e os dias da
Batalha de Guidaje
Parte V
Daniel de Matos
Os Dias da Batalha
19 de Maio
De madrugada, depois de breve paragem em Bigene, de onde sairam por volta da meia-noite, os comandos africanos alcançam os caminhos de Koumbamory e aguardam pelo ataque aéreo e em força dos Fiat G91, cujo bombardeamento à base, por volta das oito horas e vinte minutos, consegue destruir paióis do PAIGC. A operação nem começa mal, pois sabe-se que a base IN se situa algures naquela região, mas a sua localização exacta é desconhecida. Nós, na aldeia de Guidaje, os que conhecemos mal os azimutes do terreno, ouvimos rebentamentos sobre rebentamentos e de início pensámos ser Bigene a “embrulhar”. A antiga sede do COP3 fica longe, a dezanove quilómetros, e as bernardas rebentam à margem do Cacheu. As bernardas que ali rebentam ouvem-se muito longinquamente, desde que o vento sopre de feição. Afinal, quem desta vez embrulha mesmo são as forças IN!
Tropas portuguesas a entrar em território estrangeiro não estaria muito de acordo com as normas do Direito Internacional, nem mesmo invocando o muito controverso “direito de perseguição”. Militarmente, se os acessos a Guidaje estavam vedados por todos os lados menos pela linha de fronteira (norte), tinha toda a lógica esta incursão à retaguarda do IN. Dir-se-á que também o PAIGC tinha as bases do outro lado, mas aos olhos do Mundo (entenda-se, das Nações Unidas) trata-se de um movimento de guerrilha e não de um Estado soberano (pelo menos até 24 de Setembro de 1973, em que a proclamação de independência em Madina do Boé viria a ser reconhecida internacionalmente, de imediato, por 86 países, não apenas os aliados mais tradicionais do PAIGC, como os países socialistas, africanos, a China e até europeus, – casos da Suécia e da vizinha Noruega, cujo governo aprovou um subsídio solidário à guerrilha em 27 de Março de 1973, – mas em especial os países “não alinhados”. E ter bases em território estrangeiro, não é a mesma coisa do que desferir ataques a partir das mesmas, embora por vezes déssemos conta disso mesmo. O isolamento de Portugal era tão grande no Mundo que os líderes da guerrilha na Guiné, Angola e Moçambique haviam sido recebidos no Vaticano, em Junho de 1970, pelo Papa Paulo VI, o mesmo que três anos antes viera a Fátima e se recusara a aterrar em Lisboa para não participar em cerimónias oficiais ao lado de governantes da ditadura, preferindo aterrar em Monte Real. Em Roma, realizava-se nesses dias (27 a 29 de Junho) a Conferência Internacional de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas. A delegação que Paulo VI recebeu era composta pelo angolano Agostinho Neto, o moçambicano Marcelino dos Santos e o guineense/cabo-verdiano Amílcar Cabral. Este foi o porta-voz que, entre outras coisas, disse: “pedimos a Sua Santidade que interceda junto do Governo de Portugal para que respeite as leis internacionais e a posição da Igreja definida na Encíclica ‘Populorum Progressio’ para que os colonialistas portugueses, que se afirmam católicos, cessem os massacres das nossas populações, principalmente dos velhos, mulheres e crianças”. O Papa respondeu, “estamos do lado daqueles que sofrem”, “somos pela Paz, a liberdade e a independência de todos os povos, em especial, dos africanos”. Tudo isto à revelia da hierarquia da igreja católica portuguesa, que muito maioritariamente (não foi só o cardeal Cerejeira, longe disso), sempre se evidenciou servil ao poder, raras vezes se demarcou da ideologia e das atrocidades da ditadura, quer em Portugal quer nas colónias. Talvez seja essa a principal razão porque muitos da minha geração saíram agnósticos, – termo adocicado para não dizer ateu… E pensarmos, muitos de nós, que o “argumento” da defesa do colonialismo é o de espalhar a fé e a “civilização cristã”!? Para o ilustrar, recordemos um excerto de uma mensagem do Presidente da República, general Óscar Carmona, no V Centenário do Descobrimento da Guiné: “quinhentos anos de presença nessa região representam uma sobre-humana soma de esforços despendidos, primeiro, no reconhecimento da costa, depois na penetração no Continente, no comércio e na evangelização; por fim, na ocupação e pacificação, abrindo ao trânsito seguro de todos os homens os caminhos do mato e levando à população indígena as luzes da cultura europeia e cristã” (sublinhados meus). Palavras para quê!?
Numa curta flagelação morre num abrigo subterrâneo, vítima de granada perfurante, um soldado da CCaç 19 que ali tinha sido posto já muito desalentado, crivado com estilhaços de uma morteirada que o atingiu dias antes, quando ia a atravessar a parada.
Passa das nove quando os Comandos (o agrupamento Bombox na frente) efectuam o assalto, – como se fosse um golpe-de-mão, – provocando o primeiro contacto com o PAIGC, logrando destruir grande quantidade de material e provocar baixas importantes. Os combates duram a manhã inteira, numa verdadeira batalha com explosões incessantes de granadas-de-mão, tiros e rajadas de todo o calibre. A certa altura têm de se retirar, também em consequência da reacção do IN que, de surpresa, investe com blindados que nem disparos de bazuca conseguem destruir. A retirada é penosa, têm de transportar dez corpos de camaradas abatidos e progredir no terreno com mais de uma vintena de feridos graves. Perdem três camaradas pelo caminho. No termo do dia o batalhão de Comandos chega ordenadamente a território português e recolhe-se em Guidaje, tal como estava programado.
As baixas causadas ao IN foram em número bem superior, estimando-se em 67 mortos (entre os quais se contariam uma médica e um cirurgião cubanos e quatro mauritanos), e um incontável número de feridos. Quanto ao material destruído: vinte e dois depósitos de material de guerra, duas metralhadoras anti-aéreas, cinquenta mil munições de armas ligeiras, cento e doze costureirinhas (pistolas PPSH), quinhentas e sessenta granadas-de-mão, quatrocentas minas antipessoal, trezentas espingardas Kalashnikov, vinte e uma rampas de Foguetes 122, onze Morteiros 82 e mil e cem granadas para os mesmos, cem Morteiros 60, cento e trinta e oito RPG-7 e quatrocentos e cinquenta RPG-2.
A base de Koumbamory ainda recentemente recebera seis dezenas de combatentes recém-formados na Argélia e em Cuba e era confirmadamente o ponto principal de abastecimento aonde os guerrilheiros se iam municiar. Veremos, doravante, até que ponto este rombo causado pela investida dos comandos fará diminuir a sua importância.
O PAIGC possui outras bases de reabastecimento no país do paladino da teoria da negritude Léopold Senghor (em parceria com o também poeta martiniquense Aimé Césaire), como a localizada em Zinguinchor, a dez quilómetros da fronteira, mas mais para o litoral, e onde ainda se fala fundamentalmente o crioulo “português” e são frequentes apelidos como Barbosa, Silva, Fonseca… A cidade é a capital de Casamance, território que outrora foi pertença da Guiné Portuguesa e que se estende até ao mar e a todo o comprido da língua da Gâmbia. Na sequência da Conferência de Berlim, em que as potências coloniais ditaram entre si a partilha de África, – com as sangrentas consequências que não se sabe se encontrarão solução nem ao longo do século XXI, – essa região guineense foi trocada com a França por uma parcela do sul (zona de Cacine), a 13 de Maio de 1886. Casamance, graças às margens do rio com o mesmo nome, produz grandes quantidades de arroz, e não só, sendo considerada o celeiro do Senegal, zona agrícola e de potencial turístico, cujo território para norte se vai tornando cada vez mais árido devido à progressão do deserto do Sahel. Graças à troca, a França reconheceria a Portugal o “direito” de exercer a sua influência nos territórios do chamado Mapa Cor-de-Rosa, (a ambição dos colonialistas portugueses de então, de unir Angola a Moçambique, de costa a costa do continente negro). Bastou aos dois estados uma simples reunião a nível de embaixadores para efectuar o negócio! Falar português à volta de Zinguinchor é um acto de resistência. Ainda hoje, à beira de trinta e sete anos sobre a proclamação da independência da Guiné-Bissau, o povo de Casamanse (“Casa di Mansa”, em crioulo), étnica, social e culturalmente mais próxima de guineenses do que de senegaleses, luta pela autonomia, havendo também quem sustente a ideia da reintegração no território da Guiné-Bissau; e ainda hoje a Guiné-Bissau e o Senegal se dirimem em fóruns e tribunais internacionais pela posse do território, se bem que por razões bem mais interesseiras: veio a descobrir-se no respectivo solo a existência de bauxites e de outras riquezas capazes de reduzir a pobreza e a falta de recursos de ambos os países, e até nas águas territoriais, – que se alteraram em resultado da troca, mas cuja delimitação as antigas potências nunca chegaram a definir com clareza, – há “garantias” da existência de reservas de petróleo. E é aí que entram em jogo interesses como os dos franceses, que no Senegal se opõem ao direito do povo de Casamanse à autodeterminação e à independência, mas que fazem precisamente o oposto em Angola, através de “lobbies”, manobras e financiamentos, – atribuídos, nomeadamente, à ELF Aquitaine, – no que concerne ao incentivo aos separatistas no enclave de Cabinda (aonde, por mera coincidência, há petróleo a jorros)… Ora, esta “consanguinidade” entre as populações do norte da Guiné e do sul do Senegal cimenta laços fortes e mesmo familiares entre povos de idênticas etnias, hábitos e costumes (balantas, mancanhas, felupes (diolas), manjacos e mesmo fulas e mandingas). Nestes anos de guerra imensos refugiados instalaram-se em Casamanse com o apoio dos residentes locais. Ao contrário, o presidente Senghor, teme o que possa acontecer, pois falhado o projecto “Senegâmbia” (anexação da Gâmbia pelo Senegal) quer manter o país com as fronteiras actuais. Com efeito, Casamanse nunca foi integrada legalmente e nem desde a independência senegalesa em 1960 reconhece a soberania de Dakar. Estamos em 1973 e neste momento vigora um acordo de coabitação por um período de 20 anos, só que em conflito permanente. Não espanta que o PAIGC se movimente tão bem na região… Porém, nem sempre foi assim. A linha política de Senghor simboliza uma aposta de alguma social-democracia europeia para África (da própria “Internacional Socialista”, já que o seu modelo é único no continente, permite eleições periódicas, embora a democracia seja limitada, pois partidos que cheirem a marxismo são excluídos de nelas participar, como o PAI do actual presidente Abdulai Wade)! A grande questão é que ao longo dos anos o Senegal nunca evoluiu nem resolveu melhor os problemas da fome e do subdesenvolvimento do que qualquer outro regime em África que não estivesse em guerra interna ou externamente. Ora, além de Zinguinhor o PAIGC tem as bases de Yeran e Kolda que, por via rodoviária, rapidamente dão apoio às forças que no terreno fazem a vida negra a Bigene e Guidaje, pelo menos... Mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo os apoios de Senghor ao PAIGC foram tímidos. Outrora, o presidente do Senegal via com mais simpatia a chamada FLING, movimento impulsionado por ele próprio com o beneplácito do sistema colonial português, cuja fundação visou dividir os “independentistas”, aproveitando ter à frente um par de ambiciosos intelectuais que se manifestavam claramente contra Amílcar Cabral. Senghor temia que um novo país liderado por Cabral se aliasse militarmente ao de Sekou Touré (Conakry) e juntos consumassem uma ideia antiga do lado francófono, de criar uma grande Guiné, potência regional. Mas o correr do tempo desmentiu tal propósito. Também lhe fazia confusão a diversidade de apoios que o PAIGC tinha no Globo inteiro, da China aos países socialistas e africanos, passando por muitas forças progressistas europeias e sul-americanas. Apesar de tudo há muito que o PAIGC tinha sede em Dakar (Rue Félix Faure) e neste período havia adquirido novos edifícios no centro da cidade para ampliar a sua representação. As mais recentes tentativas de diálogo entre Senghor e Spínola, para eventualmente patrocinarem uma solução política do tipo neo-colonial, fracassaram devido à liminar recusa de Marcelo Caetano, que preferia uma derrota militar a um entendimento com os “terroristas”. O radicalismo do ditador contribui para que Senghor abra, noutros moldes, as portas à actividade dos guerrilheiros no território senegalês. As pressões internacionais (ONU, OUA, Organização dos Países Não-Alinhados, etc.), e também a clarificação das dúvidas que Senghor tinha em relação à sua política futura quanto a uma eventual tentativa de anexação de Casamance, ou um entendimento sobre esta matéria, o terão feito mudar de ideias. Foi elaborado um protocolo de acordo quanto ao estacionamento e transporte de armamentos no território. No entanto, o que está demonstrado é que houve quase sempre colaboração entre militares do Senegal e a tropa portuguesa. Alguns exemplos: o comandante do destacamento do exército senegalês em Nianao contribuía para a normalidade da situação militar em Pirada; o comandante de Setikénie jurava a pés juntos que pelo seu território os guerrilheiros nunca passariam para atacar a Guiné (Cambaju); e o comandante da CCaç 4147 (Sare Bacar) escrevia à PIDE a enaltecer o papel do agente Raul Alfredo Silva “nas relações estabelecidas com as autoridades do Senegal” (bla bla bla).
Nesse mesmo dia os dois pelotões da CCaç 3518, mais os militares da companhia africana e o grupo de milícias de Jumbembém, que connosco chegaram no dia 15, organizamos uma tentativa de regresso “a casa”. Na frente, na cola dos picadores, segue também pessoal dos DFE-3 e DFE-4. À partida, a escolha da data não poderia ser melhor, julgamos que as forças da guerrilha estão prioritariamente envolvidas na defesa de Koumbamory. Puro engano: arcámos com uma emboscada violentíssima ao alcançarmos a fatídica casa amarela no Cufeu, onde diversos combates se tinham travado desde a primeira semana do mês. O campo de minas alargou-se e diversas foram accionadas, até por membros da população que, querendo fugir ao inferno que se vivia também na tabanca de Guidaje, se tinham agarrado às viaturas, forçando a boleia, para irem procurar refúgio em Binta, Farim, ou o mais longe possível.
Quando a emboscada rebentou, uma “roquetada” lateral cortou ramos da árvore sob a qual me abrigava e que me caíram nos ombros. Assustei-me, olhei para o lado de onde veio o disparo e precipitei-me a disparar às cegas, desperdiçando mais de meio carregador de munições. Outras ogivas de lança-granadas foguete RPG vieram da frente da coluna, gemidos sibilantes que pareciam passar à tangente das nossas cabeças e troar pela estrada fora, não dava para ver aonde. A essas não podia responder, sob pena de pôr em risco o físico de outros camaradas, na linha de fogo. De súbito, dou com uma jovem mulher a saltar da MG estacionada à força trinta metros à minha frente, desatar a correr e pisar de seguida uma mina, dando um pinote tremendo e vindo estatelar-se não muito afastada do local onde me encontro. Ali ficou, imóvel, olhos em pânico, mas sem visíveis ferimentos além do sangramento do pé e alguns rasgões no pano-de-saia. Já não me lembro quem foi o soldado que com a faca de mato lhe rasgou um pedaço desse pano e lhe atou o pé a ver se o sangue estancava, enquanto outro gritava pelo enfermeiro, que já andava a acudir noutras paragens. As balas inimigas não param de silvar sobre nós e cada qual rastejou e abrigou-se o melhor que pôde, buscando com a mira da G3 um alvo que mexesse no horizonte próximo, mas daquele local não havia inimigos à vista. Um pedaço de capim que pareceu mexer-se logo foi imobilizado por uma M-62 (granada ofensiva) que um dos nossos soldados arremessou com notáveis impulso de braço e pontaria. Mas não se confirmou que tivesse causado ferimentos a quem quer que fosse.
O sopro da mina pareceu-me de “efeito dirigido”, ou seja, amputou-lhe metade dum pé e deixou um corte tão perfeito como se desferido por uma catana afiada (um “terçado”, na Guiné). Apesar da minha especialidade ser “minas e armadilhas”, não pude certificar-me pessoalmente se o modelo dos novos engenhos utilizados pelo PAIGC na região era o que se dizia: minas anti-picagem, – quer as antipessoal quer as anticarro. Teriam uma pequena bateria, ou pilha, no interior, e a detonação era provocada por duas folhas de estanho paralelas, uma usada como pólo positivo e outra negativo, disfarçavam-nas com uma finíssima camada de terra por cima e a mais leve pressão da “pica” provocaria o rebentamento imediato. À testa da coluna, um picador, curvado para a frente no desempenho da sua tarefa, accionara instantes antes uma “coisa” idêntica e o “corte” que ficou no corpo apresentou-se nos mesmos moldes. Só que, – isso sim, fui confirmar quando terminou a troca de fogachal, – o suposto efeito de sopro fez-lhe desaparecer o queixo e o rosto; o que restou da cabeça ficou espantosamente guilhotinado, na vertical. Tal como na “badjuda” nenhum outro ferimento se via no corpo, nem uma beliscadura, já que a mina provocou um cilindro vertical de deslocação de ar, mas não produziu estilhaços… Ainda assim, o soldado Vieira saltou para cima da MG onde sabia estar um Morteiro M2 60 mm e caixas de granadas, acartou o que pôde para a berma da picada (regos abertos pelos rodados das viaturas), afastou-se da ramaria das árvores e lançou uma série de projécteis na direcção de onde lhe parecia que o ataque tinha mais força.
Quando a situação parecia mais calma, – pois já não sentíamos tiros na nossa direcção, – através do rádio-banana que o nosso cabo das Transmissões lhe cedeu, o alferes Igreja recebeu ordens para que os dois pelotões d’Os Marados de Gadamael mudassem de posição, formando um “L” em relação à posição da coluna, isto para evitar tentativas de envolvimento por parte do IN. Quem mostrou má cara por ter que se erguer e arrastar para outro lado foi o alferes Cruz. Estava branco (provavelmente tão branco como eu estaria, mas faltou-me ali o espelho para comparar), enjoado com o cheiro intenso dos explosivos. Tinha chegado recentemente à companhia, vindo da metrópole em rendição do Dino Álvaro Mendes Duarte, também alferes miliciano “Marado” mas, quem sabe se em boa ou má hora?, transferido para a companhia africana sediada em Bedanda (CCaç 6), – onde também passou as “passas do Algarve”, o mesmo sucedendo ao furriel miliciano Manuel Fernando Urbano Neves e, mais tarde, ao furriel Manuel Baptista Fidalgo, – pelo que, na sua condição de, relativamente, periquito (o Cruz chegou a Os Marados a 12 de Outubro de 1972 e no início de 1973 foi temporariamente deslocado para Bambadinca como instrutor do 1.º turno de milícias), estava a “tirar os três” no mato, e logo daquela maneira…
Na frente da coluna, o combate foi violento, o ataque frontal em linha do PAIGC causou muitos danos logo de início, ferindo alguns camaradas. Não foi fácil ao pessoal recompor-se e reagrupar-se. Passados vinte e tantos minutos, deixámos de ouvir o matraquear das Costureirinhas e das G3, pois assomam-se dois Fiat que cortam o ar em voo rasante sobre as árvores, bombardeiam duas vezes, – e de que maneira!, – a cento e cinquenta metros de nós, ou talvez um pouco mais. Depois passam novamente em sentido contrário e o chão volta a estremecer por duas vezes, a cada embate das “ameixas” que deviam ser das de 200 quilos! Logo a seguir, – a dois, três quilómetros? – ouvem-se disparos secos e estranhos assobios. No céu, os mísseis Strela (Flecha, em russo) perseguem os aviões e deixam um estreito rasto de fumo branco a marcar o itinerário. Para se defenderem, os Fiat sobem a pique, o mais rápida e verticalmente que podem, até que os mísseis perseguidores rebentam lá nas alturas. Os aviões, desta vez não são atingidos, mas escusado será dizer que o nosso apoio aéreo termina neste momento. E respondendo ao ímpeto inicial da emboscada e à tentativa de envolvimento que efectivamente se seguiu, muitos de nós ficamos sem munições de G3. Também o pessoal das metralhadoras e de armas pesadas precisava de se reabastecer com granadas. Embora sem se temer nova investida do IN, pelo menos de imediato (as bojardas da aviação provocaram estragos em quem nos atacou) o pronto retorno a Guidaje foi inevitável.
Houve o registo do morto (picador) e de sete feridos, mas suponho que sem contar com os elementos da população, principalmente a jovem guineense que perdeu o pé. Entre Os Marados de Gadamael nenhuma baixa há a lamentar. Mas todo o pessoal envolvido na coluna, que tinha por objectivo atingir Farim e zarpar dali para fora, mas que agora é obrigado a recuar, fica ainda mais desmoralizado por não conseguir abandonar a tormentosa guarnição de Guidaje e por não ter perspectivas de como e quando conseguirá romper o cerco movido pelo PAIGC. Com o apoio limitado da aviação e com os acessos cortados, os feridos sem evacuação possível e corpos a agonizar, a situação é já de algum desespero. Psicologicamente abatidos, com munições a escassear, começamos a temer um ataque ao arame.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6041: Os Marados de Gadamael (Daniel Matos) (4): Os dias da batalha de Guidaje, 15 a 18 de Maio de 1973