s abutres chegaram depois, nome carismático que rasgou horizontes por toda a província da Guiné, e à medida que o tempo passava sem grandes sobressaltos, até finais do ano de1972, aqui já éramos considerados pela população africana, não de “periquitos”, mas sim de “velhice”.
A todos aqueles que tendo cumprido um dever de cidadania, mesmo sendo este de causas desconhecidas, quero aqui deixar um forte abraço sem qualquer exceção.
Meu nome: José Peixoto, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, CCAÇ 3545/BCAÇ 3883, Canquelifá, 1972/1974.
Na atualidade: ex-Inspetor da CP (reformado desde 2013), casado, a residir na área de V. N. de Famalicão.
Volvidos que foram 42 anos, só agora entendi não deixar passar esta oportunidade, contribuindo assim desta forma para o enriquecimento do nosso Blogue coletivo.
Sempre fui pessoa de choro fácil, dificultando-me por vezes de exercitar a memória.
Senti-me um tanto ou quanto penhorado quando há dias visitei o nosso Blogue, e li toda a introdução deixada pelo seu autor Jorge Araújo, ex-Furriel Mil da Cart3494, a quem quero aqui deixar muito particularmente um forte abraço, pelo facto de se ter ocupado dos acontecimentos de Canquelifá, concretamente a respeito da morte do então saudoso Furriel Luís Filipe Soares. Com efeito, destaco a incerteza dos pormenores, conforme referido em “OS ACONTECIMENTOS DE JANEIRO DE 1974” (em CANQUELIFÁ) relativo às circunstâncias que
envolveram a sua morte.
O Luís Filipe Soares, que também era meu amigo, pois é facto que assentámos praça juntos no RI7-LEIRIA na recruta de então, para apuramento dos militares cujo seguimento seria o Curso de Sargentos Milicianos”. Dado na altura eu possuir o 4.º ano industrial, e tendo corrido menos bem as provas de seleção, fui considerado não apto, tendo ele seguido em frente na sua formação.
Reencontrámo-nos em Abrantes, e por ironia do
destino estávamos mobilizados para a mesma Província e Companhia.
Para além das suas ausências de Canquelifá, conversávamos com alguma regularidade, pois tratava-se efetivamente de pessoa afável.
O dia 6 de janeiro de 1974 foi o dia fatídico para o Soares, que ficará para sempre na minha/nossa memória.
Após os ataques consecutivos que antecederam os dias 2; 3; 4 e 5 a Canquelifá, cuja hora de início das flagelações foi variável, no dia 06, iniciaram-se cerca das 17h30, com intervalos de bombardeamentos compreendidos entre 10 a 15 minutos. Sendo estimado na altura cerca de 40 a 50 foguetões disparados durante todo o período da flagelação à mistura com o morteiro 120.
Cerca das 22h30 encontrava-me no abrigo de transmissões, e bem assim o nosso não menos saudoso Capitão Peixinho Cristo, entre outro pessoal de Transmissões, quando surge ao cimo das escadas térreas do referido abrigo o nosso guia Africano Anso Sané exclamando:
O Anso Sané, aos olhos de quantos privaram com ele, tratava-se de uma excelente pessoa em que com a intenção de nos proporcionar uma boa ajuda, durante o desenrolar dos ataques que sofremos, calcorreava “a pé descalço” toda a periferia do aquartelamento, por sistema, a fim de se inteirar das situações ao longo dos abrigos, trazendo as notícias à chefia.
O Soares encontrava-se na vala do lado norte do referido abrigo n.º 1, próximo a si
refugiava-se também o “puto africano” ou seja, o impedido daquele abrigo, que tinha por missão levantar as refeições junto da cozinha que funcionava no centro, tal como arrumar o refeitório após a tomada das mesmas pelos militares daquele abrigo, tendo sido também ceifada a sua vida, com o mesmo míssil.
De referir também outros feridos daquele abrigo, pois já não recordo com exatidão.
Soares tinha chegado a Canquelifá cerca de 3 ou 4 dias antes da sua morte, após o gozo de férias na metrópole, tendo ficado retido em Bissau durante um
ou mais meses por motivo de não haver transporte para Canquelifá, tendo chegado por fim, numa coluna de abastecimento.
Relativo à incidência que alude no trajeto da sua urna até Bissau, sinceramente, que
me recorde?.. Também foi notícia para mim.
Caro Jorge Araújo, espero desta forma ter contribuído para algum desmistificar do
acontecido: O nosso amigo Filipe Soares não tombou em confronto direto com as tropas do PAIGC, mas durante o ataque, tendo neste sido utilizado foguetões e morteiro 120, perpetrado ao aquartelamento de Canquelifá.
Retrocedendo nos acontecimentos, e bem assim no tempo recordando desta forma o dia 3 de janeiro de 1974, cerca das 16h00, o aquartelamento começou a ser flagelado com um tipo de arma, que para nós era nova, pois tratava-se na realidade dos misseis, cujo términos da ação já foi de noite.
As consequências foram terríveis, sem explicação.
Descrever os chamados “horrores da guerra“ que estavam a ter o seu ponto alto, não é tarefa fácil, pois durante o desenrolar da flagelação foram-se criando alguns focos de incêndio na zona da população/tabanca, tendo-se desenvolvido ao longo de todo o aldeamento, que mais se assemelhava ao fim do mundo ou a um filme de terror, provavelmente um holocausto.
Perante tal situação, todo o pessoal que se encontrava na área das transmissões, ficou aturdido, sem saber o que se estava a passar, facto estar ali toda a companhia reunida!
Após alguns minutos de conversa com o Capitão, logo se ficou a saber que cuja intenção era de abandonar Canquelifá.
A intenção não passou disso mesmo pelo facto de o Capitão ter pedido alguma calma, descendo ao posto de transmissões no qual estabeleceu contacto com Nova Lamego e desta creio a Bissau. Com quem falou não me apercebi, apesar de estar junto, a resposta que lhe foi dada também não sei, apenas sei que na posse do que lhe foi dito/prometido, subiu ao cimo do abrigo de transmissões onde aguardava toda a companhia e disse:
- Rapazes, é uma virtude confiar nos chefes. Vamos todos para os abrigos mais uns dias.
E assim foi, pois toda a companhia recolheu aos seus abrigos de armas e bagagens reconhecendo a Liderança e Motivação de um chefe. Honra lhe seja feita.
Caros veteranos, a todos quantos possam ler todo este meu sintetizar de uma guerra que não acabou!
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Ao longo de todo o blogue da guerra na Guiné, (belíssimo trabalho realizado), não posso deixar de referir relativamente aos acontecimentos de Canquelifá, 1972/74, em que há efetivamente uma descrição quase real das situações, mesmo tendo em conta que uma grande parte dessas afirmações são feitas por pessoas que ouviram falar ou estiveram perto, apenas algumas datas não são muito coincidentes.
No entanto outras sim marcaram na realidade a nossa mente.
Tal como o dia 31 de janeiro de 1974, em que depois de um início de tarde de fortes bombardeamentos a Canquelifá, foi pedido o apoio aéreo a Bissau, tendo chegado cerca das 17h30 a denominada parelha dos Fiats G-91.
Após o contacto com os pilotos via rádio pelo nosso saudoso Capitão Peixinho Cristo, e lhes ter transmitido as coordenadas pretendidas, retiradas do mapa da área “Pachisse” (mapa que se encontrava sempre estendido em cima da mesa do abrigo de transmissões nas alturas de crise), a fim de ser feito o respetivo tiro.
Iniciada a picagem pela primeira aeronave, verificou-se que o objetivo tinha sido alcançado.
Para além de se ouvir o rebentamento da granada, assistiu-se a olho nu ao retomar da altitude da referida aeronave e consequente progressão.
De salientar que esta manobra um tanto quanto acrobática, se me é permitido esta classificação, estava a ser levada a cabo a uma distância compreendida entre abrigo de transmissões e o local da operação, na ordem de 1,5 a 2,0 km, mais precisamente junto a Sinchã Jidé
Infogravura para melhor compreensão
Eu encontrava-me ao cimo do abrigo de transmissões, acompanhado de 3 ou 4 camaradas também pertencentes aquela arma, a testemunhar o desenrolar dos acontecimentos.
A segunda aeronave aproximou-se do local da coordenada pedida, um pouco mais a norte, (entenda-se mais para a direita, lado do Senegal em relação à primeira) iniciando a manobra de picagem, não mais sendo vista.
Quem teve a oportunidade de testemunhar no local, deve recordar com certeza, não só o barulho ensurdecedor da explosão, tal como as chamas vivas, à mistura com o fumo negro que pairou durante vário tempo nos céus entre Canquelifá e Sinchã Jidé, tendo como causa a explosão da aeronave (FIAT G91).
Com efeito, de imediato foi comunicado por mim, o que acabara de ser constatado, ao Capitão Peixinho Cristo, que se encontrava ao fundo no posto de transmissões a acompanhar as comunicações do momento, estando estas a serem difundidas em canal aberto com outras entidades.
Este, na posse dos elementos do alfabeto fonético atribuído oficialmente aos intervenientes da operação aérea, chegados em mensagem, e já utilizados aquando da transmissão das coordenadas pretendidas, ou seja de onde provinham as flagelações do PAIGC, efetuou vários chamados via rádio.
Em procedimento, não me recordo as letras atribuídas, como será evidente, no entanto a título de exemplo, como é óbvio o diálogo entre o Capitão e os pilotos:
Capitão:
- Aqui maior de SIERRA / GOLFE, chama maior de ALFA / BRAVO, escuto!
Piloto:
- Afirmativo, aqui maior de ALFA BRAVO, escuto!
Realizadas várias chamadas sem obter qualquer resposta? (…).
Surge o contacto (informação) do piloto da primeira aeronave que já se encontrava a sobrevoar noutra área mais afastada com destino a Bissau!..
- Aqui maior de ????
- Info: maior de ???? foi atingido míssil; - conseguiu ejetar-se.
Nada mais transpareceu sobre este dramático acontecimento para além de volvidos que foram alguns minutos, foi recebido uma mensagem do Comando-Chefe de Bissau a corroborar esta afirmação - Que a aeronave Fiat G.91 tinha sido atingida por um míssil e que o piloto, Tenente Castro Gil, se tinha ejetado.
A referida mensagem chegou a Canquelifá classificada de “ZULO”, ou seja, grau de urgência máximo em despacho, classificação no exército ao tempo.
Dia 1 de Fevereiro de 1974
Pelas 06h00 da manhã, aterram na pista de Canquelifá cerca de 8 ou 10 hélis de transporte, trazendo um número indeterminado de tropas, (creio paraquedistas e outros) assim como mais 2 helicanhões armados com canhão MG 20mm de bala explosiva.
A sua intrusão no interior da mata foi imediata no sentido Sinchã Jidé e Copá. A intenção era localizar o piloto então ejetado naquela aérea no dia anterior, (31 de janeiro) de quem nada se sabia.
A progressão no terreno era acompanhada pelos dois helicanhões que não tinham regressado a Nova Lamego, ficando para o efeito.
A transmissão entre a tropa no terreno e o referido apoio aéreo, era feito em canal aberto, quero dizer, era audível toda a comunicação entre os intervenientes, no nosso posto de rádio em Canquelifá.
Cerca das 15h00, uma chamada para a tropa em progressão de um dos pilotos disse:
- Ao descer um pouco mais o héli junto à copa da árvore que se encontra no trajeto à vossa frente, pareceu-me ver algo de estranho!.. Tenham cuidado.
Com esta chamada de atenção do piloto, a tropa acabou por detetar um veículo abandonado, tratando-se de uma ambulância de origem Russa.
Alertado o Comando-Chefe, foi dada ordem a Nova Lamego para fazer seguir para o local pessoal helitransportado especializado em minas e armadilhas, com a intenção de analisarem se a mesma estaria armadilhada.
Dado que nada se confirmou sobre a suspeição, foi recebida ordem para seguir com a mesma para Copá.
O trajeto foi complicadíssimo, apesar do apoio simultâneo dos hélis na informação da picada a ser seguida, pois poderia haver eventual obstrução da mesma, mais à frente, relativo à densidade de árvores, evitando assim o retroceder do itinerário.
Tudo foi levado a cabo com o maior rigor, sabedoria e abnegação, chegando-se a Copá já altas horas da noite sem qualquer incidente ou acidente.
Mas, o mais importante de todo este desenrolar de cenário de guerra crua ainda não acabou.
Desviei-me um pouco do principal raciocínio que originou a referida operação, que era encontrar o piloto desaparecido no dia anterior, apenas com a intenção de seguir uma cronologia dos acontecimentos.
O facto, é que enquanto as tropas no terreno se ocupavam em levar a sua operação a bom porto, foi por mim rececionada, cerca das 16h00, quando me encontrava no meu turno de operador de serviço, uma chamada através do AVP-1, na posse da Milícia Africana, que fazia parte do destacamento de Dunane, a seguinte informação:
Após o OK, foi transmitido: Está aqui pessoal branco.
Ainda tentei questionar, mas é facto que se encontrava junto o Capitão Cristo, pedindo-me para lhe passar o rádio, fazia questão ser ele a entender-se.
Com toda a sua perspicácia de líder de guerra, logo lançou a pergunta:
- O pessoal branco tem boné?..
- Sim.
- Ele que fale ai ao rádio.
- Ele não fala, já vai na bicicleta para Piche.
Terminada a transmissão, de imediato foi dado conhecimento ao Comando a Nova Lamego, tendo sido decidido que um dos helicanhões que se encontrava a dar apoio na outra frente às tropas envolvidas naquele momento com a retirada da ambulância, fosse a Dunane confirmar ou não a notícia difundida pelo Milícia.
Confirmado pelo piloto de que se tratava efetivamente do camarada, tentou recolhê-lo em plena picada, pois este já seguia em direção à sede de Batalhão (Piche), fazendo-se transportar numa bicicleta, acompanhado de um africano que se posicionava na sua frente, compreenda-se sentado no quadro da bicicleta pertença do mesmo.
De seguida, este piloto, contente por encontrar o seu camarada vivo, passou a informação ao piloto que operava junto às tropas em progressão, confirmando-lhe que era o piloto Castro Gil. Repartindo desta forma o contentamento, deram os dois início a uma canção que presumo ser algum hino de então, da Força Aérea:
Oh santa miraculosa, tirai-nos desta merda!!!
Não tive a oportunidade de memorizar o restante da letra, pois ouviu-se logo uma voz poderosa mais parecida com voz de comando (que o era) dizendo:
- Aqui maior de ?? ?? - Não havendo mais continuidade do diálogo entre os pilotos.
Posteriormente veio-se a saber, que o piloto Castro Gil, após se ter ejetado, passou toda a noite em cima de uma árvore, e ao nascer do dia, passava por ali um Africano de bicicleta, tendo- lhe pedido boleia, o que logo acedeu.
Uma saca de laranjas fazia parte da sua bagagem que também repartiu com o seu novo companheiro de viagem.
Quando da chegada à sede do Batalhão (Piche), depois de uma autêntica odisseia que já durava há vinte e quatro horas, pediu ao então Comandante do Batalhão, Tenente-Coronel Dantas, a importância de 1000 pesos, entregando-os como recompensa do transporte e partilha das laranjas, ao Africano.
Do assunto nada mais ouvi falar. No entanto as flagelações a Canquelifá continuaram, sem ter havido qualquer apoio aéreo.
Estávamos no mês de fevereiro 1974, que foi marcado por ataques diários.
A intenção de todos os operacionais em abandonar o aquartelamento, cada dia que passava ganhava mais consistência.
Março 1974 - Continuação dos ataques a partir do dia 5 com alguns interregnos.
Dia 17 de março de 1974 - Início das flagelações às 14h00, com incidência de tiro sobretudo para o lado da “Mata Sagrada”.
Cerca das 15h30, destruído o abrigo 12, e morte do Furriel Rosa ao ser atingido pelos estilhaços de uma granada de morteiro 120mm que rebentou na copa de uma árvore junto ao referido abrigo, quando este se encontrava à porta do mesmo. Desconheço se foi esta mesma granada, ou outra, que provocou a destruição do abrigo.
O Furriel Rosa foi trazido do local para a Enfermaria, num Unimog, tendo-lhe sido ministrados os primeiros socorros, tendo permanecido em cima de uma maca até à chegada do meio aéreo que aterrou em espaço aberto, mesmo junto à Enfermaria, sendo então evacuado para Bissau.
Dia 21 março 1974, grande operação denominada “NEVE GELADA”
Com base no cansaço, pois o desgaste físico de todos nós era evidente, o inimigo cada vez mais massacrava e incrementava as suas operações a Canquelifá e áreas limítrofes, eis que surge o tão esperado apoio de 3 companhias de comandos africanos com o fim de limpar as áreas afetadas.
Às 13h00 do referido dia 21, entrada pela porta principal, abrigo 1, em coluna apeada.
A primeira companhia dirigiu-se à porta situada no lado “Mata Sagrada”, sentido Chauará, local onde era suposto o IN ter instalado a sua base de lançamento dos mísseis, saindo por esta para o exterior.
A segunda companhia dirigiu-se à porta de acesso à pista junto ao abrigo 5, sentido Sinchã Jidé, local onde era suposto o IN ter instalado o seu poderio dos mosteiros 120mm, saindo para o exterior.
A terceira companhia ficou instalada junto ao abrigo de transmissões, de reserva, aproveitando a sombra de uma velha e grande laranjeira, cujo fruto não se podia comer, por ser muito amargo.
Volvidas que foram cerca de duas horas após a saída das duas companhias para o exterior de Canquelifá, 15h00, foi ouvido o rebentar de um tiroteio de armas ligeiras, à mistura com algumas morteiradas. Naquele preciso momento encontrava-me a circular sentado na caixa de um unimog, tendo por companhia o enfermeiro Paiva, de quem eu tinha recebido um convite, apenas com a intenção de curtir, tal como era usual dizer-se. A finalidade era ir a uma tabanca, para o lado do abrigo 2, buscar uma “bajudinha” que se encontrava com o paludismo para ser tratada na Enfermaria.
A nossa primeira reação foi a de sempre, saltar da viatura e procurar alguma proteção debaixo da mesma, durante o desencadear do tiroteio, estimado em cerca de 10 a 15 minutos.
A evacuação da “bajudinha” já não foi concretizada, logo retrocedemos no itinerário para o denominado centro do aquartelamento.
Nesta fase ainda se ouviam alguns tiros esporádicos.
Dirigi-me ao abrigo de transmissões no qual se encontrava entre outros o então Major Raul Folques, procurando junto do militar responsável pelas transmissões no terreno, inteirar-se efetivamente do que se estava a passar.
A primeira ordem que este Homem de Guerra transmitiu, honra lhe seja feita pelo trabalho coordenado, foi a saída imediata da companhia que se encontrava de reserva junto ao posto de rádio, pela porta de armas de acesso à pista sentido Sinchã Jidé.
À medida que o tempo passava, eram recebidas informações via rádio do resultado obtido pelas duas fações, que indicavam um número indeterminado de baixas ao IN, bem assim como material capturado.
Às 17h10, de uma tarde marcante, fazendo paralelo com as fiadas do arame farpado que dividiam o aquartelamento da vegetação, lado Mata Sagrada, começou-se a avistar a chegada de uma das companhias, trazendo consigo aquilo a que se poderia chamar troféus de guerra, exatamente 22 corpos transportados em cima de macas improvisadas de ramos de árvores.
O estado dos seus corpos era sobretudo confrangedor e arrepiante, membros dependurados, cabeças dilaceradas, uns quantos ainda com parte do uniforme, outros completamente nus.
Chegados às imediações, a população saiu pela porta de armas ao encontro dos militares, pontapeando os corpos. Esta talvez fosse a única forma de vingança pelas mortes causadas aos seus entes queridos, em ataques anteriores.
Quando já dentro do aquartelamento, foi dada ordem para que todos os corpos fossem encaminhados para a Mesquita de Canquelifá, local de culto no qual os homens grandes praticavam as suas orações, virados para Meca.
Para efetuar a segurança durante a noite, foi escalado um pelotão da nossa companhia.
Às 17h30, quando tudo estava aparentemente calmo, eis que surge novo ataque de curta duração com misseis, procurando assim destruir o pouco que ainda restava, como retaliação pelas suas baixas há duas ou três horas.
Às 18h00, e a pedido do então Alferes Henriques, foram reunidos uns quantos militares, de caráter voluntário, para fazer segurança a 3 viaturas (2 Unimogs e 1 Berliet) na ida ao local do confronto para recuperação do material capturado. Eu também fiz parte deste grupo de voluntários, à semelhança do nosso presado cantineiro José Esteves, a residir para os lados de Vila Real, que para os amigos reservava sempre no canto mais à direita da arca frigorífica, aquela “bazuca” fresquinha.
Ordem de partida foi dada. - Saída pela porta de armas lado pista de aterragem dos meios aéreos, abrigo 5.
Após progressão na ordem de 1,5 km foi desencadeado novo tiroteio. Toda a coluna parou para se poder proteger, de realçar o facto de já nos encontrarmos perto do local onde se tinha dado o conflito. Sem sabermos o que de facto estava a acontecer, procurei estabelecer contacto com o posto de rádio de Canquelifá, o que só foi possível volvido algum tempo, o suficiente para o alferes Henriques se zangar, e num gesto brusco, me retirar o auscultador da mão, aludindo que eu ainda não sabia trabalhar com o rádio, o bem conhecido Racal.
Estas situações são as chamadas incongruências de uma guerra.
A informação que proveio de Canquelifá, e recebida por este superior, foi exatamente, que o IN voltou ao local na tentativa de recuperar os mortos, que como atrás referi eram 22 corpos.
Na posse destes elementos, e tendo em consideração que as armas se tinham calado, fomos progredindo mais uns metros com toda a serenidade, pois estava na nossa frente posicionada uma companhia formada por elementos cuja maioria era africana, fazendo proteção ao material capturado, embora a informação
da nossa aproximação já tivesse fluido antecipadamente.
Foi um tanto quanto arriscada esta operação de encontro, frente a frente de uma força com a outra, tendo culminado com total êxito, pois o local era de vegetação densa.
Feita a inversão das viaturas, procedeu-se ao carregamento do material capturado, constando de cerca de 360 granadas de morteiro 120mm, 2 morteiros do mesmo calibre completos, montados sobre rodas e outros tantos incompletos, 1 prato, mais 1 tripé.
Tratou-se na realidade de uma operação de muito risco para todos quantos voluntariamente acederam ao pedido do então saudoso Alferes Henriques.
A chegada a Canquelifá já foi tardia, por volta das 23h00, todo o regresso foi feito na escuridão da densa vegetação, apenas a viatura mais da frente acendia esporadicamente os seus mínimos, de salientar o facto de um dos veículos, creio que um Unimog, ter furado um pneu, também não me recordo se à ida, ou no regresso, é facto, assim circulou até à chegada a Canquelifá. Foi uma autêntica odisseia, sem paralelo.
Não posso deixar de realçar uma situação ocorrida já dentro de Canquelifá tendo por protagonistas a minha pessoa, o então carismático Furriel Mecânico Pais e um militar africano da companhia de Comandos.
Tendo este em seu poder uma pequena arma, que mais se assemelhava à nossa pistola Walter, que procurava vendê-la, alegando tê-la capturado horas antes, na operação, a um elemento feminino do PAIGC, que procurava atingi-lo, protegida por uma árvore, tendo este com a sua perspicácia evitado tal, apontando-lhe a sua G3 e dando-lhe ordem para baixar a arma.
Posteriormente tentou dialogar com ela em várias línguas, sem entendimento possível, tendo finalizado o seu diálogo apontando com a mão esquerda para o seu peito onde sustentava o seu crachá, dizendo-lhe:
-
“Comando Africano não perdoa” - e utilizando a sua arma G3, fez uma rajada em cruz no peito da mulher, caindo esta junto à árvore.
O corpo dela foi resgatado pelo PAIGC durante o segundo confronto com a companhia dos comandos.
Relativamente à pistola, o negócio estava terminado, cujo valor para mim era de 100 pesos, tendo o Furriel Pais, valorizado para o dobro, não tenho a certeza da concretização da compra por este.
Dando continuidade ao episódio dos 22 corpos que se encontravam a repousar na grande Mesquita de Canquelifá, começaria por realçar o pedido de 2 voluntários pelo Capitão Cristo, cerca das 8h00 já do dia 22 março 1974, com a pretensão de retirarem os corpos para o exterior da mesma, onde previamente tinham sido colocados uma quantidade necessária de bidões vazios,vasilhame chegado, uns com vinho da Manutenção Militar, outros de combustível para a Mecânica, a fim de os corpos serem sentados no chão, encostados aos aludidos bidões. De seguida, procederam à lavagem dos seus rostos ensanguentados, recorrendo para o efeito de uma lata com água e uma vassourita de piaçaba.
A dupla de voluntários então surgida era composta pelos:
- O nosso Oliveira, mais conhecido pelo “Mata vacas”, pois tratava-se na realidade de um homem de coragem, se bem me recordo retalhava uma vaca, depois de morta, na sua totalidade em cerca de 20 minutos, trabalho que sempre realizou em prol da alimentação da Companhia, em toda a sua comissão, por ser esta a sua profissão na vida à paisana.
- O 2.º voluntário, com alguma margem de incerteza, creio ter sido o carismático “Azambuja”, nome próprio, José Cruz, Cozinheiro oficial da CCAÇ 3545, mas que não exerceu.
Realizada operação definida pelo comandante Cristo, cerca das 9h00 chegaram, 1 helitransporte escoltado por 1 helicanhão, para garantir a segurança da sua aterragem. Na placa da pista a segurança era assegurada por um pelotão, como acontecia em situações semelhantes.
Apeados os ocupantes de várias patentes, pertencentes ao Comando Territorial da Guiné, dirigiram-se ao centro, no qual se encontravam os corpos, sendo a primeira missão fotografar individualmente os mesmos por um fotocine vindo de Bissau para o efeito.
De seguida foram transportados num unimog, também individualmente, sendo-lhes colocado junto ao corpo uma garrafa vazia de cerveja, que continha um ou mais documentos escritos no preciso momento, de conteúdo confidencial.
Reunidos os respetivos requisitos, seguiram destino pista da aviação, onde foram enterrados nos próprios buracos dos foguetões por estes lançados sobre Canquelifá nos dias últimos, não tendo atingido o objetivo por eles planeado.
De realçar o facto de ter sido escalado um pelotão naquele dia e no seguinte, para carga e transporte de terras em unimog para serem tapados os buracos, entenda-se sepultura dos corpos.
Assim ficou encerrado mais um capítulo de uma guerra subversiva, que muitas lágrimas provocaram aos intervenientes de ambas as partes.
Outro epilogo não menos importante na nossa passagem por terras do além, foi o dia 29 de agosto de 1973
Primeiro contacto com o IN na Bolanha de Macaco-Cão cerca das 16h00, emboscada perpetrada às nossas tropas com graves consequências, pois saldou-se por 2 mortos, o Gomes e o Nunes, e vários feridos, alguns com gravidade.
Encontrava-me de serviço no posto de rádio quando se fez ouvir o disparar de armas automáticas à mistura com morteiradas e RPG, (RPG2 era utilizada pelo IN, sendo que a RPG7 era pela nossa tropa), emboscada a cerca de 3 km de distância de Canquelifá.
Logo chegou o pedido via rádio, da evacuação dos mesmos, não me recordo quem era o operador, duvidas quanto ao Matos ou Coelho.
Escrita a mensagem pelo então Cripto Jacinto Teixeira, a mesma por mim foi difundida ao CAOP 2, Nova Lamego e Bissau.
A confirmar a veracidade do exposto, mantenho em meu poder o original da mensagem do pedido da evacuação, que exibo.
Original pedido meios aéreos para transporte de feridos
A referida emboscada ficou marcada por uma série de acontecimentos entre eles destaco!..
- Aquando da chegada dos hélis ao local, em número de 3, foi constatado viajarem militares cujo destino era a passagem para Bissau, e desta à metrópole a fim de passarem férias, dificultando deste modo a total evacuação dos feridos.
- O Capitão Cristo, que também vazia parte daquela operação, ao aperceber-se de tal, logo ordenou o desembarque dos referidos militares, dando-lhes como justificação não ser aquele momento e meio de transporte para fazerem turismo.
A talho de foice, como é usual dizer-se, no passado dia 4 junho 2016, no decorrer do Almoço Convívio em Amarante, foram estes momentos lembrados, mais uma vez, pelo Veterano José Carvalheira, a residir ali para os lados Barcelos, que fez parte deste lote de feridos. Segundo ele, com todo o seu bom humor de pessoa simples, não deixa de sublinhar o facto de naquele dia lhe ter saído o totoloto duas vezes.
No primeiro sorteio tocou-lhe uma boa meia dúzia de estilhaços na zona lombar, mas apesar de tudo está vivo sem sequelas.
No segundo sorteio, que foi em função do primeiro, o prémio está sendo dividido ao longo da sua vida, atribuído pelo Estado Português, e que muito jeitinho lhe faz no final de cada mês!..
E exclama o Veterano ironizando:
- Caríssimos Veteranos, todos quantos fizeram parte da CCAÇ 3545, o relato que aqui deixo gravado não se trata de uma ficção! Fazer um relato de guerra não é tarefa fácil mesmo tendo passado pelos acontecimentos.
Creiam, estas são memórias que se encontravam alojadas no meu subconsciente e que foram trazidas para o computador com algumas lágrimas à mistura, mesmo considerando o facto de poder dizer bem alto “correu bem, cheguei vivo”. Mas, mesmo assim, não se pode esquecer nunca, aqueles que tombaram a meu lado e por isso temos orgulho em todos que combateram na terra, no ar ou no mar!
Aproveitando a circunstância, quero aqui deixar a todas as Famílias a eterna saudade.
Ao lerem todos estes escritos que antecedem, vão com certeza recordar aqueles momentos que muito particularmente marcaram para sempre as nossas vidas, e bem assim as das nossas famílias.
Todo este “Arauto da Verdade” foi escrito há vários anos, todos os acontecimentos transcritos são de uma percentagem de erro muito reduzida, considero eu. Relativamente aos seus meandros relatados, no tocante às datas dos acontecimentos aceito alguma eventual discrepância.
Por outro lado, também quero dedicar este capítulo que não deixou de ser menos histórico, à minha família, especialmente aos meus filhos, Rui e Vera, hoje pessoas adultas, com a sua formação académica nas áreas de engenharia mecânica e ciências farmacêuticas, respetivamente, para que se possam orgulhar de o seu pai ter cumprido um dever de cidadania, mesmo sendo este de causas desconhecidas.
O caminho é feito caminhando, como o nosso povo costuma dizer!
Era tempo de iniciar outro capítulo de vida que também não se apresentava fácil.
O construir de uma família, a subsistência dela, tudo eram interrogações que se colocavam e que apenas tinha uma só saída, escolher e seguir uma carreira profissional.
Para concluir, gostaria de registar que durante a vida devemos aproveitar todos os momentos para dizer àqueles que amamos, o quanto são importantes. Amanhã pode ser tarde para dizermos que amamos e precisamos!
Às leis do divino chefe, se efetivamente ele existe, o meu obrigado, e um bem-haja por não me ter abandonado nos momentos difíceis.
Como todos bem sabem, haveria a mencionar muitos outros momentos não menos difíceis, muito gostaria que outro camarada pertencente à CCAÇ3545 lhe desse continuidade, se o caso o merecer.
Para dar por terminado estes meus simples capítulos, só pretendia abrir aqui um outro, na tentativa de encontrar dois bons amigos de então:
- Luís Henriques, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista, mais conhecido por "Alcanena” e Manuel Claro, ex-Atirador, dos quais junto foto na bolanha.
Os não menos amigos:
- Alcino Teixeira, o nosso destacado cozinheiro
- Arnaldo Pinho, o responsável pela padaria, onde se assavam os cabritinhos.
- Teles Dias, o braço direito da messe dos oficias, creio ser de Ponte de Sor.
- Carlos Sarmento, e o Teixeira, dupla de Operadores Criptos da Companhia.
E bem assim tantos outros que não recordo nomes, mas gostaria de os encontrar.
Ergam o dedo, e digam que estão vivos, vamos a um almoço?
Se por ventura alguém tiver dificuldade em se deslocar, relativamente a transporte, não há inconveniente ser eu a fazê-lo, de qualquer parte do país.
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Para contacto, o meu correio eletrónico é
jspeixotolord@hotmail.com
UM BEM-HAJA A TODOS
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2. Comentário do editor
Caro amigo e camarada Peixoto, estás apresentado, e de que maneira. Entraste com o pé direito, com este texto de memórias. Esperamos por mais.
Como este poste já vai longo, termino por aqui com um abraço em nome da tertúlia e dos editores.
A o teu dispor fica o teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota do editor
[1] - Vd. poste de 23 de maio de 2016 >
Guiné 63/74 - P16127: (De)Caras (40): A Canquelifá da CCAÇ 3545 (1972-1974) e os acontecimentos de janeiro de 1974: a morte do "ranger" fur mil op esp Luís Filipe Pinto Soares (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/74)
Último poste da série de 22 de setembro de 2016 >
Guiné 63/74 - P16514: Tabanca Grande (496): José Luís da Silva Gonçalves, ex-Soldado Radiotelegrafista da 2.ª CCAV/BCAV 8320/73 (Olossato, 1974), 729.º Grã-Tabanqueiro