adornos de cabeça, de costas e de braço, estatuetas, lanças e espadas confeccionadas pelos povos Bijagós, habitantes das ilhas da costa de Guiné-Bissau, na região mais ocidental do continente africano. A exibição é acompanhada de catálogo, textos de parede e acções educativas.

As obras produzidas pelos Bijagós têm o reconhecimento crítico internacional pelas qualidades e particularidades escultóricas. A equipa do Museu Afro Brasil criou vitrinas especialmente para a exposição em uma das salas no primeiro pavimento da instituição.

A exposição, segundo Emanoel Araújo, centra-se mais nos aspectos artísticos do que em questões antropológicas. As peças, adquiridas em Portugal, proporcionam ao público uma visão abrangente do que os Bijagós realizam artisticamente e para efeitos de religião e festividades.

O encanto das obras atrai o espectador pela habilidade técnica, uso de materiais diversos e as representações às quais recorrem os povos Bijagós. As referências à natureza nas peças são abundantes. Muitas obras, feitas com madeira, fibras vegetais, tecidos e metais, remetem aos tubarões, peixes-serras, vacas, hipopótamos, pelicanos, etc. Chamam a atenção ainda o domínio das cores e a liberdade expressiva.

Para o professor da Universidade Nova Lisboa, membro da Academia de História e da Academia Nacional de Belas Artes de Portugal, Mário Varela Gomes, a actividade artística dos povos Bijagós não é uma profissão, mas uma vocação que responde ao carácter sócio-religioso. Em texto produzido para a exposição no Museu Afro Brasil, afirma que:

- Podemos concluir que a florescência artística dos Bijagós, documentada ao longo de mais de um século, onde a fantasia, a exuberância e a liberdade se fundem e tanto a caracteriza, se deve à presença do mar como elemento dominante da cultura.

Obras expostas

Lanças e espadas
São esculpidas em madeira e utilizadas em cerimónias tanto por rapazes como pelas jovens. A decoração é feita com cores ou escurecidas a fogo. Medem de 1,10 a 1,60m.

Máscaras
Muito frequentes nas festividades, a mais divulgada é a designada por Vaca Bruto, que representa uma cabeça de boi. Talhada em madeira, com chifres autênticos, olhos de fundos de garrafa. Há máscaras que representam ainda tubarões, porcos, hipopótamos e outros animais.

Adornos de cabeça para dança
Os adornos revelam bem a fantasia e a liberdade de temas escolhidos pelos Bijagós. São confeccionadas com madeira policromada, fibra vegetal, tecido, chifre, couro.

Adornos de costas para dança
São utilizados em festas e alguns medem mais de um metro de comprimento. A variedade na representação é grande: tubarão, pássaro, barco, vaca, hipopótamo. São realizados com madeira policromada, tecido, fibra vegetal e espuma.

Adornos de braço para dança
Discos de madeira com orifício central utilizados pelas moças e rapazes dos povos Bijagós. O material utilizado para a confecção das peças é a madeira policromada e entalhada.

Estatuetas
As peças pertencentes ao acervo do museu representam figuras femininas. As esculturas foram feitas com madeira e têm carácter religioso.







Adorno de Braço Egborá, madeira policromada




Os Bijagós somam mais de 27 mil pessoas e integram a República da Guiné-Bissau, situada na costa ocidental africana, banhada pelo Oceano Atlântico. Os povos encontram-se milenarmente em cerca de 88 ilhas e ilhotas próximos do estuário do Rio Geba, o qual banha a capital do país, Bissau. Guiné-Bissau, ex-colónia portuguesa declarou independência unilateralmente em 1973, após conflitos violentos.

Os Bijagós têm uma língua própria, apesar de o português ser considerado de domínio nacional. A palavra a qual dá nome à cultura significa o povo perfeito.

A Unesco reconheceu a região como Reserva Biosférica em 1996.





Máscara Égomore, madeira policromada e fibra vegetal



Mesmo com o esforço secular da islamização e da cristianização, a maioria dos povos Bijagós possui uma religião em que a divindade suprema é Nindo ou Iani, o que se traduz em o céu ou a claridade solar. O papel protagonista da mulher é fundamental para a compreensão da religião.

Há estudiosos que creditam aos Bijagós o termo de escultores dos espíritos pelo domínio técnico, artístico e religioso conferido aos objectos sacros ou receptáculos, conhecidos como irãs.

Entre os Bijagós há oito classes de idades que correspondem a períodos de evolução espiritual e social. Os objectos exibidos na exposição do Museu Afro Brasil podem servir de exemplo para a compreensão de suas particularidades e utilizações por faixa etária e de sexo em rituais específicos de passagem de uma faixa etária à outra, que varia segundo o gênero. Os Bijagós acreditam que depois da morte a alma vagueia na selva até assentar-se numa escultura, que também é chamada de espaço estável.
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Notas de CV

(1) - Vd. poste da tomada de posse do Doutor Julião Soares Sousa como Presidente da Casa da Guiné-Bissau em Coimbra, de 8 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3033: Convite (6): Tomada de posse dos Orgãos Sociais da Casa da Guiné-Bissau em Coimbra

(2) - Vd. último poste da série 23 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3089: Antropologia (7): As tabuinhas das escolas corânicas: tradutor de árabe, precisa-se (A. Santos / Luís Graça)

Guiné 63/74 - P3127: Memórias da CCAÇ 555, Cabedú 1963/65 - I Parte: Baptismo de fogo junto à Ilha do Como (Norberto Costa)



Norberto Gomes da Costa
ex-Fur Mil At Inf
CCAÇ 555
Cabedu
1963/65


1. Mensagem do nosso camarada Norberto Gomes da Costa, Mestre em História, enviada no dia 17 de Julho de 2008 e dirigida ao nosso Editor Luís Graça.

Meu caro Luís,

Vou enviar-te, então o texto de que te falei. É um trabalho despretensioso que tenta, na primeira pessoa, abordar a guerra pelo lado humano, relatando memórias soltas, sem qualquer preocupação cronológica, (neste caso, dum microcosmos constituido por uma companhia de cento e tal homens, inserida numa determinada região e que se relaciona com uma pequena, mas multi-étnica, comunidade indígena, referindo, ainda assim, pois era para isso que lá estávamos, algumas escaramuças mais complicadas. Aliás, tu como sociólogo e de reconhecidos méritos, também estás, estou certo, mais interessado nesse aspecto - e basta ver os blogs, ao aceitar testemunhos dos dois lados da barricada, para o comprovar - , do que na parte bélica (quem matou mais ou menos, quem ganhou ou perdeu).

O trabalho está dividido em capítulos que correspondem aos temas que decidi abordar, não tendo, apesar disso, esses capítulos, autonomia própria, pois fazem parte de um todo. Porém, o que tu e os nossos amigos que contigo colaboram na edição de textos decidirem está bem decidido. O texto já tem várias fotos integradas, umas estão relacionadas com os temas, outras nem por isso.

À parte, envio-te, como me pediste, duas fotografias minhas (uma desses tempos, outra de agora).

Para qualquer assunto que aches necessário entrar em contacto comigo, além do e-mail que conheces, o meu telefone e os meus telemóveis. (*)

Um abraço (já agora, um alfa bravo).
Norberto Costa



2. Memórias da CCAÇ 555 - Parte I



Guerra da Guiné > Memórias da CCAÇ 555 > Cabedú, 1963/65

por Norberto Gomes da Costa



Fotos e legendas: © Norberto Costa (2008). Direitos reservados.


ÍNDICE

1 - Nota

2 - Introdução

3 - Guiné (1963/65)

4 - Cabedú


i-Acções Militares
ii-Relações Sociais
iii-Actividade Lúdica
iv-Alimentação
v-Acontecimentos Marcantes
vi-Dificuldades/Contras
vii-A despedida

5 - Conclusão

6 - Glossário

7 - Mapa da Guiné


1 - Nota


Por sugestão do nosso amigo capitão António Ritto (**), aventurei-me nesta “viagem” por terras da Guiné e, concretamente, por uma pequena localidade chamada Cabedú, no sul da Província, considerando o período temporal que vai dos fins de 1963 a Setembro de 1965, aquando da nossa estada aí, em tempo de guerra.

É de todo justo referir que o fiz com grande prazer. Foram cerca de dois anos de memórias que tive que procurar neste “arquivo” mental que, quer queiramos quer não, cada vez é mais fragmentário e, pior que isso, menos fiável.

Como digo na Introdução, a visão plasmada é a minha, as memórias foram aquelas que eu vivi, o quadro exposto é o que resulta da síntese que construí, enquanto militar da CCAÇ 555, e ainda guardo ao cabo deste quase meio século passado.

Refiro nomes, poucos, de companheiros que, duma maneira ou de outra, entram nas histórias que conto, ressalvando sempre, como é obvio, a omissão de outros, porventura tão ou mais intervenientes que estes, mas que se esfumaram (apenas nos acontecimentos, é claro) na poeira dos tempos.

A todos os companheiros dessa aventura e meus amigos (porque são todos meus amigos, quer constem ou não do documento que agora apresento), as minhas desculpas pelas eventuais insuficiências do trabalho, que são da minha inteira responsabilidade, e o meu muito obrigado.

Lisboa, Janeiro de 2008

Norberto Gomes da Costa


2. Introdução

O Estado Novo tinha como ponto de honra do seu programa político a conservação de todas as parcelas africanas integradas no todo nacional. Quando Salazar, no seu famoso discurso de Abril de 1961, afirmava que para Angola dever-se-ia “andar rapidamente e em força”, assumia, de maneira inequívoca, a intenção de jamais dar a independência aos territórios africanos ligados à Pátria Portuguesa.

Porém, o problema residia no facto de Portugal se encontrar, nesse aspecto, isolado, mesmo no contexto dos países da Europa Ocidental. Todos já tinham descolonizado e, como Salazar dizia, Portugal encontrava-se “orgulhosamente só”. Era inevitável a autodeterminação daqueles espaços e, como se constatou, era uma questão de tempo.

Nesse contexto, os movimentos independentistas apoiados, principalmente, pela União Soviética, pela China e outros países comunistas, preparavam-se para dar início às hostilidades, com o objectivo de tomar o poder pela força em Angola, Guiné e Moçambique. Em Março de 1961 rebenta a insurreição armada em Angola; em Janeiro de 1963, na Guiné; em Setembro de 1964, em Moçambique. Estava traçado o destino daquelas províncias ultramarinas portuguesas, como à altura se denominavam.

Este meu trabalho não pretende, de modo algum, fazer a história da guerra de África, nem tão pouco a da Guiné, mas tão só recuperar memórias da CCAÇ 555, memórias essas do dia-a-dia da Companhia, dos seus momentos difíceis, dos tempos de ócio, da vivência que cimentou a amizade e a solidariedade entre aquele grupo de jovens que um dia o destino quis que partissem para as bolanhas da Guiné, para defender um território que a História e o poder político diziam ser seu.

É um período temporal que vai do final de 1963 (o primeiro grupo chega a Cabedú nos últimos dias de 1963; o segundo e último, nos primeiros de 1964) a Setembro de 1965, partida para Bissau, a aguardar embarque para Lisboa.

Esta reflexão tenta distanciar-se, quanto possível, da relação institucional que todos mantínhamos com a Companhia, que pertencia ao batalhão que estava sedeado em Catió e que, por sua vez, estava enquadrado no sector sul, em última análise dependente do comando de Bissau. A história da Companhia, em certa medida, já foi feita e existe um texto, da autoria do capitão António Ritto, que trata pormenorizadamente todas as acções militares da CCAÇ 555, as relações institucionais com as autoridades civis das populações indígenas, toda a acção psicossocial desenvolvida, enfim, uma síntese do que foram, para o comando, os dois anos passados em terras da Guiné.

Por isso, chamo Memórias da CCAÇ 555 ao trabalho que me proponho desenvolver, memórias escritas, essencialmente, na primeira pessoa, soltas e não seguindo uma metodologia rígida, não cuidando de relatar tudo o que aconteceu – o que seria impossível, dado o espaço temporal que nos afasta dos acontecimentos (mais de 40 anos) -, dando uma visão, a minha visão, do que se passou, nas mais variadas situações do dia-a-dia, diversa com toda a certeza, em alguns aspectos, da que terá outro qualquer companheiro meu.

Estas memórias, que procuram não seguir a documentação amavelmente disponibilizada pelo comandante da Companhia, já que, como disse, esse trabalho já foi feito e bem feito, são baseadas recorrendo, quase exclusivamente, ao “arquivo” mental, que tento preservar, mas que, em cada ano que passa, se torna menos preciso. Ainda assim, e tendo como máxima que em história, com documentos escritos ou sem documentos escritos, não há certezas absolutas no discurso que se produz, procurarei a maior aproximação possível à realidade.

Se o conseguir, dar-me-ei por satisfeito. Falharei aqui e ali nos pormenores, mas o essencial está garantido, visto que as situações descritas aconteceram na realidade.


3. Guiné (1963/65)

Em Janeiro de 1963, seguindo uma estratégia delineada pelos movimentos independentistas com os apoios atrás referidos, o PAIGC (Partido Africano Para a Independência da Guiné e Cabo Verde), liderado por Amílcar Cabral, um engenheiro agrónomo formado em Portugal, assalta o quartel de Tite, a sul de Bissau, e dá início às hostilidades contra a soberania portuguesa.

Foto 2 > 4 de Novembro de 1963 > Chegada a Bissau


Cedo se tornou óbvio que a guerra na Guiné viria a ser um “bico de obra” para o Estado português, que pretendia, como se disse, manter na sua posse todos os espaços do território africano, que a História, desde as descobertas do século XV, lhe conferia.

Pequeno território com uma grande fronteira terrestre aberta à entrada e saída de guerrilheiros sedeados no interior e fora da Província; terreno pantanoso, recortado de rios e canais, por onde o mar entra na preia-mar, ocupando cerca de dois terços do seu solo e tornando difícil a mobilidade das tropas portuguesas; clima quente e húmido e, portanto, insalubre e causador de muitas doenças, tornavam a Guiné um teatro de guerra extremamente perigoso e, por conseguinte, pouco apetecido para os militares lusos mobilizados para a guerra de África. Estas são algumas de entre muitas dificuldades que a minha memória guarda, a acrescentar a um inimigo razoavelmente bem equipado e treinado, em comparação com o que se passava noutras províncias do Ultramar.

É, portanto, neste ambiente e contexto difíceis que um grupo de jovens oriundos do Norte a Sul do País, passando pelas Ilhas atlânticas, comandado por um igualmente jovem capitão do exército, desembarca em Bissau no dia 4 de Novembro de 1963.

O governador da Província, se bem me lembro, era um homem da Marinha, o comandante Vasco Rodrigues. Como comandante-chefe estava o brigadeiro Louro de Sousa. Não muito depois, o general Arnaldo Schulz é empossado nos dois cargos, que ocupa, pelo menos, durante todo o tempo da nossa comissão.

O palco estava montado. Qual seria o nosso destino no teatro de operações? Como iriam decorrer os dois anos que se seguiriam? Eram as perguntas que todos fazíamos a nós mesmos, já que o principal objectivo a alcançar, em consciência, era regressarmos sãos e salvos para junto da nossa família e amigos. Se fosse possível cumprir, com alguma coragem e dignidade, os desígnios que superiormente nos eram impostos, tanto melhor.

A CCAÇ 555 chega assim à Guiné numa fase muito crítica do processo político-militar por que passavam as nossas colónias em África. A guerrilha estava presente em quase todo o território: tirando Bissau e uma área não muito extensa à sua volta, a Ilha de Bolama e o arquipélago de Bijagós, todo o resto sofria já ataques de alguma envergadura, pois, como se disse, o material que o inimigo possuía já era significativo.

Cerca de 2 meses em Bissau serviram para nos ambientarmos, para tomarmos consciência do que se passava no mato, enfim, para chegarmos à conclusão que não estávamos ali para passar umas férias numa qualquer estância de turismo. Mas, instalara-se o desânimo na Companhia? Nem pensar!..Tanto quanto me é permitido recordar, todos estávamos bem dispostos e minimamente preparados para o que “desse e viesse”. Claro que havia sempre os que, pelas circunstâncias de psicologicamente não serem tão fortes, se iam um pouco abaixo. Nada que os entertainers da Companhia (que os havia, sem dúvida!..), com umas brincadeiras à sua maneira, não resolvessem. A reserva moral do grupo, essa, estava no comandante da Companhia, como é evidente: o capitão Ritto esteve sempre à altura, na manutenção da coesão, na elevação da moral, sem violentar nenhuma consciência, nem tão pouco exercer autoritarismos, nas circunstâncias descabidos.

Um primeiro grupo rumou então a Cabedú, para fazer a transição da Companhia que íamos render, para a nossa. Terá sido nos últimos dias do ano de 1963, se, e mais uma vez, a memória não me falha. O restante, (dois pelotões?), de que fazia parte o signatário, embarca num batelão ou numa lancha da marinha (não posso precisar) no dia 31 de Dezembro do referido ano, fazendo uma viagem que havia de considerar-se perigosa, na medida em que os “turras” privilegiavam muito as margens dos rios e canais para fazerem os seus flagelamentos.

Então, junto da famosa ilha do Como, à altura considerada pelo PAIGC território libertado, fomos atacados com alguma violência, de que resultou um ferido grave, que estava (penso que a dormir) na coberta do barco e não recolhido, como a esmagadora maioria, no seu interior. Foi evacuado para Bissau e, posteriormente, para Lisboa. Foram momentos de certo pânico, mais pela descontracção que no momento reinava a bordo do que pela intensidade de fogo.

A uma distância temporal considerável, ainda hoje, tirando a infelicidade do nosso companheiro, considero ter sido um bom baptismo de fogo, que nos foi útil para o que se iria passar depois. Por coincidência, ou talvez não, o ataque dá-se precisamente no momento em que um grupo festejava a passagem de 63 para 64, saboreando uns belos paios e um bolo que me tinham sido enviados de Lisboa por familiares, acompanhados dumas boas cervejas.

Os “irresponsáveis” (deviam estar atentos às movimentações do inimigo, num lugar daqueles, e não a satisfazer as necessidades do estômago e da alma) na sua totalidade não os posso referir, mas há três de que tenho a certeza da sua presença: eu próprio, o Mário Ribeiro e o Alves. Não chegámos, como é óbvio, ao fim do repasto, ficando o resto das iguarias para mais tarde. A resposta foi boa e, passado algum tempo, tudo serenou e mais nada digno de realce aconteceria até ao nosso destino: o ainda desguarnecido aquartelamento de Cabedú, onde nos esperavam os nossos companheiros.

(Continua)

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Notas de CV:

(*) Números de telefones suprimidos na edição do texto, mas que se fornecem, particularmente, aos camaradas que nos contactarem para o efeito.

(**) Vd. poste de 16 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3063: Notícias da CCAÇ 555 (Cabedu, Out 1963/ Out 1965) (Norberto Gomes da Costa)

domingo, 10 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3126: Estórias do Juvenal Amado (14): Morteiro no meio da Parada de Cancolim



Juvenal Amado
Ex-1.º Cabo Condutor
CCS/BCAÇ 3872
Galomaro
1972/74



1. Mais uma estória do camarada Juvenal Amado (1) nos chegou. É também uma homenagem aos meninos de suas mães que deixaram a vida prematuramente.

Cancolim > Abrigo do Morteiro 81


O MORTEIRO NO MEIO DA PARADA

CANCOLIM


Nunca consegui compreender, o porquê da colocação do abrigo do morteiro 81 mm no meio da Parada.

Tal localização obrigava os apontadores e municiadores de Cancolim, a correrem debaixo do fogo inimigo, mais de trinta metros pela parada, sem qualquer protecção.

Esta Companhia não teve sorte em terras da Guiné.

Estava há talvez 15 dias em Cancolim, quando sofreu a primeira flagelação. Oito dias depois sofre outra. E precisamente oito dias depois, sofre um violento ataque de morteiros 82.

Tudo indica que as duas primeiras flagelações foram só para marcar o alvo e assim direccionar o tiro pesado desse dia.

Ia pernoitar em Cancolim como de costume, após coluna de reabastecimento.

Mal conhecia o destacamento, pois só lá tinha ido uma vez e ainda estávamos naquele período de adaptação operacional, enquadrados pelos velhinhos que íamos render.

Conhecia vagamente o Apontador de Morteiro Correia, amigo do meu irmão Ivo. Mas esse pequeno elo foi o suficiente para ser por ele adoptado sempre que ia em coluna, lá.

Estavam a construir umas instalações sanitárias junto à caserna do lado direito, para quem entrava no destacamento. Até aí, as nossas mais prementes necessidades fisiológicas tinham que ser feitas nuns buracos junto ao arame farpado e para tal, tínhamos que avisar a sentinela.

Tinha anoitecido há pouco, estava de conversa com alguns camaradas, junto das valas como era hábito. Naquele destacamento ninguém se recolhia antes das dez horas da noite.

De tempos a tempos ouviam-se tiros e rajadas dadas pelos sentinelas. Aquilo incomodava-me, pois era impensável que tal se fizesse em Galomaro.

Quando se pesca à cana, temos duvidas se o peixe morde se é o mar que faz estremecer a cana, mas quando é peixe mesmo não há duvida nenhuma. Assim é com um ataque. Ao primeiro som não temos duvidas.

O som das saídas de morteiro 82 do IN não deixam lugar para o talvez. Deixámo-nos cair para dentro das valas e abate-se sobre nós um dilúvio de ferro e fogo.

As explosões são seguidas, pois um apontador experiente pode pôr quatro ou cinco granadas no ar. Quando elas começam a cair, o efeito é devastador.

Penso que o nosso organismo tem meios de nos fazer ignorar parte do que se está a passar, pois ao ficarmos surdos, deixamos de ter a total percepção do inferno em que estamos.

Uns disparam as suas armas, outros choram e apelam para Nossa Senhora de Fátima (*), eu lá ia disparando a minha arma, estou aterrorizado.

O nosso morteiro responde ao fogo desde o primeiro momento, alguns camaradas atravessam a correr, em campo aberto, transportando cunhetes de granadas para municiar o morteiro.

Como invejei essa valentia.

Não sei quanto tempo durou, mas sei que foi demais.

Pouco a pouco, a violência do ataque abrandou.

O fumo, o pó e o cheiro, manteve-me muito tempo sem me mexer. Espreitava pelo bordo da vala para ver se descortinava o que se passava.

Havia mortos e feridos, foi a noticia que começou a correr pelas valas.

A madrugada com a sua luz redentora, mostrou-nos a destruição e os estilhaços espalhados por todos o lado.

Cancolim > Depois do ataque, não faltavam embalagens vazias de granadas espalhadas junto ao abrigo do morteiro 81

Estavam três camaradas mortos dentro de uma vala. Uma granada tinha rebentado dentro. Os seus corpos destroçados foram, como possível, depositados nos sanitários em construção.

Foi uma triste inauguração.

Essas obras ficaram muito tempo por concluir em memória dos nossos mortos. Havia feridos, falou-se num dos velhinhos ter ficado cego de um dos olhos e o próprio capitão novo (**), foi ferido ainda que ligeiramente no pescoço por um estilhaço.

Foram os nossos primeiros mortos em combate. A morte em combate nunca é limpa, ao contrário do que até ali tinha visto, nos filmes de cowboys e de guerra made in América.
Não os conhecia em vida e a imagem que guardo deles, é daqueles corpos desfeitos no chão das casas de banho por acabar.

Faz-me lembrar um poema sobre a Guerra, em que se fala no menino de sua mãe (***), também ali estavam estendidos os meninos de suas mães. Como a maioria nós nem barba tinham.

Tombaram assim no campo de batalha os nossos camaradas e é em memória deles esta estória.

José António Paulo - natural de Mirandela
João Amado - natural de Vieira de Leiria
Domingos de E. Santos Moreno - Natural de Macedo de Cavaleiros

(*) Também do lado dos guerrilheiros nos momentos de aflição se chamaria possivelmente por Fátima, neste caso a filha de Maomé.

(**) O capitão ferido veio a desertar logo de seguida, numa viagem que fez à Metrópole. Era um miliciano bastante querido pelos seus soldados e a imagem que tenho dele, é de um homem sensível que não foi talhado para guerreiro. Onde estiver desejo-lhe a melhor sorte.

Não foi culpado de maneira nenhuma pelo o que aconteceu e o que viu foi demais para ele.

Foi substituído mais tarde pelo Capitão Rosa também miliciano.

Este homem ficou famoso entre nós pela sua intervenção na reunião havida em Galomaro com o General Spinola.

O General, no seu discurso aos oficiais disse em dado momento que devíamos à Pátria o sacrifício, até das nossas vidas.

O então Capitão Rosa, dando voz ao que muitos pensavam, respondeu que a nossa Pátria é a que nos dá paz, bem estar e futuro e, aquela que o General referia, não era de modo algum essa.

Não posso jurar que tenham sido rigorosamente estas as palavras mas o fundamento foi o mesmo

(***) O MENINO DE SUA MÃE

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece
De balas trespassado
Duas, de lado a lado
Jaz morto, e arrefece

Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.

Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
O menino de sua mãe.

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
É boa a cigarreira.
Ele é que já não serve

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
Que volte cedo, e bem!
(Malhas que o Império tece)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe

(Fernando Pessoa)
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Nota de CV:

(1) - Vd. último poste da série de 4 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3110: Estórias do Juvenal Amado (13): Pela calada da noite