Com os meus vizinhos básicos, especializados no apoio à messe de Catió
Foto: © José Ferreira da Silva
1. Em mensagem do dia 17 de Outubro de 2016, o nosso
camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART
1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá,
1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos mais esta história para a sua série com o mesmo nome:
Caros amigos
Junto nova história, para possível publicação no nosso Blogue Luís Graça.
Espero que sirva para integrar a série "Memórias boas da minha guerra".
Sempre grato pelo apoio.
Abraço
José Ferreira Silva
Memórias boas da minha guerra
36 - O guerreiro da minha rua
Tive a sorte de conviver desde criança com o Zéquita Casal. Era
mais velho cerca de dois anos e meio, mas, por ser baixote, nunca
se notou a diferença de idade nem o atraso na escola.
Efectivamente, ele diferenciava-se do irmão mais velho, quer no
bom aproveitamento escolar, quer no seu crescimento e, ainda, na
aparência física. À medida que ia crescendo, mais se parecia com
um tal Martinho, indivíduo muito conhecido por mulherengo, pela
sua esperteza viva e pela sua habitual disponibilidade para alinhar
em zaragatas. Lembro-me de, um dia, o ver com uma carrinha
fechada, subir toda a calçada da estrada romana para vir buscar
amigos e levá-los a ver um Porto-Benfica.
Todos sabiam que ele
era analfabeto, não tinha carta de condução e que o carro não
podia estar em seu nome. Só o Martinho era capaz disso tudo. Ora,
constava-se que o Zequita era mesmo seu filho. E que esse fruto
inesperado se deveu a um deslize amoroso de sua mãe, quando o
marido partiu para a Venezuela (… ou procurar saber se o o rapaz
nasceu com cerca de 10 meses de gestação).
O pai, Neca Casal, não aguentou muito tempo na Venezuela e
regressou rapidamente. Era uma excelente pessoa. Toda a gente
gostava dele. E é curioso que também gostavam muito da sua
mulher, a Sora Micas. Ninguém via aquele casal em discussões ou
a tomar atitudes menos correctas. Não fora aquele aparente deslize
“bem disfarçado/tolerado/esquecido” e diríamos que era um casal
exemplar. Por mim, não conhecia melhor.
Para quem conheceu o Neca Casal, é fácil compreender o seu
rápido regresso. Era uma pessoa introvertida, humilde, simpática e
muito presa à família, ao trabalho e aos amigos. Para além disso,
ele era um exímio tocador de guitarra portuguesa e integrava o
Grupo dos Fados. Assim, para alegria dele, da família, dos amigos
e de muita gente, tudo regressou ao melhor dos ambientes.
Parecia não haver justificação para o Zequita gostar tanto de
porrada. Tal como o irmão Jorge, foi criado em ambiente alegre e
pacato. No entanto, sempre que podia, lá mostrava a sua
supremacia guerreira. Nos tempos de Escola Primária, era ele
quem mais nos defendia daqueles mariolas que nos apareciam.
Não era pelo seu tamanho mas, sim, mais pela sua destreza e
valentia. Por outro lado, parecia sentir a tal necessidade de ajustar
contas com toda a gente. E ai daquele que ele apanhasse a
chamar-lhe Martinho! Como resultado, trazia sempre as “medalhas”
na cara e beneficiava da nossa gratidão.
Recordo desse tempo, em que andámos juntos na 3.ª Classe, os
castigos que levava da Professora D. Isaura, a tal Salazarista que
era o pavor dos seus alunos. Destaco um, cujo desfecho foi muito
penoso.
Constava-se, entre os alunos, que se pusesse um cabeleiro
sobre a mão aberta e lhe juntasse um pouco de azeite, a régua
partiria no momento da reguada. Ora o Zequita, como levava
reguadas quase todos os dias, ao saber disso, não perdeu a
oportunidade. Foi logo no próximo castigo das “10 reguadas”.
Porém, como não tinha o azeite, lembrou-se de escarrar na palma
da mão. Quando a Professora lhe bateu com a régua, recebeu o
espirro do escarro na cara. O que se seguiu foi aterrador. O Zequita
até chorava com dores das reguadas que lhe batiam furiosamente
em todo o corpo. Foi humilhante vê-lo molhado, por ter mijado nas
calças. Então, deixou a escola e só veio a fazer a 4.ª classe através daquele
programa especial de educação para adultos. Já ele namorava.
Como ele trabalhava na oficina do pai Neca, dedicada ao fabrico e
recuperação de componentes para motos, bicicletas e motorizadas,
tive acesso a um projecto especial de bicicleta de… pau.
Todos os jovens do meu tempo se lembram bem destas
maravilhosas “Motas de Pau” e das corridas que fazíamos com
elas. Quantas “medalhas” exibíamos nos cotovelos, nos joelhos, no
nariz e na testa?! Pois eu, bastante viciado nesse popular desporto,
enfrentava, ainda, a forte oposição de meus pais. Todavia, como já
trabalhava, consegui juntar os 5$00 necessários e comprar a
“máquina” do Zequita, que ele havia encostado, pois já tinha uma
bicicleta a sério. Este modelo único tinha a adaptação dos eixos
com rolamentos das próprias bicicletas. Foi uma ideia debatida
entre nós, uns 2 ou 3 anos antes.
Na estrada romana, eu explorava as novas possibilidades daquela
“máquina”. Quase não havia inclinação suficiente para rolar. No
entanto, eu levantava o cu e baloiçava o meu peso para a frente
sempre que surgia essa dificuldade. Dava-me um gozo incrível
manter a máquina em movimento em situações difíceis.
Entusiasmado pelo domínio na minha rua (Estrada Real), logo me
quis evidenciar numa corrida organizada em Souto, num Sábado
seguinte.
A rua tinha uma inclinação muito próxima dos 10%. Saber descer
com aquela inclinação, seria o caminho para a vitória. Porém, eu
não podia desperdiçar as capacidades da minha “máquina” e logo
fiz questão de me adiantar fortemente. Quando vi que a vitória já
não me escaparia, meti pé no arame do travão e tentei controlar.
Comecei a derrapar até que o arame partiu. Acelerei sem querer. A
rua terminava na estrada das Termas, precisamente defronte para o
muro da Quinta do Fontes. Atravessei-a, a tentar seguir para a
esquerda, fugindo do muro da quinta. Sem hipóteses de seguir na
estrada, bati num pequeno muro sobranceiro ao lavadouro, dei uma
cambalhota e fui cair/mergulhar de costas, lá em baixo, na presa de
água, coberta de silvas e outros arbustos selvagens.
Devido ao choque, nem me lembro bem o que se terá passado
depois. Só sei que quando me levantei da cama, fui logo ao
quinteiro ver como estava a bicicleta. Lá estava ela num monte de
lenha, devidamente cortada em pedaços. A minha mãe já o tinha
feito antes, com outra bicicleta, quando descobriu que era eu quem
gastava o azeite todo para untar os eixos das rodas.
Em Monção ainda se fazem corridas de Bicicletas de Pau
Sempre preocupado em disfarçar o seu feitio agressivo, o Zequita
brindava amiúde os amigos com minudências de seu agrado.
Um dia comprometeu-se em arranjar para o Sábado seguinte, uma
galinha para fazermos uma comezaina na tasca da Cadima. Ora, o
galinheiro ficava ao fundo da varanda e era preciso ir lá buscá-la.
Passámos um tempão a “treinar”, como dueto musical; ele tocava a
guitarra e eu cantava. Quanto mais actuávamos, mais a mãe e uma
tia se divertiam, a assistir. Elas achavam muita graça às nossas
inesperadas pretensões artísticas e não havia meio de irem para a
cozinha. Quando consegui apertar o pescoço ao galináceo, perante
o barulho que provoquei, o Zequita aumentou assustadoramente o
som da guitarra, partindo 2 ou 3 cordas.
Nós gostávamos muito de cinema. Mas o Zequita era um fanático
pelas aventuras dos “Cobóis” e dos Piratas. Era lá que se inspirava
nos golpes que aplicava nas assíduas lutas “justiceiras”. Agora, que
era mais velho, queria complementar a sua faceta de “artista”,
lançando-se à conquista da sua “gaja”. Porém, quase nunca teve a
sorte dos seus ídolos (Kirk Douglas, Clark Gable, Cary Grant, Henry
Fonda, Burt Lancaster, James Stewart, Clint Eastwood, etc., etc).
A vitoriosa equipa dos Solteiros que, com a dos Casados, tinha que disputar em cada
dia 26 de Dezembro, o custo de uma arrozada de frango.
O Zequita já andava na recruta, em Viseu, quando se interessou por
uma moça de Guisande. Conheceu-a numa matiné do Cinema de
Arrifana. Chegou à fala com ela, num intervalo, quando estava
acompanhada por algumas amigas.
Num dos Sábados seguintes, insistiu comigo para lhe fazer
companhia, numa desfolhada. Hoje, acredito que ele já se teria
excedido nalgum relacionamento local. Fomos na sua nova
motorizada. Fiquei cá fora do portão de madeira de um alpendre
que, todo aberto, deixava ver um monte de espigas de milho
rodeado essencialmente por jovens raparigas. Entre elas, lá se
instalou o Zequita, parecendo alheio a toda a “admiração” que lhe
estavam a dispensar. Cá fora, um grupo de rapazes, acompanhava
os trabalhos, ao mesmo tempo que galhofavam. A dada altura, já
ouvia ameaças, do género:
- Vais levar poucas, vais!
Mal acabou a desfolhada, o pessoal ia saindo e ia-se desligando. O
Zequita ainda estava com a rapariga quando se aproximaram dele.
Chefiava o grupo, um grandalhão que deu início à “malhação”. O
Zequita não se ficou e foi reagindo, distribuindo murros e pontapés,
mas insuficientes para tamanha investida. Eu, teria que me
solidarizar e aproximei-me em sua defesa, procurando,
pacificamente, acabar com o ataque. Entre socos e pontapés, senti
uma correada, cuja fivela me deixou um golpe na cabeça. Alguns já
mostravam navalhas. Valeram-nos as pessoas mais adultas (quase
só mulheres) que se manifestaram contra as agressões, acabando
por fazer desistir os meliantes.
Ficámos no chão, abandonados, à espera de recuperarmos forças
para o regresso. E assim que pudemos, subimos, cambaleando,
para cima da motorizada, e lá viemos devagar e aos “ésses”. O
Zequita caiu de cama, foi assistido pelo médico e lá ficou uns dias.
Durante essa noite, constou-se o que havia acontecido e, perante o
estado clínico do Zequita, desenvolveu-se a revolta!
Os jovens do Ferral, juntaram-se depois do almoço do Domingo.
Para uma melhor coordenação bélica, foram todos a pé,
calcorreando os 7 quilómetros em marcha lenta. Nada de entraves
para o êxito da Operação. Até o Jorge, que via muito mal, deixou os
óculos em casa. Chegados ao local do crime, logo vimos os
valentões que se passeavam em grande grupo. Quando nos
aproximámos, eles pararam indecisos e iniciaram mudança de
direcção parecendo adivinhar a nossa intenção. Tivemos que
acelerar um pouco para junto deles. E, tal como já havíamos
combinado, teria que ser eu a começar as hostes. Precisamente
com o valentão/grandalhão. Fui pela berma da rua, servindo-me do
degrau existente no passeio para me aproximar um pouco da sua
altura, e desafiei-o:
- Ouve lá, ó valentão, hoje não me queres bater?
Ele, murmurou qualquer coisa e desviou o olhar. Então, gritei-lhe
mais alto:
- Não sejas cobarde, mostra agora a tua valentia, seu filho da puta.
Colocando a mão esquerda na frente, enfiei-lhe um soco em cheio,
lá para cima, dando início ao combate colectivo.
A rua estava cheia de beligerantes em frenética luta. A quantidade
de lutadores estava equilibrada, mas a nossa equipa estava
moralizada pela razão da sua revolta perante a cobardia desses
agressores. A dada altura, viam-se chicotes e marmeleiros no ar.
Eles serviram-se das pedras dos muros para retaliarem. O Jorge,
irmão do Zequita, via muito mal e como a tarde já começara a
escurecer, ele agarrava a vítima com a mão esquerda e disparava o
potente soco com a direita. Chegou a enganar-se e a ouvir gritar:
-
Foda-se, olha que eu sou dos teus!
A rua ficou deserta e intransitável para veículos. Nós, cada um com
as suas mazelas, iniciámos o regresso. Estava a escurecer quando,
já na estrada da Corga, mandámos parar o autocarro da Feirense.
Apesar de exibirmos alguns ferimentos, entrámos, eufóricos e
orgulhosos pela missão cumprida. Quem exteriorizava mais a sua
valentia era o Nequita Fareleiro que manobrava uma tesoura, ao
mesmo tempo que se lamentava não ter conseguido cortar o cabelo
a ninguém. O revisor nem se aproximou para cobrar os bilhetes.
Uns anos mais tarde, já em Catió, quando a minha Companhia se
havia, finalmente, juntado ao seu BART 1913, foi-me dada a
oportunidade de conhecer alguns vizinhos, nomeadamente, o
Laurentino, de Canedo; o Zé, de Fiães; o Engelha, de Sandim e o
Fernandes, de Guisande. O primeiro fazia de cozinheiro na messe e
os outros de ajudantes. Por sinal, uns “cromos” bastante
conhecidos.
Quando o Guisande me disse de onde era, eu disse que conhecia
muito bem aquela rua de entrada na freguesia e que, em tempos
tinha andado lá em zaragata. Ele, que era gago, exclamou logo em
forma de rajada:
- Fo…fo…foda-se, fo…fo… foram vo… vocês que que fo…fo…
foderam aque…. aquela qua… quadrilha lá da da da terra? Ó…
olhe, nun… nunca mais ti… ti…tivemos pró… problemas cu…
cu…cu…esses ca… ca… caralhos.
Quando o Zequita chegou da Guiné, em 1965, Já eu andava na tropa. Por
isso, poucas vezes nos encontrámos. Recordo que ele não dizia
mal daquilo. Curioso, quando lhe perguntei se tinha dado muita
porrada lá na guerra, ele respondeu:
- Não dei um tiro, sequer. Mas como ajudante na cozinha, cheguei a
foder a tromba a vários filhos da puta.
Estava muito mais maduro e pouco falava de guerra. Falava-nos
mais das ”bajudas de mama firme” e das “mulheres grandes” com
as suas mamas descaídas.
Mais de 3 anos depois, logo após a minha chegada em 9 de Março
de 1969, fui convidado para o seu casamento, que se realizava no
Sábado seguinte. Não me lembro bem da história da “conquista” de
sua mulher. Parece que ele se meteu em defesa dela e do pai,
durante um desentendimento comercial (e físico!), quando estavam
a vender os seus produtos serranos na feira de Lourosa. A rapariga
deve ter ficado impressionada com a sua solidariedade e valentia.
Sei que ela era lá das fraldas da Serra do Marão, onde fomos
assistir à cerimónia e “comungar” de um magnífico banquete
caseiro. Foi dos melhores que participei. Muito simples, muito
abastado e muito alegre. Mas, o que mais me marcou foi a imagem
do Zequita agarrado à guitarra, ao lado de seu pai que,
orgulhosamente, exibia um largo sorriso de felicidade.
Estava eu embevecido a contemplar esse lindo quadro, quando
ouço a sua mãe:
- Estás a ver Zeca? Tal pai tal filho.
Quando regressei, vim a “ver” o filme completo da vida deste
guerreiro.
E, desta vez, recordei também uns comentários do ilustre
sapateiro António da Ponte:
- Quando formos chamados para o Juízo Final, Deus vai-nos dar
uma ordem em voz alta:
O seu a seu dono e os filhos a seus pais!
E acrescentava: - Já viram tamanha confusão?
Silva da Cart 1689
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de setembro de 2016 >
Guiné 63/74 - P16511: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (35): A honra não tem preço