1. Em mensagem de 5 de Janeiro de 2011 o nosso camarada Inácio Silva, ex-combatente da Guiné ao serviço da madeirense CART 2732, trouxe ao conhecimento do nosso Blogue e por extensão a todos os nossos leitores, ex-camaradas que combateram em Angola, Guiné e Moçambique, que sabemos serem muitos, a iniciativa de lançar uma Petição On Line dirigida à Assembleia da República.
Caros amigos e ex-camaradas:
No seguimento do meu email do passado dia 5 de Janeiro de 2011 e de algumas respostas incentivadoras, decidi colocar, publicamente, a PETIÇÃO que anunciei, que poderá ser acedida através do link:
http://www.peticaopublica.com/PeticaoVer.aspx?pi=P2011N5306
O seu nome é: Os ex-combatentes solicitam ao Estado Português o reconhecimento cabal dos seus serviços e sacrifícios.
É óbvio que o sucesso da mesma dependerá da adesão que ela merecer por parte de todos os ex-combatentes.
Há que vencer a info-exclusão, transmitindo aos que não têm Internet e não a querem ter, que poderão, com a ajuda dos que a têm, VOTAR/ADERIR/CONCORDAR/ASSINAR.
Solicito e agradeço, desde já, a todos os ex-camaradas que desenvolveram BLOGUES ou PÁGINAS DE INTERNET, que noticiem, de forma visível, este facto e, se possível, coloquem o texto da petição e o link para aceder à mesma. Naturalmente que serei o primeiro a dar o exemplo, publicando-a nos meus próprios blogues.
Ao Carlos Vinhal não preciso de o pedir, porque sei que ele o fará, de imediato. Os meus agradecimentos ao Carlos e também ao Luís Graça e a toda a equipa de co-editores deste grande blogue, de alcance mundial: http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/
Agora, é só esperar que obtenhamos um mínimo de 4000 assinaturas, para, de seguida, enviar a petição aos Órgãos do Estado a que se destina: Assembleia da República e Governo.
Se pensarmos que, só nas guerras de África, foram mobilizados cerca de 900.000 militares, ficaria muito satisfeito que se obtivesse 1% de adesões.
Agora poderei dizer que a "bola" está do nosso lado. É necessário chutá-la e marcar golo na outra baliza!
Um abraço fraterno do
Inácio Silva
ex-CART 2732
Mansabá-Guiné
__________
Notas de CV:
Petição On Line em: http://www.peticaopublica.com/PeticaoVer.aspx?pi=P2011N5306
Consultar a Lei nº 3/2009, de 13 de Janeiro em: href="http://www.mdn.gov.pt/NR/rdonlyres/CB80E35E-2254-481B-8DBC-290CD1ED5045/0/Lei32009.pdf%22
Blogue coletivo, criado e editado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra col0onial, em geral, e da Guiné, em particular (1961/74). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que sáo, tratam-se por tu, e gostam de dizer: O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande. Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 11 de janeiro de 2011
Guiné 63/74 - P7590: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (13): Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês
1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Janeiro de 2011:
Queridos amigos,
Peço encarecidamente a quem esteve na Ponta do Inglês que ajude a descodificar as imagens que se recolheram e que contribuam para se reconstituir as localizações dos quartéis da Ponta do Inglês.
Muito pouco resta, convinha zelar pelos últimos vestígios desta memória.
Permito-me recordar que pedi ajuda a quem no Xitole viveu (e não foram poucos) para explicar o que o Tangomau viu sem compreender, o Xitole que ainda está a tempo de uma intervenção para as gerações vindouras, ninguém acrescentou uma sílaba, incompreensivelmente.
O passeio foi paradisíaco, é uma beleza conflituante, contraditória: tanto deslumbramento numa autêntica estrada da morte.
Um abraço do
Mário
Operação Tangomau (13)
Beja Santos
Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês
1. Toda a região do Xime exerceu e exerce fascínio no Tangomau. E por razões facilmente explicáveis: em Setembro de 1968, foi ali que fez a sua primeira operação, o objectivo era chegar a uma base bem pouco acessível denominada Buruntoni, tudo correu mal desde guia que se desorientou até um pesado bombardeamento sobre Mansambo, isto quando era o efectivo que ali se encontrava na operação; Ponta Varela, como já foi dito, soava, em questão de flagelações com RPG2 e RPG7 em Mato de Cão, e por diversas vezes; depois, a partir de Março, e com alguma regularidade, o Tangomau e os seus homens ali palmilharam a zona em várias direcções; e, por último, a última operação foi um patrulhamento que começou na região de Moricanhe, passou por Chicamiel, Gidamo e culminou numa emboscada entre Madina Colhido e Gundaguê Beafada, com resultados, uma mulher gravemente ferida e a plena convicção de que a população afecta ao PAIGC se abastecia no próprio Xime tabanca. Foi ali, de 1962 para 1963, que se abriu a segunda frente, Domingos Ramos vivia em Tubacutà, dentro da mata do Fiofioli; chegaram ao arrojo de colocar em Gundaguê Beafada um dístico “Aqui começa o território livre da República da Guiné, isto em 1963. A despeito do que era propalado pela propaganda, o controlo do Xime e Bissari, até ao Corubal, era exercido pelas forças comandadas por Domingos Ramos e pelos líderes que lhe sucederam. O Xime era um eixo estratégico e daí a tentativa, que se prolongou por alguns anos, de ter aberta a via até à Ponta do Inglês, na desembocadura do Corubal, em frente a Quinara. Esta estrada irá ser um calvário, entre minas e emboscadas, ali se verteu sangue e o destacamento da Ponta do Inglês tornou-se um inferno. O que o Tangomau conhecia era a região de Ponta Varela, o Poindom, até à Ponta do Inglês e respectivos acessos. A população cultivava as bolanhas, fundamentais para o aprovisionamento, era terras úberes; a navegação no Corubal fora tornada impraticável, de modo que qualquer saída do Xime e qualquer detecção significava confronto a prazo. O Tangomau, sempre que lhe coube decidir, resolveu as questões com protecção dos obuses e aproximações e retiradas em ziguezague, tudo dava trabalho mas tinha a compensação de não se chegar com mortos e feridos. É nesta estrada, junto ao porto, que Lânsana Sori inflecte para a esquerda, passa junto da tabanca, há acenos e depois o romrom dispara em direcção a Madina, a antiga Madina colhido, um pouco à direita começa a estrada que vai para Ponta Varela, segue-se em frente, é uma estrada enorme, descurada, com belas sombras, Lânsana vai concentrado nas lamas, nos riscos de se atascar nos lodos das poças, nas bermas irregulares.
2. Curiosamente, a região não é muito povoada, o que interessa é que os palmeirais são frondosos, amistosas as sombras dos cajueiros, entrelaçados pelo caminho, daí os viajantes usufruírem uma sombra temporária. E depois de muito viajar chega-se a Gã Garneis, ou coisa que o valha, terá vivido ali um ponteiro de nome Ernesto, daí a corruptela. Há bifurcações, cumprimenta-se o chefe de tabanca, promete-se no regresso apresentar cumprimentos. A partir daqui a paisagem desafoga-se, sente-se a bolanha enorme e depois avista-se o mercúrio líquido do Corubal. Fazem-se perguntas, os viajantes são encaminhados para o termo da estrada. Agora não há que enganar, avista-se uma casa em ruínas e construções recentes, desfruta-se a magia da Península de Quinara, uma mancha de verde azeitona, desta orla do rio. O Tangomau emudeceu, é tudo muito belo, quem vê imagens não pode percepcionar os horrores que aqui se viveram, o sangue derramado, o trabalho sem esperança.
3. Pouco resta da casa de Inglês Lopes, ao que parece era este o dono da Ponta. Convirá que aqui se esclareça, entre os interessados (combatentes que aqui moraram) qual era exactamente a localização deste quartel cuja existência se poderá situar entre 1964 e 1966. Aqui esteve um pelotão destacado da companhia do Xime, mais um pelotão de milícias. Aqui iniciaram a vida militar amigos como Fodé Dahaba e Mamadu Djau, eram quase crianças. Manda a curiosidade que se vá primeiro junto da casa que precedeu o quartel, como é o caso em apreço. O descalabro salta à vista, não precisa de legendas. Ali perto celebra-se uma cerimónia, o Tangomau aproxima-se e apresenta-se, um ébrio declarado pretende insultá-lo, mostrando mesmo o seu cartão de alferes. Outras pessoas fazem sinais, pedem condescendência, e alguém vem mesmo propor os seus serviços, vai guiar os viajantes e mostrar-lhes o primitivo quartel, ali à beira rio.
4. O destacamento vinha até junto à água, havia um pontão para receber as embarcações, tudo desapareceu. Para quem já viu as magras estacas dos portos do Xime e Bambadinca, deplora-se e até se acredita que é verdade. A vista é extasiante, o que mais perturba o Tangomau é imaginar que se viveu naquele inferno e com aquele panorama edénico, pelo menos o que se avista em direcção a Quinara, a escassos quilómetros.
5. Os guias não se cansam de reafirmar que desapareceram abrigos, há ainda ali umas estacas à frente e que são visíveis no pontão que existiu do outro lado do quartel, já com vista para o Geba, lá ao longe. O quartel teve de ser abandonado e transferido para o que é hoje Gã Garneis, ir-se-á mais tarde visitar uma árvore de copa frondosa, ali mesmo ao pé havia um abrigo. Mamadu Djau irá confirmar as flagelações sistemáticas, o abandono da estrada depois do calvário das colunas, a quase operação que era ir buscar os abastecimentos ao rio, com protecção das lanchas da armada. O passeio prossegue, aceita-se que estejam ali alguns restos do antigo pontão, o mais importante é o esplendor do que aqui se avista, pois, algumas centenas de metros mais abaixo o Corubal enfia-se no Geba. Só para ter esta panorâmica, pisando o solo onde tanta gente sofreu anos a fio, valeu a pena confirmar o que se vira em marcha acelerada, durante as operações.
6. É por estas e por outras que se tem tudo a perder quando não se domina completamente o crioulo. Os guias chamavam a atenção para dois poilões que pareciam tatuados, ao princípio o Tangomau até pensou que os antigos militares deixaram inscrições, uma memória perpetuada. É nisto que se faz a aproximação e se vêem as marcas das balas, sabe-se lá se de rajadas ou de tiro-a-tiro. O que interessa é que ficaram lá, entre esculturas. É impressionante, os próprios guias dizem que a população aqui vem regularmente relembrar o que faz uma guerra, ver as marcas que a natureza não pode absorver, as árvores não gritam, tornam-se esculturas vivas, memoriais de sofrimentos ignorados. Se os habitantes de cá respeitam estes pavores da guerra, o que é que nos falta para iludirmos que devemos alguma homenagem a quem tanto aqui penou, mesmo por escassos anos?
7. Do primitivo quartel da Ponta do Inglês nada mais há a ver, aqui se tem construído depois da independência com alguma profusão, há escola e instalações que dão suporte às fainas agrícolas. Não se vêem sinais de embarcações. E não fossem já mais de 4 horas e o Tangomau ali ficaria à conversa, a apurar a culturas e as condições de vida. Fazem-se alguns escassos quilómetros de regresso até Gã Garneis, fixa-se a legenda, estamos no centro de um antigo quartel, apresentam-se pessoas, o Tangomau conversa com Jubalo Jau, que fora prisioneiro na luta, capturado numa operação entre o Buruntoni e a Ponta do Inglês. Não há rancores no que se declara e como se declara. É verdade que há muitos silêncios e medos, há temores de parte a parte mas é bom conversar com alguém que soube perdoar e continuar.
8. Quis-se saber mais sobre Gã Garneis, indicaram o professor, ao que parece ele até tem um livro com todo o historial anotado. Infelizmente não estava, indicaram Bambadinca e até deram morada. No regresso, houve a preocupação de o procurar. Mas não se conseguiu desencantar esse explicador da história de Gã Garneis, antes e depois da guerra. Conversou-se, explicou-se ao que se vinha, aqui o acolhimento foi mais do que amistoso. E foi exactamente aqui que ficou um travo amargo com as informações prestadas: de motocicleta pode-se ir até ao Baio e ao Buruntoni, ou, na direcção oposta, até Tubacutá ou o Fiofioli. Tudo questão para se vaguear entre 4 a 6 horas. Que pena, é irremediavelmente tarde. Ainda há uma tentação, de ficar mais um dia, mas é uma aritmética tão enovelada que o Tangomau liminarmente abandona tais devaneios. Conversa um pouco mais, capta a imagem de Gã Garneis, ala morena que se faz tarde, ao menos que se percorra aquela estrada que tantas vidas custaram sentindo a luz dourada, o Poindom sempre tão prazenteiro do lado esquerdo e o temível arvoredo quase sem capim na berma direita. Coisa estranha, o Tangomau até sentiu calafrios, tudo tão belo e tão ameno nessa antiga estrada da morte.
9. Regressados ao Xime, Lânsana Sori reivindica uma pausa. Do acervo fotográfico desta viagem, sem dúvida alguma que este instantâneo enche de satisfação quem o captou, parece inventado ou forjado, parece que se pediu a Lânsana Sori que fizesse um número de circo, isto é, é totalmente inimaginável dormitar, fazer uma soneca esticado ao comprido em cima de duas rodas. Acreditem ou não, foi o que aconteceu. Mais uma razão para se guardar admiração por um motociclista prodigioso e equilibrista.
10. Ninguém ignora que há elefantes brancos na Guiné, construções grandiosas e sem préstimo, projectos faraónicos que serviram para sacar financiamentos e que não trouxeram um grama de desenvolvimento. O que se está a ver, e segundo informaram o Tangomau, é um majestoso silo da mancarra que seria descascada no Cumeré onde o Tangomau em 1991 viu uma construção gigantesca que depois terá sido vendida para a Índia, a preço de saldo. São muitos os autores que se interrogam sobre os projectos que não levam a ponto nenhum. Em Bissau, o Tangomau comprou no INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa um livro sobre a intervenção rural onde uma autoridade, Flavien Fafali Koudawo, escreve coisas como esta: “Ao tomarem as rédeas da Guiné-Bissau independente, as novas autoridades assumiram-se portadoras de um modelo de desenvolvimento. Na ausência de uma visão clara deste modelo, e dado a inexistência de um quadro de articulação coerente das vias e meios para alcançar metas bem planeadas, o referido modelo ficou apenas um objectivo vislumbrado. Nem as orientações do terceiro congresso do PAIGC que pretenderam traçar em 1977 o quadro da reconstrução nacional, nem o primeiro plano quadrienal de desenvolvimento económico e social (1983 – 1986) conseguiram consubstanciar um verdadeiro projecto nacional, no sentido de uma projecção num futuro desejado, conscientemente escolhido e claramente delineado. Na ausência deste projecto, o modelo afogou-se na ineficaz heterogeneidade duma miríade de projectos que ilustraram sobejamente que de boas intenções o inferno está cheio”. Não é nada agradável terminar assim o dia depois de percorrer este território onde os guerrilheiros do PAIGC se impuseram do princípio ao fim, como se estivesses absolutamente conscientes do vigor da sua causa. Aqui, no Xime, avista-se esta construção faraónica que nunca foi usada, à sua volta há trabalhadores a cultivarem como há milhares de anos, no delta do Nilo. É uma visão da ficção científica ou de como em África há que repensar o desenvolvimento e o bem comum. E fiquemo-nos por aqui, foi um dia a valer, já nem haverá tempo de ver o pôr-do-sol no Bairro Joli. E, no regresso, ainda há uma paragem comovente em Amedalai que se contará no relato de domingo de manhã, antes do Tangomau ir às compras para a grande festa, o grande reencontro com todos quantos puderam vir.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 10 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7584: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (12): De Maná até Madina de Gambiel, depois Ponta do Inglês
Queridos amigos,
Peço encarecidamente a quem esteve na Ponta do Inglês que ajude a descodificar as imagens que se recolheram e que contribuam para se reconstituir as localizações dos quartéis da Ponta do Inglês.
Muito pouco resta, convinha zelar pelos últimos vestígios desta memória.
Permito-me recordar que pedi ajuda a quem no Xitole viveu (e não foram poucos) para explicar o que o Tangomau viu sem compreender, o Xitole que ainda está a tempo de uma intervenção para as gerações vindouras, ninguém acrescentou uma sílaba, incompreensivelmente.
O passeio foi paradisíaco, é uma beleza conflituante, contraditória: tanto deslumbramento numa autêntica estrada da morte.
Um abraço do
Mário
Operação Tangomau (13)
Beja Santos
Os mistérios da estrada da Ponta do Inglês
1. Toda a região do Xime exerceu e exerce fascínio no Tangomau. E por razões facilmente explicáveis: em Setembro de 1968, foi ali que fez a sua primeira operação, o objectivo era chegar a uma base bem pouco acessível denominada Buruntoni, tudo correu mal desde guia que se desorientou até um pesado bombardeamento sobre Mansambo, isto quando era o efectivo que ali se encontrava na operação; Ponta Varela, como já foi dito, soava, em questão de flagelações com RPG2 e RPG7 em Mato de Cão, e por diversas vezes; depois, a partir de Março, e com alguma regularidade, o Tangomau e os seus homens ali palmilharam a zona em várias direcções; e, por último, a última operação foi um patrulhamento que começou na região de Moricanhe, passou por Chicamiel, Gidamo e culminou numa emboscada entre Madina Colhido e Gundaguê Beafada, com resultados, uma mulher gravemente ferida e a plena convicção de que a população afecta ao PAIGC se abastecia no próprio Xime tabanca. Foi ali, de 1962 para 1963, que se abriu a segunda frente, Domingos Ramos vivia em Tubacutà, dentro da mata do Fiofioli; chegaram ao arrojo de colocar em Gundaguê Beafada um dístico “Aqui começa o território livre da República da Guiné, isto em 1963. A despeito do que era propalado pela propaganda, o controlo do Xime e Bissari, até ao Corubal, era exercido pelas forças comandadas por Domingos Ramos e pelos líderes que lhe sucederam. O Xime era um eixo estratégico e daí a tentativa, que se prolongou por alguns anos, de ter aberta a via até à Ponta do Inglês, na desembocadura do Corubal, em frente a Quinara. Esta estrada irá ser um calvário, entre minas e emboscadas, ali se verteu sangue e o destacamento da Ponta do Inglês tornou-se um inferno. O que o Tangomau conhecia era a região de Ponta Varela, o Poindom, até à Ponta do Inglês e respectivos acessos. A população cultivava as bolanhas, fundamentais para o aprovisionamento, era terras úberes; a navegação no Corubal fora tornada impraticável, de modo que qualquer saída do Xime e qualquer detecção significava confronto a prazo. O Tangomau, sempre que lhe coube decidir, resolveu as questões com protecção dos obuses e aproximações e retiradas em ziguezague, tudo dava trabalho mas tinha a compensação de não se chegar com mortos e feridos. É nesta estrada, junto ao porto, que Lânsana Sori inflecte para a esquerda, passa junto da tabanca, há acenos e depois o romrom dispara em direcção a Madina, a antiga Madina colhido, um pouco à direita começa a estrada que vai para Ponta Varela, segue-se em frente, é uma estrada enorme, descurada, com belas sombras, Lânsana vai concentrado nas lamas, nos riscos de se atascar nos lodos das poças, nas bermas irregulares.
2. Curiosamente, a região não é muito povoada, o que interessa é que os palmeirais são frondosos, amistosas as sombras dos cajueiros, entrelaçados pelo caminho, daí os viajantes usufruírem uma sombra temporária. E depois de muito viajar chega-se a Gã Garneis, ou coisa que o valha, terá vivido ali um ponteiro de nome Ernesto, daí a corruptela. Há bifurcações, cumprimenta-se o chefe de tabanca, promete-se no regresso apresentar cumprimentos. A partir daqui a paisagem desafoga-se, sente-se a bolanha enorme e depois avista-se o mercúrio líquido do Corubal. Fazem-se perguntas, os viajantes são encaminhados para o termo da estrada. Agora não há que enganar, avista-se uma casa em ruínas e construções recentes, desfruta-se a magia da Península de Quinara, uma mancha de verde azeitona, desta orla do rio. O Tangomau emudeceu, é tudo muito belo, quem vê imagens não pode percepcionar os horrores que aqui se viveram, o sangue derramado, o trabalho sem esperança.
3. Pouco resta da casa de Inglês Lopes, ao que parece era este o dono da Ponta. Convirá que aqui se esclareça, entre os interessados (combatentes que aqui moraram) qual era exactamente a localização deste quartel cuja existência se poderá situar entre 1964 e 1966. Aqui esteve um pelotão destacado da companhia do Xime, mais um pelotão de milícias. Aqui iniciaram a vida militar amigos como Fodé Dahaba e Mamadu Djau, eram quase crianças. Manda a curiosidade que se vá primeiro junto da casa que precedeu o quartel, como é o caso em apreço. O descalabro salta à vista, não precisa de legendas. Ali perto celebra-se uma cerimónia, o Tangomau aproxima-se e apresenta-se, um ébrio declarado pretende insultá-lo, mostrando mesmo o seu cartão de alferes. Outras pessoas fazem sinais, pedem condescendência, e alguém vem mesmo propor os seus serviços, vai guiar os viajantes e mostrar-lhes o primitivo quartel, ali à beira rio.
4. O destacamento vinha até junto à água, havia um pontão para receber as embarcações, tudo desapareceu. Para quem já viu as magras estacas dos portos do Xime e Bambadinca, deplora-se e até se acredita que é verdade. A vista é extasiante, o que mais perturba o Tangomau é imaginar que se viveu naquele inferno e com aquele panorama edénico, pelo menos o que se avista em direcção a Quinara, a escassos quilómetros.
5. Os guias não se cansam de reafirmar que desapareceram abrigos, há ainda ali umas estacas à frente e que são visíveis no pontão que existiu do outro lado do quartel, já com vista para o Geba, lá ao longe. O quartel teve de ser abandonado e transferido para o que é hoje Gã Garneis, ir-se-á mais tarde visitar uma árvore de copa frondosa, ali mesmo ao pé havia um abrigo. Mamadu Djau irá confirmar as flagelações sistemáticas, o abandono da estrada depois do calvário das colunas, a quase operação que era ir buscar os abastecimentos ao rio, com protecção das lanchas da armada. O passeio prossegue, aceita-se que estejam ali alguns restos do antigo pontão, o mais importante é o esplendor do que aqui se avista, pois, algumas centenas de metros mais abaixo o Corubal enfia-se no Geba. Só para ter esta panorâmica, pisando o solo onde tanta gente sofreu anos a fio, valeu a pena confirmar o que se vira em marcha acelerada, durante as operações.
6. É por estas e por outras que se tem tudo a perder quando não se domina completamente o crioulo. Os guias chamavam a atenção para dois poilões que pareciam tatuados, ao princípio o Tangomau até pensou que os antigos militares deixaram inscrições, uma memória perpetuada. É nisto que se faz a aproximação e se vêem as marcas das balas, sabe-se lá se de rajadas ou de tiro-a-tiro. O que interessa é que ficaram lá, entre esculturas. É impressionante, os próprios guias dizem que a população aqui vem regularmente relembrar o que faz uma guerra, ver as marcas que a natureza não pode absorver, as árvores não gritam, tornam-se esculturas vivas, memoriais de sofrimentos ignorados. Se os habitantes de cá respeitam estes pavores da guerra, o que é que nos falta para iludirmos que devemos alguma homenagem a quem tanto aqui penou, mesmo por escassos anos?
7. Do primitivo quartel da Ponta do Inglês nada mais há a ver, aqui se tem construído depois da independência com alguma profusão, há escola e instalações que dão suporte às fainas agrícolas. Não se vêem sinais de embarcações. E não fossem já mais de 4 horas e o Tangomau ali ficaria à conversa, a apurar a culturas e as condições de vida. Fazem-se alguns escassos quilómetros de regresso até Gã Garneis, fixa-se a legenda, estamos no centro de um antigo quartel, apresentam-se pessoas, o Tangomau conversa com Jubalo Jau, que fora prisioneiro na luta, capturado numa operação entre o Buruntoni e a Ponta do Inglês. Não há rancores no que se declara e como se declara. É verdade que há muitos silêncios e medos, há temores de parte a parte mas é bom conversar com alguém que soube perdoar e continuar.
8. Quis-se saber mais sobre Gã Garneis, indicaram o professor, ao que parece ele até tem um livro com todo o historial anotado. Infelizmente não estava, indicaram Bambadinca e até deram morada. No regresso, houve a preocupação de o procurar. Mas não se conseguiu desencantar esse explicador da história de Gã Garneis, antes e depois da guerra. Conversou-se, explicou-se ao que se vinha, aqui o acolhimento foi mais do que amistoso. E foi exactamente aqui que ficou um travo amargo com as informações prestadas: de motocicleta pode-se ir até ao Baio e ao Buruntoni, ou, na direcção oposta, até Tubacutá ou o Fiofioli. Tudo questão para se vaguear entre 4 a 6 horas. Que pena, é irremediavelmente tarde. Ainda há uma tentação, de ficar mais um dia, mas é uma aritmética tão enovelada que o Tangomau liminarmente abandona tais devaneios. Conversa um pouco mais, capta a imagem de Gã Garneis, ala morena que se faz tarde, ao menos que se percorra aquela estrada que tantas vidas custaram sentindo a luz dourada, o Poindom sempre tão prazenteiro do lado esquerdo e o temível arvoredo quase sem capim na berma direita. Coisa estranha, o Tangomau até sentiu calafrios, tudo tão belo e tão ameno nessa antiga estrada da morte.
9. Regressados ao Xime, Lânsana Sori reivindica uma pausa. Do acervo fotográfico desta viagem, sem dúvida alguma que este instantâneo enche de satisfação quem o captou, parece inventado ou forjado, parece que se pediu a Lânsana Sori que fizesse um número de circo, isto é, é totalmente inimaginável dormitar, fazer uma soneca esticado ao comprido em cima de duas rodas. Acreditem ou não, foi o que aconteceu. Mais uma razão para se guardar admiração por um motociclista prodigioso e equilibrista.
10. Ninguém ignora que há elefantes brancos na Guiné, construções grandiosas e sem préstimo, projectos faraónicos que serviram para sacar financiamentos e que não trouxeram um grama de desenvolvimento. O que se está a ver, e segundo informaram o Tangomau, é um majestoso silo da mancarra que seria descascada no Cumeré onde o Tangomau em 1991 viu uma construção gigantesca que depois terá sido vendida para a Índia, a preço de saldo. São muitos os autores que se interrogam sobre os projectos que não levam a ponto nenhum. Em Bissau, o Tangomau comprou no INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa um livro sobre a intervenção rural onde uma autoridade, Flavien Fafali Koudawo, escreve coisas como esta: “Ao tomarem as rédeas da Guiné-Bissau independente, as novas autoridades assumiram-se portadoras de um modelo de desenvolvimento. Na ausência de uma visão clara deste modelo, e dado a inexistência de um quadro de articulação coerente das vias e meios para alcançar metas bem planeadas, o referido modelo ficou apenas um objectivo vislumbrado. Nem as orientações do terceiro congresso do PAIGC que pretenderam traçar em 1977 o quadro da reconstrução nacional, nem o primeiro plano quadrienal de desenvolvimento económico e social (1983 – 1986) conseguiram consubstanciar um verdadeiro projecto nacional, no sentido de uma projecção num futuro desejado, conscientemente escolhido e claramente delineado. Na ausência deste projecto, o modelo afogou-se na ineficaz heterogeneidade duma miríade de projectos que ilustraram sobejamente que de boas intenções o inferno está cheio”. Não é nada agradável terminar assim o dia depois de percorrer este território onde os guerrilheiros do PAIGC se impuseram do princípio ao fim, como se estivesses absolutamente conscientes do vigor da sua causa. Aqui, no Xime, avista-se esta construção faraónica que nunca foi usada, à sua volta há trabalhadores a cultivarem como há milhares de anos, no delta do Nilo. É uma visão da ficção científica ou de como em África há que repensar o desenvolvimento e o bem comum. E fiquemo-nos por aqui, foi um dia a valer, já nem haverá tempo de ver o pôr-do-sol no Bairro Joli. E, no regresso, ainda há uma paragem comovente em Amedalai que se contará no relato de domingo de manhã, antes do Tangomau ir às compras para a grande festa, o grande reencontro com todos quantos puderam vir.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 10 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7584: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (12): De Maná até Madina de Gambiel, depois Ponta do Inglês
Guiné 63/74 - P7589: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (38): Na Kontra Ka Kontra: 2.º episódio
1. Segundo episódio da estória Na Kontra Ka Kontra, de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), enviado em mensagem do dia 10 de Janeiro de 2011:
NA KONTRA
KA KONTRA
2.º EPISÓDIO
Sensivelmente a meio do percurso, já com a descontracção do regresso, um elemento da coluna acciona um engenho explosivo, ficando com o corpo todo dilacerado. Nunca se chegou a saber se o engenho já lá estava na passagem anterior. Provoca ainda pequenos ferimentos nos que iam mais perto. Não produziu mais danos pois o Alferes Magalhães tinha sido muito preciso nas instruções dadas, no sentido de irem afastados uns dos outros seis ou sete metros. Um dos feridos ligeiros é o Dionildo, que soltando meia dúzia de c… e f… depressa se recompõe.
Como autómatos, os homens tinham-se atirado para o chão e os mais nervosos, contrariamente às instruções recebidas, fizeram alguns disparos sem qualquer objectivo. Seguiu-se o silêncio, quer dos homens, quer dos animais da floresta. É então que o Alferes Magalhães, com a garganta cheia do pó vermelho da picada, num grito rouco, pergunta ao João Sanhá:
- Quem foi atingido?
1953, Recuam-se 16 anos. Finais da época seca. Madina Xaquili, uma tabanca recôndita nas profundezas do Cossé, cheia de beleza e poesia, sobretudo quando à noite no “bentem” debaixo do mangueiro no centro da tabanca o jovem futa-fula Braima tangia a sua guitarra feita com metade de uma cabacinha, pele de macaco e três cordas de fio de pesca. A tabanca era constituída por umas vinte moranças, implantadas num terreno um pouco inclinado. Ao fundo um pequeno carreiro conduzia à fonte onde brotava, mesmo na época seca, uma água cristalina.
A tabanca de Madina Xaquili em 1953. No centro debaixo de um grande mangueiro situava-se o “bentem”.
Era também aí que as mulheres lavavam a roupa enquanto os seus homens preparavam, junto da parte alta da tabanca, as lavras de mancarra, milho da terra, mandioca ou fundo, conforme as épocas. Seguindo a linha de água que se formava no local da nascente, ia-se ter a uma pequena bolanha para o cultivo de arroz que tinha que dar para o ano inteiro, pois na época das chuvas ficava isolada de Galomaro, a tabanca mais importante, a meio caminho de Bafata. O arroz era guardado numa espécie de pequenas palhotas sobrelevadas do chão, principalmente por causa dos ratos. Ladeando a bolanha, um palmeiral onde os que não eram muçulmanos podiam obter vinho de palma. Junto das lavadeiras, miúdos baloiçavam-se em lianas pendentes de grandes árvores em redor, bissilões, pau sangue, embondeiros com os seus frutos que mais parecem ratos pendurados pelo rabo e que os miúdos apanham quando os primeiros vendavais da época das chuvas os deitam abaixo, chupando a parte que envolve as sementes.
Era um fim de tarde igual a todos os outros e eis senão quando, a correr encosta abaixo, chega à zona das lavadeiras uma bajuda dos seus onze anos, seios a despontar, chamando por duas mulheres grandes.
– Vão depressa que a Binta, mulher do Adramane, está a parir.
Agora encosta acima as duas mulheres, feitas parteiras, lá foram assistir no parto, de que nasceria uma menina de pele mais branca que o habitual. Todas as crianças africanas nascem quase brancas e só escurecem depois com exposição à luz solar, com a intervenção da melamina, mas algumas crianças fulas nascem ainda mais brancas.
À nené viria a ser dado o nome de Asmau
A Binta e sua filha Asmau.
1969, Novamente. Mês de Junho. Nos princípios deste mês, na sequência do abandono de Madina do Boé pelas tropas portuguesas em 5/6 de Fevereiro e da ineficácia da operação “Lança Afiada” que durante 10 dias bateu toda a zona de implantação do PAIGC a norte do rio Corubal, o Comandante Chefe das tropas portuguesas, General António de Spínola, num acto de algum desespero e para que as populações da periferia da zona habitada do Cossé não se aproximassem de Bafata abandonando as tabancas, ordena ao Comando de Agrupamento da Zona Leste, sediado em Bafata, o envio de grupos de militares, enquadrados por oficiais que se considerem disponíveis. Pretendia-se assim impedir que as populações civis das tabancas em autodefesa dessa periferia do Cossé, as abandonassem. É neste contexto que o Alferes Magalhães segue para a tabanca de Madina Xaquili.
O Alferes Magalhães tem nesta altura cerca de um ano de comissão, metade do tempo total previsto. Bafata é nesse tempo o centro de uma zona de paz. A vida decorre calma mas um tanto ou quanto monótona. Grande parte do tempo livre é passado no quartel onde o nosso Alferes se isolava no seu quarto, a ler e ouvir música, saindo para jogar às cartas a dinheiro, perdendo invariavelmente. Sempre que isso acontece, pensa no ditado: Azar ao jogo, sorte no amor. Só que esse amor tardava em aparecer. Havia porém umas saídas obrigatórias: Ir ao cinema quando havia.
Sempre que ia ver um filme trocava algumas impressões com o porteiro Ibraim. Ibraim como o filho do profeta. Este, em determinada altura, diz-lhe que tornando-se sócio do Sporting Club de Bafata os bilhetes para o cinema lhe ficam mais baratos, pois as sessões tinham lugar no ringue de patinagem do Sporting Club. Passam a conviver com mais assiduidade. Muitas vezes se vê o Alferes com o Ibraim na esplanada do Restaurante Transmontana, o Alferes bebendo uma “meia cerveja” enquanto o Ibraim, muçulmano, toma uma “fanta”. Tornam-se verdadeiros amigos. Muita coisa o Alferes fica a saber sobre os hábitos dos africanos, que duma maneira geral são bastante fechados. O Ibraim conta-lhe episódios passados com as suas namoradas e o Alferes imagina o dia em que “sairá” com uma bajuda. Chega a levá-lo a um baile nativo na tabanca da Ponte Nova, onde o nosso Alferes, jogador como é, se sente como uma carta fora do baralho. A casa de “bajudas” existente na tabanca da Rocha, perto do início da estrada para Bambadinca também não o motiva, pelo que os seus estados depressivos se sucedem. A “lerpa” é o seu refúgio.
A ordem para seguir para Madina Xaquili foi entendida pelo Alferes Magalhães como um bom presságio. Ia mudar de ares. Contrariamente às bajudas da cidade, talvez as das tabancas fossem mais “acessíveis”.
Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P7583: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (37): Na Kontra Ka Contra: 1.º episódio
Guiné 63/74 - P7588: Lugares de Passagem, de José Brás (1): Carta aberta a um amigo (José Brás)
1. Mensagem de José Brás (ex-Fur Mil, CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 10 de Janeiro de 2011:
Meu amigo
Se entenderes que cabe, podes editar porque foi para o publicar que escrevi
Um abraço
José Brás
Lugares de Passagem
Carta aberta a um amigo
Às vezes
as palavras falam
do que não sabem*
Às vezes as palavras são apenas sons que soltamos, espontâneas e sem sentido, inexplicáveis senão na reacção a um primeiro olhar sobre as coisas;
às vezes as palavras contam apenas do sentimento construído antecipadamente sobre a realidade que prevemos se confirme;
às vezes as palavras, mesmo que ditas num sentido circunscrito e na melhor das intenções, espelham apenas a pressa, a falta de tempo ou de ferramentas para uma análise mais aprofundada dessa realidade;
às vezes as palavras são também balas concretas, carregadas de justiça e de lógica, impiedosas apenas enquanto expressão obrigatória de uma exemplar honestidade intelectual e moral que não pode abrigar amizades nem abraços.
Sei, tenho a mais absoluta certeza, que foi sob este último guarda-chuva que falaste no dia da apresentação do Lugares de Passagem, em Loures.
Contudo, creio também, que ao dizê-lo não te livraste dessas tais circunstâncias e condições de que falo mais acima, fechando a tua análise apenas num aspecto que, como repito, conta apenas um sentimento prévio que se confirma como esperável.
Sem deitar fora esse sentimento nobre da honestidade e da franqueza, coisas que quase só podemos ter mesmo com amigos, terei de dizer-te que, nessa fala, acabaste por encurtar a tua capacidade de analisar, quase como esse médico que, de tanto conhecer um doente, diagnostica de rotina e, um dia, erradamente.
Mudando de ritmo e de emoção...
Sobre este meu livro Lugares de Passagem, alguns amigos me perguntaram já, e outros afirmaram mesmo sem perguntas nem leitura, se (que) é mais uma narrativa da ou sobre a guerra colonial.
Alguma razão terão, pelo menos as perguntas, recordando o livro anterior, Vindimas no Capim.
Perguntando, ou em voo rasante, afirmando, confesso que me deixaste apreensivo porque eu não havia querido escrever um livro sobre a guerra colonial, aliás, mesmo sobre qualquer outro motivo circunscrito, mas sim um livro sobre gente, sobre sentimentos, sobre ânsias e sonhos dessa gente que se espalha pelo globo e que julgo ter conhecido nas minhas andanças por esses lugares de passagem, que, sendo-o, lugares de passagem, nunca o foram só, mas antes lugares de osmose, de troca desses sonhos e da comum ânsia de felicidade que nos dá formas a todos, indiferentemente de peles, de geografias, de religiões, de ideologias ou de estágio civilizacional, nesse conceito em que crescemos e somos.
Tendo presente que o homem põe e deus dispõe, quando começamos uma coisa destas, nunca sabemos se será isso mesmo que construiremos porque a gente que lhe pomos dentro ganha estatura psicológica, moral, cultural e até física, fica com vontades próprias, de si passa a dispor, acabando por desconstruir o desejo e a meta iniciais de quem começou tudo, se alguém pode verdadeiramente começar alguma coisa.
Colocada a palavra fim na última página, e repetido o que se diz sobre o início, se é que alguém pode acabar alguma coisa, o chamado criador volta ao início, junta as peças e tenta descobrir se era aquilo mesmo que queria dizer, ou, se não é, se ao menos lhe acha valor suficiente para o impingir a outros.
E o que me disseste tu pelo telefone, após o fim da sessão de apresentação do livro, em Loures, nessa forma que, de tão franca, às vezes parece até naife, foi "que o livro era aquilo que já havias dito, mais um livro de narrativas sobre a guerra colonial e que tudo o resto, os aviões, as mulheres no Brasil ou no Canadá, ou na Guiné, apenas gajas a quem dávamos umas quecas. A lavadeira Mominato era uma lavadeira igual a todas as lavadeiras a quem pagávamos para lavar roupa e que aviavam uma dúzia de soldados, que tudo isso eram apenas faits divers, de uma trama que, principalmente, era mais um título sobre a guerra colónial".
Palavras injustas sobre a mulher, ainda que apenas sobre a ideia de mulher, com ligeireza ditas, pensei eu, ditas no geral e em abstracto.
Deixando isso para outras passagens, contenhamo-nos sobre a questão que se desatou ali, preocupado que estava com o filho que acabava de dar à luz e medroso de ter falhado na sua criação e do seu futuro.
Passei a noite velando o berço, relendo, voltando ao início, discutindo com aquela gente toda, nas matas e nos campos, nas selvas urbanas, nas esperanças, nas desilusões, nas raivas e nos afectos, tentando pôr-me na pele do receptor, exercício muito difícil para o emissor, senão mesmo impossível.
Seja como for, madrugada alta, adormeci em paz e quando acordei, pensando sobre o assunto, conclui que há uma questão com a qual terei de conviver, equívoco quase inevitável, a ser verdade que não há amor como o primeiro, e que o primeiro se chama Vindimas no Capim, narrativa que sobreviveu à discussão sobre a dúvida se há ou não uma literatura da guerra colonial.
E penso que se sobreviveu, foi mesmo porque, sendo da guerra colonial, da primeira à última página respirando na busca das relações de poder nesta nossa sociedade de então, tentava entender como e porquê os meninos do meu tempo largavam as vindimas da aldeia, se faziam soldados e partiam para longínquas partes do mundo para matar e para morrer, pouco preocupado eu se para isso tinha de falar de casernas e de batalhas.
O equívoco de que aqui te falo tem pelo menos dois ramos, ambos filhos da mesma raiz mas evoluindo em sentidos diferentes e quase opostos.
Aceitemos que há guerra no livro e que nos futuros leitores existem, entre outros, duas classes, uma, que querendo ler de guerra, achará guerra a menos do que esperava, e outra, que, mesmo antes de ler, achava já que seria um livro de guerra, e que, lendo desatento ou desarmado, concluirá da sua certeza prévia, não sendo senão salada verde para disfarçar a escassez do prato, as alegadas gajas.
E que posso eu fazer para evitar isso?
Quase nada, a não ser defender a dama, demonstrar o erro, chamar a atenção para outras picadas que passam por dentro de tanta gente, atravessam mares e continentes e juntam no sentir e nos sonhos homens e mulheres, sejam negros ou brancos, cristãos ou muçulmanos, brancos ou negros, que se acham com direito à dignidade humana, ao respeito, aos bens de sobrevivência, ao amor.
Poderia dizer aqui que Lugares de Passagem é um livro repleto de eus, sem correr o risco de acusações de exagerado umbiguismo, antes ao contrário, porque são eus que não somo em mim, mas em que me divido, criando outros com outros nomes, outros homens, mulheres, gentes de guerra e gentes de paz, cada qual a seu modo preocupado com o seu mundo.
Eus no sentido que Gustave Flaubert deu quando, a perguntas sobre quem era Madame Bovary, respondia simplesmente "c'est moi!".
Não falo de Filipe Bento, nem de Arnaldo de Matos, personagens demasiado evidentes no parentesco. Falo de... Maura, por exemplo, e direi que Maura sou eu também, sem complexos nem preconceitos e na certeza de que não deitei fora essa importante parte que trouxe da barriga da minha mãe. Maura não é senão uma possível Maria ou Mónica ou Sara, ou outro nome de mulher que ajudará turistas a verem melhor a cultura e a história de seu povo, sem que se perca ela própria no colectivo, não apenas personagem, mas pessoa inteira em espírito, cultura e interpretação do mundo que a rodeia e a enforma, e plena também de sonho e de aspirações.
Por exemplo, Rose. Rose em Toronto ou em Montreal ou em Boston, fazendo de sua voz meio de partilhar os mesmos anseios e sonhos de Maura, ou outros que no fundo não são tão diferentes como se possa julgar, apenas desenhadas pelos meios sóciais em que cada uma se fez gente.
Por exemplo, Mominato, lavadeira de roupas de soldados no ambiente de uma situação violenta de combate nas matas da Guiné, erradamente construída se nos ativéssemos apenas à superfície da realidade que lhe conhecêssemos e desprezando-lhe a fundura humana particular, capaz das mesmas alegrias e tristezas, de aspirações e de sonhos que têm Maura e Rose, Filipe ou Arnaldo.
Por exemplo o Xico, que não poderia ser apenas o Xico das conversas, das maluquices, dos trambolhões. Que teria de ser um Xico para além disso, com data de nascimento, com respiração própria, ambiente envolvente e um pensamento que explique a morte, no entendimento da vida e do mundo na sua multiplicidade infinita.
E que gente é essa, todos a quem ponho nome e os outros que aparentemente não passam pelas páginas nem pelas palavras do livro, mas que na verdade quero que aí se encontrem em colóquio amplo?
Quem são eles senão partes de mim próprio?
De um eu uno e múltiplo, tal com tu, e que tal como tu, querem apenas abraçar os outros, iguais e diferentes.
E os soldados que colocamos em plena mata da Guiné, lutando, dormindo em catres pobres, comendo em prato escasso, bebendo dos vinhos adulterados pela ganância de intermediários militares de ocasião, com os medos e as coragens próprias de cada qual e das circunstâncias?
Nasceram soldados e já corajosos ou medrosos?
Não eram gente antes da instrução militar? Gente que sonhava futuros tal qual Helena em Copacabana ou o Filipe nas vinhas de Alenquer?
E quando matavam, tornavam-se apenas assassinos, ou quando eram mortos apenas mártires?
E os que os viam morrer não morriam também de algum modo, em partes de si que ainda hoje se reconhecem nas suas vidas?
E eu que vi morrer alguns e que aparentemente regressei vivo e inteiro, que partes de mim morreram neles e que outras partes nasceram com a sua morte?
Faits divers disseste que eram toda essa gente, cenário apenas para justificar os tiros que damos no livro.
E eu julgo que te enganas e que deves reler tudo de novo, demorando-te a pensar em cada uma dessas gajas e gajos, observando-os um pouco mais fundo do que nessa literatura que tanto aparece por aí, legitimamente aparecendo porque todos nós, no fundo, ambicionamos escrever um livro, ou, pior, naquela que se vende aos milhares porque não obriga a pensar e nos dá um mundo já entendido em tons de rosa.
*Sterea
amiga e magnífica poetisa
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 7 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7564: Agenda cultural (99): Lugares de Passagem, de José Brás: Apresentação hoje, 6ª feira, 7, às 18h30, no Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil, Av Gago Coutinho, 90, Lisboa
Meu amigo
Se entenderes que cabe, podes editar porque foi para o publicar que escrevi
Um abraço
José Brás
Lugares de Passagem
Carta aberta a um amigo
Às vezes
as palavras falam
do que não sabem*
Às vezes as palavras são apenas sons que soltamos, espontâneas e sem sentido, inexplicáveis senão na reacção a um primeiro olhar sobre as coisas;
às vezes as palavras contam apenas do sentimento construído antecipadamente sobre a realidade que prevemos se confirme;
às vezes as palavras, mesmo que ditas num sentido circunscrito e na melhor das intenções, espelham apenas a pressa, a falta de tempo ou de ferramentas para uma análise mais aprofundada dessa realidade;
às vezes as palavras são também balas concretas, carregadas de justiça e de lógica, impiedosas apenas enquanto expressão obrigatória de uma exemplar honestidade intelectual e moral que não pode abrigar amizades nem abraços.
Sei, tenho a mais absoluta certeza, que foi sob este último guarda-chuva que falaste no dia da apresentação do Lugares de Passagem, em Loures.
Contudo, creio também, que ao dizê-lo não te livraste dessas tais circunstâncias e condições de que falo mais acima, fechando a tua análise apenas num aspecto que, como repito, conta apenas um sentimento prévio que se confirma como esperável.
Sem deitar fora esse sentimento nobre da honestidade e da franqueza, coisas que quase só podemos ter mesmo com amigos, terei de dizer-te que, nessa fala, acabaste por encurtar a tua capacidade de analisar, quase como esse médico que, de tanto conhecer um doente, diagnostica de rotina e, um dia, erradamente.
Mudando de ritmo e de emoção...
Sobre este meu livro Lugares de Passagem, alguns amigos me perguntaram já, e outros afirmaram mesmo sem perguntas nem leitura, se (que) é mais uma narrativa da ou sobre a guerra colonial.
Alguma razão terão, pelo menos as perguntas, recordando o livro anterior, Vindimas no Capim.
Perguntando, ou em voo rasante, afirmando, confesso que me deixaste apreensivo porque eu não havia querido escrever um livro sobre a guerra colonial, aliás, mesmo sobre qualquer outro motivo circunscrito, mas sim um livro sobre gente, sobre sentimentos, sobre ânsias e sonhos dessa gente que se espalha pelo globo e que julgo ter conhecido nas minhas andanças por esses lugares de passagem, que, sendo-o, lugares de passagem, nunca o foram só, mas antes lugares de osmose, de troca desses sonhos e da comum ânsia de felicidade que nos dá formas a todos, indiferentemente de peles, de geografias, de religiões, de ideologias ou de estágio civilizacional, nesse conceito em que crescemos e somos.
Tendo presente que o homem põe e deus dispõe, quando começamos uma coisa destas, nunca sabemos se será isso mesmo que construiremos porque a gente que lhe pomos dentro ganha estatura psicológica, moral, cultural e até física, fica com vontades próprias, de si passa a dispor, acabando por desconstruir o desejo e a meta iniciais de quem começou tudo, se alguém pode verdadeiramente começar alguma coisa.
Colocada a palavra fim na última página, e repetido o que se diz sobre o início, se é que alguém pode acabar alguma coisa, o chamado criador volta ao início, junta as peças e tenta descobrir se era aquilo mesmo que queria dizer, ou, se não é, se ao menos lhe acha valor suficiente para o impingir a outros.
E o que me disseste tu pelo telefone, após o fim da sessão de apresentação do livro, em Loures, nessa forma que, de tão franca, às vezes parece até naife, foi "que o livro era aquilo que já havias dito, mais um livro de narrativas sobre a guerra colonial e que tudo o resto, os aviões, as mulheres no Brasil ou no Canadá, ou na Guiné, apenas gajas a quem dávamos umas quecas. A lavadeira Mominato era uma lavadeira igual a todas as lavadeiras a quem pagávamos para lavar roupa e que aviavam uma dúzia de soldados, que tudo isso eram apenas faits divers, de uma trama que, principalmente, era mais um título sobre a guerra colónial".
Palavras injustas sobre a mulher, ainda que apenas sobre a ideia de mulher, com ligeireza ditas, pensei eu, ditas no geral e em abstracto.
Deixando isso para outras passagens, contenhamo-nos sobre a questão que se desatou ali, preocupado que estava com o filho que acabava de dar à luz e medroso de ter falhado na sua criação e do seu futuro.
Passei a noite velando o berço, relendo, voltando ao início, discutindo com aquela gente toda, nas matas e nos campos, nas selvas urbanas, nas esperanças, nas desilusões, nas raivas e nos afectos, tentando pôr-me na pele do receptor, exercício muito difícil para o emissor, senão mesmo impossível.
Seja como for, madrugada alta, adormeci em paz e quando acordei, pensando sobre o assunto, conclui que há uma questão com a qual terei de conviver, equívoco quase inevitável, a ser verdade que não há amor como o primeiro, e que o primeiro se chama Vindimas no Capim, narrativa que sobreviveu à discussão sobre a dúvida se há ou não uma literatura da guerra colonial.
E penso que se sobreviveu, foi mesmo porque, sendo da guerra colonial, da primeira à última página respirando na busca das relações de poder nesta nossa sociedade de então, tentava entender como e porquê os meninos do meu tempo largavam as vindimas da aldeia, se faziam soldados e partiam para longínquas partes do mundo para matar e para morrer, pouco preocupado eu se para isso tinha de falar de casernas e de batalhas.
O equívoco de que aqui te falo tem pelo menos dois ramos, ambos filhos da mesma raiz mas evoluindo em sentidos diferentes e quase opostos.
Aceitemos que há guerra no livro e que nos futuros leitores existem, entre outros, duas classes, uma, que querendo ler de guerra, achará guerra a menos do que esperava, e outra, que, mesmo antes de ler, achava já que seria um livro de guerra, e que, lendo desatento ou desarmado, concluirá da sua certeza prévia, não sendo senão salada verde para disfarçar a escassez do prato, as alegadas gajas.
E que posso eu fazer para evitar isso?
Quase nada, a não ser defender a dama, demonstrar o erro, chamar a atenção para outras picadas que passam por dentro de tanta gente, atravessam mares e continentes e juntam no sentir e nos sonhos homens e mulheres, sejam negros ou brancos, cristãos ou muçulmanos, brancos ou negros, que se acham com direito à dignidade humana, ao respeito, aos bens de sobrevivência, ao amor.
Poderia dizer aqui que Lugares de Passagem é um livro repleto de eus, sem correr o risco de acusações de exagerado umbiguismo, antes ao contrário, porque são eus que não somo em mim, mas em que me divido, criando outros com outros nomes, outros homens, mulheres, gentes de guerra e gentes de paz, cada qual a seu modo preocupado com o seu mundo.
Eus no sentido que Gustave Flaubert deu quando, a perguntas sobre quem era Madame Bovary, respondia simplesmente "c'est moi!".
Não falo de Filipe Bento, nem de Arnaldo de Matos, personagens demasiado evidentes no parentesco. Falo de... Maura, por exemplo, e direi que Maura sou eu também, sem complexos nem preconceitos e na certeza de que não deitei fora essa importante parte que trouxe da barriga da minha mãe. Maura não é senão uma possível Maria ou Mónica ou Sara, ou outro nome de mulher que ajudará turistas a verem melhor a cultura e a história de seu povo, sem que se perca ela própria no colectivo, não apenas personagem, mas pessoa inteira em espírito, cultura e interpretação do mundo que a rodeia e a enforma, e plena também de sonho e de aspirações.
Por exemplo, Rose. Rose em Toronto ou em Montreal ou em Boston, fazendo de sua voz meio de partilhar os mesmos anseios e sonhos de Maura, ou outros que no fundo não são tão diferentes como se possa julgar, apenas desenhadas pelos meios sóciais em que cada uma se fez gente.
Por exemplo, Mominato, lavadeira de roupas de soldados no ambiente de uma situação violenta de combate nas matas da Guiné, erradamente construída se nos ativéssemos apenas à superfície da realidade que lhe conhecêssemos e desprezando-lhe a fundura humana particular, capaz das mesmas alegrias e tristezas, de aspirações e de sonhos que têm Maura e Rose, Filipe ou Arnaldo.
Por exemplo o Xico, que não poderia ser apenas o Xico das conversas, das maluquices, dos trambolhões. Que teria de ser um Xico para além disso, com data de nascimento, com respiração própria, ambiente envolvente e um pensamento que explique a morte, no entendimento da vida e do mundo na sua multiplicidade infinita.
E que gente é essa, todos a quem ponho nome e os outros que aparentemente não passam pelas páginas nem pelas palavras do livro, mas que na verdade quero que aí se encontrem em colóquio amplo?
Quem são eles senão partes de mim próprio?
De um eu uno e múltiplo, tal com tu, e que tal como tu, querem apenas abraçar os outros, iguais e diferentes.
E os soldados que colocamos em plena mata da Guiné, lutando, dormindo em catres pobres, comendo em prato escasso, bebendo dos vinhos adulterados pela ganância de intermediários militares de ocasião, com os medos e as coragens próprias de cada qual e das circunstâncias?
Nasceram soldados e já corajosos ou medrosos?
Não eram gente antes da instrução militar? Gente que sonhava futuros tal qual Helena em Copacabana ou o Filipe nas vinhas de Alenquer?
E quando matavam, tornavam-se apenas assassinos, ou quando eram mortos apenas mártires?
E os que os viam morrer não morriam também de algum modo, em partes de si que ainda hoje se reconhecem nas suas vidas?
E eu que vi morrer alguns e que aparentemente regressei vivo e inteiro, que partes de mim morreram neles e que outras partes nasceram com a sua morte?
Faits divers disseste que eram toda essa gente, cenário apenas para justificar os tiros que damos no livro.
E eu julgo que te enganas e que deves reler tudo de novo, demorando-te a pensar em cada uma dessas gajas e gajos, observando-os um pouco mais fundo do que nessa literatura que tanto aparece por aí, legitimamente aparecendo porque todos nós, no fundo, ambicionamos escrever um livro, ou, pior, naquela que se vende aos milhares porque não obriga a pensar e nos dá um mundo já entendido em tons de rosa.
*Sterea
amiga e magnífica poetisa
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 7 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7564: Agenda cultural (99): Lugares de Passagem, de José Brás: Apresentação hoje, 6ª feira, 7, às 18h30, no Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil, Av Gago Coutinho, 90, Lisboa
segunda-feira, 10 de janeiro de 2011
Guiné 63/74 - P7587: In Memoriam (68): Na morte de Vitor Alves (1935-2010), um dos grandes capitães de Abril: Mensagem à sua filha, Ana Cristina Alves, sinóloga (António Graça de Abreu)
1. Mensagem do nosso camarada António Graça de Abreu (foto à esquerda, na China):
(xv) Será recordado como um homem cordial, afável e criador de consensos, qualidades que os portugueses nem sempre valorizam devidamente. (LG)
Fontes: Diversas, na Web (Público, Expresso, Jornal de Notícias, Wikipédia...)
Data: 10 de Janeiro de 2011 17:26
Assunto: Na morte de Vitor Alves
Meus caros [editores]:
Se acharem que é de publicar, avancem. Forte abraço,
António Graça de Abreu
Na morte de Vitor Alves, um dos grandes capitães de Abril, que ainda há poucos anos afirmou que hoje teria feito tudo igual na luta para derrubar o regime de Salazar e Caetano, excepto o pós-25 de Abril, o desastre e vergonha da descolonização, enviei à sua filha, minha amiga, sinóloga, uma das poucas especialistas em assuntos chineses em Portugal, a seguinte mensagem:
Ana Cristina Alves, caríssima:
Quando o teu Pai regressa ao Grande Vazio, apenas duas palavras.
Cumpre-se o Tao, o ciclo da vida e da morte.
O teu Pai, que mal conheci mas que sei, podia ser meu companheiro de tantas viagens pelo mundo, partiu.
Em ti, Ana Cristina, a memória até ao fim dos teus dias, de um Pai que te encaminhou e ajudou a ser quem és, a Ana Cristina Alves, uma extraordinária e excelente pessoa,
mulher de bem, inteligente e amiga.
O Vitor Alves, esse homem de eleição, teu Pai, vai continuar contigo, connosco. Até um dia partirmos, e feitos cinza, terra e pó, nos juntarmos a quem toda a vida amámos.
Um fortíssimo abraço, as condolências do
António Graça de Abreu
____________
Nota de L.G.:
(*) Pequena nota biográfica sobre o Cor Inf Ref Vitor Alves (1935-2011), nosso camarada de armas (embora nunca tenha passado pelo TO da Guiné).
(i) Vítor Alves nasceu em Setembro de 1935 em Mafra;
(ii) Matriculou-se na Escola do Exército [, actual Academia Militar,] em 14 de Outubro de 1954; pertencia à arma de infantaria; e passou à reforma em 1991;
(iii) Tornou-se alferes em 1 de Novembro de 1958, tenente a 1 de Dezembro de 1960, capitão a 14 de Julho de 1963 e major a 1 de Março de 1972;
(vi) Em 1974, fez parte da comissão coordenadora e executiva do Movimento das Forças Armadas (MFA), juntamente com Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço, tendo redigido o respectivo programa;
(ix) Foi ministro sem pasta do II e III Governo Provisório (entre 17 de julho de 1974 a 26 de março de 1975) e ministro da Educação e Investigação Científica do VI Governo Provisório (de 19 de setembro de 1975 a 23 de julho de 1976);
Assunto: Na morte de Vitor Alves
Meus caros [editores]:
Se acharem que é de publicar, avancem. Forte abraço,
António Graça de Abreu
Na morte de Vitor Alves, um dos grandes capitães de Abril, que ainda há poucos anos afirmou que hoje teria feito tudo igual na luta para derrubar o regime de Salazar e Caetano, excepto o pós-25 de Abril, o desastre e vergonha da descolonização, enviei à sua filha, minha amiga, sinóloga, uma das poucas especialistas em assuntos chineses em Portugal, a seguinte mensagem:
Ana Cristina Alves, caríssima:
Quando o teu Pai regressa ao Grande Vazio, apenas duas palavras.
Cumpre-se o Tao, o ciclo da vida e da morte.
O teu Pai, que mal conheci mas que sei, podia ser meu companheiro de tantas viagens pelo mundo, partiu.
Em ti, Ana Cristina, a memória até ao fim dos teus dias, de um Pai que te encaminhou e ajudou a ser quem és, a Ana Cristina Alves, uma extraordinária e excelente pessoa,
mulher de bem, inteligente e amiga.
O Vitor Alves, esse homem de eleição, teu Pai, vai continuar contigo, connosco. Até um dia partirmos, e feitos cinza, terra e pó, nos juntarmos a quem toda a vida amámos.
Um fortíssimo abraço, as condolências do
António Graça de Abreu
____________
Nota de L.G.:
(*) Pequena nota biográfica sobre o Cor Inf Ref Vitor Alves (1935-2011), nosso camarada de armas (embora nunca tenha passado pelo TO da Guiné).
(i) Vítor Alves nasceu em Setembro de 1935 em Mafra;
(ii) Matriculou-se na Escola do Exército [, actual Academia Militar,] em 14 de Outubro de 1954; pertencia à arma de infantaria; e passou à reforma em 1991;
(iii) Tornou-se alferes em 1 de Novembro de 1958, tenente a 1 de Dezembro de 1960, capitão a 14 de Julho de 1963 e major a 1 de Março de 1972;
(iv) Durante a sua carreira militar, esteve colocado em várias unidades, incluindo no Ultramar em comissão de serviço, onde permaneceu 11 anos, em Moçambique e Angola [não consta que tenha estado no TO da Guiné]:
(v) Em 1969 é+3he atribuído o Prémio Governador-Geral de Angola pelo trabalho desenvolvido no campo das actividades socioeconómicas em prol das populações africanas;
(vi) Em 1974, fez parte da comissão coordenadora e executiva do Movimento das Forças Armadas (MFA), juntamente com Otelo Saraiva de Carvalho e Vasco Lourenço, tendo redigido o respectivo programa;
(vii) Foi o responsável pelo comunicado do MFA divulgado à população no 25 de Abril e substituiu Otelo Saraiva de Carvalho, a partir das 16 horas, no posto de comando da Pontinha, passando a coordenar o desenvolvimento da acção;
(viii) Pertenceu ao Conselho de Revolução, do qual foi porta-voz, até à sua extinção (em 1982);
(ix) Foi ministro sem pasta do II e III Governo Provisório (entre 17 de julho de 1974 a 26 de março de 1975) e ministro da Educação e Investigação Científica do VI Governo Provisório (de 19 de setembro de 1975 a 23 de julho de 1976);
(x) Em 1982, foi nomeado conselheiro do então Presidente da República, Ramalho Eanes, ano em que passou à reserva como militar;
(xi) Recebeu a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade (1983), entre muitas outras distinções dentro e fora de Portugal;
(xii) Foi candidato independente pelo PRD às eleições legislativas (1985), à presidência da Câmara de Lisboa (1986) e ao Parlamento Europeu (1987);
(xiii) Foi um dos fundadores da Associação 25 de Abril;
(xiv) Tinha a patente de coronel desde 2001, tendo morrido de cancro, no Hospital Militar, ontem, domingo, 9 de Janeiro de 2011;
(xv) Será recordado como um homem cordial, afável e criador de consensos, qualidades que os portugueses nem sempre valorizam devidamente. (LG)
Fontes: Diversas, na Web (Público, Expresso, Jornal de Notícias, Wikipédia...)
Foto: Adapt. de Jornal de Notícias (com a devida vénia...)
Último poste da série > 31 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7536: In Memoriam (67): Fur Mil Cav, CCAV 2749 (Piche, 1970/72), Armindo de Matos André, natural de Gavião, morto em emboscada na estrada Nova Lamego-Piche, em 26/12/1971,quando vinha em coluna, de Bambadinca, com os seus novos milícias... desarmados (Luís Borrega / Paulo Santiago)
Guiné 63/74 - P7536: In Memoriam (67): Fur Mil Cav, CCAV 2749 (Piche, 1970/72), Armindo de Matos André, natural de Gavião, morto em emboscada na estrada Nova Lamego-Piche, em 26/12/1971,quando vinha em coluna, de Bambadinca, com os seus novos milícias... desarmados (Luís Borrega / Paulo Santiago)
Guiné 63/74 - P7586: Panfletos de Ação Psicológica (2) (Ernesto Duarte)
1. Este é o segundo poste, de dois, com panfletos de APSICO, que eram largados pelas NT no mato, para tentar cativar a tropa do PAIGC e a população que estava do seu lado.
Estes importantes documentos foram-nos enviados pelo nosso, recentemente entrado, tertuliano Ernesto Duarte, ex-Fur Mil da CCAÇ 1421/BCAÇ 1857, Mansabá, 1965/67, em mensagem do dia 8 de Janeiro de 2011.
__________
Nota de CV:
Vd. poste de 9 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7577: Panfletos de Ação Psicológica (1) (Ernesto Duarte)
Guiné 63/74 - P7585: Blogpoesia (104): É nossa e gosto de a saborear (Juvenal Amado)
1. Mensagem do nosso camarigo Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 5 de Janeiro de 2011:
Caros Luís, Carlos, Briote, Magalhães e restante Tabanca Grande
A nossa língua Pátria é linda e nossos dirigentes deveriam usá-la sempre com motivo de orgulho.
Os nossos artistas têm granjeado admiração pelo Mundo fora cantando nela.
A Amália não precisava de cantar noutra língua para ter a admiração nos países por onde passava. Hoje muitas cantoras e grupos cantam em português e são nomeados para prémios internacionais da especialidade.
Os Deolinda são um caso recente, mas também a Marisa, a Ana Moura, a Dulce Pontes o Rodrigo Leão etc. são hoje em dia notícia na World Music.
Bem faz o Lula da Silva que sempre só fala em Português.
Juvenal Amado
É NOSSA E GOSTO DE A SABOREAR
Ajuda-nos a saborear
Enrola-se quando um inglês a tenta usar
Gutural a Leste
Adocica-se no espanhol
De mel é a forma do Brasil a utilizar
Apimenta-se no Crioulo
Ganha outra beleza na Valsinha do Buarque
Sonha-se com o «Namoro» de Viriato da Cruz
Gritada pelo Ary
Escrita pelo Saramago
Pepetela ou Agualusa
Usou-a o Mário Viegas para declamar Pessoa
Mário Henrique Leiria
Almada Negreiros
«O Operário em Construção» de Vínicos
É trágica na boca das mulheres quando o Mar lhes leva os homens
Nela clamam a sua dor no areal
É cheia de lágrimas e como o Mar salgadas
É saudade, palavra que é só dela
Ganha outra dimensão na palavra Liberdade
O conceito Pátria fá-la crescer
Quando na diáspora, aguçamos o ouvido
Esperamos ouvi-la a cada esquina
Apetece-me fazer dela uma bandeira
Varrer dela os termos que não lhe pertencem
Quando duas bocas se encontram
A Nossa Língua é amor
O Futuro desejado
Será a LÍNGUA PORTUGUESA
Juvenal
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 7 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7565: Estórias do Juvenal Amado (33): O Léo e a macaca Chita
Vd. último poste da série de 9 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7578: Blogpoesia (103): Em ti meu amor (Felismina Costa)
Caros Luís, Carlos, Briote, Magalhães e restante Tabanca Grande
A nossa língua Pátria é linda e nossos dirigentes deveriam usá-la sempre com motivo de orgulho.
Os nossos artistas têm granjeado admiração pelo Mundo fora cantando nela.
A Amália não precisava de cantar noutra língua para ter a admiração nos países por onde passava. Hoje muitas cantoras e grupos cantam em português e são nomeados para prémios internacionais da especialidade.
Os Deolinda são um caso recente, mas também a Marisa, a Ana Moura, a Dulce Pontes o Rodrigo Leão etc. são hoje em dia notícia na World Music.
Bem faz o Lula da Silva que sempre só fala em Português.
Juvenal Amado
É NOSSA E GOSTO DE A SABOREAR
Ajuda-nos a saborear
Enrola-se quando um inglês a tenta usar
Gutural a Leste
Adocica-se no espanhol
De mel é a forma do Brasil a utilizar
Apimenta-se no Crioulo
Ganha outra beleza na Valsinha do Buarque
Sonha-se com o «Namoro» de Viriato da Cruz
Gritada pelo Ary
Escrita pelo Saramago
Pepetela ou Agualusa
Usou-a o Mário Viegas para declamar Pessoa
Mário Henrique Leiria
Almada Negreiros
«O Operário em Construção» de Vínicos
É trágica na boca das mulheres quando o Mar lhes leva os homens
Nela clamam a sua dor no areal
É cheia de lágrimas e como o Mar salgadas
É saudade, palavra que é só dela
Ganha outra dimensão na palavra Liberdade
O conceito Pátria fá-la crescer
Quando na diáspora, aguçamos o ouvido
Esperamos ouvi-la a cada esquina
Apetece-me fazer dela uma bandeira
Varrer dela os termos que não lhe pertencem
Quando duas bocas se encontram
A Nossa Língua é amor
O Futuro desejado
Será a LÍNGUA PORTUGUESA
Juvenal
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 7 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7565: Estórias do Juvenal Amado (33): O Léo e a macaca Chita
Vd. último poste da série de 9 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7578: Blogpoesia (103): Em ti meu amor (Felismina Costa)
Guiné 63/74 - P7584: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (12): De Maná até Madina de Gambiel, depois Ponta do Inglês
1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Janeiro de 2011:
Queridos amigos,
Naquela altura, o Tangomau sofria a valer, era uma corrida contra o tempo, tinham falhado vários itinerários, todos eles de valor precioso: o Cuor, na região de Finete junto ao Geba, até Aldeia e Gã Gémeos; a região de Fá; as tabancas beafadas perto de Amedalai; Samba Silate e os Nhabijões.
Esta foi uma manhã inesquecível. Mas a tarde, passada na Ponta do Inglês, não foi menos. E amanhã, domingo, vamos ter festa, os velhos combatentes vão conviver e recordar os seus mortos.
Um abraço do
Mário
Operação Tangomau (12)
Beja Santos
A partir de Maná até Madina de Gambiel. A seguir, a Ponta do Inglês
1. O Tangomau está inquieto, sem retórica até se sente um pouco angustiado. Dormiu agitado e sente culpas no cartório, veio à Guiné por razões muito precisas ou lineares, sobressaltou pessoas e instituições para ter chegado a um programa lisonjeiro com alguma estadia na região de Bambadinca. Mas agora tudo lhe sabe a pouco, vai para a casa de banho refrescar-se com o duche de caneco e faz perguntas sem resposta: é justo regressar a Bissau sem ver a malta das tabancas beafadas, até Moricanhe? Andaste por aí a perguntar por gente que mora a escassas dezenas de quilómetros e não ousas pôr-te ao caminho, tens tanta soberba que até pensas que lhes compete serem eles a fazerem esta longa marcha de candonga ou bicicleta? Eras tu que querias fazer Finete a Missirá junto ao Geba e afinal rendeste-te ao argumento que está tudo alagado? És negligente, tens a mania das facilidades, perdeste o gosto pelo risco, és um merdas, disfarçado de caminheiro, só queres a vida facilitada.
Com os alvores do dia, passou do estado melancólico para a excitação, hoje vai começar por se despedir do Cuor, visitando Maná, Sansão e Madina de Gambiel, poderá dizer por quase todo o Cuor está conhecido, sem remissão. O que na prática não é verdade. Andou ali a discutir com o Fodé Dabaha que tinham ido a Madina de Biassa. Tinham sido quilómetros a mais, tinham chegado ali perto de Sancorlã, tabanca que visitara várias vezes no passado, em patrulhamento. Pedira para visitar Salá e Quebá Jilã, rendera-se ao argumento das bolanhas alagadas e estradas intransitáveis. Lânsana Sori devia ter entrado mais cedo na expedição, paciência. Agora, impunha-se usar o dia, intensamente. Lânsana chegou, pontualmente, fizeram-se as compras no mercado do Bambadincazinho, ei-los à desfilada do Bairro Joli à Bantanjã, daqui para Finete e depois Canturé. Começa a ritual das toranjas, aqueles citrinos que matavam fome e sede nas idas e vindas diárias a Mato de Cão. São árvores miraculosas, quase irãs, merecem uma imagem para a posteridade.
2. Apresentam-se mais cumprimentos a Malã Mané, o chefe de tabanca de Canturé, acena-se à população e ruma-se para a velha estrada que ligava no passado o Enxalé a Geba. Esta estrada exerce um estranho fascínio sobre o Tangomau, e logo desde Agosto de 1968. Vale a pena, resumidamente, explicar porquê. Dentro dos 16 itinerários alternativos entre Missirá e Mato de Cão (bem divulgados no mercado de Bambadinca de modo a que a informação chegasse a Madina, e os inibisse nas iniciativas de emboscadas e minas) atravessar aquela estrada era uma obrigação. Mas uma obrigação com fascínio, e não se exagera, basta tê-la percorrido. Era alcantilada em muitos pontos. Numa das margens, à direita, de quem ia de Missirá para Gambaná, muito densa, não foi por acaso que o PAIGC escolheu esses pontos em emboscadas passadas, na outra berma era tudo aberto e luxuriante, basta pensar em Canturé e Maná. Chegava a ter rectas de um quilómetro, era uma vista desafogada, de um lado, uma inquietação permanente de outro, mas tudo numa atmosfera de beleza selvagem, expectante. E um silêncio só interrompido pelas viagens dos pássaros e o restolhar da fauna de pequeno porte. No passeio de hoje, o Tangomau delicia-se com essa estrada perdida, quase sem préstimo, para chegar a Maná nem vai ser difícil, Lânsana Sori inflecte para a direita, muito antes de se passar de Cancumba para Missirá. É um renovado prazer, agora Maná tem vida, a tabanca começou a ser reconstruída logo em 1975, não tomem o Tangomau por pedante ou excessivo, agora que se entrou pelo trilho e se avista Maná, ele referencia o ambiente como um todo. É bem recebido por Silá Sani, o chefe de tabanca. Aqui vivem 175 pessoas, o Tangomau mostra os livros, pela enésima vez pedem-lhe que os deixe ali, lamentavelmente não é possível, mas eles estão à disposição em Missirá. Tiraram-se fotografias, por azar do destino tudo se perdeu e é por isso que se mostra a fonte de Cancumba, um dos lugares míticos do Tangomau. Só quem ali viveu é que pode compartilhar da alegria em saber que aquela fonte dá vida a Cancumba e mesmo a Missirá, pode recordar o pesadelo do abastecimento quando as duas viaturas estavam empanadas.
3. Em alvoroço, o Tangomau retoma à velha estrada que ligava Bissau a Geba. Agora quer ir a Sansão, terreno emblemático dos guerreiros do Cuor. Aqui, foi Sambel Nhantá, aqui combateu Infali Soncó, foi obrigado a recuar perante as tropas portuguesas, em Abril de 1908. A motocicleta passa por Missirá, novos abraços efusivos, o Tangomau obtempera a todos os pedidos, possíveis e impossíveis, desde equipamento de futebol a material escolar. Bantan Aiderá e Nhali Cassamá, esta última viúva de Quebá Soncó e que há poucas horas visitaram o Tangomau em Bambadinca, olham-no atónitas, parece que a motocicleta transporta uma alma do outro mundo. Até Lamine Suane, o filho de Cherno Suane, o guarda-costas do Tangomau pede fotografia para o pai ver em Lisboa. Aparece a correr Braima Sani, que veio de Maná, Nhali Cassamá indica o caminho para Sansão. O Tangomau leva o coração em festa, ali há vida, quase todos os dias se percorria Sansão então tabanca morta, com as suas hortas ao abandono. É recebido por Aladje Lamine Cassamá, há abraços, perguntas, mostram-se os livros. É nisto que começam os prodígios da manhã, dois amigos se apresentam, felizmente que a máquina fotográfica não traiu o evento. Eles são Dauda Mané, aquele menino que ficara surdo no ataque a Missirá no Natal de 1966, Dauda fora enviado ao hospital, regressou sem diagnóstico; a seu lado, temos Aladje, que o Tangomau tão bem conhece, naquele tempo era inimaginável supô-lo chefe de tabanca em Maná. O admirável diz tudo é conversa com Dauda, ele olha para os lábios do interlocutor, percebe e sente tudo. Sim, sente, aqueles abraços vêm cheios de meiguice, estão muito para além da falta de compreensão dos sons. Quanto o Tangomau agradece este afago, este olhar maravilhado de Dauda Seidi!
4. De regresso a Missirá, multiplicam-se os conselhos para chegar a Madina de Gambiel. São talvez dez quilómetros até chegar à fronteira do regulado do Cuor; uma fronteira com paraíso, é esta a recordação que guarda o Tangomau, uma atmosfera edénica, com palmares soberbos, as palmeiras de Samatra que Armando Cortesão, mais tarde um dos maiores cartógrafos do mundo, para ali levou. São bolanhas úberes, uma fertilidade espantosa, tudo o Tangomau conheceu ao abandono, como terra de ninguém, embora as populações na órbita do PAIGC as cultivassem do lado de Mansomine. É uma viagem extasiante, umas vezes dentro de um carreiro com a frescura das copas dos cajueiros praticamente entrançados, outras sentindo as hortas cultivadas, e depois o desfrute das águas e do arvoredo combinados. Caminhava-se para o paraíso de Gambiel.
5. A tabanca de Madina de Gambiel é modesta mas está cheia de vida. O Tangomau pede para falar com o chefe da tabanca, alguém parte à procura da individualidade, entregue as fainas agrícolas. Outra pessoa levanta-se de um banco de madeira e olha directa e mansamente e exclama: “Reconheci-te pela voz e pelo andar. O teu nome é… Eu sou o Ieró Baldé, fui teu soldado milícia em Missirá, até Novembro de 1969”. O Tangomau é quase derrubado pela emoção, tal coisa nunca lhe acontecera, se sentir a fome e quisera comer fruta e bolacha Maria e beberricar água, tal precisão partiu instantaneamente. Agarra na mão de Ieró e vão a conversar, como em Novembro de 1969, falam de famílias, sobretudo dos filhos, o Tangomau pergunta-lhe por camaradas como Gibrilo Embaló ou Tomani Sanhá ou Sila Sabali, Ieró não tem notícia de nenhum deles. E assim chegam à bolanha de Madina de Gambiel, dois quilómetros à frente, fazem o percurso a pé, vão acompanhados por curiosos, cenas destas não se vêem todos os dias.
6. O Tangomau está decepcionado com o que vê à volta. Afinal, para construir a tabanca, a estrada sobre o rio Gambiel, arrasaram o palmar, continua a haver beleza mas o magnetismo, o feitiço dos palmares a beijar a água em abundância desapareceu. O Tangomau explica que esteve em Madina de Biassa que afinal fica para lá de Sancorlã e que ali insistem que é Madina de Gambiel, foi assim que Djlimamadu Camará, exímio caçador e que sempre andara nas florestas com Cibo Indjai, sempre a designou. Os de Madina de Gambiel andam furiosos com esta confusão, nem chega a ser uma rivalidade como Nazaré e Peniche, é um abuso de confiança, uma usurpação de quem vive no Gambiel não gosta e recalcitra. A grande emoção, afinal, foi rever Ieró Baldé. Não deve haver ninguém no mundo que não aprecie ser reconhecido imediatamente depois de mais de 40 anos de separação. Mais palavras, para quê?
7. A manhã vai alta, urge regressar, Lânsana Sori quer comer e repousar em Bambadinca. De Madina de Gambiel parte-se para Missirá, quando o Tangomau acena para todos na tabanca sente o coração contrito, há sempre presságios, pensamentos negros do género: terá sido a última vez que visitei Missirá, lugar eleito? A motocicleta prossegue veloz em terreno alcantilado, sempre a fintar pequenos abismos e charcos esverdeados. A excitação apazigua-se vendo Maná ao longe, atravessando Canturé, isto com uma enorme falta de coragem de ter pedido a Lânsana Sori para descerem até Gambaná, é aqui que começa uma recta espectacular com Malandim à esquerda e Chicri à direita, não fosse aquele cansaço brutal, a roçar o desumano, e todos os dias valia a pena vir aqui, palmilhar mais de duas dezenas de quilómetros. Mas não, houve prudência, seguiu-se até perto de Finete e inflectiu-se para a Bantajã Mandinga e daqui para Bambadinca. Aliás há imensos pormenores a tratar com Calilo Dahaba, o homem grande Fodé decidiu que a festa amanhã não é cabrito é foleré bem especial. Para quem está esquecido, o foleré mete batata, candja, alho, calda de tomate, óleo, orégãos, djacatu, sal, cebola e caldo de carne. A proteína é à escolha, e o homem grande Fodé decidiu que vai ser carne de vaca com osso, da costela. Assim seja, o Tangomau quer é regozijo neste reencontro, passar o dia na festividade com todos aqueles que foi possível encontrar. Por insólito que pareça, mesmo junto ao Geba, quando os viajantes deixaram Finete, o Tangomau pediu para captar a última imagem, a despedida do Cuor, tem consciência de que não há grande beleza naqueles eriçados com a mata ao fundo. Mas foi o lugar em que viveu e de que se vai separar, não sabe se pela última vez. E agora vamos descansar. Lânsana larga o Tangomau num espaço fresco onde fica à frente de uma cerveja, com a sua bolacha Maria, goiabas e algumas bananas-maçã. Um rádio batuca uma melopeia pouco estridente. Ali ao pé, as vozes no mercado são cada vez mais sussurrantes, com a onda de calor todos procuram sombra, descansar o corpo. Com um frémito de prazer, o Tangomau prevê uma tarde apaixonante. Daqui a um bocado partem para a Ponta do Inglês, um dos roteiros mais cobiçados para esta viagem. Estonteado pelo calor, ainda com remorsos pelas viagens que não fará e que tanto gostaria de fazer, o Tangomau deslizou para a escuridão. Na vaga do calor, adormeceu.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P7571: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (11): Regresso de Madina e Belel, com paragem em Canturé
Queridos amigos,
Naquela altura, o Tangomau sofria a valer, era uma corrida contra o tempo, tinham falhado vários itinerários, todos eles de valor precioso: o Cuor, na região de Finete junto ao Geba, até Aldeia e Gã Gémeos; a região de Fá; as tabancas beafadas perto de Amedalai; Samba Silate e os Nhabijões.
Esta foi uma manhã inesquecível. Mas a tarde, passada na Ponta do Inglês, não foi menos. E amanhã, domingo, vamos ter festa, os velhos combatentes vão conviver e recordar os seus mortos.
Um abraço do
Mário
Operação Tangomau (12)
Beja Santos
A partir de Maná até Madina de Gambiel. A seguir, a Ponta do Inglês
1. O Tangomau está inquieto, sem retórica até se sente um pouco angustiado. Dormiu agitado e sente culpas no cartório, veio à Guiné por razões muito precisas ou lineares, sobressaltou pessoas e instituições para ter chegado a um programa lisonjeiro com alguma estadia na região de Bambadinca. Mas agora tudo lhe sabe a pouco, vai para a casa de banho refrescar-se com o duche de caneco e faz perguntas sem resposta: é justo regressar a Bissau sem ver a malta das tabancas beafadas, até Moricanhe? Andaste por aí a perguntar por gente que mora a escassas dezenas de quilómetros e não ousas pôr-te ao caminho, tens tanta soberba que até pensas que lhes compete serem eles a fazerem esta longa marcha de candonga ou bicicleta? Eras tu que querias fazer Finete a Missirá junto ao Geba e afinal rendeste-te ao argumento que está tudo alagado? És negligente, tens a mania das facilidades, perdeste o gosto pelo risco, és um merdas, disfarçado de caminheiro, só queres a vida facilitada.
Com os alvores do dia, passou do estado melancólico para a excitação, hoje vai começar por se despedir do Cuor, visitando Maná, Sansão e Madina de Gambiel, poderá dizer por quase todo o Cuor está conhecido, sem remissão. O que na prática não é verdade. Andou ali a discutir com o Fodé Dabaha que tinham ido a Madina de Biassa. Tinham sido quilómetros a mais, tinham chegado ali perto de Sancorlã, tabanca que visitara várias vezes no passado, em patrulhamento. Pedira para visitar Salá e Quebá Jilã, rendera-se ao argumento das bolanhas alagadas e estradas intransitáveis. Lânsana Sori devia ter entrado mais cedo na expedição, paciência. Agora, impunha-se usar o dia, intensamente. Lânsana chegou, pontualmente, fizeram-se as compras no mercado do Bambadincazinho, ei-los à desfilada do Bairro Joli à Bantanjã, daqui para Finete e depois Canturé. Começa a ritual das toranjas, aqueles citrinos que matavam fome e sede nas idas e vindas diárias a Mato de Cão. São árvores miraculosas, quase irãs, merecem uma imagem para a posteridade.
2. Apresentam-se mais cumprimentos a Malã Mané, o chefe de tabanca de Canturé, acena-se à população e ruma-se para a velha estrada que ligava no passado o Enxalé a Geba. Esta estrada exerce um estranho fascínio sobre o Tangomau, e logo desde Agosto de 1968. Vale a pena, resumidamente, explicar porquê. Dentro dos 16 itinerários alternativos entre Missirá e Mato de Cão (bem divulgados no mercado de Bambadinca de modo a que a informação chegasse a Madina, e os inibisse nas iniciativas de emboscadas e minas) atravessar aquela estrada era uma obrigação. Mas uma obrigação com fascínio, e não se exagera, basta tê-la percorrido. Era alcantilada em muitos pontos. Numa das margens, à direita, de quem ia de Missirá para Gambaná, muito densa, não foi por acaso que o PAIGC escolheu esses pontos em emboscadas passadas, na outra berma era tudo aberto e luxuriante, basta pensar em Canturé e Maná. Chegava a ter rectas de um quilómetro, era uma vista desafogada, de um lado, uma inquietação permanente de outro, mas tudo numa atmosfera de beleza selvagem, expectante. E um silêncio só interrompido pelas viagens dos pássaros e o restolhar da fauna de pequeno porte. No passeio de hoje, o Tangomau delicia-se com essa estrada perdida, quase sem préstimo, para chegar a Maná nem vai ser difícil, Lânsana Sori inflecte para a direita, muito antes de se passar de Cancumba para Missirá. É um renovado prazer, agora Maná tem vida, a tabanca começou a ser reconstruída logo em 1975, não tomem o Tangomau por pedante ou excessivo, agora que se entrou pelo trilho e se avista Maná, ele referencia o ambiente como um todo. É bem recebido por Silá Sani, o chefe de tabanca. Aqui vivem 175 pessoas, o Tangomau mostra os livros, pela enésima vez pedem-lhe que os deixe ali, lamentavelmente não é possível, mas eles estão à disposição em Missirá. Tiraram-se fotografias, por azar do destino tudo se perdeu e é por isso que se mostra a fonte de Cancumba, um dos lugares míticos do Tangomau. Só quem ali viveu é que pode compartilhar da alegria em saber que aquela fonte dá vida a Cancumba e mesmo a Missirá, pode recordar o pesadelo do abastecimento quando as duas viaturas estavam empanadas.
3. Em alvoroço, o Tangomau retoma à velha estrada que ligava Bissau a Geba. Agora quer ir a Sansão, terreno emblemático dos guerreiros do Cuor. Aqui, foi Sambel Nhantá, aqui combateu Infali Soncó, foi obrigado a recuar perante as tropas portuguesas, em Abril de 1908. A motocicleta passa por Missirá, novos abraços efusivos, o Tangomau obtempera a todos os pedidos, possíveis e impossíveis, desde equipamento de futebol a material escolar. Bantan Aiderá e Nhali Cassamá, esta última viúva de Quebá Soncó e que há poucas horas visitaram o Tangomau em Bambadinca, olham-no atónitas, parece que a motocicleta transporta uma alma do outro mundo. Até Lamine Suane, o filho de Cherno Suane, o guarda-costas do Tangomau pede fotografia para o pai ver em Lisboa. Aparece a correr Braima Sani, que veio de Maná, Nhali Cassamá indica o caminho para Sansão. O Tangomau leva o coração em festa, ali há vida, quase todos os dias se percorria Sansão então tabanca morta, com as suas hortas ao abandono. É recebido por Aladje Lamine Cassamá, há abraços, perguntas, mostram-se os livros. É nisto que começam os prodígios da manhã, dois amigos se apresentam, felizmente que a máquina fotográfica não traiu o evento. Eles são Dauda Mané, aquele menino que ficara surdo no ataque a Missirá no Natal de 1966, Dauda fora enviado ao hospital, regressou sem diagnóstico; a seu lado, temos Aladje, que o Tangomau tão bem conhece, naquele tempo era inimaginável supô-lo chefe de tabanca em Maná. O admirável diz tudo é conversa com Dauda, ele olha para os lábios do interlocutor, percebe e sente tudo. Sim, sente, aqueles abraços vêm cheios de meiguice, estão muito para além da falta de compreensão dos sons. Quanto o Tangomau agradece este afago, este olhar maravilhado de Dauda Seidi!
4. De regresso a Missirá, multiplicam-se os conselhos para chegar a Madina de Gambiel. São talvez dez quilómetros até chegar à fronteira do regulado do Cuor; uma fronteira com paraíso, é esta a recordação que guarda o Tangomau, uma atmosfera edénica, com palmares soberbos, as palmeiras de Samatra que Armando Cortesão, mais tarde um dos maiores cartógrafos do mundo, para ali levou. São bolanhas úberes, uma fertilidade espantosa, tudo o Tangomau conheceu ao abandono, como terra de ninguém, embora as populações na órbita do PAIGC as cultivassem do lado de Mansomine. É uma viagem extasiante, umas vezes dentro de um carreiro com a frescura das copas dos cajueiros praticamente entrançados, outras sentindo as hortas cultivadas, e depois o desfrute das águas e do arvoredo combinados. Caminhava-se para o paraíso de Gambiel.
5. A tabanca de Madina de Gambiel é modesta mas está cheia de vida. O Tangomau pede para falar com o chefe da tabanca, alguém parte à procura da individualidade, entregue as fainas agrícolas. Outra pessoa levanta-se de um banco de madeira e olha directa e mansamente e exclama: “Reconheci-te pela voz e pelo andar. O teu nome é… Eu sou o Ieró Baldé, fui teu soldado milícia em Missirá, até Novembro de 1969”. O Tangomau é quase derrubado pela emoção, tal coisa nunca lhe acontecera, se sentir a fome e quisera comer fruta e bolacha Maria e beberricar água, tal precisão partiu instantaneamente. Agarra na mão de Ieró e vão a conversar, como em Novembro de 1969, falam de famílias, sobretudo dos filhos, o Tangomau pergunta-lhe por camaradas como Gibrilo Embaló ou Tomani Sanhá ou Sila Sabali, Ieró não tem notícia de nenhum deles. E assim chegam à bolanha de Madina de Gambiel, dois quilómetros à frente, fazem o percurso a pé, vão acompanhados por curiosos, cenas destas não se vêem todos os dias.
6. O Tangomau está decepcionado com o que vê à volta. Afinal, para construir a tabanca, a estrada sobre o rio Gambiel, arrasaram o palmar, continua a haver beleza mas o magnetismo, o feitiço dos palmares a beijar a água em abundância desapareceu. O Tangomau explica que esteve em Madina de Biassa que afinal fica para lá de Sancorlã e que ali insistem que é Madina de Gambiel, foi assim que Djlimamadu Camará, exímio caçador e que sempre andara nas florestas com Cibo Indjai, sempre a designou. Os de Madina de Gambiel andam furiosos com esta confusão, nem chega a ser uma rivalidade como Nazaré e Peniche, é um abuso de confiança, uma usurpação de quem vive no Gambiel não gosta e recalcitra. A grande emoção, afinal, foi rever Ieró Baldé. Não deve haver ninguém no mundo que não aprecie ser reconhecido imediatamente depois de mais de 40 anos de separação. Mais palavras, para quê?
7. A manhã vai alta, urge regressar, Lânsana Sori quer comer e repousar em Bambadinca. De Madina de Gambiel parte-se para Missirá, quando o Tangomau acena para todos na tabanca sente o coração contrito, há sempre presságios, pensamentos negros do género: terá sido a última vez que visitei Missirá, lugar eleito? A motocicleta prossegue veloz em terreno alcantilado, sempre a fintar pequenos abismos e charcos esverdeados. A excitação apazigua-se vendo Maná ao longe, atravessando Canturé, isto com uma enorme falta de coragem de ter pedido a Lânsana Sori para descerem até Gambaná, é aqui que começa uma recta espectacular com Malandim à esquerda e Chicri à direita, não fosse aquele cansaço brutal, a roçar o desumano, e todos os dias valia a pena vir aqui, palmilhar mais de duas dezenas de quilómetros. Mas não, houve prudência, seguiu-se até perto de Finete e inflectiu-se para a Bantajã Mandinga e daqui para Bambadinca. Aliás há imensos pormenores a tratar com Calilo Dahaba, o homem grande Fodé decidiu que a festa amanhã não é cabrito é foleré bem especial. Para quem está esquecido, o foleré mete batata, candja, alho, calda de tomate, óleo, orégãos, djacatu, sal, cebola e caldo de carne. A proteína é à escolha, e o homem grande Fodé decidiu que vai ser carne de vaca com osso, da costela. Assim seja, o Tangomau quer é regozijo neste reencontro, passar o dia na festividade com todos aqueles que foi possível encontrar. Por insólito que pareça, mesmo junto ao Geba, quando os viajantes deixaram Finete, o Tangomau pediu para captar a última imagem, a despedida do Cuor, tem consciência de que não há grande beleza naqueles eriçados com a mata ao fundo. Mas foi o lugar em que viveu e de que se vai separar, não sabe se pela última vez. E agora vamos descansar. Lânsana larga o Tangomau num espaço fresco onde fica à frente de uma cerveja, com a sua bolacha Maria, goiabas e algumas bananas-maçã. Um rádio batuca uma melopeia pouco estridente. Ali ao pé, as vozes no mercado são cada vez mais sussurrantes, com a onda de calor todos procuram sombra, descansar o corpo. Com um frémito de prazer, o Tangomau prevê uma tarde apaixonante. Daqui a um bocado partem para a Ponta do Inglês, um dos roteiros mais cobiçados para esta viagem. Estonteado pelo calor, ainda com remorsos pelas viagens que não fará e que tanto gostaria de fazer, o Tangomau deslizou para a escuridão. Na vaga do calor, adormeceu.
(Continua)
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P7571: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (11): Regresso de Madina e Belel, com paragem em Canturé
Guiné 63/74 - P7582: Parabéns a você (200): Bernardino Rodrigues Parreira, ex-Fur Mil da CCAV 3365/BCAV 3846 e CCAÇ 16 (Guiné, 1971/73) (Tertúlia / Editores)
10 DE JANEIRO DE 2011
BERNARDINO PARREIRA*
Caro Bernardino, a Tabanca Grande solidariza-se contigo nesta data festiva. Assim, vêm os Editores em nome de todos os teus camaradas e amigos desejar-te um feliz dia de aniversário junto dos teus familiares.
Que esta data se festeje e prolongue por muitos anos, repletos de saúde, tendo sempre junto de ti quem mais amas.
Na hora do brinde não esqueças os teus camaradas e amigos do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, que irão erguer também uma taça em tua honra.
__________
Notas de CV:
(*) Bernardino Rodrigues Parreira foi Fur Mil na CCAV 3365/BCAV 3846 e na CCAÇ 16, S. Domingos e Bachile, 1971/73
Vd. poste de 20 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6875: Tabanca Grande (236): Bernardino Rodrigues Parreira, ex-Fur Mil da CCAV 3365/BCAV 3846 e CCAÇ 16 (S. Domingos e Bachile, 1971/73)
Vd. último poste da série de 7 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7570: Parabéns a você (199): Agradecimento de Paulo Santiago, ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 53
Guiné 63/74 - P7583: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (37): Na Kontra Ka Contra: 1.º episódio
1. Mensagem de Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70), com data de 7 de Janeiro de 2011:
Caro Carlos:
Embora me esteja a dirigir a ti, o que tenho para dizer é mais para todos os outros camaradas, pois tu já conheces os antecedentes da possível publicação da estória NA KONTRA KA KONTRA.
Conforme o combinado, a saga que em princípio irá ser publicada por episódios, diariamente de segunda a sexta-feira, resultou da minha recente visita à Guiné-Bissau em Março de 2010. Logo no primeiro dia, quando se estava a almoçar em Bissau, tive conhecimento, por intermédio do nosso camarada António Pimentel, que um empresário guineense e antigo combatente, estava interessado em produzir a primeira telenovela guineense. Precisava pois de um argumento.
Passados uns dias, depois de amadurecer a ideia, noutro encontro com esse empresário tive a oportunidade de lhe dizer que já tinha congeminado uma estória, baseada em casos reais, que poderia muito bem, em meu entender, servir como argumento para uma telenovela.
Acrescentei, que independentemente da sua aceitação, logo que chegasse a Portugal começaria a escrever esse argumento. Foi o que aconteceu.
Dada a finalidade em questão, o enredo é dividido em episódios começando sempre cada um com a última parte do anterior. Pela mesma razão, por vezes há repetições de partes já descritas.
Embora se refira num preâmbulo, no 1.º Episódio, que por mais rocambolescos que pareçam os factos descritos, efectivamente foram vividos por personagens reais, salvaguardando duas passagens ficcionadas, que foram necessárias para “compor” o enredo.
Inicialmente a intenção da estória era servir de base a uma telenovela pelo que estive à espera da possível aprovação do produtor. No entanto, depois de a reler, tomei plena consciência que “NA KONTRA KA KONTRA” não seria uma novela adequada para passar na Guiné-Bissau. É neste contexto que, para já, avanço com a sua publicação no blogue.
Tem-se publicado muita coisa no blogue: Histórias da guerra e outras que nada têm a ver com ela e muito menos com a Guiné. Apesar de esta estória ter muito a ver com a guerra e com a Guiné, todos os camaradas podem, através de comentários, manifestar o seu agrado ou desagrado. É pois uma nova abordagem no Blogue Luís Graça, em moldes que considero diferentes.
A terminar direi que o final da estória não será da minha autoria mas será de acordo com cada leitor…
Um abraço a todos.
Fernando Gouveia
1.º EPISÓDIO:
1969, princípios de Agosto, em plena guerra colonial. Um forte rebentamento faz estremecer toda a picada bem como os corpos dos homens de uma coluna apeada, de tropas portuguesas, comandada pelo Alferes Miliciano Magalhães Faria. Uma nuvem em cogumelo, de fumo e pó avermelhado, eleva-se nos ares, e é vista também da tabanca de Madina Xaquili onde o Alferes Magalhães está sediado. Da mesma forma faz estremecer os corações de todos os habitantes da tabanca, em especial das mulheres dos milícias que integram a coluna.
INTRÓITO:
Por mais rocambolescos que pareçam os factos que fazem parte do seriado que agora tem início e que em grande parte é passado na actual Guiné-Bissau, foram realmente vividos pelas personagens, só que, para não haver quaisquer constrangimentos por parte de qualquer interveniente, se optou por ficcionar um pouco a saga, passando-se o mesmo com as fotografias. Se se trocarem devidamente alguns nomes de pessoas, de locais e fotografias a estória passa a ser 98% verdadeira. Embora nos primeiros episódios, pareça tratar-se de uma estória da guerra colonial, com o seu desenvolvimento vai tornar-se numa sucessão de encontros e desencontros (NA KONTRA KA KONTRA) amorosos, e não só. A abordagem do tema guerra tornava-se inevitável, por motivos óbvios.
PRINCIPAIS INTERVENIENTES:
Alferes Magalhães Faria … principal personagem e que vive a estória de princípio ao fim.
Asmau … personagem feminina que vive a estória desde o seu nascimento até ao fim, com eclipses temporais.
Dionildo … “ordenança” do Alferes Magalhães que vai aparecendo e desaparecendo esporadicamente ao longo da estória.
Adramane ... chefe da tabanca de Madina Xaquili e pai da Asmau.
Binta … mãe de Asmau.
Ibraim … porteiro do Cinema de Bafata que protagoniza, no final e a título póstumo, um episódio surpreendente.
João Sanhá … Alferes Comandante da Milícia da tabanca de Madina Xaquili.
Bobo … mulher do Milícia Sadjuma.
Sadjuma … Milícia que se ofereceu para ajudante de padeiro.
Braima … Milícia tocador de kora.
Kadidja … primeira mulher do Chefe da milícia João Sanhá.
Na noite anterior ao rebentamento da mina, o Alferes Magalhães de acordo com ordens superiores, tinha combinado com o comandante do pelotão de milícia, João Sanhá, a ida no dia seguinte a Cantacunda, tabanca em auto-defesa, em operação de reabastecimento de munições.
Como sempre, esta conversa teve lugar no local habitual, com ambos sentados no “bentem”, grande estrado de entrançado de bambus, debaixo de um mangueiro bem no centro da tabanca. Não fossem as combinações guerreiras, o local de onde se vê o relampejar ao longe e se ouvem os pios de som metálico dos morcegos frutívoros nos mangueiros, pareceria o centro do paraíso.
Neste dia, bem cedo, porque se pretendia regressar a Madina Xaquili para o almoço, segue a coluna. Os cerca de oito quilómetros até Cantacunda são percorridos sem percalços. O itinerário é considerado seguro pois os guerrilheiros do PAIGC só tinham mostrado actividade para Sul, ou seja, para os lados da tabanca abandonada de Padada, do rio Corubal e de Madina do Boé, entretanto abandonada pelas tropas portuguesas e agora “santuário” do PAIGC.
Está-se em plena época das chuvas. Embora manhã cedo, o calor húmido já se faz sentir. O que vale é a picada desenvolver-se em zona arborizada, ensombrando quase todo o percurso. Vêem-se os morros de baga-baga com os acrescentos que as formigas tinham construído durante a noite, de cor mais escura como que molhados. Grupos de pequenos macacos, em altas árvores, fazem um enorme alarido. Rolas e pássaros azuis esvoaçam à passagem da coluna. Um ambiente bem contrastante com o que se está a viver em Madina Xaquili.
Há cerca de dois meses ainda era uma tabanca, embora pequena, idêntica a tantas outras do Cossé. Tinha cerca de vinte e cinco moranças, com os seus “quartos de banho” exteriores delineados em “querintim”, esteiras de bambus entrançados. Como as coberturas dos abrigos se estavam a esboroar com as chuvas diárias, resolveu-se cobri-los com as coberturas de capim de muitas moranças, até porque já pouca população civil havia em Madina Xaquili. A tabanca apresentava-se agora esventrada e nada idílica.
Em Cantacunda entregam-se os cunhetes de munições, tiram-se as fotografias da praxe com o chefe da tabanca, iniciando-se de seguida o regresso a Madina Xaquili.
Sensivelmente a meio do percurso, já com a descontracção do regresso, um elemento da coluna acciona um engenho explosivo, ficando com o corpo todo dilacerado. Nunca se chegou a saber se o engenho já lá estava na passagem anterior. Provoca ainda pequenos ferimentos nos que iam mais perto. Não produziu mais danos pois o Alferes Magalhães tinha sido muito preciso nas instruções dadas, no sentido de irem afastados uns dos outros seis ou sete metros. Um dos feridos ligeiros é o Dionildo, que soltando meia dúzia de c… e f… depressa se recompõe.
Como autómatos, os homens tinham-se atirado para o chão e os mais nervosos, contrariamente às instruções recebidas, fizeram alguns disparos sem qualquer objectivo. Seguiu-se o silêncio, quer dos homens, quer dos animais da floresta. É então que o Alferes Magalhães, com a garganta cheia do pó vermelho da picada, num grito rouco, pergunta ao João Sanhá:
- Quem foi atingido?
Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7091: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (36): Desastre de viação de um T6
Caro Carlos:
Embora me esteja a dirigir a ti, o que tenho para dizer é mais para todos os outros camaradas, pois tu já conheces os antecedentes da possível publicação da estória NA KONTRA KA KONTRA.
Conforme o combinado, a saga que em princípio irá ser publicada por episódios, diariamente de segunda a sexta-feira, resultou da minha recente visita à Guiné-Bissau em Março de 2010. Logo no primeiro dia, quando se estava a almoçar em Bissau, tive conhecimento, por intermédio do nosso camarada António Pimentel, que um empresário guineense e antigo combatente, estava interessado em produzir a primeira telenovela guineense. Precisava pois de um argumento.
Passados uns dias, depois de amadurecer a ideia, noutro encontro com esse empresário tive a oportunidade de lhe dizer que já tinha congeminado uma estória, baseada em casos reais, que poderia muito bem, em meu entender, servir como argumento para uma telenovela.
Acrescentei, que independentemente da sua aceitação, logo que chegasse a Portugal começaria a escrever esse argumento. Foi o que aconteceu.
Dada a finalidade em questão, o enredo é dividido em episódios começando sempre cada um com a última parte do anterior. Pela mesma razão, por vezes há repetições de partes já descritas.
Embora se refira num preâmbulo, no 1.º Episódio, que por mais rocambolescos que pareçam os factos descritos, efectivamente foram vividos por personagens reais, salvaguardando duas passagens ficcionadas, que foram necessárias para “compor” o enredo.
Inicialmente a intenção da estória era servir de base a uma telenovela pelo que estive à espera da possível aprovação do produtor. No entanto, depois de a reler, tomei plena consciência que “NA KONTRA KA KONTRA” não seria uma novela adequada para passar na Guiné-Bissau. É neste contexto que, para já, avanço com a sua publicação no blogue.
Tem-se publicado muita coisa no blogue: Histórias da guerra e outras que nada têm a ver com ela e muito menos com a Guiné. Apesar de esta estória ter muito a ver com a guerra e com a Guiné, todos os camaradas podem, através de comentários, manifestar o seu agrado ou desagrado. É pois uma nova abordagem no Blogue Luís Graça, em moldes que considero diferentes.
A terminar direi que o final da estória não será da minha autoria mas será de acordo com cada leitor…
Um abraço a todos.
Fernando Gouveia
NA KONTRA
KA KONTRA
1.º EPISÓDIO:
1969, princípios de Agosto, em plena guerra colonial. Um forte rebentamento faz estremecer toda a picada bem como os corpos dos homens de uma coluna apeada, de tropas portuguesas, comandada pelo Alferes Miliciano Magalhães Faria. Uma nuvem em cogumelo, de fumo e pó avermelhado, eleva-se nos ares, e é vista também da tabanca de Madina Xaquili onde o Alferes Magalhães está sediado. Da mesma forma faz estremecer os corações de todos os habitantes da tabanca, em especial das mulheres dos milícias que integram a coluna.
Visão aterradora a partir de Madina Xaquili, especialmente para as mulheres dos milícias que integram a coluna.
INTRÓITO:
Por mais rocambolescos que pareçam os factos que fazem parte do seriado que agora tem início e que em grande parte é passado na actual Guiné-Bissau, foram realmente vividos pelas personagens, só que, para não haver quaisquer constrangimentos por parte de qualquer interveniente, se optou por ficcionar um pouco a saga, passando-se o mesmo com as fotografias. Se se trocarem devidamente alguns nomes de pessoas, de locais e fotografias a estória passa a ser 98% verdadeira. Embora nos primeiros episódios, pareça tratar-se de uma estória da guerra colonial, com o seu desenvolvimento vai tornar-se numa sucessão de encontros e desencontros (NA KONTRA KA KONTRA) amorosos, e não só. A abordagem do tema guerra tornava-se inevitável, por motivos óbvios.
PRINCIPAIS INTERVENIENTES:
Alferes Magalhães Faria … principal personagem e que vive a estória de princípio ao fim.
Asmau … personagem feminina que vive a estória desde o seu nascimento até ao fim, com eclipses temporais.
Dionildo … “ordenança” do Alferes Magalhães que vai aparecendo e desaparecendo esporadicamente ao longo da estória.
Adramane ... chefe da tabanca de Madina Xaquili e pai da Asmau.
Binta … mãe de Asmau.
Ibraim … porteiro do Cinema de Bafata que protagoniza, no final e a título póstumo, um episódio surpreendente.
João Sanhá … Alferes Comandante da Milícia da tabanca de Madina Xaquili.
Bobo … mulher do Milícia Sadjuma.
Sadjuma … Milícia que se ofereceu para ajudante de padeiro.
Braima … Milícia tocador de kora.
Kadidja … primeira mulher do Chefe da milícia João Sanhá.
Na noite anterior ao rebentamento da mina, o Alferes Magalhães de acordo com ordens superiores, tinha combinado com o comandante do pelotão de milícia, João Sanhá, a ida no dia seguinte a Cantacunda, tabanca em auto-defesa, em operação de reabastecimento de munições.
Como sempre, esta conversa teve lugar no local habitual, com ambos sentados no “bentem”, grande estrado de entrançado de bambus, debaixo de um mangueiro bem no centro da tabanca. Não fossem as combinações guerreiras, o local de onde se vê o relampejar ao longe e se ouvem os pios de som metálico dos morcegos frutívoros nos mangueiros, pareceria o centro do paraíso.
Neste dia, bem cedo, porque se pretendia regressar a Madina Xaquili para o almoço, segue a coluna. Os cerca de oito quilómetros até Cantacunda são percorridos sem percalços. O itinerário é considerado seguro pois os guerrilheiros do PAIGC só tinham mostrado actividade para Sul, ou seja, para os lados da tabanca abandonada de Padada, do rio Corubal e de Madina do Boé, entretanto abandonada pelas tropas portuguesas e agora “santuário” do PAIGC.
A coluna de reabastecimento à tabanca em auto defesa de Cantacunda.
Está-se em plena época das chuvas. Embora manhã cedo, o calor húmido já se faz sentir. O que vale é a picada desenvolver-se em zona arborizada, ensombrando quase todo o percurso. Vêem-se os morros de baga-baga com os acrescentos que as formigas tinham construído durante a noite, de cor mais escura como que molhados. Grupos de pequenos macacos, em altas árvores, fazem um enorme alarido. Rolas e pássaros azuis esvoaçam à passagem da coluna. Um ambiente bem contrastante com o que se está a viver em Madina Xaquili.
Há cerca de dois meses ainda era uma tabanca, embora pequena, idêntica a tantas outras do Cossé. Tinha cerca de vinte e cinco moranças, com os seus “quartos de banho” exteriores delineados em “querintim”, esteiras de bambus entrançados. Como as coberturas dos abrigos se estavam a esboroar com as chuvas diárias, resolveu-se cobri-los com as coberturas de capim de muitas moranças, até porque já pouca população civil havia em Madina Xaquili. A tabanca apresentava-se agora esventrada e nada idílica.
Em Cantacunda entregam-se os cunhetes de munições, tiram-se as fotografias da praxe com o chefe da tabanca, iniciando-se de seguida o regresso a Madina Xaquili.
Na tabanca de Cantacunda a entregar os cunhetes de munições. O Alferes Magalhães sentado no “bentem” entre o Comandante da Milícia João Sanhá e o Chefe da tabanca.
Sensivelmente a meio do percurso, já com a descontracção do regresso, um elemento da coluna acciona um engenho explosivo, ficando com o corpo todo dilacerado. Nunca se chegou a saber se o engenho já lá estava na passagem anterior. Provoca ainda pequenos ferimentos nos que iam mais perto. Não produziu mais danos pois o Alferes Magalhães tinha sido muito preciso nas instruções dadas, no sentido de irem afastados uns dos outros seis ou sete metros. Um dos feridos ligeiros é o Dionildo, que soltando meia dúzia de c… e f… depressa se recompõe.
Como autómatos, os homens tinham-se atirado para o chão e os mais nervosos, contrariamente às instruções recebidas, fizeram alguns disparos sem qualquer objectivo. Seguiu-se o silêncio, quer dos homens, quer dos animais da floresta. É então que o Alferes Magalhães, com a garganta cheia do pó vermelho da picada, num grito rouco, pergunta ao João Sanhá:
- Quem foi atingido?
Fim deste episódio
Até ao próximo camaradas.
(Fernando Gouveia)
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 6 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7091: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (36): Desastre de viação de um T6
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