domingo, 4 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2239: As Nossas Tropas - Quem foi quem (2): António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe (1968/73)

Lisboa > Belém > Forte do Bom Sucesso > Museu da Liga dos Combatentes > Poster Marechal António de Spínola, presidente da República entre 15 de Maio de 1974 e 28 de Setembro de 1974.


1. Nota(s) biográfica(s) recolhidas pelos editores do blogue e susceptíveis de serem aumentadas e melhoradas pelos restantes membros da nossa Tabanca Grande.O objectivo é termos aqui pequenas fichas de leitura sobre "quem foi  quem", nas Nossas Tropas, no TO da Guiné (1):


António Sebastião Ribeiro de Spinola (1910-1996)


- Nasceu a 11 de Abril de 1910, em Estremoz, no Alto Alentejo.

- Filho de António Sebastião de Spínola e de Maria Gabriela Alves Ribeiro de Spínola.

- Oriundo de uma família abastada: seu pai foi inspector-geral de Finanças e chefe de gabinete de Salazar no Ministério das Finanças.

- Em 1920, ingressa no Colégio Militar, em Lisboa, para fazer o ensino secundário que conclui em 1928.

- Em 1928, frequenta a Escola Politécnica de Lisboa.

- Casou, em 1932, com Maria Helena Martin Monteiro de Barros.

- Colocado inicialmente, em 1928, no Regimento de Cavalaria 4, irá exercer as funções de instrutor, durante seis anos, no Regimento de Cavalaria 7, a partir de 1933, já como alferes.

- Em 1939, exercerá as funções de ajudante-de-campo do comandante da GNR (Guarda Nacional Republicana), general Monteiro de Barros, seu sogro, e dará início à sua colaboração na Revista de Cavalaria de que é co-fundador.

- Em 1941, é integrado na missão de estudo do Exército português para uma visita à Escola de Carros de Combate do Exército alemão e à frente germano-russa.

- Em 1947, é nomeado para uma missão de estudo na Guarda Civil Espanhola, uma vez que exercia funções na Guarda Nacional Republicana.

- Em 1961, como tenente-coronel, desempenha as funções de 2ª comandante e comandante do Regimento de Lanceiros 2.

- Com o início da guerra em Angola oferece-se como voluntário e organiza o Grupo de Cavalaria 345.

- É colocado com a sua unidade, em Angola, em 1961, onde frequenta por curto período um curso de aperfeiçoamento operacional no Centro de Instrução Militar de Grafanil, em Luanda.

- A sua primeira missão é na região de Bessa Monteiro e mais tarde na região fronteiriça de São Salvador do Congo. Permanecerá em Angola até 1963.

- Em 1967, é nomeado 2.º comandante-geral da Guarda Nacional Republicana.

- Em 1968, é chamado para exercer as funções de governador e comandante-chefe das Forças Armadas da Guiné, cargos para que volta a ser nomeado em 1972, por recondução, mas que não aceita alegando falta de apoio do Governo Central.

- É carinhosamente conhecido, no TO da Guiné, por várias alcunhas: Homem Grande de Bissau, Calco Baldé, Aponta Bruno, etc. (2).

- Em Novembro de 1973, é convidado por Marcelo Caetano, numa tentativa de o colocar no regime, para ocupar a pasta de ministro do Ultramar, cargo que não aceita.

- A 17 de Janeiro de 1974, é nomeado para vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, por sugestão de Costa Gomes, cargo de que é demitido em Março, por se ter recusado a participar na manifestação de apoio ao Governo e à sua política.

- A 25 de Abril de 1974, como representante do MFA (Movimento das Forças Armadas), aceita do Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, a rendição do Governo, o que na prática significa uma transmissão de poderes.

- Com a instituição da Junta de Salvação Nacional, órgão que passou a deter as atribuições dos órgãos fundamentais do Estado, a que presidia, é escolhido pelos seus membros para o exercício das funções de Presidente da República.

- Ocupará a Presidência da República a 15 de Maio de 1974, cargo que irá exercer até 30 de Setembro de 1974, altura em que renuncia e é substituído pelo general Costa Gomes.

- Faleceu em Lisboa a 13 de Agosto de 1996.


PRINCIPAIS OBRAS PUBLICADAS

Por Uma Guiné Melhor (1970);
Linha de Acção (1971);
No Caminho do Futuro (1972);
Por Uma Portugalidade Renovada (1973);
Portugal e o Futuro (1974);
Ao Serviço de Portugal (1976).
País sem Rumo (1978).

O marechal António de Spínola ficará para a nossa história como o símbolo da transição dos regimes autoritários de Salazar e Caetano para a democracia pluralista, era a opinião do embaixador Nunes Barata que privou com ele de perto. Uma verdade que não deixa dúvidas.

Admirado por uns, odiado por outros, acabou por ser considerado um bom militar mas um mau político.

Homem do Exército, fez a maior parte do seu percurso militar durante a vigência do Estado Novo.

Começa a destacar-se em 1961, com o início da guerra em Angola, para onde se ofereceu como voluntário.

Em Angola, toma consciência de que para vencer a guerra de guerrilha a solução jamais poderia ser militar, mas sim política. Gradualmente faz sentir isto ao Governo.

É na Guiné, quando assume o seu governo, que faz essa pressão. A pouco e pouco vai advogando a ideia da constituição de uma federação que poderia ser aplicável aos territórios ultramarinos.

O seu livro
Portugal e o Futuro expressa bem essas ideias. Ideias de transição, já que não concebiam a concessão de uma independência total aos territórios ultramarinos.

Criado dentro dos cânones do regime, em que um dos pilares de sustentação era o império colonial, não conseguiu ultrapassar isto no seu todo.

As atitudes que vai tomando depois do 25 de Abril demonstram essa desadaptação. A sua demissão da Presidência da República após a tentativa falhada de golpe da chamada "maioria silenciosa", a 28 de Setembro de 1974, o seu envolvimento na tentativa de golpe militar de 11 de Março de 1975, são exemplos concretos.

É ainda um homem de transição quando aceita das mãos, de Marcelo Caetano a transmissão de poderes governativos. Uma situação similar à que já tinha sucedido por altura do golpe militar do 28 de Maio, quando um outro militar, Mendes Cabeçadas, aceita a mesma transmissão de poderes das mãos do Presidente Bernardino Machado. Embora não fosse um democrata de formação, colaborou, no entanto, para o início do processo democrático.

O importante papel que desempenhou é oficialmente reconhecido a 5 de Fevereiro de 1987, pelo então Presidente da República Mário Soares, ao empossá-lo como chanceler das Antigas Ordens Militares, e ao entregar-lhe as insígnias da Grã-Cruz da Ordem Militar da Torre e Espada, pelos "feitos de heroísmo militar e cívico e por ter sido símbolo da Revolução de Abril e o primeiro Presidente da República após a ditadura".


Fonte: Página Oficial da Presidência da República > Antigos Presidentes > António de Spínola

2. Comentário do editor do blogue, Luís Graça: Sobre o nosso Com-Chefe, escrevi o seguinte apontamento do no meu diário:

Excertos do Diário de um Tuga (L.G.)

Ponte do Rio Udunduma, 3 de Fevereiro de 1971:

De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de
Cães Grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivmente da Wermacht nazi.

Mas o que é que faz correr este
velho soldado, como ele próprio gosta de se chamar ? É difícil adivinhar-lhe a sua paixão secreta, o seu móbil, sob a sua impassibilidade de samurai (ou de figura de cera?): a mitomania, o culto da personalidade ou, hélàs!, a presidência da república ...

Há qualquer coisa de sinistro na sua voz de ventríloquo, no seu olhar vidrado ou no seu sorriso sardónico: talvez seja a superioridade olímpica do guerreiro.

Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus
nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba…

A visita-surpresa do
Deus-Todo-Poderoso foi o meu único monumento de glória em toda esta guerra… Ao fim de vinte meses!... Só quero regressar, são e salvo, a casa, daqui a um mês e, se possível, levar comigo a barba que deixei crescer… na Guiné, longe do Vietname.

Esta leitura de Spínola e da sua entourage está necessariamente datada e é fruto (amargo e amargurado) das circunstâncias. Confesso que não gostava do personagem, não só pelo seu currículo militar como sobretudo pelos seus tiques: quando escrevia sobre ele, no meu diário, tratava-o sempre por Herr Spínola.
Sendo antimilitarista (ou pelo menos julgando-me como tal), sobretudo não gostava de Cães Grandes, como eu chamava aos oficiais superiores que, naturalmente, não podiam ser todos metidos no mesmo saco. O coronel (?) que me deu a piçada pelo meu ar selvagem, terá sido porventura o do Agrupamento ou do COP de Bafatá. Creio que já não era o Hélio Felgas, era um seu substituto. O tenente-coronel Polidoro Monteiro, novo comandante do BART 2917, não era, de certeza... Mas para o caso não interessa: não lhe fixei nem o nome nem os galões... E a barba que usava no final da comissão, mais curtinha, veio comigo... e está comigo até hoje.

Como eu não convivi com os oficiais superiores dos batalhões a que esteve afecta a CCAÇ 12 (e eu conheci dois, o BCAÇ 8252 e o BART 2917) - contrariamente aos alferes milicianos que estavam em Bambadinca, sede do Sector L1 da Zona Leste, que partilhavam o mesmo espaço (o bar e a messe de oficiais, separado do bar e messe de sargentos, como mandava a etiqueta militar) - , também não estabeleci laços afectivos com nenhum eles, oficiais superiores. Contrariamente a outros camaradas de tertúlia que já aqui deram o seu testemunho: por exemplo, o Paulo Raposo, o Paulo Santiago, o Beja Santos ou, mais recentemente, o Torcato Mendonça.
(... ) Caco (ou Caco Baldé) era a a alcunha por que era mais conhecido o General Spínola entre os seus soldados. O termo queria referir-se ao vidrinho ou monóculo que ele usava... Baldé era um dos apelidos mais vulgares entre os fulas, entusiásticos (e desgraçados) aliados de Spínola...

O general também era popular na caserna dos soldados, pela sua imagem de pai justiceiro... Ele era capaz de aparecer de surpresa num aquartelamento nos momentos mais insólitos ou mais dramáticos... Reconheço que as punições de oficiais superiores, incompetentes e impreparados para aquela guerra, deram-lhe uma auréola de homem corajoso, impoluto, determinado, um exemplo de liderança militar que era coisa que os nossos oficiais superiores - a nível de batalhão, pelo menos - não sabiam nem podiam dar, na generalidade dos casos...

Recorde-se que António de Spínola assumira, ainda como brigadeiro, em meados de 1968, os cargos de governador e comandante-chefe das Forças Armadas portuguesas na província portuguesa da Guiné, com a difícil missão de evitar o desastre político-militar que se anunciava: uma derrota das NT na Guiné teria fortes repercussões (psicológicas, morais, militares, políticas...) nas jóias da coroa imperial, que eram Moçambique e sobretudo Angola.

Já general, e com ambições políticas, abandonou funções de governador e com-chefe em 8 de Agosto de 1973. Em 24 de Setembro, o PAIGC proclama unilateralmente a independência, em Madina do Boé, e a nova República Popular da Guiné-Bissau é reconhecida pela ONU em Novembro. Spínola foi substituído a 25 de Agosto pelo general Bettencourt Rodrigues. Pelo lado português, havia então mais de 40 mil homens em armas no território, que continuaram a lutar até ao fim, em condições cada vez mais duras e dramáticas...
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Nota dos editores:

(1) Vd. post de 23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2207: Tugas - Quem é quem (1): Vasco Lourenço, comandante da CCAÇ 2549 (1969/71) e capitão de Abril


(2) Sobre o nosso Com-Chefe, o General Spínola (1968-1973):

Vd. entre outros os seguintes posts:

30 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2231: Blogoterapia (34) : Os Ieros Jaus que trouxemos na nossa memória pisada (José Morais)


26 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2216: Os nossos vídeos (1): Feliz Natal e até ao meu regresso (Tino Neves)


10 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)


27 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2137: Antologia (62): Guileje, 22 de Maio de 1973: Coutinho e Lima, herói ou traidor ? (Eduardo Dâmaso / Luís Graça)


12 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2100: A Política da Guiné Melhor: os reordenamentos das populações (1) (A. Marques Lopes / António Pimentel)


19 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1857: Estórias cabralianas (24): O meu momento de glória (Jorge Cabral)


23 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço.


24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)


16 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1762: Tertúlia: Encontro de Pombal (15): Estórias do Caco Baldé (Spínola) (J.L. Vacas de Carvalho, J. Mexia Alves e outros)


25 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1461: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (30): Spínola, o Homem Grande de Bissau, em Missirá


6 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1407: Tertúlia: apresenta-se o Coronel de Cavalaria Carlos Ayala Botto, ajudante de campo do General Spínola




16 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXII: Aponta, Bruno! (ou outra alcunha do Spínola) (Zé Teixeira)


13 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXIV: Estórias cabralianas (6): SEXA o CACO em Missirá


3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça)


24 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCX: Oficial do Estado Maior do 'Caco'... por duas horas (João Tunes)


7 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVIII: Cartas que nunca foram postas no correio (1): Em Bissau, longe do Vietname (Luís Graça)


14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal


29 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIV: Recordações do 'Caco Baldé' no Xitole (David Guimarães)

Guiné 63/74 - P2238: O portal russo Pravda.ru fala do filme As Duas Faces da Guerra e cita o nosso blogue






1. Pela mão do A. Marques Lopes, chegou-nos ao conhecimento o texto As duas caras da guerra, publicado em 2 de Novembro último, pelo portal russo Pravda.ru (1). É um recensão crítica do filme de Diana Andringa e de Flora Gomes, As Duas Faces da Guerra. Faz uma simpática referência ao nosso blogue, Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Com a devida vénia, transcrevemos aqui o texto, do jornalista Alex Tarradellas.

2. Pravda.ru > 2.11.2007 > As duas caras da guerra (*)
por Alex Tarradellas (**)


A jornalista portuguesa Diana Andringa e um dos cineastas mais reconhecidos da Guiné-Bissau, Flora Gomes, decidiram fazer um documentário a quatro mãos e a duas vozes, que abordasse as duas caras da guerra colonial que confrontou o PAIGC (Partido Africano para a Independência da nGuiné-Bissau e Cabo Verde) com as tropas portuguesas, entre 1963 e 1974.

Diana Andringa apresentou o documentário durante o Festival Internacional de Cine Documental de Lisboa, lamentando a ausência de Flora Gomes, e enfatizando a necessidade de rever e recordar o cenário da guerra por muito que isso pese aos portugueses.

"As duas faces da guerra" (2) foi rodado durante seis semanas, nas quais os realizadores percorreram as regiões guineenses de Bissau, Mansoa, Geba, Bafatá e Guileje. Também viajaram para Cabo Verde e Lisboa. Tudo isso para recolher diversos testemunhos daqueles que viveram a guerra colonial, tanto militares portugueses, como militantes do PAIGC, ou simples moradores das povoações visitadas.

O facto de que cada realizador [puxar] a corda para um lado resulta no mais interessante da abordagem de um dos conflitos armados mais sangrentos, sofridos durante o colonialismo português. Prova disso é que o documentário está dedicado a Amílcar Cabral e a alguns soldados portugueses mortos em solo africano, cujos nomes Diana Andringa encontrou gravados numa pedra destruída, quando, em 1995, se deslocou à cidade de Geba como repórter de Público. De facto, esse achado foi o ponto de partida do trabalho.

A homenagem à figura de Amílcar Cabral é palpável ao longo do documentário. Longe de querer idolatrá-lo, os depoimentos definem a grande dimensão humana do revolucionário do PAIGC. Um guerrilheiro que, apesar de se encontrar no meio a um cruel conflito armado com tudo o que este acarreta, dizia sentir o povo português como algo de seu. É que, mais além da guerra, existia uma certa cumplicidade entre os dois lados.

Amílcar Cabral declarou, no início do conflito: "Não fazemos a guerra contra o povo português, mas sim contra o colonialismo". Essa ideia é chave para entender como muitos dos portugueses recrutados nas colónias estavam solidários com os movimentos revolucionários pela independência [o PAIGC, no caso de Guiné-Bissau e Cabo Verde, o MPLA (Movimento de Libertação de Angola) e a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique)].

Também não é uma casualidade o facto de que os militares que se levantaram contra o regime salazarista durante a revolução de 25 de Abril, conhecida como a Revolução dos Cravos, fossem soldados combatentes na Guiné-Bissau, cansados de receber da metrópole ordens alheias à realidade na qual se encontravam imersos. Por isso, as imagens que aparecem no documentário não nos deviam surpreender, como as de um militante do PAIGC [, Manecas dos Santos,] que, com a euforia do 25 de Abril, grita para uma massa exaltada: "Viva o PAIGC! Viva o 25 de Abril! Viva Portugal!".

A meio do filme, a esposa de Amílcar Cabral faz uma declaração que é importante para entender os propósitos do guerrilheiro. Ela declara que, se fosse possível, Amílcar teria trocado as armas pelos livros para fazer a revolução. Era um homem extraordinariamente culto, com um grande poder de convicção nas suas palavras. Um dos principais objectivos do revolucionário era formar a cultura dos guineenses e cabo-verdianos desde a raiz, com uma educação baseada na história, na geografia e nas tradições dessas nacionalidades, e não nas impostas por Portugal.

E resulta irónico e é arrepiante escutarmos as palavras de um militante do PAIGC [, em Guileje,] acerca do fim da guerra. O homem conta-nos, com toda a naturalidade, como, uma vez terminada a guerra, todos voltam a ser amigos, esquecendo-se das antigas desavenças. Como se a guerra fosse um simples jogo de xadrez, em que as peças não se podem mover sem a mão dos jogadores, mas em que os jogadores dispõem de suas peças sempre que querem e podem.

A 20 de Janeiro de 1973, Amílcar Cabral foi assassinado em Conakry. Alguns meses depois, a 24 de Setembro do mesmo ano, foi declarada a independência da Guiné-Bissau, embora não fosse reconhecida internacionalmente até a Revolução dos Cravos. Se Amílcar não tivesse sido assassinado e hoje se encontrasse no mundo dos vivos, talvez não estivesse tão orgulhoso do panorama em que se encontra mergulhado seu país.

Segundo dados da Understanding Children Work (UCW), no ano 2000, 54% das crianças menores de 14 anos trabalharam um mínimo de 28 horas na Guiné-Bissau. A taxa de alfabetização era próxima de 44,8% em 2005. Isso deve-se aos contínuos golpes de estado provocados (e as consequentes guerras civis) contra governos frágeis que, muitas vezes, se assemelham àquelas peças de xadrez, as quais, sem a presença dos jogadores, não se podem movimentar.

Enfim, esse documentário contribuirá para que os portugueses e guineenses revejam uma parte fragmentada de sua história. E, por muito que doam, talvez os debates ajudem a banalizar a guerra até o ponto de lhe retirar o sentido. Talvez sirvam para que, no futuro, as únicas minas semeadas nos campos, nas florestas e nos caminhos sejam os livros, a melhor arma para ganhar uma guerra.

"A destruição do fascismo em Portugal deverá ser obra do próprio povo português; a destruição do colonialismo português será obra de nossos próprios povos."

"As massas populares são portadoras de cultura, elas são a fonte da cultura e, ao mesmo tempo, a única entidade verdadeiramente capaz de preservar e de criar a cultura, de fazer história." Amílcar Cabral (3).

Para mais informações, ver o interessantíssimo blogue realizado por
portugueses, ex-combatentes na Guiné-Bissau:
http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/

© 1999-2006. «PRAVDA.Ru».
__________

(*) Tradução do espanhol para o português de Brasil de Omar L. de
Barros Filho (omar@viapolitica.com.br), editor de ViaPolítica e membro de
Tlaxcala, e revista para o português de Portugal por Rita Custódio.

(**) Alex Tarradellas é membro de Rebelión, Cubadebate e Tlaxcala, a
rede de tradutores pela diversidade linguística. E-mail:
Alex_tarradellas_gordo@hotmail.com

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Notas dos editores:

(1) Sobre o portal Pravda.ru:

“Pravda.ru é uma grande empresa de notícias e opinião, na Internet (...) Pravda.ru foi a primeira empresa na Runet (Internet russa) a editar notícias. Este trabalho começou em Outubro de 2000, em versão inglesa, e é actualmente a edição online mais popular, no que toca à frequência de citações e de renovação da informação. Tem versão em português e existem planos para publicar versões em chinês e árabe. A Pravda.ru tem uma reputação estável e sólida e mantém-se num ranking muito alto.

"É visitada mensalmente por 4 milhões de internautas e o número diário de pageviews é de 250 mil. A Pravda.ru compreende as seguintes edições: Pravda.ru - notícias e análise em russo; English.pravda.ru – em inglês; Port.pravda.ru- em português; Italian.pravda.ru – em italiano; Electorat.info – edição dedicada aos eleitores e às eleições a todos os níveis . Yoki.ru - edição especial de informação para jovens; Pravda.ru/foto/- uma fotogaleria exclusiva; Farc.ru - portal recreativo e informático; e Escover.ru - edição informática e analítica dedicada à ecologia.”

Versão portuguesa da PRAVDA.Ru. Contactos:

pravdaru@hotmail.com
luba_l@pravda-team.ru
porpost@pravda-team.ru

Endereço postal >

129010 Olimpyski Prospekt, 16/1
Business Center Olympic,
office 15
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Russia

Telefone > +7 495 564 80 22

(2) Vd. post de 20 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2197: A nossa Tabanca Grande e As Duas Faces da Guerra (4): Encontro tertuliano no hall da Culturgest na estreia do filme (Luís Graça)

(3) Vd. post de 30 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2142: PAIGC - Quem foi quem (1): Amílcar Cabral (1924-1973)

Guiné 63/74 - P2237: Questões politicamente (in)correctas (37): RTP: As baixas da guerra (Paulo Raposo)








Quadros e gráficos: © Paulo Raposo / Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados



1. Mensagem do Paulo Raposo, enviada em 19 de Outubro:


Assunto - Baixas durante os anos da Guerra

Olá, Luís!

No programa Prós e Contras também se debateu o número de baixas. Ninguém teve o cuidado de dizer exactamente quantas foram.

No total das três frents foram 8790, sendo 4452 em combate, 3279 por acidente e 1059 por doença (vd. Quadros 1 e 2).

Curioso notar, uma coisa é a noção que temos outra é a realidade. A Guiné que tem o pior clima é a província que teve menos mortos por doença (em números basolustos). Em combate o pior foi Moçambique (em números absolutos) e Angola foi a que teve mais mortos por acidentes. No entanto, porporcionalmente foi na Guiné que as baixas por combate foram maiores: mais de 60% dos militares que morreram na Guiné foi em combate (contra 40% em Angola e 55% em Moçambique) (Vd. Quadro 2 e Figura 1).

Disse-me em Bissau em 1969 um oficial do Estado Maior: Que o esforço de guerra na Guiné era igual ao de Moçambique e se este fosse transferido tínhamos a solução de África resolvida.

Com o tempo, cada vez mais ao de cima a ideia que alguém traiu, não permitindo que esta solução se resolvesse. A morte dos 3 Majores, que a Guiné era defensável (Costa Gomes), etc.

Recebe um abraço amigo do Paulo

Paulo Lage Raposo
Alf Mil Inf
BCAÇ 2852
CCAÇ 2405
Guiné 68/70
Tel 266898240
Herdade da Ameira
7050 Montemor O Novo

sábado, 3 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2236: Estórias avulsas (9): Um soldado que não queria sair do quartel (Albino Silva)




Albino Silva (1), ex-Soldado Maqueiro, CCS/BCAÇ 2845 (Teixeira Pinto, Jolmete, Olossato, Bissorã, 1968/70)





Foto 1> Teixeira Pinto> Enfermaria e Maternidade


Foto 2> Estrada Teixeira Pinto/Bachile> Ponte e Fortim


Foto 3> Jolmete> Tabancas


Um Soldado que não queria sair do Quartel

Desde a chegada do BCAÇ 2845 a Teixeira Pinto, 6 de Maio de 1968, que me dediquei ao meu serviço naquela Enfermaria onde se dava assistência a militares e civis.

Gostando da missão que me foi confiada, fazia serviço todos os dias por aqueles que o tinham que fazer, mesmo por escala, mas que não gostavam. Eu ficava por eles.

Por um lado gostava do que fazia, por outro não queria sair do Quartel para fora, mesmo com os camaradas a dizerem que era seguro andar naquela Vila. Mas eu não confiava naquela gente de cor diferente e até tinha motivo para isso.
Quando deixei a Escola, em 1958, fui para Angola onde trabalhei até ao dia 15 de Março de 1961, dia em que no Quitexe e arredores começaram as chacinas.

Fui obrigado a vir embora, aterrorizado pelos acontecimentos vividos e passei a desconfiar dos negros a partir daí. Por isso não estava nada interessado em sair do arame farpado para fora, nem tão pouco conhecer Teixeira Pinto, onde parecia não haver guerra.

O tempo ia passando e a 26 de Novembro, com 7 meses de Guiné, encontrava-me de guarda ao Quartel, no Posto 8 que era o da Enfermaria, quando às 9 horas da noite me apareceu o Capitão da minha Companhia (CCS), António Rodrigo Rodrigues Queirós, que me disse que eu ia sair de serviço, pois já vinha a caminho outro camarada para me render, já que no dia seguinte teria de ir com um GCOMB da CCAÇ 2313, também estacionada em Teixeira Pinto, para uma picagem de estrada e montar segurança a uma escolta para abastecer o Bachile.

Depois de sete meses sem sair do quartel, essa saída era para mim um obstáculo transformado em medo, que foi sendo dominado pelas palavras de coragem transmitidas pelos camaradas da CCAÇ 2313, habituados a andar no mato.

Lá fui nessa missão que durou 7 horas. Correu bem e regressei ao Quartel.


Foto 4> O Albino à frente da CCAÇ 2313


Mais tarde, no dia 5 de Dezembro de 1968, alguns camaradas vieram à Enfermaria e convenceram-me a sair para passear pela Vila com eles e até ir à Tabanca, o que eu fiz pela primeira vez. Era um dia em que havia menos tropa no Quartel, porque havia uma escolta para fazer a Jolmete, que envolvia sempre muitos efectivos.

Já com o dia no fim e depois de ter passado bons momentos com os civis, quando regressava ao Quartel, aconteceu o pior.

A escolta que o 3.º GCOMB da CCAÇ 2366 montou segurança durante 9 horas para abastecer Jolmete, terminou mal, pois foram emboscados quando regressavam, próximo do Pelundo, por um pequeno Grupo IN armados de LGF e armas automáticas ligeiras durante 15 minutos. Esse grupo, instalado na berma da estrada, logo no início da acção, atingiu uma AML Panhard que seguia na testa da coluna, com 2 tiros de LGF disparados por um elemento IN que saltou para a estrada, ficando imobilizada com os pneus do lado direito inutilizados, sendo o seu condutor ferido gravemente.

O referido grupo IN também fez fogo de morteiro 60, retirando perante a reação das NT pelo fogo e manobra, com baixas prováveis.

Devido à acção do IN as NT sofreram :

1 morto - 1.º Cabo N.º 10685867 - Manuel Campos Silva - CCAÇ 2366 que faleceu no HM 241 para onde foi evacuado.

Feridos evacuados para o HM241:

Soldado N.º 03642867 - Rui Borges Artilheiro - CCAÇ 2366
Soldado N.º 06513167 - José Pais da Costa - CCAÇ 1683
Soldado N.º 02710267 - David Mendes Rodrigues - 3.º PEL AML - EREC 2454
Soldado N.º 82065266 - Malan Djau - PEL CAÇ NAT 59
Soldado N.º 49/67 - Adulai Djau - Milícia - PEL MIL 127

Feridos não evacuados:

1.º Cabo N.º 05151564 - Manuel Gonçalves Cruz dos Santos - 3.º PEL AML - EREC 2454
1.º Cabo N.º 04746966 - Américo da Cruz Bernardo - CCAÇ 1683
Soldado N.º 03224867 - João José Ramalho Freire - CCS/BCAÇ 2845

Assim ficou bem marcada a minha primeira saída do Quartel.

Com estes acontecimentos fui obrigado a trabalhos extras na Enfermaria e bem desolado ia manifestando a minha raiva para aqueles que aos poucos iam matando a nossa juventude.

Albino Silva
Sold.Maq.
CCS/BCAÇ 2845

Fotos e texto: © Albino Silva (2007). Direitos reservados.

_____________________

Nota de CV:

(1) Vd. Post de 13 de Outubro de 2007> Guiné 63/74 - P2175: Tabanca Grande (36): Apresenta-se Albino Silva, ex-Soldado Maqueiro (CCS/BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, 1968/70)

Vd. Post de 26 de Outubro de 2007> Guiné 63/74 - P2217: Breve história do BCAÇ 2845, Teixeira Pinto, Jolmete, Olossato, Bissorã, 1968/70 (Albino Silva)

Vd. Post de 27 de Outubro de 2007> Guiné 63/74 - P2220: Louvores e Punições (4): Louvores atribuídos ao BCAÇ 2845 e às suas Companhias Operacionais (Albino Silva)

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2235: Maria Turra, a locutora do PAIGC, que faz(ia) parte do vosso imaginário, era(é) a Amélia Araújo (Diana Andringa)



Guiné > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 > Um dia de sonhos e de esperanças para os guineenses... E de alguma nostalgia para os últimos soldados do império colonial português...Um privilégio que poucos tiveram e que provavelmente poucos quereriam ter... É de imaginar o tipo de sentimentos, contraditórios, que terá assaltado, naquele momento, o nosso camarada Eduardo Magalhães Ribeiro a quem coube a difícl (para ele) tarefa de arriar, definitivamente, a bandeira verde-rubra...
Recorde que ele esteve em Mansôa, em 1974, na CCS do BCAÇ 4612/74 (o último batalhão que partiu para a Guiné e também o último que de lá saiu), participando, ali, na entrega do aquartelamento ao PAIGC e na simbólica entrega do território, que incluiu uma muito concorrida cerimónia do último arriar de bandeira nacional, com cerimónia oficial, na Guiné, e o hastear da primeira bandeira da Guiné-Bissau.
Estiveram presentes nessa cerimónia: do lado português, a CCS do BCAÇ 4612/74, comandada pelo Major Ramos de Campos; o comandante do mesmo batalhão, Coronel António C. Varino; e, pelo CEME do CTIG, o Ten Cor Fonseca Cabrinha; do lado do PAIGC, um grupo de combate, um grupo de pioneiros, Maria Cabral (viúva de Amílcar Cabral) e o comissário político Manuel Ndinga...
O nosso Eduardo, o pira de Mansoa - como ele próprio se intitula - ficou famoso pela sua foto a arriar a bandeira verde-rubra , em Mansoa, na presença da Maria Turra (sic), como era conhecida entre os tugas - com o sentido de humor, que é típico da caserna, mas com respeito e até carinho - a viúva do Amílcar Cabral... Afinal., houve para aqui de papéis e de personagens (1)...
Foto: © Eduardo Magalhães Ribeiro (2005). Direitos reservados

1. Mensagem da Diana Andringa, respondendo a dúvida nossa sobre a identidade da famosa Maria Turra que faz(ia) parte do imaginário dos soldados portugueses que estiveram no TO da Guiné... Para uns era a mulher e depois viúva do Amílcar Cabral; para mim, seria uma angolana que aparece no filme As Duas Faces da Guerra... Afinal, era (é) tão somente a Amélia Araújo, diz a Diana... (LG)


Ui, que confusão!

A Maria Turra era (é, porque está viva, em Cabo Verde) Amélia Araújo, natural de Angola, casada com o cabo-verdiano José Araújo, esse já falecido. No filme ouvimos a voz dela, em nova, a anunciar a emissão da Rádio Libertação e filmámo-la este ano, a ler, em estúdio, uma mensagem de Amílcar Cabral aos soldados portugueses.

A mulher do dr. Manuel Boal - outro natural de Angola - era Maria da Luz (Lilica) Boal, nascida em Tarrafal de Santiago. Essa sim, dirigiu a Escola Piloto em Conacri, trabalhou nos manuais escolares, etc. (2) Filmámo-la em casa, em Cabo Verde, tal como o marido.

Tanto os Araújo como os Boal estavam em Portugal em 1961 e fizeram parte do grupo que, nesse ano, fugiu de Portugal, com o apoio de oganizações protestantes, do qual muitos se foram juntar aos movimentos de libertação dos respectivos países. O dr. Boal começou por se juntar em Leopoldville ao MPLA para, mais tarde, quando este foi forçado a saír da cidade, ir ter com a mulher a Dakar e colaborar com o PAIGC.

Quanto ao dr. Mário Pádua - que desertou do Exército colonial em Angola e veio a ser médico do PAIGC, no Hospital de Ziguinchor, onde tratou o soldado Fragata - não sei se era casado na altura.

Entretanto, muito obrigada pela sua mensagem, Cardoso! Essas reacções - como as que houve na Guiné - compensam o trabalho e as dificuldades com que nos debatemos (3).
Saudações,

Diana

2. Comentário de L.G.: Obrigado, Diana... Como vês, estamos mesmo a precisar de ver o teu/nosso filme outra vez... Foi muita areia para a nossa... camioneta... Gostava muito de ter os contactos desses amigos que citas, para os convidar a escrever no nosso blogue e partilhar, connosco, as suas memórias... Infelizmente, há um défice enorme de depoimentos do "outro lado da barricada", dos guineenses, cabo-verdianos e portugueses que empunhavam a "bandêra de strela negro"... Muito gostaria que eles soubessem que este blogue também é deles... LG
________

Notas de L.G.:




Guiné 63/74 - P2234: RTP: A Guerra, série documental de Joaquim Furtado (5): Os bons, os maus e os vilões (Torcato Mendonça)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > CART 2339, Mansambo (1968/69) > Em tempo de guerra também se limpavam (as) armas...

Foto: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.

__________

1. Comentátio do editor Virgínio Briote:

Guerra do Ultramar, Guerra Colonial ou Guerra da Libertação? Foi a que nos saiu em sorte. Aos nossos avós calhou-lhes outra. E não é mau, arrisco para mim, que se volte a falar do assunto. Não nos resolve nada, claro. Ninguém nos tira os tempos que lá passámos, nem o que vivemos com eles estes anos todos. E, continuo a arriscar, se calhar para alguns de nós, melhor era não mexer mais no assunto.

O Torcato Mendonça passou ao teclado o que se lhe oferece dizer sobre o tema. Fá-lo à sua maneira, numa conversa muito íntima, fala com ele como só ele sabe, e permite que o ouçamos.
E escreve e fala por muitos de nós.


2. Texto do Torcato Mendonça:


Tenho escrito e fica no papel ou se passo "à tecla" arquivo. Prefiro ler os posts. Alguns de grande qualidade, focando o Tema Guerra Colonial.

Acabo de ver o terceiro episódio de A Guerra. Senti necessidade de ir á varanda apanhar o ar fresco que já se faz sentir por aqui. Não tenho querido tomar posição sobre esta onda de amostragem da guerra de África, do Ultramar ou Colonial.

Se pertenço à tertúlia sigo os onze, creio eu, princípios que são a base da nossa convivência. Contudo, correndo o risco de violar algum ou alguns desses princípios, assumo que pessoalmente é GUERRA COLONIAL, a designação de províncias ultramarinas foi mero acto legislativo, curiosamente O Acto COLONIAL de 1951.

Respeito quem defende outras posições, de forma honesta. Assistir a programas como os Prós e Contras ficamos desiludidos. Há pessoas a defenderem posições que não têm cabimento.
A Fátima C. Ferreira abordou mal, conduziu mal e o resultado foi o não esclarecimento. Lastimo mas, programas como aquele não servem Temas destes. Ponto!


O filme As Duas Faces de uma Guerra certamente não me irá desiludir. Conheço mal o trabalho do Flora Gomes (vi um ou dois filmes e li sobre ele) mas, do pouco que vi e do que li, gostei.

A Diana Andringa é diferente. Conheço e gosto do trabalho dela. Dá-me quase a certeza de que ao ver o filme vou senti-lo e vai mexer comigo.

Quanto ao que acabei de ver: A Guerra que já vai no terceiro episódio … nem sei como hei-de abordar…começou com imagens conhecidas, chocantes, a prenderem o espectador, mostrou como estava o Governo de Lisboa em matéria de informação e qual a politica seguida, continuou com a barbárie do lado da UPA e a repressão violenta da parte dos Colonos e militares sem preparação.

Merece reflexão, tem que ser tratado mais com a razão do que com o coração. Só assim se pode analisar. Ainda estou a quente e preciso arrefecer. Houve ali depoimentos de gente que conheci. Depois eu estive lá. Não podemos olhar para a guerra colonial e caracterizar os intervenientes numa de três categorias: os bons, os maus e os vilões.

O trabalho do J. Furtado, independente do choque desta apresentação, tem, no futuro ou mesmo já, um enorme valor se tratado como documento histórico. São milhares de imagens, depoimentos e análises de pessoas já desaparecidas. Têm que ter o devido tratamento para servirem todos os Povos intervenientes. Serenamente, feito por quem tem para isso a devida preparação.

Temos ainda a questão do ódio. Bem, não tolero a guerra, qualquer guerra, mas não tenho ódio. Aliás, é sentimento banido da minha maneira de encarar a vida. Não esqueço, não consigo perdoar certos acontecimentos da pós-independência colonial. Não concordo com a descolonização da forma que foi feita. Outro assunto a ficar para um dia. Ou este – descolonização ou desprovincianalização ou desultramarinização…Bá…

Meus Caros, arrefeceu-me mais a cabeça, fruto de paroles…paroles… aqui alinhadas… diferentes de outras, outrora declamadas pelo J. Cabral, o de Fá, Finete ou Missirá… e, com aquela poesia, certamente humanizou aqueles lugares.

Bons, maus e vilões… isso não é connosco.

Abraços,

Torcato Mendonça

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2233: PAIGC - Álbum fotográfico (1): Amílcar Cabral nas Nações Unidas em Outubro de 1972 (Luís Cabral / A. Marques Lopes)



Foto e legenda: Luís Cabral, Crónica da Libertação. Lisboa: O Jornal. 1984 (Imagem digitalizada pelo nosso camarada A. Marques Lopes ) (com a devida vénia ao autor e ao editor...).

O ano de 1972 foi um ano importantíssimo para Amílcar Cabral e para o reconhecimento internacional do PAIGC e da legitimidade da sua luta:

(i) Perante o Conselho de Segurança da ONU, reunido em Adis Abeba, Etiópia, Amílcar Cabral convida a Assembleia Geral das Nações UNidas, a enviar uma delegação às "regiões libertadas";

(ii) Em 4 de Fevereiro é tomada a Resolução nº 312, do Conselho de Segurança, sobre a situação dos territórios sob administração portuguesa;

(iii) De 4 a 8 de Abril, um grupo de diplomatas do Comité de Descolonização da ONU visitam as "regiões libertadas";

(iv) O fundador e líder histórico do PAIGC toma a palavra em nome do conjunto dos movimentos de libertação nacional, africanos, na Reunião Cimeira da OUA - Organização da Unidade Africana, realizada em Junho, em Rabat (Marrocos);

(v) Texto de Cabral ("O papel da cultura na luta pela independência") enviado à reunião de peritos da UNESCO, sobre "Raça, Identidade e Dignidade" (Paris, 3-7 de Julho).

(vi) En Setembro, Amílcar Cabral, encabeçando uma delegação do PAIGC, visita a China, a Coreia do Norte e o Japão:;

(vii) A 3 de Outubro, Cabral discursa perante o XXV Congresso do Partido Social-Democrata Sueco.

(viii) De Agosto a Outubro, decorreram eleições nas "regiões libertadas".

(ix) Em Outubro, em Nova Iorque, na IV Comissão da Assembleia Geral da ONU, Cabral toma a palavra na qualidade de observador das Nações Unidas;

(x) Resolução do Conselho de Segurança a reconhecer o PAIGC como o legítimo representante do povo guineense (1).

_________

Nota dos editores:

(1) Vd. post de 30 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2142: PAIGC - Quem foi quem (1): Amílcar Cabral (1924-1973)

Vd. também Fundação Mário Soares > Dossiê Amílcar Cabral > Cronobiografia de Amílcar Cabral, por Iva Cabral

Guiné 63/74 - P2232: PAIGC: O Nosso Livro da 2ª Classe (2): O Morés e os amigos da Europa do Norte (Luís Graça / Paulo Santiago)



Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > Uma escola numa "região libertada". Imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson (com a devida autorização do Nordic Africa Institute, Upsala, Suécia). A fotografia não traz legenda. Tudo indica que tenha sido tirada na Guiné-Conacri, numa base de rectaguarda do PAIGC, ou mesmo em Conacri, onde havia desde Março de 1965 uma escola-internato para os filhos dos guerrilheiros.

No interior, nas "regiões libertadas", não havia estruturas, escolas, hospitais ou outros equipamentos sociais, de pedra e cal... Pela simples razão, que eram um alvo fácil para a aviação portuguesa, e porque eram difíceis os caminhos que levavam às bases de rectaguarda, tanto no Senegal como na Guiné-Conacri. Além disso, sabemos que eram duríssimas as condições de vida tanto das populações controladas pelo PAIGC como pelos guerrilheiros... A propaganda para consumo externo, naturalmente, contava outra história... Tanto a propaganda do PAIGC como das autoridades portuguesas da época.


Fonte: Nordic Africa Institute / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)





Guiné > PAIGC > Novembro de 1970 > Uma escola de mato, algures numa "Região Libertada".

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)







Reprodução da Lição nº 8 - Morés, pp. 28-29.

Fotos: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados.

Um exemplar deste manual escolar do PAIGC, O Nosso Livro - 2ª Classe, foi-me enviado, pelo correio, pelo Paulo Santiago (ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho , 1970/72) (1). Estou à espera que ele me conte onde o encontrou: possivelmente no decurso de uma operação, num zona de controlo do PAIGC, no triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, junto ao Rio Corubal.

O livro foi elaboradao e editado pelos Serviços de Instrução do PAIGC - Regiões Libertadas da Guiné (sic). Tem o seguinte copyright: © 1970 PAIGC - Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde. Sede: Bissau (sic)...

Como já referimos (1), a primeira edição teve uma tiragem de 25 mil exemplares, tendo sido impresso em Upsala, Suécia, em 1970, por Tofters/Wretmans Boktryckeri AB.

Não é novidade para ninguém que a Suécia e a Holanda foram dois países europeus ocidentais que apoiaram muito o PAIGC, durante a guerra de guerrilha, não só politica e diplomaticamente, como em termos materiais (nomeadamente, no campo da educação e saúde).

A foto reproduzida acima foi tirada pelo fotógrafo norueguês Knut Andreasson que juntamente com uma delegação sueca (tendo à frente a antiga líder do parlamento sueco, Birgitta Dahl) visitou as "regiões libertadas" da Guiné-Bissau, em Novembro de 1970.

Segundo o sítio da Nordic Africa Institute (uma agência dos países nórdicos, com sede na Suécia), esta visita deu-lhe as a oportunidade de falar com Amílcar Cabral, em pleno palco da luta pela independência, e ficar a conhecer melhor o PAIGC, a guerrilha e a sua implantação no terreno. Andreasson e Dahl publicaram mais tarde um livro em sueco sobre essa viagem. Andreasson, por sua vez, realizou uma exposição fotográfica e publicou um álbum fotográfica sobre esta visita. A maior parte das fotos deste período foram doadas ao Nordic Africa Institute pela viúva de Andreasson.

A exposição foi doada à Fundação Amílcar Cabral pelo Nordic Africa Institute, sendo apresentada por Birgitta Dahl, a antiga líder do Parlamento Sueco, por ocasião das celebrações do 80º aniversário de Amílcar Cabral, em Setembro de 2004.

Retomando as imagens correspondentes à Lição nº 8 de O Nosso Livro - 2ª Classe, percebe-se a importância que o mítico Morés (2) teve na fundação na nacionalidade guineense, na formação ideológica e na motivação dos combatentes do PAIGC. Porquê o Morés e não Samba Silate ou o Poidon, na região do Xime ? Pela simples razão de que o Morés - uma aldeia a nordeste de Mansoa - ficava em pleno coração do Oio, o coração da resistência dos oincas contra o Capitão Diabo, Teixeira Pinto, que os massacrou em 1913.

O Morés, na memória e no imaginário dos povos do Oio, foi pois local de martírio e centro de resistência. Para os portugueses, era também um nome que se soletrava com um misto de admiração e de temor...

___________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 27 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2221: PAIGC: O Nosso Livro da 2ª Classe (1): Bandêra di Strela Negro (Luís Graça / Paulo Santiago)

(2) Vd. post de 4 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1920: PAIGC: O Nosso Primeiro Livro de Leitura (A. Marques Lopes / António Pimentel) (3): O mítico Morés

(3) Vd. post de 20 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1615: O Capitão Diabo, herói do Oio, João Teixeira Pinto (1876-1917) (A. Teixeira Pinto)

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2231: Blogoterapia (34) : Os Ieros Jaus que trouxemos na nossa memória pisada (José Morais)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Bambadinca- Mansambo - Xitole > 1969 > 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12, a que pertencia o Iero Jau, morto na Op Pato Rufia (Ponta do Inglês,/ Xime, Setembro de 1969) .

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Mensagem, com data de 19 de Setembro, de José Morais, um camarada do qual só sabemos que também andou por aquelas terras. Fica o nosso convite para se juntar a esta tertúlia ou Tabanca Grande. vb

fixação de texto: vb

__________


Assunto - Iero Jau

[Luís Graça]:


Numa deriva pela Net, por razões profissionais, fui parar ao seu blogue, onde acabo de ler o seu belíssimo texto/poema Descansa em paz, Iero Jau (1).

Não pude deixar de pensar, enquanto lia devagar, com tempo bastante para criar fugazmente dentro de mim a ilusão de recuperar o tempo (perdido), que todos nós, os que passámos por lá, trouxemos na nossa memória pisada o nosso Iero Jau...

Deixe-me também dar-lhe os parabéns pelo excelente blogue que criou e mantém.

É certamente um "lugar de [re] encontro" para muitos de nós, lugar de reflexão sobre a saga que nos coube viver de um século para o outro, entre continentes, nós que, pelo ADN que invoca, pertencemos, queiramos ou não, a este povo português...

Cordialmente,

José Morais
Assessor DGIDC NCI
213.934.603

PS - Adorei a sua «invenção» Herr Spínola!

__________

Nota do co-editor vb:

(1) Vd. post de 14 Outubro 2005. 10 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLII: A galeria dos meus heróis (2): Iero Jau (Luís Graça)


Descansa em paz, Iero Jau


Descansa em paz, Iero Jau


A guerra.
Essa coisa tão primordial que é a guerra.
Que estaria inscrita no teu ADN,
Segundo dizem os sociobiólogos.
A guerra é a continuação da evolução
Por outros meios,
Dirão os entomólogos,
Especialistas em insectos sociais,
Para quem a morte de um
Ou de um milhão
De formigas ou de seres humanos,
É-lhes totalmente indiferente.
Desde que triunfe o ADN,
Um projecto de ADN
Musculado.

Para mim, a guerra é
A aprendizagem da morte.
Aos vinte e dois anos.
É a inocência que se perde
Para sempre
Ao ver morrer pela primeira vez
Um homem, a teu lado.
É o impossível luto.
É a descoberta do mal absoluto.

Fight or flight.
Não precisei de fugir nem de lutar.
Recusei o egoísmo genético.
Recusei a lógica absurda
De matar ou morrer.
Recusei o cinismo.
Recusei a fria e calculista resignação
Com que se juntam e amortalham
Os cadáveres seguintes.
E se contam nas paredes da caserna
Os dias que faltam para a peluda.

Trinta e tal anos depois,
Venho dizer-te
As palavras que ninguém te disse
No teu grotesco enterro:
- Descansa em paz, Iero Jau,
Meu herói!
Soldado atirador
Do 2º Grupo de Combate
Da CCAÇ 2590
Que virá mais tarde a chamar-se
CCAÇ 12.
Companhia de tropa-macaca,
A minha companhia,
Os meus camaradas,
O meu bando de primatas sociais,
Territoriais, predadores.
Fazíamos parte da nova força africana
De Herr Spínola, o prussiano,
Como eu lhe chamava,
Ao nosso Comandante-Chefe.
Não, não ligues,
São outros contos, outras estórias,
Outros ajustes de contas
Com as nossas doridas memórias.

Dscansa em paz,
Iero Jau,
Debaixo do poilão secular
Na tua tabanca,
No chão fula,
Belíssimo poilão de uma triste tabanca fula,
Cercada de arame farpado,
Trincheiras e valas de abrigo.
Julgo que eras do regulado de Badora.
Ou seria Cossé,
Lá para os lados de Galomaro ?

Desculpa-me ter esquecido
O nome da tua tabanca.
E a cara dos teus filhos
E o rosto das tuas mulheres,
Agora órfãos e viúvas,
Sozinhos neste mundo.
Os teus campos estão tristes e inférteis.
Já não dão o milho painço nem o fundo,
Nem a mancarra
Nem a noz de cola.
Os homens partiram para guerra.
Voltam agora numa caixão de pinho.
Restam os macabros jagudis,
Poisados no alto da tua morança,
Cheirando a morte,
Pressagiando a desgraça

Sete de Setembro de 1969.
Região do Xime.
Operação Pato Rufia (2).
Morreste em linha.
Aprumado como o teu poilão.
No assalto a um aquartelamento temporário do IN,
Próximo da Ponta do Inglês.

IN ? Que estranho termo ou expressão…
Uso-o por força do hábito,
Por comodidade,
Por lassidão,
Por economia de análise.

Curioso, nunca soube a tua idade.
Não tinhas bilhete de identidade
De cidadão português.
Eras um fula preto, um fula forro,
Não creio que fosses futa-fula.
Mas eu levei-te a enterrar na tua aldeia,
Mais os teus camaradas,
Que foram dizer-te o último adeus.
Com honras militares, tiros de salva,
E a bandeira verde-rubra dos tugas
Por cima do teu caixão.
De pinho.
Do verde pinho de Portugal.
Nem isto te deixaram fazer
À maneira dos teus.

Portugal ? Ainda te lembras,
Os senhores que vieram do norte
E do lado mar.
Não, já não tens que saber de geografia.
Nem de história. Nem de geopolítica.
No sítio onde moras, debaixo do teu poilão.
Mas eu, mesmo ao fim destes anos todos,
Eu deveria saber o nome da tua aldeia,
No chão fula.
O teu nome, esse não esqueci,
Iero Jau.
Esqueci foi o lugar onde nasceste,
Talvez Sinchã ou Sare qualquer coisa,
Mas faz mal.

O que interessa é que chorei por ti,
Confesso que chorei por ti,
Que morreste a meu lado,
E que levavas um prisioneiro,
Teu irmão,
Pela mão.
E que não eras meu irmão.
Nem grande nem pequeno.
Nem tinhas a mesma cor de pele.
Nem a mesma religião.
Nem a mesma língua.
Nem a mesma pátria.
Nem o mesmo continente.
Não comias carne de porco
Nem bebias água de Lisboa.
Eras apenas um guinéu,
Um nharro,
Soldado-atirador
De 2ª classe.
Ganhavas 600 pesos de pré.
Um saco de arroz por mês
Para alimentar a tua família.
Para mim, eras apenas um homem,
Da espécie Homo Sapiens Sapiens.
A única que chegou até aos nossos dias.
O que primeiro que eu vi morrer a meu lado.
Nunca mais chorei por ninguém.
Chorei por ti, Iero Jau.
Chorei de raiva.

Nascemos meninos,
Mas fizeram-nos soldados.
Azar o meu e o teu,
Por termos nascido
No sítio errado,
No tempo errado.
Imagino-te puto
À volta da fogueira,
Na morança do marabu ou do cherno
Da tua tabanca,
Decorando o Corão.
Uma das cenas mais lindas
Que eu trouxe da tua terra,
E que eu guardo na minha memória,
São os meninos à volta da fogueira,
Soletrando tabuínhas em árabe.
Lembro-me de quereres aprender
As letras dos tugas
Para poderes ser soldado arvorado
E um dia chegares a cabo.

E de repente, o capim.
O capim alto.
O sangue.
O capim pisado e empapado de sangue.
Pobre Iero,
Morto por um dilagrama dos nossos.
Alguém branqueou a tua morte.
Alguém salvou a honra da companhia.
Um dilagrama rebentou no ar,
Na tua cara.
Acidente de serviço
No auge da batalha,
Quando avançavas em linha,
No assalto ao acampamento
Do IN,
Levando pela corda
O teu turra, o teu guia, o teu prisioneiro,
Ainda mais jovem do que tu.
Malan Mané, mandinga (3),
Tão crente como tu,
Tão observador dos preceitos corânicos
Como tu, meu querido nharro.

E agora, Iero,
Que foste poupado
À humilhação da derrota
E não viste o teu país
Sentar-se de pleno direito
À mesa do mundo...
Que farias tu com esta independência
Contra a qual lutaste
Sem querer,
Sem saber,
Sem poder ?

Onde estarão os teus filhos, e as tuas mulheres ?
E os teus netos ?
E os homens grandes da tua tabanca de Badora ?
E os líderes do teu povo
Que te obrigaram a combater ao lado dos tugas ?
Herr Spínola, o homem grande de Bissau,
Esse já morreu há uns anos atrás.
Não lês os jornais,
Não chegaste a aprender o alfabeto latino
E a juntar as letrinhas e ler,
Com a torre de Belém ao fundo:
- Esta é a minha pátria amada…
Pois é, o homem grande de Bissau morreu,
Não de morte matada, como a tua,
Mas de acordo com a lei natural das coisas.
Quanto ao teu régulo,
Devem-no tê-lo miseravelmente fuzilado
Na parada de Bambadinca,
O poderoso régulo de Badora,
Tenente de milícias,
Que havia trocado o cavalo branco
Da gesta heróica do Futa Djalon,
Por uma prosaica motorizada japonesa
De 50 centímetros cúbicos...
Dono de centenas cabeças de gado
E de uma harém de cinquenta mulheres,
Uma em cada aldeia de Badora…
Dizia-se que o puto Umaru
Era filho dele,
O Umaru e mais soldados da CCAÇ 12.

Hoje os heróis do passado sucumbem
Sob o peso das cruzes de guerra.
Ou pedem esmola nas ruas de Bissau,
Tal como os teus filhos e netos.
Ou morrem de desespero e insolação
Às portas do templo da deusa Europa,
Em Ceuta e em Melilla,
Em Lisboa ou em Paris.
Que voltas o mundo deu, meu soldado,
Desde esse dia já distante
Em que a tecnologia da guerra
Ou a lotaria do ADN
Te ceifou a vida.
Porquê tu, meu herói,
Três meses depois de jurares bandeira
E te comprometeres, por tua honra,
A defenderes uma pátria que não era tua,
Até à última gota do teu sangue ?

E do Malan Mané não tenho notícias,
Se é isso que queres saber,
Mas duvido que ele tenha sobrevivido
Aos graves ferimentos do dilagrama dos tugas.
E agora deixa-me dizer-te, amigo,
À laia de despedida:
Não sei se um dia
Ainda terei coragem de voltar
À tua terra, ao teu chão.
Mas se porventura o fizer,
Gostaria de perguntar pela tua aldeia,
E de procurar-te
E de ter tempo para conversar contigo,
Só tu e eu,
Debaixo do teu poilão.

Luís Graça

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(2) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12

(3) Vd. post de 9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

Guiné 63/74 - P2230: Questões politicamente (in)correctas (36): RTP: Homens como o Paulo Raposo e o Victor Junqueira não foram ouvidos (Rui Felício)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Fiofioli > Março de 1969 > Operação Lança Afiada. O Alf Mil Paulo Raposo, da CCAÇ 2405, junto a um dos helicópteros.



Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados




1. Mensagem , de 25 de Outubro, do Rui Felício que, juntamente com o Paulo Raposo, o Victor David e o Jorge Rijo, faz(ia) parte dos famosos baixinhos de Dulombi, os quatro alferes milicianos da CCAÇ 2405 (1)

Lisboa, 25 de Outubro de 2007

Meu Caro Luis Graça,


PREÂMBULO


Como sabes, de cada vez que te escrevo, conto pequenos episódios que se passaram durante a minha passagem pela Guiné, procurando fazê-lo numa linguagem e estilo despretenciosos, leves e o mais possível acessíveis à imediata compreensão (2).

Salvo uma ou outra excepção, tenho escolhido o lado picaresco e às vezes cómico dessas situações e não me canso de te agradecer a honra de publicação que lhe tens concedido. Porventura imerecidamente...mas que me desvanece.

Tal não significa que não esteja atento ao lado sério da guerra que levou a nossa geração a África e que indelevelmente a marcou até ao fim das nossas existências.

Mas tenho preferido não entrar no debate, às vezes polémico, que num ou noutro caso se acende em torno dos mais diversos temas relacionados com a origem, condução e termo dessa guerra.

O espaço do teu blogue, tão participado, activo e bem documentado, tem qualidades que não encontro noutros, de similares objectivos, e esse mérito a ti pertence, pelo sacrifício, trabalho e competência que com a sua organização e condução tens tido.


O PROGRAMA PRÓS E CONTRAS E O PAULO RAPOSO


Vem isto a propósito de, hoje, infringindo essa regra que a mim próprio me impus, te vir falar de assunto mais sério.

Tem a ver com a série do Joaquim Furtado e do Programa Prós e Contras que antecedeu a passagem na RTP do 1º episódio dessa série de documentários [A Guerra, argumento e realização de Joauqim Furtado].

Li nos dias seguintes alguns mails que o Paulo Raposo te enviou (2) e de que me deu conhecimento, tecendo comentários acerca do referido programa televisivo.

Julgo conhecer bem o Paulo Raposo a quem reconheço e garanto, entre muitas outras, duas excelentes qualidades que o caracterizam e se destacam na sua personalidade:

- Uma extrema simpatia e educação, com que fácil e rapidamente estabelece laços de amizade com quem se relaciona;

- Um conhecimento da história contemporânea e uma cultura geral acima da média, predicados que se preocupa em não exibir, o que bem demonstra o seu carácter. Só as pessoas que estão seguras do seu conhecimento resistem à tentação de, por mero exibicionismo, o evidenciarem...

Tenho procurado, sem êxito, no teu blogue, alguma referência a esses mails do Raposo.

Bem sei que os critérios de edição dos textos são da tua exclusiva competência. Nem de outro modo deveria ser.

Mas esperava vê-los divulgados porque as teses do Paulo Raposo neles defendidas revelam uma perspectiva diferente e interessante quanto às causas remotas da guerra e aos motivos e estranhas coincidências que aparentemente, e quem sabe propositadamente, terão originado o seu arrastamento durante vários anos, mantendo uma situação que desaguou na revolução de Abril de 1974.


UMA PERPSECTIVA DIFERENTE DA GUERRA

Foi nessa altura do 25 de Abril que os seus autores definiram e estabeleceram os argumentos “politicamente correctos” que ainda hoje, como no citado programa Prós e Contras, são defendidos a outrance exactamente por muitos daqueles que, por força da sua natureza de militares profissionais, maiores responsabilidades tiveram nesse arrastamento da guerra e na forma ignominiosa como lhe foi posto fim.

Que não se veja neste meu reparo qualquer intransigência na defesa de qualquer tese específica sobre a guerra de África, mas o que me custa aceitar é que nunca seja feito o confronto e o contraponto às teses correntes que é comum ouvir naquele tipo de programas.

Começa a angustiar que os intervenientes nestes debates sejam sempre os mesmos e conhecidos militares que a todo o preço pretendem convencer-nos da sua heroicidade, do seu profissionalismo ( ... foi ali dito por um militar de Abril: “ nós não perdemos a guerra”... ) da sua resistência política ao anterior regime, como se alguma má consciência os obrigue a constantemente se autoelogiarem.

Por tudo isto, considero que as teses explanadas pelo Paulo Raposo deveriam ser debatidas. Daí, certamente muita da luz que tem estado oculta pudesse vir iluminar as consciências...ou pelo menos dar-lhes uma perspectiva diferente e, quiçá, mais verdadeira das razões da guerra.

Não esquecerei nunca o que ouvi da boca do nosso camarada Junqueira que, no almoço da herdade da Ameira, afirmou com orgulho e sem qualquer preconceito aquilo que não se ouve nunca nestes debates televisivos.

Se bem te lembras, ele estava emigrado em França e de motu proprio regressou a Portugal para ser mobilizado para a guerra de África, porque esse era o seu dever (4)...

Bem poderia ele ter ficado em França e ter escapado a esse sacrifício, à semelhança de tantos que a ela fugiram e que agora têm o desplante de se considerarem heróis por terem tido essa coragem de fugir...

Mas o Junqueira era um homem de carácter.. E essa é a diferença... E quantos “Junqueiras” não haverá ?

No Prós e Contras não me lembro de ter sido convidado nenhum . Ou se o foi, não foi ouvido...

Desculpa a crescente azia que a minha escrita revela, mas fi-lo ao sabor do sentimento, sem reconsiderar nas palavras que fui deixando deslizar...

Um abraço do teu camarada e amigo

Rui Felício

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi (Rui Felício)

(2) As deliciosas e picarescas Estórias de Dulombi > vd. posts de:

30 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2073: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (8): O Fula, a galinha e o vestido

8 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1352: Estórias de Dulombi (7): Perigos vários, a divisa dos Baixinhos de Dulombi (Rui Felício)

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1217: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (6): Sinchã Lomá, o Spínola e o alferes que não era parvo de todo

18 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1085: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (5): O improvisado fato de banho do Alferes Parrot na piscina do QG

5 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1046: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (4): a portuguesíssima arte do desenrascanço

19 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXL: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (3): O dia em que o homem foi à lua

14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVII: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (2): O voo incandescente do Jagudi sobre Madina Xaquili

9 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXIX: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral

(3) Vd. post de 28 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2227: Questões politicamente (in)correctas (34): RTP: Guerra Colonial, do Ultramar, de Libertação ou de África ? (Paulo Raposo)


(4) Vd. post de 31 de Outubro de 2006> Guiné 63/74 - P1224: Blogue: não ao politicamente correcto (Vitor Junqueira)

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

Guiné 63/74 - P2229: Questões politicamente (in)correctas (35): RTP: o (im)possível debate sobre a guerra (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem recente do Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil - e grande fadista! - que, na Guiné (1971/73), pertenceu a três unidades: CART 3492 (Xitole), Pel Caç Nat 52 (Mato Cão / Rio Udunduma) e CCAÇ 15 (Mansoa). Caros Luís e Camaradas da Guiné:

Em 17 deste mês enviei o mail abaixo. Como não obtive qualquer resposta e o assunto me parece ser actual, fiquei na dúvida se o receberam.

Sei muito bem que nem todos os mails que enviamos são objecto de publicação e, seja qual for o critério dos editores, concordo à partida desde já com eles.

Sei que este assunto é polémico mas também sei que se não enfrentarmos as coisas que vivem nas nossas vidas, dificilmente alcançaremos a paz sobre o nosso passado.

Nós não fomos políticos, fomos apenas os soldados que foram chamados a combater pela sua Pátria, independentemente da razão ou não razão da mesma. Em todas as guerras há sempre diversas visões e a maior parte delas colidem umas com as outras. Para termos paz, pelo menos eu, não podemos atribuir virtudes só a um dos lados e o outro ser o condenado.

Por isso falo em termos militares, puramente militares, pois apenas vejo, (parece-me), grandes feitos de um lado, e defeitos do outro, ao qual eu pertencia.

É muito dificil explicar onde quero chegar, e sei, repito, que o assunto é polémico, mas não há dúvidas que falta essa análise sem vergonhas, nem sentimentos de culpa.
Estarei enganado? É possivel, mas a verdade é que sempre me incomodou dar certas coisas como adquiridas, por isso digo que se calhar ainda é cedo para uma análise desapaixonada deste ponto de vista.

Repito que nada disto implica com a condenação da guerra, (esta e qualquer outra), que ainda bem terminou e nunca devia ter acontecido.

Abraço amigo do

Joaquim Mexia Alves
Termas de Monte Real
Tel: +351 244 619 020 / fax: +351 244 619 029


2. Mernsagem de 17 de Outubro, enviada pelo Joaquim Mexias Alves:

Assunto: Prós e Contras

Caro Luís e Camaradas da Guiné:

Também assisti ao [programa] Prós e Contras, mas confesso que me começou a faltar a pachorra e fui-me deitar.

Como o Luís, também acho que aquele formato de programa, já não dá. Fico sempre com a impressão que o programa se podia chamar "Fátima e os seus convidados", pois a maior parte das vezes ela fala mais que os convidados e constantemente interrompe o discurso e linha de pensamento dos mesmos.

Bem esta é a minha apreciação, outros verão de modo diferente!

Quanto ao debate: Apesar de já ter passado muito tempo, provavelmente ainda é pouco, porque se nota que as paixões estão à flor da pele. Ou seja todo o debate está eivado de política e por isso mesmo muitas vezes carece de objectividade.

Claro que seria difícil falar de uma guerra destas sem falar da política ou do ponto de vista político, mas a guerra não se resume apenas à política.

Passaram a maior parte do tempo a discutir se a guerra era do ultramar, se colonial, se de libertação.Ora, abóbora, conforme o pensamento de cada um ela terá a designação que cada um lhe quer dar: (i) Do ultramar, porque uns acreditavam ou queriam acreditar servindo os seus interesses, que aqueles territórios eram parte integrante do "todo nacional"; (ii) Colonial por aqueles que viam ou queriam ver, servindo os seus interesses, aqueles territórios como colónias; (iii) De libertação por aqueles que, sendo desses países a fizeram, porque aqueles que sendo desses países os apoiaram, mas lembrando que alguns, sendo desses países, com ela não concordavam, e por isso não seria para eles de libertação.

Como foi chamada a guerra das Malvinas? Do ultramar pelos ingleses, colonial pelos argentinos, de libertação pela população, ou alguma população?

Não me parece que isso seja muito importante, pelo menos para mim não é.

Agora pode-se discutir esta guerra do ponto de vista político, do ponto de vista militar e do ponto de vista politico-militar.

Naquele debate parece-me ter-se discutido apenas do ponto de vista político e, como tal, deu em nada. Acaba por se ver e ouvir sempre os mesmos a dizerem as mesmas coisas, citando outros, mas sem grandes provas que eles o tenham dito, servindo-se de frases muitas vezes tiradas de contexto, etc, etc.

E os milicianos? E aqueles que não eram militares profissionais e oriundos de diversos pensares e vivências? O que pensam eles? Alguém viu? Alguém sabe? Alguém quer saber?

Afinal quem fez a guerra, na sua esmagadora maioria, foram os militares de carreira ou os milicianos?

Com isto não estou de modo nenhum a colocar de lado os militares profissionais, que os há e muitos, cheios de competência e dignidade, e que me orgulho de ter servido sob o seu comando.

Mas a verdade, e é a minha opinião, é que a maior parte tenta sempre demonstrar que a guerra estava perdida, e isso cheira-me muitas vezes a uma qualquer justificação!

Claro que a guerra estava perdida! Estava perdida politicamente, como qualquer guerra daquele tipo, e pelo desgaste e a pressão internacional, estaria também perdida militarmente, pois demorasse o tempo que demorasse acabaria na independência daqueles povos.

Mas agora, e era isso que gostava de ver debatido com verdade e sem paixões políticas e outras, verdadeiramente porque se diz que a guerra estava perdida militarmente na Guiné?

É uma afirmação permanente, com a qual eu não concordo, e até agora ninguém me demonstrou o contrário.

Com isto não quero dizer que não fico muito feliz com a independência da Guiné, (gostava de ver um país próspero e um povo feliz), mas sim que se pode analisar a situação, não por dois ou três lugares ou acontecimentos, mas pelo todo.

Vejamos a titulo de exemplo:

Estive de Dezembro de 1971 a Dezembro de 1973 na Guiné e durante esse tempo, que eu saiba, não houve nenhuma emboscada ou ataque a qualquer coluna na estrada Bambadinca/Xitole, ou Bambadinca/Bafatá, ou Xitole/Saltinho, ou, julgo eu, Bafatá/Gabu (Nova Lamego)

Não houve, que eu me lembre, qualquer ataque a barcos no Geba, entre o Xime e Bafatá.

Em Mansoa estávamos a abrir a estrada de Jugudul, (salvo o erro), Portogole e a mesma avançava, claro que com algumas acções de guerra, mas nada que a impedisse.

Montei várias vezes protecções a colunas na estrada entre Mansoa e Mansabá, na zona do Morés e as colunas passaram sem incidentes.

Isto são só alguns exemplos que logicamente não retratam também o que se passava em toda a Guiné, mas parece-me que os trágicos episódios de Gadamael, Guileje e Guidage acabaram por determinar essa informação que a Guerra estava perdida militarmente.

Em muitas guerras, em muitos lugares, ao longo da história do mundo, se perderam algumas praças, mas não se perdeu a guerra.

Em Angola a guerra estava perfeitamente controlada e isto penso que é opinião geral. Em 74 e 75 fiz milhares de quilómetros no interior de Angola e nem um pequeno incidente aconteceu. Assim o esforço militar que se estava a fazer em Angola, podia ser desviado em parte para a Guiné, mormente Força Aérea com outras capacidades, o que poderia mudar muita coisa na Guiné.

Com isto não estou a dizer que queria que a guerra continuasse! Não, nem tal me passa pela cabeça, ainda bem que acabou, para todos nós, Guineenses e Portugueses!

Apenas quero dizer que, na minha opinião, a guerra militarmente não estava perdida, ou pelo menos ainda não mo conseguiram demonstrar.

Sei que esta é uma abordagem polémica, e que a análise que aqui faço, (se é que se pode chamar análise a este arrazoado de ideias), não demonstra coisa nenhuma, mas talvez suscite discussão sã sobre os méritos ou deméritos das Forças Armadas Portuguesas, às quais pertencemos, embora alguns dos seus elementos nos queiram esquecer.

Agora, Luís, deixo-te isto escrito para fazeres o que quiseres, no sentido de que só com serenidade, com distância política e emocional é possível fazer uma verdadeira discussão e análise ao que foi a Guerra da Guiné.

Eu sinceramente não sei se tenho essa distância, sobretudo emocional, para me abalançar à discussão. Mas se não formos nós que estivemos no terreno, quem o fará?

Abraço forte do camarigo [camarada e amigo]
Joaquim Mexia Alves

PS - Ah, não revejo o texto, não me apetece, e se calhar se o revir já não o mando.
Perdoem-me também qualquer imprecisão de tempos e lugares, mas a memória já não é o que era.


3. Comentário de L.G.:

O direito à palavra é a regra de ouro da nossa tertúlia! Obrigado, Joaquim, e desculpa o atraso. Deixa-me só dizer-te duas ou três palavras, de amizade e de camaradagem:

(i) Percebo o teu desconforto: como é que vais justificar os três anos da tua vida numa tropa, "tão comprida e tão cumprida", como a tua, como a minha, como a nossa, que até meteu uma guerra pelo meio...

(ii) Concordo contigo: um debate a preto e branco sobre essa guerra só pode levar ao seu enviesamento e emprobrecimento... Debates como os do Prós e Contras são uma armadilha letal, são um espectáculo deprimente... Eu recuso-me, não os vejo, não sou masoquista, não sou maniqueísta...

(iii) Resta-nos fazer as pazes connosco próprios, encontrando entre os velhos camaradas, o maior denominador comum, que são as nossas (contraditórias mas não necessariamente antagónicas) vivências...

(iv) Não escondemos - a generalidade de nós, milicianos e soldados do contingente geral - que partimos com a morte na alma... Parafraseando a letra do teu belíssimo fado da Guiné: Lembras-te bem daquele dia / Enquanto o barco partia / E tu morrias no cais // Braço dado com a morte / Enfrentavas tua sorte / Abafando os teus ais... Impossível esquecer a tua condição de português, mas também acreditando no futuro e na história: Que o suor do teu valor / Que vai abafando a dor / Que te faz manter de pé, // Seja massa e fermento / Desse nobre sentimento / Que nutres pela Guiné.