Queridos amigos,
Trata-se de uma entrevista soberba, Joaquim Letria tem uma memória poderosa, desfia com grande vivacidade o mundo das notícias e da política durante meio século, ilumina a comunicação social e deixa bem claro que é, ainda hoje, uma figura incontornável da criatividade jornalística.
É no confronto entre a figura do político fascista e os galeirões que se projetam no mundo mediático de hoje que ele conta uma história passada na Guiné, com César Moreira Baptista.
Acho que vale a pena ler... e meditar.
Um abraço do
Mário
Joaquim Letria, César Moreira Baptista e a Guiné: estamos em guerra
Beja Santos
“Sem papas na língua”, é uma memorável lição de jornalismo de Joaquim Letria em conversa com Dora Santos Rosa, Âncora Editora, 2014. Letria é um nome obrigatoriamente associado à inovação em jornalismo, tanto na vertente de reportagem, como na criação de suplementos, jornais e revistas. Esta entrevista é uma longa viagem, com ponto de partida no diário de Lisboa, na Associated Press, no Rádio Clube Português, na BBC, na RTP, em O Jornal, de novo na RTP, na revista Sábado, colunista, no polémico programa “Cobras e lagartos na RTP”, como assessor de Ramalho Eanes…
Trata-se de um olhar penetrante, lúcido, esclarecido de um mestre do jornalismo que recupera a vida nas redações nos anos de 1960 e que comenta o espetáculo mediático do nosso tempo, não sem alguma amargura. Falando das suas relações com o poder ao tempo de Marcelo Caetano, recorda uma saborosa história que ele viveu durante a viagem que Américo Thomaz fez à Guiné. Vale a pena reproduzi-la na íntegra. Pergunta-lhe a jornalista:
“Teve mais alguma chamada de atenção por parte do poder?”, Letria responde: “Já que falámos em César Moreira Baptista, conto-lhe um outro episódio. Começou com uma viagem ótima, no paquete Funchal, a acompanhar uma visita a África do Almirante Américo Thomaz. No apogeu da guerra colonial fomos à Guiné e a todas as ilhas de Cabo Verde. Eu tinha ido com instruções expressas para não escrever uma linha: o Diário de Lisboa era contra a guerra e portanto não ia fazer notícia. Só ia para o caso de acontecer alguma coisa: de matarem o Américo Thomaz ou de haver um atentado. Mas no Mindelo recebi um telegrama e fiquei sem perceber o que se passava”. A entrevistadora questiona-o sobre a natureza do programa: “Vinha assinado pelo diretor geral e dizia: ‘Não compreendemos seu silêncio. Favor enviar serviço imediatamente’. Isto ao fim de 15 dias. Não percebi nada, pois era o contrário do que estava combinado. Mas pus-me a escrever que nem um doidinho e lá mandei o primeiro serviço. E a partir daí comecei a mandar sempre, convencido que estavam a publicar. Entretanto, no desembarque do presidente da República na Guiné, há um ataque e morrem 11 soldados portugueses1. Isto acontece muito perto do sítio onde estávamos, a uns 9 ou 10 quilómetros. Consegui ter toda a informação através de um médico militar: disse-me quantas eram as baixas, onde tinha sido o ataque, tudo. Aquilo, claro, era notícia: presidente da República desembarca e a 9 quilómetros um ataque mata 11 soldados. Mandei a matéria para a redação do Diário de Lisboa. Ou melhor: julguei que tinha mandado…”. A entrevistadora quer saber mais, e ele esclarece: “Tinha escrito a história em terra, em Bissau, e ido aos correios, às oito da noite, para a mandar por telégrafo. Paguei o envio e fui à minha vida, descansado. Nesse dia havia um banquete oficial no palácio do Governador, onde estava toda a gente, de Arnaldo Schulz até César Moreira Baptista. Um pouco antes da meia-noite aparece-me um jipe no Hotel de Bissau, com um funcionário da Secretaria, de smoking, a dizer que o Dr. Moreira Baptista queria falar comigo. Fui para o palácio e nessa altura tenho uma altercação um pouco violenta com o Secretário Nacional da Informação, por causa da notícia que eu julgava que tinha mandado para Lisboa, mas que afinal não tinha saído de Bissau, por ter sido apreendida pela censura militar”. A jornalista quer saber mais sobre os termos da altercação, e ele esclarece: “Foi uma discussão muito exaltada, aos gritos. Ele dizia-me que eu estava a ajudar os inimigos de Portugal ao escrever histórias como aquela. E eu dizia-lhe que tinha a certeza absoluta de que tudo o que tinha escrito era verdadeiro e que não estava ali para fazer propaganda, mas sim para escrever notícias. E aquilo que tinha acontecido era notícia! Conto-lhe este episódio porque há uma coisa que acho muito curiosa e que talvez hoje as pessoas não tenham bem noção dela: era possível falarmos assim com os fascistas. Era possível discutir-se com eles e as regras do jogo eram muito claras. Cada pessoa sabia qual era o seu papel: ele estava no dele e eu no meu e não foi por causa daquela discussão, aos berros, que me mandaram prender. É verdade que entretanto foi publicada uma notícia no Brasil, no jornal “Estado de São Paulo” a dizer que um jornalista – que era eu – estava a ferros no paquete Funchal. Era tudo mentira, claro, mas julgo que a ideia terá surgido no seguimento da discussão com o Moreira Baptista”.
Para quem ler um relato vivacíssimo da transição do jornalismo daqueles anos 60 de máquinas de escrever, de correspondentes que se socorriam obrigatoriamente do telefone, do que foi a comunicação social a seguir ao 25 de Abril e como um decano do jornalismo vê o nosso tempo com o desencanto de se sentir preterido pela sua independência, recomendo sem nenhuma hesitação esta soberba entrevista. Como observa, em nota prévia, outro grande repórter, Fernando Dacosta: “Portugal permite o luxo (o escândalo), de ver afastar-se um dos maiores profissionais de comunicação social. Joaquim Letria é um ser que sabe encontrar caminhos próprios, afirmar-se diferente; que tem na sensibilidade e na criatividade, na liberdade e na comunicabilidade balizas inamovíveis”.
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Notas do editor:1 - Sublinhado da responsabilidade do editor
2 - A propósito dos supostos 11 soldados mortos referidos pelo Jornalista Joaquim Letria, o editor contactou o autor da recensão, Mário Beja Santos, em 16FEV2015:
Caro Mário
Confesso que não sou um seguidor muito fiel do Joaquim Letria.
Face ao texto e à sua suposta afirmação de que aquando da visita do Presidente Tomás à Guiné (julgo que em 02FEV68), muito perto de onde estava a comitiva (não sabe o local, um jornalista tão informado?) houve um ataque do PAIGC que matou 11 dos nossos, consultei os registos dos mortos nesses dias.
Encontrei 1 morto no dia 3 perto de Bissássema; 1 morto no dia 4 em Buba e 1 morto em Dugal; 1 morto no dia 5 em Contuboel; 1 morto no dia 9 em Cachete; 1 morto no dia 12 em Nova Lamego, etc. Não vale a pena procurar mais porque nessa altura o Presidente já devia estar em Lisboa. No mês de Fevereiro houve um total de 15 mortes. Não achas que ter havido 11 só num dia era desgraça a mais?
Pergunto. Vamos publicar aldrabices? Era esta a (des)informação que corria para justificar o não à guerra?
À tua consideração.
Carlos
Do nosso camarada Mário Beja Santos recebi esta resposta em 17FEV2015:
Caríssimo,
Muito obrigado pela tua observação, de imediato contatei o editor para fazer chegar a Joaquim Letria. Vamos esperar uma semana pela resposta. Não havendo resposta, sugiro publicação do meu texto e do teu comentário. Penso que o que escreves ficará beneficiado da eliminação da tua apreciação do trabalho dele, na 1.ª linha.
Agora, vou verificar se houve outra ida do Thomaz à Guiné, o Letria fala do Schulz, o que ainda torna a coisa mais enredada…
Um abraço do
Mário
Até hoje não houve qualquer notícia do jornalista Joaquim Letria a confirmar ou a rectificar o que declarou na sua conversa com a autora do livro.
Carlos Vinhal
Co-editor deste Blogue
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Nota do editor
Último poste da série de 4 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15444: Notas de leitura (782): “Radiografia Militar”, por Manuel Barão da Cunha, Âncora Editora, 2015 (Mário Beja Santos)