O nosso Camarada Torcato Mendonça (ex-Alf Mil At Art da CART 2339, Mansambo, 1968/69), enviou-nos, com data de 15 de Abril de 2010, a seguinte mensagem:
Camaradas,
Parece difícil e pouco conveniente o envio deste escrito. São notas, simples notas sobre um Homem que respeitei com Comandante Militar.
Leio o que se escreve; leio uma breve biografia saída num "Diário" e vêm-me à memória tempos passados, quer encontros, quer histórias sobre este Militar.
Será sempre uma figura incontornável da guerra na Guiné. Mesmo da Guerra Colonial, pois, além de ter combatido em Angola, teve papel militar de relevo. Não esqueçamos o dia 25 de Abril e o pós-Abril.
Sobre isso não me pronuncio.
Envio as notas.
Enviei textos, talvez na semana passada. Pedi, como sempre o acusarem a recepção. Só depois soube a ausência do Vinhal e a consequente sobrecarga.
NOTAS sobre ANTÓNIO de SPÍNOLA
Recebi só hoje, segunda-feira dia 12, a Biografia do Marechal Spínola, saída num diário na última sexta-feira.
É o custo do interior ou da interioridade. Veio e esgotou porque vieram poucas. Pessoa amiga comprou-o e só hoje o tive em mão. Certamente o livro Spínola vai demorar mais. Está pedido e… espero…
Não queria escrever mais sobre este Homem. Receio que, ao ler estes dois livros, altere, modifique mesmo, não as recordações que dele tenho mas o que dele penso, mais como homem do que como militar. Difícil a alteração.
Escrevo estas notas tentando recordar vivências passadas na Guiné. Outras, que sei dele como homem e militar, se não passadas na Guiné do meu tempo nada anotarei.
A primeira vez que com ele me encontrei foi em Mansambo. A data não me recordo. Pensava ser em Junho mas tenho uma nota a dizer que ele visitou Mansambo em 2 de Julho de 68. É possível porque a actividade operacional estava intensa e sofremos um forte ataque ao aquartelamento em 28 de Junho. Irrelevante a data ou talvez não.
Convém recordar que o Com-Chefe estava atento, quotidianamente, aos acontecimentos na Província ou Colónia. Devido à efervescência na zona talvez tenha ido lá naquela data.
Ouvimos o som característico do helicóptero e rapidamente se montou segurançaAterrou e dele saíram o então Brigadeiro Spínola e o seu ajudante de campo Capitão Almeida Bruno. A recebe-los o Comandante da Companhia (que pouco por lá ficava, exercia o comando mais de Fá e Bambadinca) e vários graduados.
Em Mansambo só estavam, se bem me recordo, três grupos e o outro estava á disposição do Batalhão. Também em Fá ou Bambadinca estavam a maioria dos militares da “formação”.
Os cumprimentos normais e o Brigadeiro Spínola questionou, com uma voz rouca e pausada, sobre a nossa situação. Perguntou aos oficiais o nome e o que faziam na vida civil e falou de Angola com o Capitão. Este tinha feito uma comissão como Alferes e, ou se conheceram lá ou tinham outro conhecimento qualquer em comum.
Dirigimo-nos para uma morança, que servia de comando, refeitório de oficiais e sargentos, sala de convívio e muito mais num exíguo espaço. Sobre a mesa foi colocada a Carta da zona e falou-se, com mais pormenor da situação militar. A conversa era mais entre o Brigadeiro e o Capitão.
O ajudante-de-campo estava atento a tudo. No decorrer do breve briefing o Brigadeiro perguntou qual a principal base IN. Foi de pronto informado que era o Burontoni mas que numa noite se conseguia lá chegar saindo de Mansambo.
Sensivelmente a resposta foi esta. Eu devo ter abanado a cabeça ou ter feito outro gesto, simples e breve, de discordância. Se o Capitão não ia l, á porque dava aquela informação e sabendo que, a ir-se lá, não se sairia de onde estávamos e seriam forças superiores a uma companhia. Tudo fácil para ele.
O Capitão A. Bruno, talvez pelo conhecimento que tinha do Com-Chefe quase sem se dar por isso, disse-me algo e eu apontei na Carta.
Continuou a conversa. Já a terminar o Brigadeiro voltou-se para mim e disparou:
- Parece que aqui o Alferes não está muito de acordo com o seu Capitão sobre o Burontoni.
Olhei para ele e, quando ia responder fui interrompido pelo Capitão Bruno que disse ser uma aproximação difícil e o IN ter, antes da base, postos avançados. Dificultava assim qualquer aproximação, pior ainda se fosse feita com saída por Mansambo etc.
Safou-me e o assunto ficou por ali. O Brigadeiro veio para fora e falou às tropas. Discurso inflamado, apelando ao patriotismo, ao dever, à necessidade de ali estarmos. Um discurso com teor idêntico aos do regime vigente nesse tempo. Só que aquele homem, além da memória que mostrou ter, quando da conversa tida com o capitão sobre Angola; com o interesse demonstrado sobre a nossa situação quer face ao IN quer de vida; a visão, quase periférica e atenta a tudo o que se passava em redor e na qual eu caí; ao falar assim aos militares comovia-os e apelava a que lutassem em nome de uma pátria que tudo lhes daria e, pela qual os sacrifícios eram deveres: Alguns, mais sensíveis, tinham lágrimas nos olhos.
Ouvia e pensava para comigo: parece que estou em plena II Guerra e isto são para fotos da “ Revista dos Aliados – Guerra Ilustrada", creio eu; só que com este ar de oficial prussiano dado pelo monóculo, pingalim e luvas pretas (O Capitão Bruno segurava a G3, a descansar a coronha no cinturão, com luvas cremes de condução auto), o Brigadeiro parecia estar noutro teatro de operações.
Depois, pouco tempo depois, começamos a receber notícias do já General e das transformações por ele operadas na Guiné. Além do respeito começo a ver uma personagem diferente do primeiro encontro. Os oficiais superiores certamente também sentiram a diferença e alguns vieram a ser bons operacionais, outros vieram mais cedo para a metrópole. Creio mesmo que todos os militares sentiram a mudança.
Encontramo-nos diversas vezes. Confesso que sempre vi naquele homem, trinta e quatro anos mais velho, o Chefe Militar. Obstinado, de forte coragem e frontalidade, teimoso, determinado em vencer o inimigo mas não de qualquer maneira.
Discordava dele muitas vezes, só que impensável dizer algo. Discordei quando não permitiu montarem emboscadas na margem direita do Corubal, na operação Lança Afiada. Operação que acompanhou talvez diariamente e não se furtando a ir a zonas de maior perigo. Talvez quisesse vencer o inimigo, não destrui-lo, como diz o Cor Comando Matos Gomes. Ainda o respeito pelo IN e que não se torturassem os prisioneiros.
Quanto ás torturas não aceito e, nem me passa pela cabeça, que não estivesse informado sobre determinados comportamentos.
Encontrei-o em Galomaro a querer que retirassem, creio eu, roquetes, na parte inferior das asas de uma DO. Assunto entre ele e os Páras.
Nós estávamos no COP 7 mas, eu e o grupo, só fazíamos segurança e outros trabalhos.
Humano e pronto ajudar quem comandava. Um exemplo: Época das chuvas de 69. Estava com o meu grupo numa tabanca. Tínhamos ido por breves dias. Só que a rendição não se fez e a alimentação e não só estavam a atormentar os militares. Havia que aguentar o que estava a ser difícil.
Uma manhã sente-se o barulho de um helicóptero, foge a malta para a segurança e eu tento encontrar uns calções melhores e umas botas do nosso exército, nada. Atiram-me um quico e aí está o General a sair do héli.
A ele e a quem o acompanha me dirijo. Barba e cabelo grande, camisola, outrora branca, calções e botas não regulamentares. Haja Deus, o quico era regulamentar. Sentido, faço continência, recebo a resposta e vislumbro por detrás daquela cara uma interrogação.
Conheceu-me claro e perguntou o que se estava a passar. Disse que estávamos mal de alimentação devido á época das chuvas, ao prolongar da estadia e a roupa, a minha e de outros, estava a tentar secar depois de uma saída. Falou no tom habitual e despediu-se mais rápido do que costumava.
Talvez duas ou três horas depois novo barulho de heli. Gritam: aí está ele…aí…mas não era. O piloto e o mecânico entregam caixas com mantimentos e uma garrafa de uísque para o comandante daquela tropa. Com os cumprimentos do Com-Chefe. Conseguimos comer decentemente, beber, fumar um cigarro e sorrir.
Passados, talvez dois dias éramos rendidos.
Obrigado meu General em meu nome e dos militares que comando.
São notas, breves e poucas notas de alguns encontros com um Militar que foi meu Comandante e que respeito bastante.
Quanto ao cidadão e ao político nada digo. Na Guiné tentou a política “por uma Guiné melhor”, para saída política e negociada para o conflito. Não só. Posso discordar. Cá foi um cidadão conotado com o regime vigente. Talvez mais antes da ida para a Guiné. Não vou anotar nada sobre isso.
Pós 25 de Abril a História o julgará. Faria cem anos se fosse vivo.
Estou velho pois tenho só menos trinta e quatro anos e uns meses. Velho não, isso é feio de se dizer.
Espero a leitura dos Livros/Biografia. Ainda me falta um.
Um abraço,
Torcato Mendonça
Alf Mil At Art da CART 2339
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Nota de M.R.:
Vd. poste anterior desta série em: