terça-feira, 1 de novembro de 2016

Guiné 63/74 - P16667: (Ex)citações (321): Os Refractários, os Objectores de Consciência e os Desertores (António Carvalho, ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72)

1. Mensagem do nosso camarada António Carvalho (ex-Fur Mil Enf da CART 6250/72, Mampatá, 1972/74), com o seu ponto de vista em relação a quem de algum modo se furtou à ida para a guerra do ultramar:


Os Refractários, os Objectores de Consciência e os Desertores 


A guerra que Portugal enfrentou nos territórios ultramarinos, durante quase toda a década de sessenta e metade da década seguinte, condicionou a vida de largas centenas de milhares de jovens portugueses que tiveram que interromper o curso normal das suas vidas para, ao serviço da Pátria ou de uma doutrina forjada pelos donos da Pátria, combaterem as insubmissões dos povos das nossas colónias africanas.

Não foi uma tarefa fácil, nem de efeitos inócuos esta guerra imposta aos jovens desses tempos, hoje alquebrados sob o peso dos sacrifícios físicos e pelas feridas do corpo e da alma que de lá trouxeram. Não admira, por isso, que muitos fossem os que, atempadamente, (fala-se em 200.000) ainda antes de darem o nome ou antes da inspecção, tivessem atravessado fronteiras para se evadirem ao cumprimento do serviço militar que, quase sempre, correspondia ao embarque para uma das três frentes de guerra. Eram os chamados refractários.

Outros, (talvez 8000) já no decurso do serviço militar, antes do embarque ou já depois de provarem alguns meses de guerra, repudiavam aquela vida e, na primeira oportunidade, lá iam eles, para qualquer país onde encontrassem guarida. Eram os desertores.

Havia ainda os objectores de consciência cujas ideias religiosas ou filosóficas os impediam de combater.

Numa malha mais fina, havia também os que, com a protecção de gente poderosa, “arranjaram” doenças para sair do mato e ficar internados durante mais ou menos meses até à desmobilização definitiva.

 O meu propósito não é julgar nenhum deles. Não devo nem posso fazê-lo. Porquê? Julgar os outros não é tarefa fácil, muito menos quando eles não estão presentes para se defenderem. Menos ainda quando eu, se tivesse tido oportunidade, também me teria eximido ao cumprimento da minha comissão na Guiné. 

Na hora da última formatura, no quartel de V. N. de Gaia, antes da partida para Lisboa, faltava um alferes que nunca mais apareceu, mais tarde, ainda antes de meio ano de comissão, outro alferes aproveitou a vinda de férias para não mais voltar ao mato. Não os nomeio por uma questão de respeitar o seu bom nome, porque eles fizeram o que entenderam ser a melhor opção e eu bem gostava de os reencontrar para lhes dar um abraço.

Esta minha confissão perante os meus camaradas do Blogue Luís Graça servirá para ajudar a sair do limbo aqueles camaradas que têm algum rebuço em aparecer no nosso meio. Eles tomaram a atitude que julgaram correcta para se libertarem daquele ambiente de sofrimento. Eu só não o fiz porque não pude.

MEDAS: 2016/10/30
Carvalho de Mampatá
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Nota do editor

Último poste da série de 20 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16620: (Ex)citações (320): Fiquei triste e revoltado com a imagem da piscina do QG de Bissau, parecia um SPA!... Era uma afronta para estava no mato (Armandino Oliveira, ex-fur mil, CCS / BCAV 1897, Mansoa, Mansabá e Olossato (1966/68; vive no Brasil há 40 anos)

Guiné 63/74 - P16666: Memória dos lugares (351): Canquelifá, a minha primeira estadia no mato. Permaneci lá durante o terceiro trimestre de 1966. Muitas coisas boas e más aconteceram durante esse tempo (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547)

1. Mensagem do nosso camarada Adão Pinho da Cruz, Médico Cardiologista, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547/BCAÇ 1887, (Canquelifá e Bigene, 1966/68), dirigida ao nosso amigo tertuliano Cherno Baldé, trazendo ainda algumas fotos de Canquelifá:

Caro Cherno Baldé,
Gostei muito da tua explicação. Estive em Canquelifá durante 3 meses, em 1966, talvez de meados de Junho a meados de Setembro, com a Companhia do então Capitão Pita Alves, um porreiraço.
Foi a minha primeira experiência no mato. Fiz boas amizades com militares e civis. Aí conheci o Régulo do Pachisse e o filho, de quem era amigo.
Conheci também o Anso, chefe da milícia, que, segundo me disseram mais tarde, foi executado após a independência.
Ainda tenho a foto dos seus dois filhitos, bebés.

Um abraço
Adão Cruz

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Ainda Canquelifá, a minha primeira estadia no mato. Permaneci em Canquelifá durante o terceiro trimestre de 1966.
Muitas coisas boas e más aconteceram durante esse tempo.
Relatá-las levava um livro.


Canquelifá (à direita e em cima o nosso aquartelamento)

Na consulta

Gabinete de consulta

Novamente Fátima Demba, a companheirinha de todos os dias.

De novo os filhos do Anso

O Anso (que foi fuzilado após a independência, segundo me contaram), o alferes Duarte, o filho do Régulo e eu.

O Régulo do Pachisse (de óculos). Convidava-me muitas vezes para um wisky na sua palhota.

A Mesquita

O sino da Sé

A Sé Catedral

No mato, travessia de um charco
Fotos: © Adão Cruz
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16661: Memória dos lugares (350): Poucas terras fazem jus ao seu nome como Canquelifá, localidade guineense situada no seu extremo nordeste, e que em língua mandinga quer dizer "campo de batalha e de morte" (Cherno Baldé, Bissau)

Guiné 63/74 - P16665: Inquérito 'on line' (79): Com 60 respostas, até ontem às 18h, e a dois dias de "fecharem as urnas", temos apenas 11 casos de deserção no CTIG... Precisamos de chegar às 100 respostas... e nomear a(s) companhia(s), no CTIG, em que tenha havido um ou mais casos de desertores, antes do embarque e/ou depois do embarque: depoimentos, precisam-se!


Foto nº 1


Foto nº 2

"O Homem a Quem Chamaram G3"... O fuzileiro António Trindade Tavares,  o célebre G3, que desertou em 1968... Acabou por apanhar cinco anos de prisão pelo crime de deserção... Aqui no forte de Elvas, s/d (foto nº 1). Nasceu em Lisboa (em 1944) (foto nº2).

Fotos da página do Facebook, do seu livro, com a devida vénia. Sobre o autor e o livro, clicar aqui para saber mais:

"A história de António teria tudo para ser igual a tantas outras. Nascido em Lisboa durante os tempos de racionamento da Segunda Guerra Mundial e pobreza do Estado Novo, criou-se e cresceu pelas ruas de Alcântara e do bairro do Alvito, entre cowboiadas, tiro aos pardais, pancadarias, gazeta à escola e trabalho infantil até ser chamado para a Guerra Colonial. 

"Como tantos outros Fuzileiros, viu-se na Guiné tentando chegar vivo até ao fim do seu tempo de tropa, mas umas rodadas de cerveja com as pessoas erradas desviaram-lhe a vida do curso previsto. A partir deste momento ficou para sempre conhecido como G3, um nome que jamais o largaria, a personificação da resistência anti-fascista, traições à pátria de Salazar e terrorismo militar. Hoje, meio século depois, a sua história é finalmente contada." (Fonte: Sítio do Livro).

Vd. também a qui a nota de leitura que o  Mário Beja Santos fez sobre o livro.


1. INQUÉRITO 'ON LINE':

"NA MINHA UNIDADE (COMPANHIA OU EQUIVALENTE) NÃO HÁ CASOS DE DESERÇÃO"



Os 60 primeiros resultados (às 18h00 de ontem)


1. Nenhum, na metrópole  > 31 (51%)

2. Nenhum, no TO da Guiné  > 41 (68%)

3. Um, na metrópole  > 11 (18%)

4. Dois, na metrópole  > 3 (5%)

5. Três ou mais, na metrópole  > 2 (3%)

6. Um, no TO da Guiné  > 8 (13%)

7. Dois, no TO da Guiné  > 1 (1%)

8. Três ou mais, no TO da Guiné > 0 (0%


O prazo de resposta ao inquérito termina na 5ª feira, dia 3/112016, às 15h34.


2. Comentários dos nossos camaradas no poste P16655 (*)

(i) Vasco Pires [, falecido ontem, em Porto Seguro, Brasil]

Na minha unidade, o 23° Pel Art, não teve deserção, e continuo achando muito pouco provável havê-la, pois os soldados, que tinham até três mulheres, tinham um poder aquisitivo muito superior à maioria da população. Lamento não ter números concretos para apresentar.


(ii) Luís Graça

Vasco, não tens que "pedir desculpa"... Na minha guineense CCAÇ 12, também não houve deserções...  Primeiro, eles eram todos fulas e tinham um ódio de morte ao PAIGC...  E depois recebiam todos o equivalente a um pré de um 1º cabo metropolitano: 600 pesos (soldados de 2ª classe, do recrutamento local) + 24,5 pesos por dia por serem desarranchados)... O 1º cabo José Carlos Suleimane Baldé, que tinha a 4ª classe, ganhava mais (em patacão) do que o colega metropolitano, por ser desarranchado...

Ao fim do mês, eram cerca de 1.350 pesos, para um simples soldado de 2ª classe (!), "português da Guiné"... Na Guiné na época, era muito dinheiro...  Em escudos da metrópole, e aplicando a taxa de desvalorização de 10% em relação ao peso, eram 1.215 escudos!...  Em 1969, 1.215 escudos equivaleriam hoje a 361,21 € ...

O PAIGC não pagava pré, nem em pesos, nem escudos, nem rublos, nem em dólares, nem coroas suecas... Só prometia, para os vencedores e os sobreviventes, a glória da independência!... O problema é que o heroísmo não enche barriga nem dá para alimentar duas mulheres, no mínimo, e um rancho de filhos...

Os nossos soldados guineenses ganhavam mais do que os médicos cubanos, essa é que é a verdade!... A terem desertado (, o que não me parece que tenha acontecido com companhias africanas como a CCAÇ 12, no final da guerra no TO da Guiné; pode ter acontecido em Angola e em Moçambique...), só poderia ter sido pela clara perceção de que nós, os tugas, os estávamos prontos para os abandonar...

Felizmente, eu não estava lá, no pós 25 de abril, nem assisti a esse momento doloroso da passagem de testemunho da história... Acredito que tenha sido dilacerante para os "últimos soldados do império"... E foi seguramente mais trágico para os nossos camaradas guineenses que apostaram no cavalo errado...


(iii) António Silva

Também estive na Guiné,  na CCaç 2790. Tivemos um desertor, um alferes, que segundo diziam foi de férias de mobilização e nunca mais voltou.


(iv) Joaquim Ruivo

Enquanto estive na Guiné (de outubro de 61 a fevereiro de 64), tive conhecimento de 2 casos de deserção: um alferes miliciano da minha unidade (cabo-verdiano) e um 1ª cabo cripto. Este último, segundo consta,  falava aos microfones duma emissora dum país africano, que não me lembro qual. O 1º cabo cripto deu muitos problemas no sector das transmissões porque tiveram que alterar todos os códigos...


(v) José Cruz

Na minha companhia, CCAÇ 3306,  em Jolmete, houve um desertor, um furriel. Ah! mas conheço um desertor do exército que, depois do 25 de Abril, veio para o país e arranjou colocação como funcionário público. Professor. Eu tive de emigrar.


(vi) [Joaquim ?] Mendes

Correndo o risco de estar a ver mal o inquérito, pergunto-me sobre a sua validade,  dado permitir que vários militares da mesma companhia assinalem o mesmo desertor dando origem a erro grosseiro.
Sugiro que o voto implique referenciar a unidade em causa para assim reduzir a multiplicação dos desertores (que não serão muitos).


(vii) Tabanca Grande (editor)

Camarada Mendes, tens razão... Mas o objetivo da "sondagem" é permitir-nos falar justamente destes casos... Não temos a veleidade de fazer um "estudo científico" sobre o fenómeno da deserção na Guiné... A nossa amostra será sempre "enviesada"... Este não é o instrumento apropriado...

Além disso, esta funcionalidade do Blogger, o nosso servidor, tem muitas limitações técnicas.... Não posso fazer duas perguntas ao mesmo tempo, nem muito menos perguntas abertas: por exemplo, qual foi o nº da companhia?

De qualquer modo, temos em média um membro da Tabanca Grande por companhia... Não haverá grandes riscos de sobreposição... E há companhias que nem sequer estão aqui representadas...

É importante que a malta responda e diga o que respondeu ... Eu já o fiz, na minha CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 não houve desertores, nem antes nem depois do embarque... E aqui não contam os boatos de caserna, o que se ouviu dizer, etc. Queremos factos, casos concretos (se é que os houve, em cada uma das nossas companhias)...


(viii) Luís Graça

Até 1965, haveria "apenas" 9 desertores tugas, que se passaram para o "outro lado"... A fonte (insuspeita) é o 'Nino' Vieira... Será também razoável considerar como desertores uma série de rapaziada, que deixou as nossas forças armadas para se juntar ao movimento liderado por Amílcar Cabral... Estou a lembrar-me de diversos guineenses que frequentaram, com aproveitamento, o 1º Curso de Sargentos Milicianos, em Bissau, em 1959... O caso mais conhecido é o Domingos Ramos, um dos "generais" do PAIGC...

Um dos 3 desertores de Fulacunda, em 1965, era, de seu nome completo, o António Manuel Marques Barracosa [e não Barricosa...], de 23 anos, com o posto de 1º cabo miliciano...

Seria mais tarde, dois anos depois, em maio de 1967, um dos 4 implicados na assalto à agência do Banco de Portugal na Figueira da Foz, liderado por Hermínio da Palma Inácio, 46 anos, fundador e dirigente da LUAR, com a colaboração de Camilo Tavares Mortágua, 34 anos, e Luís Benvindo, 25 anos.  O assalto, no valor de mais de 29 mil contos na época (c. 146 mil euros, na moeda de hoje), teria sido até então o maior roubo de sempre em Portugal. Julgado à revelia, o Barracosa foi condenado a 13 anos. Perdeu-se aqui o seu rasto...

Os casos de deserção, não na metrópole, mas já no TO da Guiné, são, de facto, poucos ao longo da guerra, de tal modo que os nomes dos desertores são sobejamente conhecidos: Aqui vão mais três:

Manuel Alberto Costa Alfaiate, antigo fuzileiro naval; desertou em fevereiro de 1970; Manuel Fernando Almeida Matos, 1º cabo, chegou à Guiné em janeiro de 1969, participou em várias operações, sobretudo na região de Bula, e desertou em abril; Manuel Veríssimo Viseu, natural de Mértola, nascido em 1946, pertenceu à 15ª Companhia de Comandos, combateu em Jabadá, chegou à Guiné em Maio de 1968; quando a 15ª Companhia de Comandos estava em Cuntima, atravessou a fronteira e apresentou-se ao PAIGC.


(viii) Acácio Jesus Nunes

Na CCaç 2312, apareceu lá um tipo em rendição individual, esteve poucos meses e em Bula pirou-se com a arma. Foi o único e por onde andámos não me constou caso idêntico.  Este meliante foi acusar na rádio Conakry um alferes e o capitão de crimes que nunca se cometeram contra a população. Além de cobarde,  foi aldrabão.


(ix) José Colaço

A maior fuga à guerra não eram os desertores, mas, creio eu e até prova em contrário,  foram os refractários que a partir,  dos 13 anos, mais ou menos,  até serem chamados à inspecção e incorporação nas forças militares,  preparavam a fuga não se apresentando quando eram chamados.

Havia vários estratagemas: muitos dos filhos dos senhores de então eram admitidos como trabalhadores por influências, cunhas na OGMA em Alverca,  e assim se safavam de ir à guerra.
Por isso esta sondagem fica muito carente das fugas da ida à Guerra do Ultramar.


(x) António J. Pereira da Costa

As técnicas de "fuga" de que o Colaço fala eram legais e algumas até tinham reversos, como é o caso da ida para a pesca do bacalhau.

Creio que estamos a falar dos que não foram de todo e não aproveitaram, talvez por não saberem, os diferentes, mas poucos furos da lei.

Ao Jesus Nunes lembro que a propaganda é isto mesmo. O uso de depoimentos e testemunhos "prestados" por desertores faz parte dela. Recordo o depoimento do ten comando graduado  Januário, que desertou em Conakry com o respectivo Gr Comb. Cmds [no decurso da Op Mar Verde, em 22 de novembro de 1970, 1ª Companhia de Comandos Africana / Cmds Africana],  antes de serem todos fuzilados, que está nesta linha. Não temos ideia nenhuma das informações que prestaram ao In e como é que elas lhes foram sacadas.

Não sei se o desertor, isto é, o que foge para o In ou para outras regiões, depois de incorporado, não terá de ter uma boa dose de coragem. É cortar com tudo e recomeçar, sem poder voltar atrás... Houve camaradas nossos que foram recambiados da Suécia, por não terem aceitado colaborar, mesmo indirectamente, com os guerrilheiros.

Estes são pontos a considerar na apreciação do problemas. De qualquer modo, parece-me que já avançámos ao fixarmos a diferencia entre desertor, faltoso e refractário.


(xi) Vasco da Gama

Também o nosso capitão Vasco da Gama teve o seu desertor.... Convite para revisitar um dos seus postes, da série "Banalidades da Foz do Mondego", de 15/6/2009:

 (...) "Temos os que embarcaram connosco e que deram o salto quando vieram de férias à metrópole. Aconteceu a um furriel da minha companhia, o Pereira, a quem os Tigres designam por furriel fugitivo ou fugitivo, tout court. O seu não regresso à minha Companhia ainda me levou a ser ouvido pelo Pide de Aldeia Formosa que achou estranho o facto de eu não ter desconfiado de nada…

"O fugitivo foi a um dos primeiros convívios da nossa Companhia, alguns anos após o 25 de Abril. Acreditem que nenhum de nós lhe cobrou o que quer que fosse, muito embora nunca mais tivesse aparecido. Conversámos e ele apenas referiu que não conseguia aguentar a situação que a nossa Companhia estava a viver e que tinha tido a oportunidade de se pirar. Eu sei que apenas pensou nele e os outros que se lixem, mas para quê fazê-lo sofrer mais com o nosso julgamento?

"Cada um é como cada qual e quão diferente foi a atitude do nosso José Brás que, de férias em Portugal, recebeu a notícia da morte dos seus camaradas, o Dias e o Oliveira que morreram sem ele em Xinxi-Dari. Nem o pai o convenceu a dar o salto e o Mejo iria continuar a ser a sua pátria por mais algum tempo…. “E sem precisar de dizer-lhe que me sentia miserável por ter deixado morrer aqueles amigos sem a minha presença de arma na mão…” (...)

(xii) Mário Pinto

O fuzileiro António Trindade Tavares,  o célebre G3, que desertou em 1968 do seu destacamento em Bissau... Por acaso já contei a sua história aqui no Blogue. Era meu vizinho aqui no Lavradio.


Guiné > Bissau > 1959 > 1º Curso de Sargentos Milicianos, aberto a "assimilados" > 1ºs cabos milicianos Mário Dias (à direita, na segunda fila, de pé), Domingos Ramos (à esquerda, na primeira fila) e outros... De entre os militares que frequentaram o 1º Curso de Sargentos Milicianos (CSM), em Bissau, em 1959, houve vários casos de deserção para o PAIG

"De cócoras, a partir da esquerda: Domingos Ramos; um outro cujo nome não me lembro mas que também foi para a guerrilha; e depois o Laurentino Pedro Gomes. De pé: não me recordo o nome mas também foi para a guerrilha; Garcia, filho do administrador Garcia, muito conhecido e estimado em Bissau; mais um de cujo nome não me recordo; eu [, Mário Dias]; e mais outro futuro guerrilheiro."

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006). Todos os direitos reservados
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Guiné 63/74 - P16664: Parabéns a você (1154): José Carlos Gabriel, ex-1.º Cabo Op Cripto do BCAÇ 4513 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16654: Parabéns a você (1153): Mário Vasconcelos, ex-Alf Mil TRMS do BCAÇ 4612/72 (Guiné, 1973/74)

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16663: In Memoriam (268): Vasco Pires, ex-alf mil art, cmdt do 23º Pel Art (Gadamael, 1970/72), acaba de morrer, em Porto Seguro, Brasil (Pedro Araújo, seu afilhado)


Vasco Pires, natural de Anadia, ex-cmdt do 23.º Pel Art (Gadamael, 1970/72), emigrante no Brasil desde 1972. Morreu hoje em Porto Seguro.


1. Mensagem de Pedro Araújo. com data de hoje, às 19h24:

Caro Sr. Luis Graça.

Faleceu em Porto Seguro esta noite (31/10/2016),  de enfarte, seu camarada Vasco Pires. Como sei que era participante em seu blog,  sinto-me no dever de o informar do sucedido.

Seu afilhado.
Pedro Araújo.


2. Comentário do editor LG:

Meu caro Carlos Vinhal, editor do Vasco Pires:

Acabo de ser surpreendido com a notícia da morte, súbita, do nosso camarada e amigo Vasco Pires, "teu afilhado" (como ele gostava de dizer, com delicadeza, ternura e bom humor, considerando que tu eras o"padrinho" dele no blogue, porque o acolheste e o apresentaste à Tabanca Grande e lhe editas a sua série "Fantasmas... e Realidades do Fundo do Baú")...

Vamos fazer de imediato um poste, "in memoriam"... Se quiseres e puderes acrescenta qualquer coisa mais da tua lavra... Recordo que ele era um apaixonado pelas suas raízes bairradinas  e que fora para o Brasil em 1972, depois do regresso da Guiné... 

Mas não temos grandes dados biográficos sobre ele: família, amigos, negócios... Mas, ao certo ao certo em que concelho da região da Bairrada nasceu: Anadia ? Águeda ?...Sei que estudara em Coimbra, mas desconheço a vida dele no Brasil, que terá começado em São Paulo. Não sabemos o ano exato em que nasceu,  talvez entre 1945 e 1948... Sabemos o nome da sua companheira, Maria Helena, psicóloga clínica...

A trágica notícia é dada pelo afilhado, Pedro Araújo, a quem agradeço, comovido, o seu gesto (que é também de gratidão e apreço pelo seu padrinho e pelos seus camaradas de armas)...

Sabemos que morreu de morte súbita, em Porto Seguro, mais perto das suas raízes...Foi aqui que em 1500 os portugueses aportaram, quando chegaram às terras do Novo Mundo. Porto Seguro, a 4000 km da sua Gadamael, na região de Tombali, Guiné-Bissau, onde foi um brioso artilheiro, comandante do 23º Pel Art, entre 1970 e 1972; e a 7000 mil da sua Bairrada querida, e do seu Portugal sofrido...

Estou desolado, estamos desolados, tu e eu. Ambos testemunhamos que o Vasco era uma presença, discreta mas constante, no nosso blogue. Tem 60 referências, afora muitas dezenas de comentários (que é preciso revisitar).

À família mais próxima, à sua companheira Maria Helena, e aos seus amigos, a todos eles na pessoa do afilhado Pedro Araújo (que agora é o nosso contacto com Porto SEguro), a Tabanca Grande, o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, quer transmitir toda a sua solidariedade na dor.

O Vasco, que era a gentileza em pessoa, apesar da distância (física) que nos separava, era um ser humano de grande estatura e um extraordinário camarada, de quem começamos já a ter saudades.

Até sempre, camarada!...
Gadamael, presente!
23.º Pel Art, presente!
Tabanca Grande, presente!,
Brasil e Portugal, presentes!...

O editor
Luís Graça



Guiné > s/l > 1970 > Uma "selfie" ("avant la lettre"...) do Vasco Pires, ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72; bairradino, vivia no Brasil desde que acabou a comissão de serviço no CTIG... Sempre longe tão perto de nós, como ele gostava de nos dizer...




Vasco Pires, ex-alf mil art, cmdt do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72, o primeiro à esquerda, de óculos escuros, no final da comissão, em Ingoré, região do Cacheu, 1972.


Fotos (e legendas): © Vasco Pires (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


 3. Um camarada grato à Tabanca Grande



Caro Luis,

As palavras são de justiça, e agradecer não há que; não estou mitificando ninguém, a mim parece óbvio que a equipa que você lidera, presta relevante Serviço à nossa tão injustiçada geração.

Falando em justiça, não posso deixar de "confessar" a minha dívida pessoal, com duas pessoas, cada uma a seu modo, que me guiaram e incentivaram, nesses por vezes tão íngremes e tortuosos caminhos da memória; e só nós sabemos, que o "caminho da memória" dos veteranos de guerra, por vezes é ainda mais tortuoso que o do comum dos mortais.

A Maria Helena, minha companheira do pós-guerra, que é psicóloga clínica, foi quem me guiou com datas e factos que já estavam "jogados" no subconsciente, e me incentivou a essa catarse. E o camarada Carlos Vinhal, quem me recebeu nesta GRANDE TABANCA, criou até o caminho para os FANTASMAS saírem, e sempre me incentivou a encaminhá-los para o papel.

As palavras, como disse acima, são de JUSTIÇA e GRATIDÃO.

Forte abraço a todos

Vasco Pires


4. Comentário do coeditor CV.

Nesta época já de si nada alegre, uma notícia como a de hoje cala bem fundo em que estava habituado àquelas mensagens, curtas e concisas, que invariavelmente começavam por: Bom dia Padrinho, Cordiais saudações...

A última mensagem de trabalho, que guardo do meu afilhado é de 13 de Maio passado. O assunto era Fundo do Baú (revisitado), referente à sua série Fantasmas... e realidades do fundo do baú.

Quando se levantavam dúvidas na edição dos postes, deixava ao "meu exclusivo e avalizado critério" a escolha da melhor solução.

Refere o Luís a sua delicadeza, ternura e bom humor, o que confirmo após quase 5 anos de contacto. Os seus comentários, sempre correctos e oportunos, vinham no sentido de tentar esclarecer ou completar ideias ou acontecimentos, nunca depreciando qualquer camarada, mesmo os que davam palpites na área em que ele se sentia mais à vontade, a artilharia, aquela que usava obuses e peças, não a nossa, a da G3.

O Vasco vai para a equipa dos que partiram, mas não sem antes deixar o seu valioso contributo no nosso Blogue.

Pela minha parte, agradeço ao seu afilhado Pedro Araújo o nobre gesto de nos dar a notícia, que não queríamos receber, do seu falecimento. Peço-lhe que seja portador, junto da família, do nosso pesar pela perda do seu ente querido e do desgosto destes velhos combatentes pela perda do seu camarada e amigo Vasco Pires, de quem se orgulham. 

Carlos Vinhal
Coeditor
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Nota do editor:

Último poste da série > 28 de outubro de  2016 > Guiné 63/74 - P16653: In Memoriam (267): gen pilav ref Francisco Dias da Costa Gomes (BA12, Bissalanca, 1967/68, cmdt do Grupo Operacional 1201)... Foi o primeiro piloto de Fiat G-91 a ser abatido, em 28/7/1968, sob os céus de Gandembel (José Matos, investigador independente em história militar)

Guiné 63/74 - P16662: (De)Caras (51): Domingos Ramos, desertor do exército português e herói nacional da Guiné-Bissau: entre o mito e a realidade: as últimas palavras que ele nunca poderia ter dito, nem muito menos escrito, antes de morrer, em 10/11/1966, no ataque a Madina do Boé (Jorge Araújo)





Guiné > PAIGC > Manual escolar, O Nosso Livro - 2ª Classe, editado em 1970 (Upsala, Suécia). Lição nº 23, pp. 74/75: Um grande patriota...  b

Exemplar cedido pelo Paulo Santiago, Águeda (ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72).

Fotos: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Todos os direitos reservados.~




Guiné > Região do Boé > Madina do Boé > CCAÇ 1589 / BCAÇ 1894 (Nova Lamego e Madina do Boé, 1966/68) – imagem do aquartelamento 

[foto do nosso camarada Manuel Coelho, ex-fur mil trms, da CART 1589, P8548, com a devida vénia].




Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); doutorado pela Universidade de León (Espanha) (2009), em Ciências da Actividade Física e do Desporto; professor universitário, no ISMAT (Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes),
Portimão, Grupo Lusófona.




GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE A MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ - A VERDADE DOS FACTOS: ENTRE O REAL E A FICÇÃO -



1. – INTRODUÇÃO

Creio não estar muito longe da verdade se afirmar que a maioria dos camaradas, ex-combatentes, independentemente da época em que isso aconteceu, está a acompanhar com atenção e interesse a divulgação de algumas das principais experiências vividas por três médicos cubanos que estiveram na Guiné Portuguesa [hoje Guiné-Bissau] em “ajuda humanitária” ao PAIGC, na sua luta pela independência, cujas missões aconteceram nos anos de 1966 a 1969. (*)

Trata-se, com efeito, de um importante contributo histórico (digo eu!), cujo valor que eventualmente possamos atribuir à informação transmitida em cada questão, mesmo que seja relativo, permitir-nos-á reflectir sobre o “outro lado do combate”, para melhor compreendermos cada uma das nossas diferentes missões.

Na operacionalização desta possibilidade, abrem-se novos caminhos de análise individual e colectiva que, quando cruzadas com outros saberes e experiências pessoais adquiridas em cada contexto, ajudar-nos-ão a estar mais próximo da “verdade dos factos”, ainda que se aceite que “entre o real e a ficção” se tenha de superar uma “pista de obstáculos”, com várias “paliçadas” sempre em crescendo, passe a imagem de âmbito militar.

Os principais temas em destaque têm sido as dificuldades em sobreviver naquele tempo e naquele ambiente de guerra-de-guerrilha, aonde o conceito de improviso sobrepunha-se ao de logística, pois esta não existia, fazendo das pernas o principal meio de “transporte”, com caminhadas longas e diárias, onde o consumo de arroz (hidratos de carbono), a caça e a pesca (proteínas magras), garantiam a subsistência possível à maioria de cada uma das comunidades, e que serviam para suavizar a fome.


Tabanca do Xime . Foto de Jorge Araújo (1972)


No contexto estritamente militar, os diferentes relatos confirmaram que a maioria dos feridos em combate (algumas centenas, se somarmos os números indicados pelos três médicos) eram tratados em enfermarias de campanha construídas de colmo, algumas da sua iniciativa e responsabilidade, aonde se realizavam grande parte das cirurgias e amputações, quase sempre durante a noite, seguindo para Boké, o hospital de rectaguarda do PAIGC situado a cerca de trinta quilómetros da fronteira Leste com a Guiné-Bissau, as situações mais problemáticos, de que um exemplo concreto, já aqui dissecado, foi o caso do cmdt Mamadu Indjai em agosto de 1969 [P16506 + P16562].

Devido ao muito trabalho a que estavam sujeitos, às enormes dificuldades logísticas e ao número de ocorrências contabilizadas no contexto das suas missões, e das tensões a elas associadas, os médicos consideraram, como uma forte probabilidade, não ser possível dai saírem sãos e salvos, ainda que sentissem grande apoio, respeito e solidariedade.

Para além do acima exposto, eram também operacionais [armados] da guerrilha, integrados maioritariamente em bigrupos, sendo informados dos dias dos ataques onde estavam os portugueses (aquartelamentos, destacamentos, colunas de abastecimento, tabancas, …) quase sempre com armas pesadas.

Ficavam geralmente na rectaguarda a um quilómetro de distância, aonde montavam o posto sanitário com o equipamento de primeiros-socorros, para ser usado em caso de necessidade de prestação de cuidados de saúde, contando em situações pontuais com apoio de uma unidade de enfermagem.

Partindo da crença de que este assunto, tal como muitos outros, mereceria o seu aprofundamento por via dos muitos comentários recebidos, que agrademos, reforçada pela sugestão avançada pelo camarada Luís Graça ao referenciar novos elementos documentais relacionados com a figura de Domingos Ramos e a sua morte, eis mais um pequeno contributo de reforço ao referido no meu poste anterior [P16613] (**).



2. – A MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ

Neste ponto, para enquadrarmos o tema da morte do cmdt da Frente Leste Domingos Ramos, ocorrida a 10 de novembro de 1966, em Madina do Boé, iremos recuperar algumas das passagens já abordadas anteriormente pelo dr. Virgílio Camacho Duverger, com destaque para a questão 11 (“Participou em acções de guerra?”), mesclando-as com outros elementos históricos, uns mais fiáveis que outros, mas todos eles a merecerem a nossa reflexão.

Como foi referido anteriormente, o dr. Virgílio Camacho Duverger chega a Conacri em junho de 1966, integrado num contingente de cerca de três dezenas de elementos, entre os quais oito médicos, em que um deles é o nosso conhecido dr. Domingo Diaz Delgado.

É colocado no Hospital de Boké, aonde permaneceu dois meses, sendo depois transferido para a Frente Leste [agosto de 1966] para uma base existente no interior da República da Guiné, na região do Boé, com o objectivo de construir uma enfermaria de campanha que pudesse servir de apoio aos combatentes aí colocados sob a direcção do Cmdt Domingos Ramos, cuja principal missão militar era atacar o quartel de Madina do Boé [até à exaustão, visando a expulsão das NT, o que veio a acontecer dois anos e meio depois, em fevereiro de 1969].

Neste aquartelamento, naquele tempo, estava instalada a CCAÇ 1416 comandada pelo Cap Mil Jorge Monteiro, aí permanecendo entre maio de 1966 e abril de 1967, sendo nesta última data rendida pela CCAÇ 1790, comandada pelo Cap Inf José Aparício. [Vd. foto acima]

 Ao terceiro mês de estar naquela região [novembro], é-lhe pedido que realize um reconhecimento ao referido quartel, considerada por si como a missão mais importante em que participou, tendo por companhia o dr. Milton Echevarria, médico do seu grupo na Frente, e o apoio de guias/guerrilheiros destacados para aquela acção, caminhada que, disse, demorou perto de cinco horas, uma vez que a base estava a cerca de três quilómetros dali.

Em 10 de novembro de 1966, uma quarta-feira, a operação concretizava-se. Antes do ataque, na companhia de um enfermeiro cubano anestesista que havia chegado para reforçar o grupo de saúde, criou um posto sanitário avançado em território da Guiné-Bissau, perto da zona do combate, de modo a facilitar a assistência médica e a prestar os primeiros socorros aos combatentes que ficassem feridos, pois não era fácil chegar ao hospital de Boké.

Conta que a primeira morteirada lançada pelos portugueses [da CCAÇ 1416] cai, por casualidade, no local aonde estava o posto de observação no qual se encontrava o comandante da Frente, o guineense Domingos Ramos. Os estilhaços da granada atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta que não deu tempo para o levar até ao hospital para o poder operar. Durante a evacuação, a caminho do hospital [não indica qual: se a enfermaria que ajudou a criar em território da Guiné-Conacri, se o hospital de Boké], Domingos Ramos faleceu.

Este episódio é descrito pelo assessor militar cubano Ulises Estrada [1934-2014], pois encontrava-se a seu lado, nos seguintes termos:

(...) "Eu encontrava-me ao lado de Domingos [Ramos], em que metade do seu corpo cobria o meu para proteger-me, coisa que não pude evitar, e abrimos fogo com um canhão B-10 colocado numa pequena elevação situada a cerca de seiscentos metros do quartel. Os portugueses [CCAÇ 1416] tinham montado postos de vigia na zona e responderam com disparos certeiros de morteiro, embora nós continuássemos a disparar com o canhão sem recuo, metralhadoras e espingardas.

"Pouco tempo depois de iniciado o combate, senti que corria pelo lado direito das minhas costas um líquido quente e pensei que estava ferido por uma das morteiradas que caíam ao nosso redor. Era Domingos [Ramos], sangrava abundantemente. Peguei no seu corpo com a ajuda de outro companheiro e o conduzimos ao posto médico, situado a cem metros da zona do combate. O médico cubano [Virgílio Duverger] informou-me que havia falecido.

"Não podíamos deixar o cadáver do dirigente guineense nas mãos dos portugueses. Pegámos no seu corpo e num camião nos deslocámos pelos campos de arroz até à fronteira com Conacri. Chegámos a Boké, aonde se encontrava o posto de comando fronteiriço, e entregámos o seu cadáver ao companheiro Aristides Pereira [1923-2011], para que pudesse fazer o funeral e render-lhe as honras que merecia este combatente, que foi um dos primeiros grandes chefes do PAIGC a morrer em combate”. (...)


[Excerto traduzido por JA, do castelhano: «Recordando Amílcar Cabral, líder anticolonialista da Guiné-Bissau», em: http;//45-rpm.net/sitio-antiguo/palante/cabral.htm].



Canhão s/ r 82 mm e alma lisa,, B-10, de origem soviética...  Uma arma versátil e temível...  Sess
ao de terino possivemente na base de Boké.

Fotograma do filme "Madina Boe" (Cuba, 1968, 38'), do realizador José Massip (1926-2014), obtidas a partir da função "print screening" do teclado do PC e da visualização de um resumo, em vídeo (28' 22'') , disponibilizado no You Tube, na conta "José Massip Isalgué". O documentário foi carregado no You Tube no dia da morte do cineasta (ocorrida em Havana, em 9/2/2014). O documentário chama-se "Amílcar Cabral" (e pode ser aqui visualizado)



De notar que Domingos Ramos viria a morrer dois anos depois da cerimónia de juramento de fidelidade dos guerrilheiros do PAIGC, ocorrida em 16 de novembro de 1964, nos arredores do Gabu, com a presença de Amílcar Cabral. Este acto de juramento de fidelidade, com que encerrou os trabalhos da constituição das primeiras unidades do Exército Popular, e da qual fez parte, tinha como lema “força, luz e guia do nosso povo, na Guiné e em Cabo Verde”.

À frente das FARP estavam importantes dirigentes do partido, tais como Domingos Ramos, Chico Mendes, Luís Correia, Lúcio Lopes e Honório Fonseca. Foram criadas novas frentes de batalha: no Gabu (local do juramento); no Boé (Madina, Beli, Cheche); a Leste, e em São Domingos (no Norte). [in: Luís Cabral, «Crónica da Libertação», 1.ª edição, Julho de 1984, edições «O Jornal», Publicações Projornal, Lda, Lisboa, p 230].



Mapa da região do Boé, com a localização do quartel de Madina, assinalando-se a direcção do hospital de Boké.

3. – AMÍLCAR CABRAL E A MORTE DE DOMINGOS RAMOS:

- DO REAL À FICÇÃO

Poucos dias após a morte de Domingos Ramos, Amílcar Cabral [1924-1973], na qualidade de secretário-geral do PAIGC elabora um documento de cinco páginas A4, dactilografado, a que chamou de «MENSAGEM» dirigida a «Todos os responsáveis e militantes do nosso Partido» e a “Todos os combatentes das nossas Forças Armadas”, de que se reproduz o título:




Trata-se de um documento político e ideológico fazendo apelo, no essencial, ao reforço da luta armada em todas as frentes, utilizando a figura de Domingos Ramos como meio de acção psicológica tendente à prossecução da libertação nacional.

Eis as duas primeiras páginas  [, de cinco]:






Quanto ao sucedido, lamenta [naturalmente] mais uma perda na luta armada de libertação nacional, referindo-se  “à morte do nosso grande camarada Domingos Ramos (João Cá), membro do Bureau Político do nosso Partido, companheiro exemplar e querido de todos os camaradas, militantes de vanguarda da nossa luta de libertação” (p3).

Acrescenta que “o camarada Domingos Ramos tombou no seu posto heroicamente, durante um ataque feito a uma caserna inimiga em 10 de novembro [1966], no qual causámos mais de trinta mortos e várias dezenas de feridos às tropas colonialistas” (p3).

A propósito desta afirmação, que é ficção, eis, no quadro abaixo, o número de baixas das NT verificado no período entre 1 de setembro e 8 de novembro de 1966 em todo o território do CTIG, não constando nos registos consultados qualquer morto ou ferido durante o ataque supra.




De notar, ainda, que até à data deste ataque, que não teve consequências, a CCAÇ 1416/BCAÇ 1856 registava quatro baixas, a 1.ª, em 22 de novembro de 1965, do Alf Mil Adelino da Costa Duarte, do 3.º Gr Comb [P12320 – homenagem de Manuel Luís Lomba], e as restantes, curiosamente oito meses despois, em 22 de junho de 1966, a saber: o Sold. Augusto Reis Ferreira, de Montargil (Ponte de Sôr); o Sold. Carlos Manuel Santos Martins, da Cova da Piedade (Almada) e o 1.º Cabo Rogério Lopes, de Chão de Couce (Ansião).

A referência a estas três baixas tinha já sido lembrada por José Mota Tavares, ex-Alf Mil Capelão da CCS/BCAÇ 1856 [P16049] no qual acrescenta “tenho imensas histórias de (…) Madina do Boé (8 ou 10 vezes debaixo de fogo, três mortos, duas fugas durante a missa para o abrigo…)”].

Sobre o martírio de Madina do Boé, pode-se ver um pouco da história da CCAÇ 1790 em:

https://www.youtube.com/watch?v=7vKuLzJVgU0 (1.ª parte)

https://www.youtube.com/watch?v=wn7Oeba1b_g (2.ª parte)


Recuperando a mensagem de Amílcar Cabral, este refere que, quanto à situação de Domingos Ramos, ela era muito grave e que já não teria salvação. Daí “o camarada Domingos Ramos dirigiu palavras de encorajamento aos seus companheiros de direcção do Partido, a todos os combatentes da nossa luta, dando assim mais uma grande prova de amor ao nosso povo, de dedicação sem limites ao nosso grande Partido e de certeza da vitória final da nossa luta” (p3).

Eis as duas páginas seguintes do documento atrás citado (3 e 4):






Prossegue com uma deliberação:

“tendo em conta os grandes serviços que o camarada Domingos Ramos prestou ao seu povo, à construção da nossa Pátria e ao desenvolvimento da nossa luta como militante e dirigente do nosso Partido, guardamos eternamente a memória do nosso camarada Domingos Ramos como a de um Herói Nacional. Por isso, a data de nascimento do nosso camarada Domingos Ramos será considerada uma data nacional, a sua fotografia será afixada em todos os lugares de trabalho do nosso Partido e construiremos um monumento à memória do camarada Domingos Ramos logo que a nossa terra seja independente” (p4).

Termina dizendo: “penso que as melhores palavras com que devo acabar esta mensagem são as que o camarada Domingos Ramos escreveu para mim, nos últimos momentos da sua vida (p. 5):


Fonte: Fundação Amílcar Cabral > Casa Comum > Arquivo Amílçcar Cabral (Com a devida vénia...)


Citação:
(1966), "Mensagem aos responsáveis e militantes do PAIGC e aos combatentes das Forças Armadas por ocasião da morte de Domingos Ramos", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_42298 (2016-10-31)

Pasta: 04602.044
Título: Mensagem aos responsáveis e militantes do PAIGC e aos combatentes das Forças Armadas por ocasião da morte de Domingos Ramos
Assunto: Mensagem dirigida aos responsáveis e militantes do PAIGC e aos combatentes das Forças Armadas, assinada por Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, por ocasião da morte do dirigente Domingos Ramos.
Data: Fevereiro de 1966 [Novembro de 1966]
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral - Iva Cabral



Estas palavas escritas, supostamente por Domingos Ramos, são mais uma ficção só possível no contexto da guerra. De facto, todos os testemunhos dos que dele estiveram mais próximo e o socorreram, caso do Ulises Estrada e do médico Virgílio Duverger, nada referem.

Qualquer um de nós que viveu um cenário semelhante [e eu sou um deles, mais do que uma vez] não aceita, como verdade, o que acima é descrito, por muitas e diferentes razões. Desde logo, do ponto de vista cognitivo, o ferido com a gravidade referenciada cai redondo no chão e a consciência vai-se [foi-se]. Mas, esquecendo este pormenor muito importante, vamos a questões práticas.

Aonde estava, e de quem eram: o bloco de notas e a esferográfica? Com tanto sangue, a existir papel, este estava limpinho com as mãos ensanguentadas? E a esferográfica escrevia no papel molhado? E quem guardou o papel escrito? Se o Ulises Estrada foi o primeiro a dar-lhe apoio, recorrendo a outro guerrilheiro para o transportar até junto do médico, aonde chegou já morto, como era possível escrever uma mensagem tão estruturada e sem gaffes de memória ou funcionais. Como a terá escrito: de pé, sentado ou deitado? E onde a escreveu: nos joelhos, no chão ou nas costas de alguém? A caligrafia utilizada: foi em minúsculas ou em maiúsculas? …

Eis algumas razões que me levam a concluir estarmos perante uma ficção que passou, durante muitos anos, por verdade… (***)

Obrigado pela atenção.

Um forte abraço de amizade com votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

24OUT2016.
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Notas do editor:


(*) Vd,. postes de:

12 de outubro de  2016 >  Guiné 63/74 - P16592: Notas de leitura (889): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte X: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger´[I]: viajando até Conacri com nomes falsos... (Jorge Araújo)


18 de outubro de  2016 > Guiné 63/74 - P16613: Notas de leitura (892): (D)o outro lado do combate: memórias de médicos cubanos (1966-1969) - Parte XI: O caso do médico militar, especialista em cirurgia cardiovascular, Virgílio Camacho Duverger [II]: Estava a 3 km de Madina do Boé, em 10 de novembro de 1966, quando o cmdt Domingos Ramos foi morto por um estilhaço de morteiro da CCAÇ 1416 (Jorge Araújo)


20 de setembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16506: (De)Caras (45): Médicos cubanos 'versus' comandante Mamadu Indjai (Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494, Xime-Mansambo, 1972/74)



(***) Último poste da série > 24 de outubor de 2016 > Guiné 63/74 - P16633: (De)caras (49). O 'embarazo' das esposas... O campeão de luta fula, Arfan Jau, do 4º pelotão, respondendo à moda do Porto à senhora do capitão, intrigada com a carecada que ele havia apanhado: 'Senhora, Arfan Jau cá tem cabelo, manga de fodido'... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

Guiné 63/74 - P16661: Memória dos lugares (350): Poucas terras fazem jus ao seu nome como Canquelifá, localidade guineense situada no seu extremo nordeste, e que em língua mandinga quer dizer "campo de batalha e de morte" (Cherno Baldé, Bissau)


Foto: © ex-Alf Mil Paiva Nunes e Bernardino da CCAV 2748, com a devida vénia



1. Comentário do nosso amigo Cherno Baldé, engenheiro na Guiné-Bissau, deixado no Poste 16656 a propósito da localidade de Canquelifá (*):


CANQUELIFÁ

Poucas terras fazem jus ao seu nome como esta terra guineense situada no seu extremo nordeste.

Em língua mandinga “Canquelefá” significa campo de batalha e de morte:

Can = campo/acampamento;
quele = batalha/guerra;
fá = morte/matança.

Não sei de quem era o acampamento, quem matou e/ou quem morreu, poderia até ser uma simples bravata dos Soninques animistas para assustar os invasores fulas ou os vizinhos Padjadincas do Bajar, ou outro grupo qualquer que se aproximava dos seus domínios, também eles conquistados em épocas passadas.

Território de transição histórica entre o norte da região sudanesa do Sahel [, Sara,]  e a zona da floresta húmida confinada à costa do Atlântico, esta região de Pachisse, Pakessi ou Paquisse com capital em Canquelifá foi, durante muito tempo e em diferentes épocas campo de batalha dos exércitos que invadiram o território da actual Guiné-Bissau e ponto de passagem entre o Senegal e o reino de Futa-Djalon.

Não admira por isso a (des)unidade étnica que se verifica na população local, dividida entre os temerários Camará, os argutos Djaló e os pacientes Sané, resultado da mais diversa mistura e uma autêntica babel linguística a começar pelos antiquíssimos Banhuns, Pajadinca, Cocoli até aos Fulas nas suas diferentes declinações, passando pela bonita, eloquente e musical língua Mandinga ou mandinkan.

Ao contrário de Ziguinchor, típica terra luso-tropical com cordão umbilical fortemente ligado à cultura e a tradição das praças guineenses, Canquelifá poderia passar para qualquer dos territórios vizinhos e não se notaria nenhuma diferença.

Após as constantes disputas entre os reinos vizinhos (Futa-Djalon com Alfa Yaya Djalo, Mussa Molo o rei de Firdu) e a cobiça das potências europeias presentes na zona, a delimitação franco-portuguesa de 1903 acabaria por incorporar o Pachisse na Guiné portuguesa, com a eliminação dos incómodos concorrentes locais que eram Mussa Molo e Alfa Yaya.

MARCAS DA PRESENÇA MILITAR DURANTE A GUERRA COLONIAL.

O acesso à localidade de Canquelifá é péssima, parece não ter sido reabilitada nos últimos 40 anos, em muitos sítios a estrada está cortada pela erosão das águas da chuva, mas ainda assim pode-se passar, sem pressas, com um veículo 4 x 4. O antigo quartel ou o celeiro de mancarra (os famosos celeiros de Albano Costa) está situado logo à entrada, onde são visíveis alguns sinais, símbolos da passagem da tropa metropolitana.

No lado direito do primeiro memorial estão grafados os nomes de mais de 5 companhias/batalhões, sendo difícil,  para um leigo, senão mesmo impossível, distinguir quem fundou e quem “canibalizou” o memorial.

Aqui vai a lista, sem ordem cronológica:
BCAÇ 1856; BCAV 1915; BCAÇ 2922; BCAÇ 2835;

No segundo memorial esta grafado o nome de uma companhia de caçadores, presumindo-se assim que seja a fundadora: CCAÇ 1623 e tem data (1966-68).

Um abraço amigo,
Cherno Baldé
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Nota do editor

(*) Vd. último poste da série de 24 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16635: Memória dos lugares (349): Canquelifá 2016 vista pelos ex-Alferes Milicianos da CCAV 2748 Paiva Nunes e Bernardino (Francisco Palma)

Guiné 63/74 - P16660: Notas de leitura (897): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2016:

Queridos amigo,
Tanto quanto sei, é a mais importante obra publicada este ano sobre a Guiné-Bissau por investigadores internacionais credenciados. Toby Green, do King's College de Londres, assume a homenagem a Patrick Chabal, um dos biógrafos de Amílcar Cabral, organizando um conjunto de valiosos ensaios onde a etnicidade, a fragilidade do Estado, as instituições coloniais e pós-coloniais, as manifestações de crise e o impacto do Narco-Estado e os riscos e ameaças que pendem nos países da sub-região. Os investigadores aceitaram este desafio da complexidade, na interseção do colonial com o pós-colonial e o resultado salta à vista: um documento poderoso, incontornável, sobre a Guiné-Bissau do nosso tempo.

Um abraço do
Mário


Guiné-Bissau: de Micro-Estado a Narco-Estado (1)

Beja Santos

"Guinea-Bissau, Micro-State to 'Narco-State'", por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016, é constituído por um acervo de estudos dedicados à memória de Patrick Chabal, falecido em Janeiro de 2014, e que idealizou até ao fim dos seus dias a organização desta obra com Toby Green. Obra constituída por três partes (fragilidades históricas; manifestações da crise e consequências políticas da crise) convocou nomes importantes da historiografia da Guiné-Bissau no plano internacional como Toby Green, Joshua B. Forrest, Philip J. Havik, entre outros. O livro inclui glossário e acrónimos, dados biográficos de personalidades influentes, sinopse de acontecimentos relevantes e biografia dos investigadores.

Toby Green contextualiza a natureza do trabalho, a natureza da sua instabilidade, as suas implicações no tráfico das drogas e a necessidade de estudar a Guiné-Bissau para compreender o país como um estado da África pós-colonial, com outras questões implicativas como seja a instabilidade da Guiné face às questões da segurança global e quais as condições necessárias para que a Guiné-Bissau encontre estabilidade. E lança algumas reflexões para se entender a especificidade do país: a singularidade do caso humano nas suas etnias e línguas e como se dispõe pelo território; o facto de durante muitos séculos o país ter sido um espaço para interações e cruzamentos culturais; a situação de que os navegadores portugueses aportaram à região quando os Mandingas do Mali eram um império e como a região veio a fazer parte da poderosa federação; a geografia do país concorreu para tornar os povos da região um refúgio seguro das incursões do império do Mali nomeadamente nos séculos XIII e XIV; uma multiplicidade de fatores concorreu para tornar estes povos hostis a um qualquer poder centralizador; a investigação permite encontrar linearidade endémica para cooperação étnica nas fases pré-colonial, colonial e pós-colonial.

O falhanço económico-financeiro guineense pós-independência convidou a que o país ficasse convidativo para o tráfico de drogas, mormente da Colômbia. A Guiné-Bissau tornou-se um ponto de chegada e distribuição, neste comércio se envolveram importantes figuras militares, políticos e distribuidores. Toby Green tece uma detalhada observação sobre a tragédia do Narco-Estado, não deixando, porém de recordar que o país tem ainda disponibilidade para soluções no quadro do desenvolvimento, do emprego e da criação de riqueza atendendo às potencialidades agrícolas, florestais e píscolas. Estamos agora na primeira parte, a dimensão da etnicidade histórica. As categoria étnicas do período pré-colonial estão hoje muito melhor identificadas e permitem apurar que esses povos foram manifestamente relutantes ao poder imperial, celebraram casamentos mistos e cooperaram até na criação de novas povoações, aceitando-se nas suas diferenças. O período colonial, até ao século XIX, não afetou a essência destas linhagens das comunidades rurais, o colono ou o negreiro contratavam a compra de escravos ou de mercadorias com um régulo, não faziam incursões para ocupar território; a situação agudiza-se com um comércio que se intensifica, com a chegada de um funcionalismo, a montagem de uma administração, a imposição de impostos, tudo contribuiu para que o alargamento de influência do poder colonial gerasse tumulto na ordem estabelecida, mas a identidade étnica manteve-se, os agricultores continuaram a agricultar e a vender livremente; a “pacificação”, a obra brutal de Teixeira Pinto modificou superficialmente as regras do jogo; um dos investigadores desta obra, Philip Havik, mostra claramente como os negócios da CUF através da Sociedade Ultramarina, Barbosa & Comandita e Casa Gouveia se processavam num certo enquadramento administrativo e havia as tensões dos preços mas os comerciantes também tinham a noção de que os agricultores podiam ir vender os seus bens no Casamansa ou na Guiné Francesa.

As comunidades rurais não só não esqueceram o legado de violência que acompanhou a pacificação como, após a independência, manifestaram relutância ao novo poder que rapidamente sentiram como uma extorsão nos preços, na ameaça de impostos, tudo isto acrescido do facto da etnia Balanta, o principal aliado de Amílcar Cabral, ter passado a sinónimo de repressor militar. O contexto é complexo nas suas envolventes: a rejeição cabo-verdiana pelos guineenses, estes sempre encarados com agentes da potência colonial, a permanente suspeita, durante a luta armada, que entendeu sobre os líderes cabo-verdianos do PAIGC. Nessas mesmas comunidades rurais a cooperação multissecular impediu conflitos religiosos, de uma parte etnias como os Felupes, os Balantas, os Bijagós e os Manjacos eram animistas e impermeáveis às regiões monoteístas, de outra parte os Fulas e os Mandingas e o seu proselitismo, aliás bem-sucedido, foram estendendo a sua influência e catequisando Beafadas, povos do Oio, entre outros. Mesmo durante o período colonial e até à luta armada as migrações processavam-se com grande tranquilidade e diálogo. No período pós-colonial, os líderes políticos promoveram os interesses da família e da etnia, tal o poder dos vínculos, esta atração da etnicidade acabou por concorrer para que o Estado fosse volátil.

Joshua Forrest analisa as instituições políticas dos períodos colonial e pós-colonial. Começa por observar que em muitos aspetos a Guiné Portuguesa tinha um modelo do governo típico, era muito semelhante ao de outras colónias: cordão umbilical com a metrópole; uma administração com profissionais preparados ou aprovados por Lisboa e que fundamentalmente se orientava para o desenvolvimento de infraestruturas que servissem para o aproveitamento dos recursos agrícolas para exportação, com esse mapa de estradas era mais fácil recolher os impostos para suportar a burocracia colonial. Contudo, a Guiné era um apêndice burocrático de Cabo Verde, daqui vinham os mais qualificados funcionários, até porque os metropolitanos temiam o clima inóspito. Foi este o Estado que herdou o PAIGC, não trazia quadros da altura, Bissau era uma tentação, tinha ruas alcatroadas e comércio, casas com água canalizada, um porto bem apetrechado, um aeroporto moderno, hospital, instalações adequadas para ali montar ministérios incipientes. Ninguém deu ouvidos às advertências de Cabral que propunha a regionalização e reduzir o significado de Bissau. Criou-se uma administração empolada e impreparada, desenvolveu-se o amiguismo, montaram-se negócios à volta da ajuda internacional, desviou-se de dinheiro para pagar os salários dos professores para satisfazer outras necessidades. Joshua Forrest explana sobre a política cultural, as Forças Armadas, os equívocos à volta da figura do Presidente, a ascensão dos militares ao poder, para concluir sobre a fragilidade do Estado, as disfunções da burocracia governamental e a anomia da própria justiça. A Guiné-Bissau nunca julgou em tribunal um só conspirador, um assassínio político, um ministro corrupto. Ninguém acredita nas leis do Estado.

A capa do livro é elucidativa da anomia, do equívoco e da desmemória a que está entregue a Guiné-Bissau: vemos a estátua de bronze de Amílcar Cabral jazente num camião militar onde está há mais de uma década.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de outubro de 2016 > Guiné 63/74 - P16650: Notas de leitura (896): “A Guerra da Guiné”, por António Trabulo com a colaboração de Leston Bandeira, Editorial Cristo Negro, 2014 (Mário Beja Santos)