Com a devida vénia à Tabanca do Centro e ao nosso camarada Miguel Pessoa, trascrevemos um artigo publicado no Blogue daquela Tabanca:
AINDA O LIVRO DAS NOSSAS ENFERMEIRAS PARAQUEDISTAS
Num texto recente em que reportámos o lançamento do livro “Nós, Enfermeiras Paraquedistas”, referimos que o texto lido pelo TCor. José Aparício no decorrer dessa sessão tinha calado fundo no coração de muitos dos presentes. Ficámos por isso de o reproduzir neste blogue logo que nos fosse disponibilizado. Aqui fica a referida apresentação, com a devida vénia ao autor.
TEXTO LIDO PELO TCOR INF JOSÉ APARÍCIO
NA APRESENTAÇÃO DO LIVRO
“NÓS, ENFERMEIRAS PARAQUEDISTAS”
NO AUDITÓRIO DO EMFA, EM ALFRAGIDE, EM 26NOV2014
TCor Inf José Aparício durante a apresentação do livro "Nós Enfermeiras Paraquedistas"
Poderá parecer estranho a todos os presentes que a apresentação deste livro vá ser feita por um militar do Exército. Não conheço o que motivou o convite que me foi formulado, que muito me honra, e que agradeço. Presumo que a condição de ex-combatente tenha sido a determinante, já que em todos os Teatros de Operações, as tropas no terreno, paraquedistas incluídos por maioria de razão, foram as testemunhas privilegiadas, e especialmente os grandes beneficiários, das actividades na guerra das enfermeiras paraquedistas portuguesas, que nesta obra importante e tão vivida, tão bem relatam, com uma sensibilidade e delicadeza comoventes.
De tudo o que fizeram por nós, todos os combatentes ainda hoje têm uma lembrança muito viva, e que nunca esquecem. É de todos, o sentimento de uma enorme dívida de gratidão que toda uma geração vos deve, e que enquanto vivermos sempre lembraremos. Sinto por isso, a responsabilidade acrescida de, em seu nome, dizer aqui o essencial do que vai na alma e no coração de tantos portugueses que apoiaram em momentos muito difíceis.
Por muitas razões, não sou com absoluta certeza a pessoa mais qualificada e habilitada para fazer esta apresentação. Mas estando hoje aqui para isso, vou fazê-lo sem filtros, como aos velhos tal é permitido, e com todo o coração, seguindo assim o exemplo do que é bem visível nesta obra, desde a capa à última página que escreveram.
Confesso que foi com muita emoção que preparei a apresentação deste livro, que já li e reli várias vezes, para o perceber em todas as suas dimensões. Inclusivamente as que, por razões que se adivinham, as autoras deixaram implícitas e não revelaram completamente; como foram seguramente os desabafos e as súplicas que ouviram de gente em enorme sofrimento físico e também moral. “Não se pode olhar fixamente o sol, nem a morte” como refere o francês, LaRochefoucault. Quando se sente a morte por perto, somos todos mais autênticos, e há sempre, pelo menos, o esforço de deixar uma última mensagem para alguém, mesmo quando as palavras faltam e só os olhos falam; quantas mensagens destas não terão ouvido e sentido estas mulheres portuguesas!
Hoje há já publicados muitos livros sobre a denominada “Guerra do Ultramar”. Nessas obras constam normalmente as vivências e o sofrimento, de toda uma geração que foi chamada a servir a sua Pátria em condições crescentemente adversas. O livro que hoje aqui apresento é um livro único nessa já longa Bibliografia Militar; pela novidade e sensibilidade do assunto tratado, pela sua autenticidade bem manifesta, pela dureza e intensidade dos relatos neles contidos, pelo sentimento e emoção ali sempre presentes, pelas histórias humanas comoventes, até dramáticas, que nele são contadas. Pelo que mostra da guerra que vivemos, na sua face mais cruel, e com pormenores que ainda ninguém tinha ousado assim contar.
Quem estude a guerra a que tivemos de fazer frente, não pode deixar de conhecer, e de sublinhar a importância, de algumas decisões que, atempadamente, o então Secretário de Estado da Aeronáutica, TCor Kaulza de Arriaga e os comandos da Força Aérea Portuguesa tomaram, quando todas as previsões apontavam que “os ventos de guerra” iriam rapidamente chegar às províncias ultramarinas portuguesas. Estranhamente, a maior parte da história publicada ainda nada menciona a esse respeito, pelo que é preciso recordá-las com insistência, para que constem. Refiro-me concretamente às decisões tomadas a partir da segunda metade da década de 50, na preparação para a guerra em África, e que foram: a decisão da construção das infra-estruturas aeronáuticas necessárias para que em todas e em cada uma das províncias ultramarinas, as mesmas estivessem já operacionais quando a guerra eclodiu em cada uma delas; a criação das Tropas Paraquedistas que, quando a guerra começou, tinham já um grau de preparação e de prontidão muito avançadas, e que foram as primeiras forças a chegar às zonas onde aconteceram os terríveis massacres no norte de Angola, e que até ao fim tiveram sempre um desempenho notável; finalmente o mérito, e a ousadia para a época, da criação do quadro das enfermeiras paraquedistas, que depois foram imprescindíveis nas evacuações dos feridos a partir dos próprios locais de combate.
Para além, evidentemente, do desempenho da Força Aérea Portuguesa na guerra, da sua operacionalidade e eficiência com que sempre actuou desde o início até ao seu fim; e com todas as suas componentes e funções, aérea, de transportes, paraquedistas, e de evacuação. Todos nós, os que fizemos a guerra no Ultramar, em terra ou na água, temos da FAP no seu conjunto, dos seus diferentes comandos, dos seus excelentes pilotos e de todos os seus especialistas, a imagem bem vincada que, mesmo em situações limite e nos locais mais isolados e difíceis, sempre nos apoiaram.
Como é bem demonstrado neste livro, a criação do Quadro das Enfermeiras Paraquedistas não foi um episódio e muito menos um pormenor da Guerra do Ultramar. Foi antes um projecto bem pensado, amadurecido, e posto em execução com todo o cuidado e empenho. O desempenho excepcional dos seus agentes, as enfermeiras paraquedistas, justificou-o plenamente, e a todos os títulos; como militares paraquedistas, como enfermeiras profissionais altamente qualificadas, como Pessoas de uma enorme estatura moral e humana.
Logo no início deste seu testemunho as autoras assumem com uma humildade exemplar que este livro não é uma obra literária, e que portanto não tiveram grandes preocupações quanto à forma. Tiveram antes como principal objectivo relatar a sua vivência na guerra, mas também na FAP e no Regimento de Paraquedistas, a que ainda hoje, com muito orgulho e empenho, ainda se reclamam de pertencer. É pelo seu conteúdo que este livro é impressionante; pela humanidade e humildade que põem em cada palavra, pelo sentimento com que descrevem as terríveis situações por que passaram, pela simplicidade como relatam cenas de uma grande violência, como abrem as suas almas e o seu coração e dizem o que pensaram e sentiram em todas as situações da vida que então viveram.
Como o livro contém muitos depoimentos individuais das suas autoras, e que são imprescindíveis para se conhecer o que foi a sua vida e as suas emoções durante os 13 anos de guerra, era impossível evitar algumas repetições. Curiosamente, ou talvez não, o que é mais repetido são os seus comentários sobre a FAP e as unidades paraquedistas, com a manifestação permanente do orgulho que ainda sentem por terem pertencido a esta Instituição e às tropas paraquedistas, e com os seus agradecimentos pelo calor do acolhimento que tiveram, e pelo apoio que sempre sentiram. Como todas referem, “os tempos de Tancos foram uns tempos magníficos”.
Citando o que no início desta obra escrevem, «As autoras assumem-se aqui, neste livro, simplesmente como gente que viveu a dor dos outros, gente igual a tanta gente; ”gente que tratou gente”…». Acrescento, da minha parte, o que os combatentes delas sentiam, “Gente bonita, por dentro e por fora!”, o que hoje ainda se aplica por inteiro e em toda a dimensão. Esta frase foi um comentário de um militar de uma das companhias que comandei numa evacuação dramática como todas foram. A razão que a provocou, foi apenas uma manifestação de carinho e de solidariedade da enfermeira em causa, que depois de embarcar no helicóptero o ferido grave, ainda teve um gesto que calou fundo em todos nós que estávamos perto, e que foi, só, dar um toque nas costas do socorrista do exército que até aí tinha estado a tratar o ferido. É bem verdade que na vida há pequenos gestos que se tornam enormes pelas suas circunstâncias e sentimento, que classificam moralmente os seus autores, e que por isso ficam para sempre com quem os presencia.
Como revelam, a inspiradora da ideia da “Enfermeira Paraquedista” foi uma mulher portuguesa, Isabel Bandeira de Melo, filha dos condes de Rilvas, que desde muito jovem foi uma apaixonada por actividades aéreas. Em França frequentou cursos de pilotagem de aviões e de balões de ar quente e ainda de paraquedista. Nessa sua permanência no exterior conheceu um grupo de médicas e enfermeiras da Cruz Vermelha Francesa que eram paraquedistas e que tinham actuado na então Indochina francesa e na Argélia, como os livros publicados na época referem. Sendo das relações do TCor Kaulza de Arriaga, então Secretário de Estado da Aeronáutica, convenceu-o da bondade da ideia, que depois até foi apadrinhada pelo Presidente do Conselho de então, Prof Oliveira Salazar, que ainda recomendou, a propósito, que a selecção das voluntárias devesse ser feita nas escolas de enfermagem religiosas então existentes.
Na primeira parte deste livro as autoras relatam-nas as suas vidas até à opção que tomaram de serem enfermeiras, e depois enfermeiras paraquedistas. As terras onde nasceram vão do Minho ao Algarve, e uma delas em Santo Antão, Cabo Verde. Representam o Portugal autêntico, com as suas diferenças ainda hoje prevalecentes entre os residentes dessas várias regiões do País. Descrevem de uma forma muito simples, mas muito completa e objectiva, como era a sociedade portuguesa nesses tempos já longínquos. E não esquecem nenhum dos seus aspectos mais relevantes, como a extrema pobreza de então em largos estratos da população, a imensa iliteracia reinante, a enorme pressão sobre os costumes e as mentalidades, sobretudo nas aldeias. Como referem, desde cedo aprenderam a viver com muito pouco e com dificuldades, o que, reconhecem, lhes granjeou uma grande capacidade de resistência às adversidades, que lhe foi útil face às muitas dificuldades que depois tiveram de enfrentar.
Lisboa era então vista pelo Portugal profundo como o “antro do vício” onde os riscos para uma rapariga nova, bonita e sozinha, eram enormes; ser então enfermeira, e ter trabalhar de noite, era um enorme perigo; ser paraquedista e viver num quartel no meio de homens, era hipótese impensável. Percebem-se muito bem as dificuldades que tiveram que ultrapassar; primeiro junto das suas famílias, o que contam com uma grande ternura, depois nas suas aldeias e na sua roda de amigos. Além disso tiveram que enfrentar imensos tabus, e assim contrariar o que era considerado o papel tradicional da mulher na sociedade portuguesa. Foram por isso notáveis pioneiras na luta pela emancipação da mulher, com a força da relevância que tiveram pelo seu extraordinário desempenho, em todos os aspectos, durante a guerra do Ultramar.
Depois de terem tomado como opção de vida a enfermagem, fizeram o seu caminho conforme as habilitações que então tinham, mas principalmente conforme as possibilidades financeiras dos seus pais. Ao tempo havia 2 cursos de enfermagem, um de Auxiliares de Enfermagem menos exigente na escolaridade já feita, o outro, mais completo e mais longo, e com mais anos de escolaridade de exigência. Revelando a sua garra e a sua determinação algumas das já Auxiliares de Enfermeiras, conseguiram tirar depois o Curso Geral de Enfermagem com o dinheiro ganho no exercício da sua actividade, e com o sacrifício do seu merecido descanso.
Eram já enfermeiras profissionalmente bem preparadas, experientes, e especialmente motivadas, quando em 26Mai61 as primeiras onze voluntárias seleccionadas se apresentaram em Tancos para o primeiro curso de enfermeiras paraquedistas. É muito interessante ler as suas impressões sobre a sua entrada no BCP, o ambiente amigo e respeitoso que encontraram e sempre ali tiveram, as enormes dificuldades físicas e psicológicas que tiveram valentemente de ali vencer, o muito esforço físico a que foram submetidas e a que não estavam habituadas, as muitas nódoas negras, a torre de saltos, os seus medos, os saltos que cumpriram galhardamente, os campos do Arrepiado, o Tejo e as preocupações de nele não cair.
Através deste livro percebe-se bem como foi cuidado e acarinhado pela FAP este projecto. Primeiro pelo conceito aprovado, depois pelo rigor posto na sua aplicação, finalmente pelo continuado acompanhamento do seu desenvolvimento introduzindo os ajustamentos que a realidade foi depois aconselhando. A escola de enfermagem escolhida para efectuar a selecção e a angariação de potenciais voluntárias foi a Escola das Franciscanas Missionárias de Maria, na altura uma escola de enfermagem muito prestigiada. Após serem seleccionadas, apresentaram-se em 06Jun61 em Tancos onde durante 12 semanas fizeram a normal formação de paraquedistas, um treino duro que lhes foi ministrado com exigência. Finalmente em 08Ago61 receberam com reconhecido orgulho e entusiasmo a boina verde e o brevet de paraquedista que tanto ambicionavam. Logo de seguida, os primeiros cursos estagiaram nos serviços de Urgência do Hospital de S José e no Hospital Militar Principal onde nessa altura já havia feridos de guerra evacuados de Angola. Depois, o estágio passou a ser feito nos Açores no Hospital da FAP até 1968; nos últimos anos o estágio passou a ser realizado já em operações, sendo acompanhadas nas primeiras evacuações por outra enfermeira já experiente no local.
Veio então a guerra. As primeiras a aterrar em África chegam a Luanda em 12Out61. A partir daí e até ao seu fim estiveram sempre presentes em todas as situações delicadas. Primeiro no desastre do Chitado em 16Nov61, na muito penosa identificação dos cadáveres carbonizados que ali encontraram, e na posterior assistência às famílias dos mortos e no seu acompanhamento no regresso a Lisboa. Em Dezembro de 1961, quando da invasão dos territórios portugueses da India, foram deslocadas para Karachi onde estiveram cerca de 2 meses a assistir as mulheres e crianças entretanto evacuadas daqueles territórios. Depois, e até ao fim de 1974, estiveram presentes em todos os locais onde a guerra foi mais intensa e dura.
Em Angola a guerra já se tinha entretanto iniciado; na Guiné e Moçambique eclodiu nos anos seguintes.
Face ao sucesso que constituiu o primeiro curso de enfermeiras paraquedistas, e à sua rápida e fácil adaptação ao ambiente operacional, extinguiram-se os receios até aí existentes quanto à utilização de mulheres na Instituição Militar. E assim outros cursos se lhe seguiram, agora já abertos a voluntárias provenientes de todas as escolas de enfermagem do País.
Até ao fim, estiveram presentes em todos os locais onde a guerra foi mais intensa e dura. E também estiveram nos aviões de longo curso da FAP que transportavam feridos do Ultramar para os Hospitais Militares de Lisboa. Estes aviões eram autênticas enfermarias voadoras, onde as enfermeiras tinham a responsabilidade de manter as funções vitais dos feridos, durante viagens muito longas e prolongadas sobre a África e o oceano Atlântico. Mas também controlar a ansiedade dos feridos e os problemas psicológicos de muitos perante o momento terrível de, naquelas condições de diminuição física, quase sempre para o resto da vida, aparecerem às suas famílias que ansiosamente os esperavam em Lisboa, às horas sempre tardias de chegada dos aviões.
A guerra do Ultramar no seu conjunto foi extremamente longa, dura e exigente. Recordo que estiveram nela envolvidos cerca de um milhão de portugueses, que nela morreram 8,300 combatentes, da Marinha, do Exército e da FAP, a maior parte em combate. E os feridos foram muito perto de 26,300, dos quais muitos, estropiados e deficientes para a vida, de que não se sabe o número oficial, e que hoje são a prova viva dos horrores de então.
A guerra, qualquer uma que seja, é sempre o mal absoluto, em que o sacrifício, o sangue, o sofrimento, as feridas monstruosas, e as terríveis mutilações estão sempre presentes. Foi com todos estes horrores, na circunstância os mais duros e dolorosos, que as enfermeiras paraquedistas portuguesas quase diariamente se confrontaram durante 13 anos. Sem um lamento, sem um desfalecimento, sem qualquer apoio psicológico exterior, valendo-se apenas dos mecanismos de autodefesa que foram criando, e do muito convívio e apoio dos seus camaradas da FAP e paraquedistas nas instalações que ocupavam.
Como detalhadamente descrevem, as evacuações efectuadas a partir dos locais de combate foram sempre situações complicadas. Onde correram enormes riscos – que nunca mencionam por modéstia - mas que era a constante nessas situações, com muitos tiros e rebentamento de granadas no local. As imagens vivas, que ainda hoje perduram perante nós dessas ocasiões, são: a coragem e a perícia do piloto em poisar o helicóptero em sítios que pareciam impossíveis, ou aterrar o avião em pistas rudimentares; a enfermeira paraquedista, quase sempre a correr para os feridos, completamente indiferente ao que ao lado se passava, e pondo muitas vezes ordem na confusão eventual existente; e o cabo mecânico com uma maca a ajudar no exterior do meio aéreo. As equipas de evacuações eram realmente equipas magníficas, de coragem, de generosidade, e de fraternidade. Os riscos que correram tiveram consequências: uma das autoras faleceu nas condições trágicas que adiante referirei, outra levou um tiro na cabeça de que felizmente recuperou, outra escapou milagrosamente a um disparo de Strela que passou nas imediações do avião que a transportava; várias estiveram em aterragens forçadas das suas aeronaves em zonas fortemente controladas pelo adversário, no planalto dos Macondes (Moçambique) e na ilha do Como (Guiné).
Há um aspecto particular que foi de uma enorme importância e que consta aliás de vários depoimentos deste livro. À distância do tempo, ainda hoje me espanto com a percepção que as enfermeiras paraquedistas tão cedo adquiriram de como era penalizadora a existência de militares já mortos no terreno. E como tão generosamente depois resolveram o problema. Assumiram elas próprias o transporte de militares já cadáveres, o que não era permitido pelos regulamentos. Formalizavam o facto com o registo de que a morte tinha ocorrido minutos após a descolagem. Tal só foi possível, certamente, com a cumplicidade dos cabos mecânicos que as acompanhavam, com o fechar de olhos dos pilotos à situação, e com a compreensão posterior dos respectivos comandantes de esquadra.
Em campanha convive-se muito mal com a morte de alguém, que há instantes marchava a nosso lado, que era nosso irmão qualquer que fosse a sua cor ou graduação. Sei por experiencia própria, que é a de muitos infelizmente, quão doloroso é o transportar aos ombros um dos nossos, com o sangue, o vómito, e todos os fluidos de um corpo escorrendo para os camuflados; e com as nossas cabeças cheias de desespero, de raiva e de muitas de interrogações.
Porque em guerra, as enfermeiras paraquedistas, conviveram intensamente com um dos enigmas do nosso destino: apenas uma fracção de segundo nos separa da morte e da eternidade; há momentos de uma enorme intensidade, em que o tempo não existe porque não se pode medir; alguns instantes fugazes parecem uma eternidade, e são anos que nos fazem envelhecer, e que deixam marcas até à morte. Há aliás no livro uma afirmação de uma das autoras, que a partir dos horrores que viu e viveu em todos os TO, conclui: “A guerra era assim! Para quem a faz, para quem a sente, e para quem a presencia… um suplício”.
Os extraordinários depoimentos que escreveram sobre esses tempos são umas magníficas lições de humanidade e de dádiva pelos outros. E não só pelos combatentes portugueses, como também pelos combatentes do PAIGC e da FRELIMO, de que também sempre cuidaram com o mesmo desvelo, carinho e entrega. E ainda nas horas livres apoiando as populações nativas em postos de socorros primários, em aulas de educação sanitária, ajudando nas Missões contra a Lepra e a Elefantíase que existiam em Bissau, brincando com as crianças, esses “olhões brilhantes como sóis” como, com tanta beleza, estão aqui descritos.
O convívio agradável e amigo que sempre tiveram nas unidades da FA que as apoiavam ajudou-as muito a amortecer os dramas e as agruras de cada dia. Por vezes até tinham tempo de fazer renda e ensinar os vários tipos de pontos; houve tempo para cantar e de se divertirem em serões animados. E naturalmente também tiveram tempo de namorar; como era de esperar de gente nova e bonita, cheia de vida, de projectos e de ilusões. Não admira por isso as consequências posteriores, que foram os casamentos felizes de muitas das autoras com paraquedistas, aviadores e mais elementos da Força Aérea.
Como referem com frequência, em muitas situações de enorme tristeza rezaram a Deus e a Nossa Senhora do Ar por aqueles que tratavam. Fizeram-me lembrar, a propósito, um velho provérbio russo “Quem nunca fez a guerra não sabe o que é a oração”.
Alguns dos depoimentos que vão ler são de uma enorme violência e dramatismo como o referente à descrição do acontecido à enfermeira Celeste morta na Guiné, quando atingida por um hélice do avião que a ia transportar para uma evacuação. Uma enorme tragédia. O que descrevem, ilustra ao limite o que é sofrimento humano, e também a grandeza da Amizade, e a admirável dimensão humana de duas das autoras – que todas as outras também teriam tido, se fossem elas que tivessem estado presentes – ao tratarem durante horas do corpo morto da sua Amiga, para que partisse bonita, como tinha sido em vida!
Este vosso livro é, por tudo, mais um serviço extraordinário que prestam à sociedade portuguesa e à sua história. Os que foram combatentes vão lê-lo com uma lágrima nos olhos; os outros portugueses, com o espanto de uma realidade que julgavam nunca pudesse ter acontecido.
Por tudo o que as enfermeiras paraquedistas fizeram, muito mais do que relatam, lembrei-me da frase histórica do PM inglês Churchill aos cidadãos ingleses no final da II WW: “Nunca tantos deveram tanto a tão poucos”.
Todos os combatentes, e não só os que convosco directamente contactaram, nunca esquecerão como nos trataram e apoiaram, tudo o que fizeram por nós, o vosso magnífico desempenho profissional a que tantos devem a vida, ou a melhor recuperação possível de tantas mutilações, a vossa sensibilidade humana sempre presente, os pequenos gestos de ternura e afecto que sempre nos prodigalizaram e que tão profundamente nos tocaram em momentos de enorme sofrimento e dor que nunca se esquecem.
Que Deus vos guarde e proteja, como tanto merecem pelo bem que sempre praticaram.
Lisboa 26Nov 2014,
José Aparício,
TCor Inf (Ref)
************
SOBRE A APRESENTAÇÃO DO LIVRO
"NÓS, ENFERMEIRAS PARAQUEDISTAS"
Tivemos a oportunidade de referir anteriormente que os exemplares disponibilizados ao público pela Editora na sessão de apresentação do livro "Nós, Enfermeiras Paraquedistas" foram claramente insuficientes face à procura. Para além de muitos terem adquirido mais que um exemplar (estamos a aproximar-nos do Natal e um livro é sempre um bom presente), vimos vários interessados que traziam encomendas de pessoal a residir no estrangeiro interessados em receber esta obra. E, claro, uma série de gente (como algumas das co-autoras...) acabou por ficar de mãos a abanar...
Contactámos recentemente um responsável da Editora, que nos referiu estar prevista a distribuição do livro nos grandes centros livreiros só para o mês de Janeiro. Uma situação que se lamenta, pois prejudica quem gostava de ler já o livro, aqueles que gostariam de adquirir alguns exemplares para ofertas de Natal e, afinal, a própria Editora, que poderia ter feito um volume de vendas superior ao que possa vir a conseguir após estas limitações iniciais.
Sabemos que estão previstas apresentações do livro no Porto, em Aveiro e em Évora, que só ocorrerão no início de 2015. Sobre estas sessões, bem como a disponibilidade do livro nos escaparates, daremos informações assim que estas nos forem chegando às mãos.