1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Julho de 2011:
Queridos amigos,
Recomendo vivamente um passeio ao Centro Cultural de Cascais, pode muito bem acontecer que encontremos nesta instalação de Manuel Botelho as cartas de amor, as recordações no nosso abandono, os nossos apelos afectivos, a nostalgia daquela expectativa que era a chegada do nosso correio.
Creio que
Manuel Botelho venceu esta prova ao prodigalizar o amor posto à prova pela distância, dá-nos um retrato da vida incerta e da fragilidade dos vínculos. Aquele Nando que não escreve e que consome no coração da Lenita terá sido um pouco de todos nós, naquele tempo.
Um abraço do
Mário
Cartas de amor e saudade
Beja Santos
Um conceituado artista plástico, porventura aquele que mais tem trabalhado sobre a guerra colonial, com um olhar inovador e o recurso a diferentes estéticas no recurso da fotografia, do vídeo e da instalação, vem agora propor-nos uma viagem ao valor sentimental das cartas de amor trocadas entre o Nando e a Lenita, algo que se passou nos anos 60/70, é uma partilha de sentimentos, de relações de família, um poderoso testemunho de usos e costumes que permitem questionar o peso das cartas de amor entre alguém que ficou à espera de um namorado a viver num lugar chamado Bachile, algures na Guiné. “Cartas de Amor e Saudade” é o mais recente trabalho de Manuel Botelho, pode ser visitado no Centro Cultural de Cascais até 28 de Agosto.
Trata-se de uma instalação sui generis, o visitante entra num amplo espaço decorado com panos de tenda, simbolicamente uma antecâmara onde é possível encenar essas cenas de amor de dois seres humanos em dois continentes. Numa parede estão penduradas três impressões fotográficas, alguém escreve fardado para alguém que é um perfeito estereótipo das jovens dos anos 60, segue-se um maço de correio atado por cordel e depois a bandeira portuguesa enrolada. Num palco há dois projectores prontos a iluminar a protagonização da Lenita e do Nando, ela sentada, ele de bota em cima de um cunhete de munições.
Em termos de representação, é possível que ambos dissertem para as paredes, no afã de derrubar a distância. Nando escreve:
“Amorzinho da minha vida, então como estás? Olha querida, o teu amor cá continua ao cimo da água neste barco monstro que corta as ondas sem piedade e cada vez nos separa mais. Queridinha, posso dizer-te que neste momento estou triste, e digo-te mais, até estou com os olhos rasos de lágrimas com tantas saudades que tenho de todos vós, do meu pai, da minha querida mãe, e tuas, pombinha querida, as três pessoas que mais adoro neste mundo, tirando Deus”. Lenita responde:
“Sem ti, meu amor, tudo parece vazio e sem significado. Os únicos momentos menos tristes que tenho são aqueles em que te escrevo e em que recebo cartas tuas, nos outros passo a vida a representar uma boa disposição que não sinto”. Nando retoma o discurso:
“Aqui não tem havido ataques, mas tal como em Bissau ouvem-se tiros e rebentamentos e há sempre muita tropa a entrar e a sair. Olha, sabes meu amorzinho, estamos a contar a ir em breve para uma terra que fica próximo daqui chamada Bachile”. Lenita escreve atemorizada:
“Hoje de manhã contaram-me que em Teixeira Pinto tinham morrido dois majores, um capitão e um alferes e que também tinha ficado ferido um rádio telegrafista… Ainda não recebi qualquer notícia tua e estou o que se pode dizer desesperada”. Nando tranquiliza-a:
“Gostava de saber quem foi o parvalhão que te deu essa notícia. Na realidade morreram três majores e um alferes, mas nem sequer foi nesta zona. Portanto, nada de susto, ok meu amor?". Lenita não esconde as suas preocupações, quer saber por que é que o Nando foi para o Bachile, quer pormenores sobre a comida, a água, o quartel, a falta de notícia corta-lhe o coração, terminando por dizer que é a noiva mais apaixonada do mundo. Nano volta à carga, fala-lhe no calor sufocante, na guerra que se ouve à distância. Deve ter mandado fotografias do Bachile à Lenita que faz comentários muito críticos. Revela ter ciúmes, não ande o Nando enfeitiçado por alguma preta ou mulata, di-lo abertamente:
“De verdade que nunca beijaste nenhuma mulher daí, nem mesmo uma cabo-verdiana? Tenho medo, muito medo que me esqueças. Nos últimos tempos este pensamento assalta-me o espírito constantemente".
Nando e Lenita tratam-se ternamente, usam palavras como bichaninho, meu adorado noivo, tenho a tua fotografia bem junto de mim, sentem-se tristes e ao mesmo tempo felizes. Os meses passam, inevitavelmente os termos e a substância da escrita acusam o desgaste da distância, ela chega a falar nos antigos namoros do Nando, no Bachile ele tranquiliza-a. Ficamos a saber que a Lenita tem um trabalho muito rotineiro:
“Tenho andado a tratar das facturas mensais dos clientes de Lisboa que são 490. É um serviço monótono e sem interesse nenhum, que me dá imenso sono". O Nando também não esconde a monotonia dos seus dias, fala nas chuvas torrenciais, desvela que há operações, há sofrimento, um alferes pisou uma mina, etc. Lenita queixa-se da falta de notícias, ele já não escreve duas folhas cheias ou até mesmo mais. Nando vai passar férias à metrópole, no regresso reinstala-se a melancolia da separação, falam ambos em saudades, em desespero, insistem obcessivamente no seu compromisso de noivado, ele imprime mais meiguice ao discurso:
“Tu és a luz que alumia o meu coração, sem o teu carinho não consigo resistir”. Mas Nando é ciumento, pede para não ir a festas, pede para ter juízo, também ele anda cheio de ciúmes. Os meses passam, é uma toada de solidão, ambos dizem que andam com lágrimas nos olhos, ela reza, ele promete fazê-la muito feliz, quando a guerra acabar. Nando volta de férias, a entoação dramática entra no crescendo, ficamos a saber que ela está triste e vazia e ele procura ser carinhoso:
“Morro de saudades meu grande amor, minha coisinha mais querida do mundo. E a propósito, como vai a coisinha querida? Tenho tantas saudades dela. Ai quando nos casarmos canichita querida”. Lenita começa a tomar Valium 5, Nando confessa que está a atravessar uma crise de saturação. E chega o silêncio, que vai enformar a instalação de Manuel Botelho. Lenita passou a ter um discurso dilacerante, pede ao Nando para escrever, torna-se patética:
“Estou saturada da incerteza em que tenho vivido… nem quero pensar que continues a não escrever apesar de todos os rogos que te fiz. A mágoa que sinto é tão grande que me põe fora de mim. Desde que te foste embora passaste por várias fases. Ao princípio procedias como realmente procedem as pessoas que se amam de verdade. Depois, ao regressares à Guiné, tornaste-te mais ciumento, o que também era sinónimo de amor”. É um discurso desinsofrido, acusa-o de ter um coração frio como uma pedra, ela grita-lhe que não aguenta tanta incerteza, chega-lhe a suplicar para que o Nando lhe mande um telegrama a dizer que está bem. E chegamos ao ponto culminante, compete ao artista lançar a semente da dúvida:
“Não imaginas como anseio o teu regresso. Tenho tanta gente à minha volta e no entanto sinto-me tão só!. Meu Deus, se vejo o dia em que desembarcarás no cais e correrás para mim, suspirarei de alívio e até crescerei um palmo por me ver liberta deste grande sofrimento”. Como manda a lei das cartas de amor e saudade, o autor não nos deixa vislumbrar o desfecho de tanto suspiro e de tanta espera.
Na apresentação deste texto pungente, o crítico João Pinharanda lembra-nos o Álvaro de Campos que fala de todas as cartas de amor são ridículas e que não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. Isto como chamada de tensão de que o ridículo só é provável quando lamentamos o passado, bem ou mal vivido. O crítico terá razão quando observa que estas cartas podem ser perspectivadas como um retrato ideológico do Portugal de então e que agora, transformadas em obras de arte, questionam-nos numa dimensão que ultrapassa a metáfora: o que sentimos perante a possibilidade da nossa morte ou da morte do ser que amamos? Aqueles amores entre o Bachile e Lisboa (?) aparecem recortados, excessivamente encenados nas suas pequenas alegrias, espantos, aspereza de modos, súplicas persistentes, o puro terror das perdas. É por isso que apropriadamente são cartas de amor e saudade em tempos de guerra. É por isso que vale a pena recordar o que foi a juventude que viveu aqueles tempos de guerra.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 14 de Julho de 2011 >
Guiné 63/71 - P8556: Em busca de... (170): Guiões das Unidades mobilizadas para a Guerra Colonial (Manuel Botelho / Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 6 de Julho de 2011 >
Guiné 63/74 - P8519: Agenda Cultural (142): Apresentação do livro “CATARSE” do Capelão Militar Abel Gonçalves