1. Mensagem do nosso camarada Francisco Henriques da Silva* (ex-Alf Mil da CCAÇ 2402, Có, Mansabá e Olossato, 1968/70), ex-embaixador na Guiné-Bissau nos anos de 1997 a 1999, com data de 15 de Fevereiro de 2011:
Meus caros amigos e camaradas,
Junto remeto uns textos da minha lavra relativos às causas da guerra civil bissau-guineense de 1998-99, uma vez que aí me encontrava em missão de soberania, desempenhando, na altura, as funções de embaixador de Portugal. Fui, pois, uma testemunha privilegiada do conflito armado, mas os meus juízos e apreciações, porque subjectivos, poderão não coincidir com os de quem me lê.
O meu amigo, camarada e companheiro de estudos (fomos para a tropa juntos e formámo-nos juntos), Mário Beja Santos, fez recentemente uma recensão sobre o livro de Mário Matos e Lemos, "Política Cultural Portuguesa em África - O caso da Guiné-Bissau"**. O referenciado foi meu colaborador durante alguns meses, tendo abandonado aquele país, exactamente uma semana antes da eclosão do conflito. Com uma estada de 11 anos em Bissau, Matos e Lemos é, sem dúvida alguma, um profundo conhecedor do dossiê.
Sobre a matéria, concordo, genericamente com a análise do Mário Beja Santos e pretendo complementá-la com a minha visão sobre as causas (próximas e remotas) do conflito, a fim de elucidar melhor o problema. Os textos que envio vão integrar um capítulo de um livro de memórias sobre a guerra civil da minha autoria que está em curso de publicação.
Como se diz na Guiné-Bissau,
Mantenhas
Francisco Henriques da Silva
(Alf Mil da CCaç 2402 - Có, Mansabá e Olossato, 1968-1970;
ex-embaixador na Guiné-Bissau, 1997 a 1999)
Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 - 1/3
Subsistem poucas dúvidas sobre as causas próximas do conflito civil armado da Guiné-Bissau, outro tanto não se poderá dizer das causas remotas da guerra, muito embora para os que conhecem bem aquele território e as suas gentes não seja muito difícil descortinar as razões profundas que levaram àquela situação de conflitualidade.
As causas próximas: do tráfico de armas para Casamansa à destituição de Mané
As causas próximas do conflito tiveram que ver,
Em primeiro lugar, com
problemas do foro castrense, ou seja as substituições das chefias militares e a situação das Forças Armadas, em geral. Como, entre outros, refere Roberto Cordeiro de Sousa “o acontecimento que desencadeou o início da guerra civil foi a tentativa de prisão de Ansumane Mané na madrugada de domingo, dia 7 de Junho de 1998.” Trata-se do verdadeiro detonador da conflagração.
Por seu turno, António Duarte Silva salienta que “factores ligados à instituição militar terão constituído as causas próximas da rebelião, sobretudo a insatisfação crescente dos ‘Combatentes da Liberdade da Pátria’ (ou seja, dos ex-guerrilheiros das ‘Forças Armadas de Libertação Nacional’) e as denúncias e ameaças a propósito do tráfico de armas em favor dos guerrilheiros independentistas na área do Casamansa, cujo inquérito parlamentar estava em vias de conclusão (e que, datado de 8 de Junho, ilibava o brigadeiro Ansumane Mané concluindo com múltiplas acusações, do PR ao Ministro da Defesa, entre outros, e várias recomendações de instauração de procedimentos judiciais).”
O dr. Huco Monteiro, que foi Ministro da Educação do Governo de Unidade Nacional e um dos braços direitos do então Primeiro-ministro, Francisco Fadul, apontou-me que se visava “a despartidarização real da sociedade castrense, a clarificação da sua missão e o ajustamento da sua estrutura, a dignificação e a valorização da função dos militares graças, nomeadamente, à regulamentação da vida e da carreira dos mesmos por textos claros e republicanos”.
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Silva, António Duarte, “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, Edições Almedina, Coimbra, 2010, p. 213.
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Em segundo lugar, com o
envolvimento de sectores do aparelho de Estado e da sociedade militar e civil guineense na
questão de Casamansa, com revelações de impacto quase diárias junto da opinião pública.
Em terceiro lugar, com o agravamento da situação social dos combatentes da Liberdade da Pátria que se agudizava, pelo menos em termos psicológicos, nos meses e semanas que precederam o levantamento de 7 de Junho de 1998 (tratava-se, essencialmente, de um problema social, porém, com óbvias repercussões nas áreas política e militar e, a um tempo, uma causa próxima e remota da insurreição).
Finalmente, com
questões do estrito
foro político que tinham que ver com as exacções, com os abusos, com o clientelismo, com a corrupção generalizada que geravam desde há muito um sentimento de mal estar e de revolta genuína junto da população. Para além disso, a acentuada personalização do poder em “Nino” Vieira e na sua clique (ou mesmo, o enquistamento num e noutra), num país política, social e economicamente bloqueado.
Esta problemática é visível nas semanas que antecedem o 7 de Junho,
maxime no discurso que Nino Vieira pronuncia, na véspera da revolta militar, na Chapa de Bissau, junto ao mercado de Bandim, em que recusa, em absoluto e a qualquer título, abandonar o Poder. Sem esquecermos, igualmente, as vicissitudes do VI Congresso do PAIGC, cujas feridas estavam abertas. Para António Duarte Silva: “... também contribuíram para converter a inicial rebelião numa "guerra de Bissau" quer a conjuntura de crise económico-financeira e social (por exemplo, nos sectores da saúde, educação e administração pública), quer a crise interna no PAIGC, patente no recente e muito contestado VI Congresso.”
As causas remotas do conflito
Como
causas remotas poderíamos indicar principalmente os referidos bloqueamentos políticos, económicos e sociais da República da Guiné-Bissau incapaz de encontrar um rumo próprio, a nenhum dos níveis mencionados, quase 25 anos após a declaração unilateral da independência em 24 de Setembro de 1973 em Madina do Boé e cerca de 9 anos depois da queda do muro de Berlim. Problemas estruturais a que o Poder político não sabia dar resposta. Para além disso, mereceria especial referência o problema da identidade nacional da Guiné-Bissau, que se esboçava, factor que não podia ser subestimado no contexto da guerra civil entrecruzando-se em permanência com aqueles bloqueamentos, nem tão-pouco poderia ser subavaliado a nível sub-regional e regional.
Estas causas profundas e remotas do conflito merecem ser analisadas ainda que sumariamente.
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Leonardo Cardoso confirma estas asserções: “... o conflito político-militar que formalmente começou a 7 de Junho de 1998 com o levantamento de um grupo de homens armados não deve ser visto senão como consequência de um longo período de crise política, económica e social.”, vd. “A Tragédia de Junho de 1998
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Bloqueamento político, porque
- subsistiam “traços duradouros deixados pelo processo de acesso à independência, no termo de onze anos de luta de libertação nacional, conduzida por um partido armado ...o PAIGC
- os efeitos perversos do sistema de hegemonia política do PAIGC fundado sobre a legitimidade histórica decorrente da sua exemplar guerra de libertação nacional;
- a insuficiente despolitização [leia-se, despartidarização, no sentido que lhe dá Huco Monteiro] das Forças Armadas que, na origem, eram o braço armado do PAIGC;
- a incompleta conversão do PAIGC em partido civil liberto das suas antigas ‘correias de transmissão’ institucionais nas Forças Armadas;
- A difícil adaptação do antigo partido único ao novo contexto político caracterizado pelo pluralismo...”
Para alem destes factores de bloqueamento relativos aos pilares Partido-Forças Armadas e à interconexão entre eles, o verdadeiro Poder estava concentrado num só homem – João Bernardo Vieira -, numa camarilha que ascendeu a esse mesmo poder – ou a parte dele – por meras concessões do Príncipe, num só partido (o PAIGC), dominado pela mesma pessoa e pelo seu pequeno grupo (situação perfeitamente perceptível, por exemplo, em Maio de 1998, no rescaldo do VI Congresso do PAIGC ), acusando já de forma pronunciada a erosão de uma extrema longevidade no exercício do Poder e as consequentes insuficiências na distribuição de favores e prebendas; num regime de fachada democrática, apenas “para inglês ver” que, ao passar os testes impostos pelo exterior, beneficiaria do respectivo apoio e, porque não dizê-lo, do respectivo silêncio.
De eleições alegadamente falseadas (as presidenciais de 1995), à mais do que deficiente – e jamais conscientemente assumida - separação de poderes, passando por todo o tipo de violações de direitos humanos e de abusos de poder e,
last but not least, um regime onde campeava a má governação e a corrupção generalizadas.
Era este a traços muito largos o esboço político da Guiné-Bissau de “Kabi.”
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Factos e Comentários”, in Soronda, Revista de Estudos Guineenses, INEP, Bissau, Dezembro, 2000, p. 127.
Koudawo, Fafali, “La guerre des Mandjua – crise de gouvernance et implosion d’un modele de résorprtion de crises”, in Soronda, Revista de Estudos Guineenses, INEP, Bissau, Dezembro, 2000 – pp. 153-154
O partido, porém, não era monolítico. A contestação no seio do PAIGC entre o PR e presidente do partido e o Secretário-nacional, Manuel Saturnino Costa, iria ter dois episódios marcantes, antes da eclosão do conflito armado: em primeiro lugar, a demissão do Governo liderado pelo último, por iniciativa do Chefe do Estado, em Junho de 1997, por alegada incompetência, numa manobra constitucionalmente duvidosa e que gerou várias tensões no seio do PAIGC; em segundo lugar, a vitória “esmagadora”(?) de “Nino” Vieira no VI Congresso do partido “apagando” (?) os focos de discórdia interna de que Saturnino Costa, entre outros (Hélder Proença e Malan Bacai Sanhá), era um dos chefes de fila .
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 15 de Dezembro de 2010 >
Guiné 63/74 - P7439: (Ex)citações (120): Destruição e incêndio do Mercado Central de Bissau (Francisco Henriques da Silva)
(**) Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2011 >
Guiné 63/74 - P7769: Notas de leitura (202): Política Cultural Portuguesa Em África O Caso da Guiné-Bissau, de Mário Matos e Lemos (Mário Beja Santos)