[, foto à esquerda. o jovem aprendiz de enfermeiro, 1968, Hospital Militar Principal, Lisboa]
Tirando uns mal entendidos com a rapaziada do Morés, os dias corriam pachorrentos em Bissorã.
Desde logo porque o Rodrigues, quando à chegada lhe fui oferecer os meus préstimos, ficou-me muito agradecido mas respondeu que “a malta cá se arranja”. A malta era a CCAÇ 2444, mais conhecida pelos “Coriscos”, companhia da qual o Rodrigues, Felizardo Rodrigues, era furriel miliciano enfermeiro. O felizardo neste caso era eu, melhor dito, até, era a minha equipa, porque com uma companhia operacional a prescindir do nosso apoio, passámo-nos a ocupar, a tempo inteiro, das micoses, paludismos e gonorreias entre os nossos, e da saúde de toda a população em geral, coisa que caía muito bem dentro dos relatórios da “psico-social”.
O Dr. Oliveira, deixemos lá o alferes de lado que ele era médico, não era militar, começava as manhãs na nossa enfermaria e, depois do almoço, preenchia as tardes com umas consultas na enfermaria civil.
– Ó Pires, temos um problema, pá.
Temos, era um eufemismo por ele muito usado, sempre que pretendia dizer que EU tinha um problema. Contou-me que com um elevado sentido de oportunidade, e aqui que o senhor das almas me perdoe, o senhor enfermeiro civil morrera pouco antes da nossa chegada.
Num ápice, quem passou a ter um problema, foi o Maltez, meu soldado maqueiro, a quem eu mandei avançar ao reconhecimento. O Maltez era uma espécie de “pau para toda a obra”, de quem e de cujos méritos falarei em tempo mais oportuno.
A enfermaria civil era uma casa térrea mas arejada, com gabinete médico, área de internamento para 12 camas, e uma dependência onde funcionava a enfermaria do Rodrigues. Comecei logo por embirrar com esta separação. Isto é, enfermaria dos operacionais para um lado, a da CCS para o outro. E no caminho que vinha fazendo pelo meio da vila, dei comigo a embirrar com tudo o resto.
Já o escrevi, em Bissorã não existia quartel. O quartel é, por definição, pelo menos na minha definição, um espaço delimitado em cujo interior se concentram homens, instalações e serviços. Bissorã era assim como que uma espécie de “cidade” abandonada pelos civis, cujas casas foram, convenientemente, ocupadas pelos militares.
E no meu fraco entender, isto em nada facilitava o tal “espirito de corpo” muito propagandeado nas directivas militares. Para me fazer entender, socorro-me de uma fotografia aérea de Bissorã, de autoria do Cap Carlos Oliveira, e que devidamente autorizado retirei do “website”
leoesnegros.com.sapo.pt/
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Foto: Cortesia da página do © Carlos Fortunato > CCAÇ 13, Leões Negros > Guiné - Bissorã [Edição: LG e AP]
Legendas [Armando Pires]:
1 – Caserna da CCAÇ 2444, depois da CCAÇ 13
2 – Sede da Administração de Bissorã
3 – Enfermaria civil
4 – Messe de oficiais
5 – Secretaria da CCS, Transmissões e espaldões de morteiros
6 – Casernas e refeitório da CCS
7 – Quartos de sargentos da CCS e bar
8 – Secretaria do comando do batalhão no r/c e quartos dos oficiais no 1º andar
9 – Clube social e cinema de Bissorã
10 – Bar de sargentos da CCAÇ 2444, depois da CCAÇ 13
11 – Quartos de sargentos da CACÇ 2444, depois da CCAÇ 13
12 – Armazém de armamentos, enfermaria da CCS e Oficinas auto
13 – Messe de sargentos
14 – Campo de futebol.
Pois deu-se o caso que num certo fim de tarde, indo eu de 7 para 12 passei em 10 e ouvi uma viola a tocar.
Poupando-lhes a maçada de revisitarem a legenda, quero eu dizer que tendo saído do meu quarto para ir à enfermaria ver como marchavam as coisas, passei à porta do bar de sargentos da 2444 de cujo interior saiam uns acordes de viola, que por acaso até me soarem bem ao ouvido.
– Pode-se entrar, camaradas?
Entrei, apresentámo-nos, sai um Johnnie Walker com duas pedras de gelo a selar o momento, e dei comigo a pensar que o gajo da viola era o mesmo que, no dia da minha chegada, me ia “atropelando” com a mota.
– Ouve lá, pá, tu não és o João Rebola?
Claro que era ele, sim senhor, contei-lhe que tinha sido o Filipe a dizer-me quem ele era, que isso se passara logo no dia da minha chegada, quando, à saída dos quartos de sargentos da CCS, ele, João Rebola, que vinha de mota, desenhara uma perfeita “chicuelina” para evitar atropelar-me (P12023).
Gargalhada geral, venha de lá esse abraço,
“agora tenho de ir lá acima à enfermaria ver como estão as coisas, mas hei de vir aqui mais vezes que talvez ainda façamos umas fadistices".
Lá na enfermaria estava tudo bem, o que nem era de estranhar dada a qualidade do pessoal da minha equipa, saí para ir jantar “à D. Maria” e tropecei, de novo, no João Rebola.
– Queres boleia, pá?
Primeiro: a D. Maria e o marido, o senhor Maximiano, um velho casal de cabo-verdianos, tinham um restaurante que era subvencionado pelo exército para funcionar como messe de sargentos. Segundo: o Rebola vinha a sair do quarto de sargentos da 2444, que era ali quase paredes meias com a minha enfermaria, e indo jantar à messe, tal como eu ia, convidou-me a fazer “a viagem” na sua motorizada.
– Tens medo de andar nisto, pá?
– Só não sei andar, mas medo de andar não tenho.
– Ó pá, mas se quiseres aprender eu ensino-te já. Isto é o mesmo que andar de bicicleta.
E foi assim que o João Rebola, antes de ser meu viola privativo, se transformou no meu instrutor de motorizada.
Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCS/BCAÇ 2861 (Bula e Bissorã, 1969/70) >Guiné > O furriel miliciano João Rebola na “nossa” motorizada.
Numa vertiginosa sucessão de factos ocorridos após “a decapitação” do comando do batalhão, o major Candeias, que foi direitinho a Bissau, foi substituído nas operações pelo, entretanto promovido a major, capitão Alcino, que era o comandante da CCS, chegando para ocupar o seu lugar o senhor capitão Luís Andrade Barros.
Foi este senhor capitão que me chamou e que manteve comigo uma cordial conversa a versar mais ou menos estes termos.
– Ó furriel Pires, o nosso comandante pretende estreitar os laços de amizade e de cooperação entre as nossas tropas e a comunidade civil de Bissorã, e propôs-me que realizássemos no nosso bar de sargentos, que tem espaço e excelente condições, uns serões sociais, animados com musica e jogos de mesa, eu pensei em fazermos umas sessões de bingo aos sábados à noite, e o nosso comandante até me disse constar entre os nossos oficiais que o senhor canta muito bem o fado…
"Olha para onde vens tu, ó Barros!", pensei eu, ao mesmo tempo que atalhei aquela espécie de música para encantar meninos, fazendo-lhe uma declaração definitiva.
– Pois é, meu capitão, mas fará o favor de dizer ao nosso comandante que comigo não há fados à capela.
O senhor capitão pôs um ar surpreendido, juro que até pensei que ele me ia dizer que os fados eram no bar, não eram na igreja do capelão Baptista, mas dois ou três segundos depois ficou-se por um pedido de esclarecimento, assim como “o que é que o nosso furriel quer dizer com isso?”.
– Meu capitão, quero dizer que., sem acompanhamento, sem guitarra nem viola, eu não canto.
O recado foi levado ao senhor comandante, a conversa decorreu em plena messe de oficiais, e quem encurtou razões à conversa foi o alferes miliciano Marcão, comandante do 2º grupo de combate da 2444, cujo anunciou que tinha no seu grupo um furriel que tocava muito bem viola.
O furriel de que o Marcão falava era, como me parece ser fácil de ver, o João Rebola.
Aqui também acho que é hora de encurtar parágrafos à história e dizer que as sessões de Bingo foram por diante, que o João Rebola trouxe consigo outro exímio violista, o soldado de transmissões Vilas Boas, e que depois de várias horas de necessários ensaios lá fizemos a nossa apresentação pública.
Todos os sábados à noite, o bar de sargentos da CCS enchia de tropa e civis para as sessões de bingo, e, modéstia à parte, rebentava pelas costuras quando chegava a hora do fado.
Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCS/BCAÇ 2861 (Bula e Bissorã, 1969/70) > Sentimento e casa à cunha, em mais uma noite de fados. Eu, acompanhado pelo João Rebola, à esquerda, e pelo Vilas Boas, à direita.
Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCS/BCAÇ 2861 (Bula e Bissorã, 1969/70) > Noite de bingo no bar de sargentos da CCS. Eu canto os números, o furriel Orlando Bonito (já falecido) ordena as bolas saídas, o capitão Andrade Barros supervisiona o sorteio.
Guiné > Região do Oio > Bissorã > CCS/BCAÇ 2861 (Bula e Bissorã, 1969/70) > Três aspectos do bar de sargentos da CCS
Fotos (e legendas): © Armando Pires (2014). Todos os direitos reservados
E tudo foi assim até que chegou o mês de Junho de 1970. A Bissorã chegaram os rapazes da CCAÇ 13, formada originalmente por quadros e especialistas metropolitanos da CCAÇ 2591, a quem em Bolama se juntou pessoal guineense, predominantemente de etnia balanta. Chegaram para integrar o dispositivo e manobra do BCAÇ 2861, o meu batalhão, rendendo a CCAÇ 2444 que foi terminar o seu tempo de comissão em Binar. E, com ela, lá foram o João Rebola e o Vilas Boas.
Quer isto dizer que “calaram-se as guitarras, calou-se o fadista, e acabou-se o fado”.
Só não acabou a história.
Vão ver mais tarde como o fadista se transformou no locutor do “Programa das Forças Desarmadas”.
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Nota do editor:
Postes anteriores da série:
19 de fevereiro de 2014 >
Guiné 63/74 - P12742: Furriel Enfermeiro, ribatejano e fadista (Armando Pires) (12): Chegou Polidoro, "O Terrível"