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domingo, 23 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23732: (Ex)citações (417): A propósito de Amadu Bailo Djaló (1940-2015): mestiçagem, mercenariato, fanado, hospitalidade africana, viagem a Boké... (Cherno Baldé)

1. Comentários do Chermo Baldé, nosso colaborador permanente, assessor para as questões etnolinguísticas, e que vive em Bissau, ao poste P23723  (*):

(i) O Amadú Djaló se identifica e se assume como Fula (Futa-Fula), na realidade é um mestiço, fruto do casamento de um Fula de apelido Djaló com uma mulher Maninka de apelido Condé/Kondé (ramo mandinga da região da alta Guiné, "haute Guinée"), mas espalhados um pouco por outras regiões da Guinée, sobretudo pela baixa Guinée na região de Boké e também pelo Sul da Guiné-Bissau. 

Na verdade, quase todos os Fulas (Futa-Fulas),  originários da Guinée-Conakry, são mestiços e com grandes capacidades de integração noutras esferas culturais, o que faz deles, historicamente, excelentes servidores do que se pode classificar como mercenariato militar na região da Senegâmbia. 

Assim, formavam a grande maioria da temida elite guerreira e de cavalaria do Abdul Indjai com o Cão. Teixeira Pinto que devastou o Centro e o Norte do país entre 1912/1915, serviram como Polícias e Sipaios da administração colonial e em alguns casos conseguiram até a nomeação para cargos régios e, salvo raríssimas excepções, todos os Fulas que se distinguiram nas fileiras da luta da libertação com o PAIGC, saíram deste grupo com origens na Guiné-Conakry (Corca Só, Umaro Djaló, Abdulai Barry, Mamadu Alfa Djaló, entre outros).

A explicação para esse facto não é tão simples, mas dever-se-á, fundamentalmente, pela liberdade de acção que detinham, por não estarem muito ligados e dependentes das autoridades tradicionais por onde passam, pela desenvoltura de não serem nem tipicamente camponeses nem criadores de gado, pela facilidade de integração e liberdade de movimento e por um especial gosto das aventuras de alto risco como o serviço militar e/ou paramilitar que lhes restava como opção nos seus percursos de aventura humana, para além do comércio ambulante que era a sua profissão por excelência.

Como diz o Luís Graça, a quase (des)ventura do Amadú por terras de Boké é de natureza a desmentir o alardiado mito da hospitalidade e solidariedade africanas. Mas, em tudo há excepções, e o Amadu Djaló, por ignorância e falta de experiência deixou-se cair numa cilada de desconfiança pela sua presença repentina num meio hostil e de gente, certamente, traumatizada por situações passadas. No mato e em situações idênticas só escapam da natural desconfiança certas personalidades como os Mouros (Marabus), os Djidius (músicos tradicionais) ou Djilas (vendedores ambulantes). Não esquecer que, ingenuamente, ele foi transportado por um branco, provavelmente, não identificado, logo potencialmente suspeito.

Quanto ao nome de "Mari Velo", se a minha compreensão estiver certa deve significar "O homem da bicicleta",  traduzido da língua fula. "Mari" é a conjugação na terceira pessoa do verbo ter e "Velo" é bicleta ou velocípede cooptado da língua francesa, pois que, mesmo vivendo na Guiné dita portuguesa, os originários da Guinée, continuam sob a influência da língua francesa que, aos olhos dos nativos, determina um certo estatuto social de classe, de conhecimento e, logo, de prestígio. Mas, a palavra "Mari" também pode significar "Marido" que é fula, mas também, pode ser uma cooptação da língua francesa.

O longo percurso de 9 dias de Bafatá a Boké, deveu-se certamente, ao facto de que era uma viagem de negócio e o percurso não foi o mais curto possível, pois devem ter seguido a via de Gabu-Fulamori para entrar no território vizinho e seguir até perto de Conakry, descendo depois a Bofa e por fim ao Boké. Se tivessem seguido pela via do Sul através do Forèa (Contabane) o trajecto seria em menos de 3 dias de marcha.

Com um abraço amigo,
Cherno Baldé
22 de outubro de 2022 às 13:46 



Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015)

(ii) A mestiçagem entre grupos etnico-culturais é um fenómeno antigo e de longa duração na África Ocidental. Os grandes grupos (mandinga e fula) cresceram numericamente graças a sua capacidade de integração social, de dominação e de transformação pela assimilação cultural de outras áreas geográficas, povos e culturas, processo iniciado desde o século XII/XIII.

Com o início do processo da colonização por forças externas, também apareceu a necessidade do aprofundamento das divisões étnicas, através de contradições, às vezes, artificiais,  de forma a enfraquecer os africanos e perpetuar a dominação.

Sobre o fanado, descrito por Amadú Djaló, posso dizer que é uma experiência única e indescritível. Foi o meu primeiro trauma psicológico e sócio-cultural de que nunca me recuperei completamente. Após o corte cirúrgico, ficamos entregues a bicharada, sem assistência nem qualquer tratamento, a melhor solução que encontramos, a partir da primeira semana, foi enterrar o sexo dorido e inflamado nas areias quentes das estradas a fim de desenfectar, tratamento que era repetido todos os dias quando o sol se encontrava no zénite.

Num dia que nos trouxeram mais perto da aldeia, e ao ouvir a voz da minha irmã mais nova no exterior da barraca, as lágrimas escaparam-se dos meus olhos por causa das saudades e por um triz não desatei aos berros, pois fora a primeira vez que fizera mais de um mês longe da família e nas mãos de desconhecidos que tudo faziam para nos frustar em nome da educação. 

Fazia parte da preparação dos mais novos para a vida futura. Na altura tivemos a visita do enfermeiro auxiliar da companhia estacionada em Fajonquito (em 1970, penso que seria a CCAÇ 2435 comandada pelo Cap Carvalho, pouco antes de ser substituída). Mas a utilização do mercúrio preto numa ferida fresca e numa parte tão sensível do corpo ainda piorou a nossa precária e débil situação. Não se esquece. (**)

Abraços,
Cherno AB 
22 de outubro de 2022 às 20:56

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Guiné 61/74 - P23426: Frase do dia (2): Quando o General Bettencourt Rodrigues chegou à Guiné (21Set73), já a FAP tinha destruído as bases de apoio do PAIGC no estrangeiro, Kumbamori no norte, Kambera e Kandiafara no sul, faltava Koundara no leste, a alguns quilómetros de Buruntuma (António Martins de Matos, ex-ten pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74)


Capa e contracapa do livro "Voando sobre um Ninho de Strelas", de Antonio Martins de Matos, 2ª edicão,  Lisboa, Sítio do Livro, 2020, 456 pp.


1. Dois curtos comentários (*), que selecionámos como a "frase do dia" (**)... São da autoria 
 do António Martins de Matos, ten gen  pilav ref (ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74) e autor do livro de memórias "Voando sobre um Ninho de Strelas" (1ª edição, Lisboa: BooksFactory, 2018, 375.pp.; 2ª edicão,  Lisboa, Sítio do Livro, 2020, 456 pp.); tem 114 referências no nosso blogue.

Quando o General Bettencourt Rodrigues chegou à Guiné (21Set73), já a FAP tinha destruído as bases de apoio do PAIGC no estrangeiro, Cumbamori no norte, Kambera e Kandiafara no sul. Faltava Koundara no leste, a alguns quilómetros de Buruntuma. 

Uma primeira decisão, o novo Comandante-Chefe não nos autorizava idas ao estrangeiro, preferiu fazer uma nova revisão da matéria dada, lá pelos lados do Cantanhez. No início de 1974 foi o que se viu, ataques no leste a Copá, Bajocunda, Canquelifá, nem precisavam de entrar no nosso território.

Quanto à Directiva para o Apoio Aéreo, não tinha nada de novo, não era mais que a repetição das decisões da Reunião de Comandos de 15Mai73, então presidida pelo General Spínola.

12 de julho de 2022 às 11:38

Em aditamento ao meu comentário anterior, Bettencourt Rodrigues vinha da enorme Angola. Como Comandante Chefe da Guiné andou sempre atrás dos problemas, sem conseguir perceber a situação daquele território. Em 26Abril74 acabou preso pelo seu próprio staff, uma das muitas tristezas, para não dizer vergonhas, do 25Abril.

12 de julho de 2022 às 14:27
___________


(**) Último poste da série > 11 de julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23422: Frase do dia (1): Faz hoje 55 anos que entrei para a tropa, em Santarém. Tinha 22 anos feitos, regressei com quase 26... (Valdemar Queiroz, ex-fur mil at art, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)

terça-feira, 31 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23317: A nossa guerra em números (17): chuva de granadas sobre Guileje (18-21 mai 1973) e Gadamael Porto (31 mai-11 jun 1973)


English: Finnish Army 130 mm Gun M-46 during a direct fire mission in a live fire exercise 
[Peça de artilharia 130 mm, M-46. Exército finlandês, durante uma missão de fogo direto, em exercícios de fogos reais]

Suomi: 130 K 54 suora-ammunnassa

Date 6 March 2010 | 
Source Own work | Author Levvuori

Source: Wikimedia Commons | Public domain  (Com a devida vénia...)


1. Foi há 49 anos que a "fúria" do PAIGC, com o apoio dos seus aliados externos (Senegal, Guiné-Conacri, ex-URSS, Cuba...) se virou para os aquartelamentos de fronteira, a Norte (Guidaje, Bigene) e a Sul (Guileje, Gadamael Porto), com a intenção de os varrer do mapa, e aumentar a pressão político-militar para melhor se posicionar à mesa de eventuais futuras negociações,  e sobretudo a pressão diplomática,  tendo em vista a declaração unilateral da independência do território, o que viria a acontecer em 24 de setembro de 1973.

Citando o nosso vade-mécum (Pedro Marquês de Sousa - "Os números da Guerra de África". Lisboa, Guerra & Paz Editores, 2021, pp. 1974-175) (*):

(i) "Durante o ano de 1973, o mais simbólico na história da Guerra Colonial, o PAIGC realizou 640 ataques a aquartelamentos portugueses ", o que representa 61% do total das suas acções  ofensivas (1042), "especialmente junto às fronteiras Norte e Sul: Bigene, no Norte, foi atacada 21 vezes, Guileje, no Sul,foi atacada 36 vezes, Guidage (Norte), 43 vezes, e  Gadamael Porto (Sul) , 70 vezes" (pág, 194).

(ii) foram implantadas 750 minas (AP e A/C), das quais 416 (55,5%) no 1º semestre;

(iii) globalmente, as baixas provocadas à tropa portuguesa e à população civil foram significativas:  181 militares mortos e 1133 feridos; do lado da população civil, 120 mortos e 554 feridos;

(iv) as baixas (mortos e feridos)  no 1º semestre (1248)  representaram 62,8%  do total do ano de 1973 (1988).

Estes resultados poderiam ter sido mais gravosos se, no 2º semestre de 1973, o PAIGC não estivesse empenhado na preparação e  realização do Congresso e da Assembleia Nacional, em território da Guiné-Conacri,  que estiveram na origem da proclamação unilateral da indepêndência em 24 de setembro de 1972.

Na sequência da Operação Amílcar Cabral, planeada já antes mas desencaeada depois da morte do líder (20 de janeiro de 1973), o PAIGC, nas flagelações e ataques a aquartelamentos portugueses, privilegiou o uso de armas pesadas da guerra clássica, com destaque para:
  • morteiros 82 mm e 120 mm;
  • canhão sem recuo 82 B-10;
  • foguetes 122 mm;
  • peças de artilharia 130 mm M-46, de grande alcance (cerca de 27 km).
A artilharia 130 mm foi usada pela primeira vez contra Guileje em maio de 1973 (**). E com crescente precisão. De origem soviética, com quase  todo o  armamento do PAIGC, operava a partir do território da Guiné-Conacri e tinha sido cedida pelo regime de Sékou Touré.

Entre 18 e 21 de maio de 1973 por exemplo, foram lançadas sobre Guileje cerca de sete centenas de granadas, de vários tipos (incluindo RPG 7).  Média diária (4 dias): 171,25 granadas.

Entre 31 de maio e 11 de junho, Gadamael Porto  foi flagelada com 1468  granadas: média diária (em 12 dias), 122,3 granadas;  máximo 620 granadas (em 1 de junho), mínimo 4 granadas (em 10 de junho) (op cit., pág. 175).
__________


(**) Vd. poste de 18 de abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1672: Guileje: a artilharia do PAIGC (Nuno Rubim)

sábado, 12 de junho de 2021

Guiné 61/74 - P22275: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte III: A Brigada de Fronteira de Gaoual e o apoio no controlo dos movimentos na Região de Lela em novembro de 1966 (Jorge Araújo)


Foto nº 1 > 1964 > Armando Ramos a bordo de uma canoa no rio Cacine [?], em Fevereiro de 1964, ao lado de Amílcar Cabral, a caminho de Cassacá (I Congresso do PAIGC, em 13-14Fev64). Quatro meses depois, Armando Ramos foi o escolhido para cumprir a «Missão a Gaoual».

Amílcar Cabral veio de base de Boké, na Guiné-Conacri, no barco a motor que se vê ao fundo. Em março de 1973, o PAIGC havia capturado, no porto de Cafine, dois barcos comerciais, o “Mirandela” e o “Arouca”- Depois de rebatizados, passam a servir no transporte de homens e material. O barco que se vê seria um destes dois que foram aprisonados. Passou a ser chamado "Unidade". Sabemos, pela descrição detalhada feita por Luís Cabral que a Amílcar e a sua comitiva vieram de Boké, de noite, desembarcando, com a maré alta, na ilha de Canefaque. Seguiram até Cassabetche, a pé, e aqui foram transportados de canoa, com escolta. A viagem até Cassacá foi feita a pé, utilizando troço da estrada que seguia junto à fronteira...Cassacá ficava a 15 km a sul de Cacine, a 30 km, a oeste da fronteira com a Guiné. 

Fonte > Citação: Luís Cabral (1964), "Amílcar Cabral e outros companheiros a caminho do I Congresso do PAIGC", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_43297, com a devida vénia.



Imagem de satélite com indicação de algumas das tabancas situadas na região oriental do Boé. Refere-se, também, "Tiankoye", situada em território da República da Guiné, local por onde circularam as forças do PIAGC que atacaram Madina do Boé, em 10 de Novembro de 1966, e onde morreu o Cmdt Domingos Ramos (1935-1966).





O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo. Tem cerca de 290 referências no nosso blogue.


GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE

UM NOVO OLHAR SOBRE O "LOCAL MISTERIOSO" DA PROCLAMAÇÃO SOLENE DO ESTADO DA GUINÉ-BISSAU, EM SETEMBRO DE 1973, EM PLENA ÉPOCA DAS CHUVAS

PARTE III

A BRIGADA DE FRONTEIRA DE GAOUAL E O APOIO NO CONTROLO DOS MOVIMENTOS NA REGIÃO DE LELA EM NOVEMBRO DE 1966

 

 

► Continuação do P22122 (II) (21.04.21) (*)


1.   - INTRODUÇÃO


Continuamos na região do Boé tentando encontrar por entre os seus diversos "caminhos, trilhos e atalhos", aquele que nos conduza ao "local misterioso" onde decorreu a «I Assembleia Nacional Popular», reunião onde foi aprovada a «Proclamação Solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973», realizada em "plena época das chuvas."


Deste modo, esta terceira parte segue na linha do fragmento anterior, que acima se identifica, onde foram caracterizadas as primeiras "acções" programadas pela guerrilha para a região do Boé, a que Amílcar Cabral (1924-1973) baptizou de «Missão a Gaoual», levadas a efeito, em ambos os lados da fronteira, pelo seu camarada Armando Ramos [foto 1], durante a segunda metade do mês de Junho 1964, quatro meses depois do «I Congresso de Cassacá».


Entretanto, no contacto tido com o Governador da Região Administrativa de Gaoual, a quem foram explicadas as razões da sua visita, Armando Ramos não deixou de reforçar o pedido de apoio – "no controlo dos movimentos na região de Lela" – formulado anteriormente, no quadro do que ficou estabelecido na reunião que o Secretário-geral havia tido com ele, e com outros responsáveis da República da Guiné, no Ministério da Defesa Nacional e Segurança.


Por outro lado, no âmbito da estratégia militar a desenvolver na região, Armando Ramos foi incumbido de estudar os melhores locais de "passagem" (corredores) na linha Sudeste da fronteira do Boé, incluindo a da "época das chuvas", visando a criação de "bases" no exterior e, no interior, "postos avançados" mais próximos das instalações militares das forças portuguesas, de modo a permitirem realizar flagelações com alguma regularidade.


No entanto, quando às forças instaladas em Madina do Boé e Béli, cada aquartelamento dispunha, desde 06 de Maio de 1963, de um Gr Comb da 3.ª Companhia de Caçadores [do Cap Inf Renato Jorge Cardoso Matias Freire (seria?)], constituída por quadros metropolitanos e praças indígenas do recrutamento local, ambos integrados no dispositivo e manobra do BCAÇ 238 [06Jul61-24Jul63; do Maj Inf José Augusto de Sá Cardoso] e, depois, pelo BCAÇ 506 [20Jul63-29Abr65; do TCor Inf Luís do Nascimento Matos]. (CECA; 7.º Vol.; pp 623-624).


Em conformidade com o exposto, no ponto seguinte daremos conta dos resultados obtidos pelo Secretário-geral, Amílcar Cabral, na sequência do que ficara acordado com os responsáveis da República da Guiné, na reunião referida no terceiro parágrafo.  


2.   - O APOIO DOS SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA DA REPÚBLICA DA GUINÉ NA REGIÃO ADMINISTRATIVA DE GAOUAL (POSTO FRONTEIRIÇO DE LELA) EM NOVEMBRO DE 1966


Dois anos e meio depois da visita de Armando Ramos a Gaoual, Amílcar Cabral recebe, com data de 29 de Novembro de 1966, 3.ª feira (desconhecem-se contactos anteriores), um ofício do Ministério dos Negócios Estrangeiros, anexando cópia do «relatório de inteligência n.º 300/SRG relativo aos movimentos dos Nacionalistas Portugueses (PAIGC) no posto fronteiriço de Lela, na Região Administrativa de Gaoual», reportado a 19 do mesmo mês, sábado.


O Ofício n.º 167, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, classificado de "Confidencial", enviado a pedido do Senhor Presidente da República [da Guiné, Ahmed Sékou Touré (1922-1984)], ordena a transmissão ao Senhor Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, do conteúdo do citado relatório.   


Pelo seu valor historiográfico, reproduzimos abaixo o documento original, escrito no idioma francês, língua local, seguido da sua tradução, esta da nossa responsabilidade.

 


Fonte > Citação:
(1966), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35058, com a devida vénia.

▼ Cópia do relatório de inteligência n.º 300/SRG relativo aos movimentos dos Nacionalistas Portugueses (PAIGC) no posto fronteiriço de Lela, na Região Administrativa de Gaoual.




◙ 19 De Novembro de 1966 (sábado)


Relatório de Inteligência n.º 300/SRG

Movimentos Nacionalistas Portugueses (PAIGC) no posto fronteiriço de Lela, na Região Administrativa de Gaoual


De Gaoual: No seu relatório n.º 140/BFG/GN de 12 de Novembro de 1966 (sábado), o Comandante da Brigada de Fronteira de Gaoual dá-nos as seguintes informações:

● "Os lojistas nacionalistas portugueses de materiais de guerra instalados no posto de Lela, designados por Ibrahima e Boiro Bangaly não protegem adequadamente estes materiais."



● "Uma portuguesa de nome "MAITA" foi capturada durante uma operação dos nacionalistas da chamada Guiné Portuguesa. A captura desta mulher causou graves bombardeamentos na aldeia portuguesa de Vendu-Leidi pelo exército português.

● "Aviões portugueses sobrevoam continuamente o sector de Lela do território guineense [República da Guiné]."

● "Três nacionalistas portugueses do PAIGC, denominados Kante Manga, Sabou Koulybali e Diouma Sera, desertaram para as forças coloniais.

 


● "A deserção dos três nacionalistas causou grande terror na aldeia de Sountour – Lela, visto que estes três nacionalistas conheceram todas as actividades dos nacionalistas neste sector durante a sua estadia."

● "A população deste sector vive actualmente em terror porque, dizem, estes três fugitivos podem um dia servir de guia aos colonizadores portugueses, para nos aniquilar em qualquer altura."

● "Os meios de transporte e comunicação são raros entre este sector e a região de Gaoual."

 



Fonte > Citação: (1966), "Movimento de nacionalistas do PAIGC na zona de fronteira de Lela, região Administrativa de Gaoual", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40690, com a devida vénia.

 

3.   - CONDOLÊNCIAS DO MINISTRO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS DA REPÚBLICA DA GUINÉ PELA MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ A 10 DE NOVEMBRO DE 1966


No relatório elaborado pelo Comandante da Brigada de Fronteira de Gaoual, que inclui o posto fronteiriço de Lela, é de sublinhar a não inclusão daquela que seria a maior acção militar realizada, até essa data, pelas FARP. Estamo-nos a referir à preparação e execução da «Operação Madina do Boé», efectuada em 10 de Novembro de 1966, 5.ª feira, onde perdeu a vida, em combate, o Comandante Domingos Ramos (1935-1966).


Mesmo não fazendo parte dos pontos referidos no documento da "inteligência" local, o Secretário-geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Diallo Alpha Abdoulaye, em nome do Ministro, apresentou as condolências pela sua morte, cujo conteúdo abaixo se reproduz, com tradução da língua francesa da nossa responsabilidade.



◙ Caro camarada,

Foi com grande emoção que soubemos da morte no campo de batalha, no dia 11 [10] do corrente [Novembro], de Domingos Ramos, comandante do PAIGC.

Curvamo-nos piedosamente diante dos restos mortais deste militante morto pela libertação do seu país da submissão colonial.

Em nome do povo, do Bureau Político Nacional do Partido Democrático da Guiné [PDG], expressamos, nesta dolorosa ocasião, a nossa profunda tristeza e pedimos que transmitam à família enlutada, bem como aos dirigentes do PAIGC, as nossas mais sinceras condolências e simpatia.

Queira aceitar, caro camarada, os protestos da nossa mais elevada consideração.

 


Fonte > Citação:
(1966), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35057, com a devida vénia.

 

3.1 - RECUPERAÇÃO DO CONTEXTO DA MORTE DE DOMINGOS RAMOS EM MADINA DO BOÉ A 10 DE NOVEMBRO DE 1966


Para a elaboração deste ponto, no que às

 causas de morte do Cmdt Domingos Ramos 

diz respeito, recuperámos alguns dos detalhes divulgados pelo dr. Virgílio Camacho Duverger (1934-2003), médico militar cubano, especialista em cirurgia cardiovascular, retirados do P16662 (31Out2016), identificado ao lado, a quem coube o difícil acto de confirmar o óbito.


Com efeito, o dr. Virgílio Camacho Duverger chega a Conacri em Junho de 1966, integrado num contingente cubano de cerca de três dezenas de elementos, entre os quais oito médicos. É colocado no Hospital de Boké, onde permaneceu dois meses, sendo depois transferido para a Frente Leste [Agosto de 1966] para uma base existente no interior da República da Guiné, na região do Boé, com o objectivo de construir uma enfermaria de campanha que pudesse servir de apoio aos combatentes aí colocados sob a direcção do Cmdt Domingos Ramos, cuja principal missão militar era atacar o quartel de Madina do Boé. Naquele tempo, nesse aquartelamento estava instalada a CCAÇ 1416, comandada pelo Cap Mil Inf Jorge Monteiro.

 

Entretanto, ao terceiro mês de estar naquela região [Novembro], ao dr. Virgílio Camacho Duverger é-lhe pedido que realize um reconhecimento ao referido aquartelamento, considerado por si como a missão mais importante em que participou, tendo por companhia o dr. Milton Echevarria Ferrerá ("Xisto"), médico do seu grupo naquela Frente, e o apoio de guias/guerrilheiros destacados para aquela acção, caminhada que, segundo a sua percepção, demorou perto de cinco horas, uma vez que a base estava a cerca de três quilómetros daquele local.


Na quinta-feira, 10 de Novembro de 1966, a operação concretiza-se. Antes do ataque, na companhia de um enfermeiro cubano anestesista, que entretanto havia chegado para reforçar o grupo de saúde, foi criado um posto sanitário avançado em território da Guiné [GB], perto da zona do combate, de modo a facilitar a assistência médica a prestar os primeiros socorros aos combatentes que ficassem feridos, pois não era fácil chegar ao hospital de Boké, localizado a 96 kms [Google.com; hoje], conforme infografia acima.


Segundo o dr. Virgílio Duverger, a primeira morteirada lançada pelos portugueses [da CCAÇ 1416] cai, por casualidade, no local onde estava o posto de observação no qual se encontrava o comandante da Frente: Domingos Ramos. Os estilhaços da granada atingem-lhe o abdómen causando-lhe uma ruptura hepática violenta que não deu tempo para o levar até ao hospital para o poder operar. Durante a evacuação, a caminho do hospital, Domingos Ramos faleceu.


Outra versão deste episódio é descrita pelo assessor militar cubano Ulises Estrada (1934-2014), pois encontrava-se ao lado do Cmdt da Frente do Boé.


Eu encontrava-me ao lado de Domingos Ramos, refere Ulises Estrada, em que metade do seu corpo cobria o meu para proteger-me, coisa que não pude evitar. Abrimos fogo com um canhão B-10 colocado numa pequena elevação situada a cerca de seiscentos metros do quartel. Os militares portugueses [CCAÇ 1416] tinham montado postos de vigia na zona e responderam com disparos certeiros de morteiro, embora nós continuássemos a disparar com o canhão sem recuo, metralhadoras e espingardas.


Pouco tempo depois de iniciado o combate, senti que corria pelo lado direito das minhas costas um líquido quente e pensei que estava ferido por uma das morteiradas que caíam ao nosso redor. Era Domingos Ramos, sangrava abundantemente. Peguei no seu corpo com a ajuda de outro companheiro e o conduzimos ao posto médico, situado a cem metros da zona do combate, em direcção à linha de fronteira. Aí, Virgílio Duverger, médico cubano, informou-me que ele havia falecido.


Como não podíamos deixar o cadáver do dirigente guineense nas mãos das forças portuguesas, pegámos no seu corpo e num camião deslocámo-nos pelos campos de arroz até a fronteira com a Guiné-Conacri [na área de Tiankoye, ver imagem de satélite acima]. Chagados a Boké, aonde se encontrava o posto de comando fronteiriço, entregámos o seu cadáver ao companheiro Aristides Pereira [1923-2011], para que pudesse fazer o funeral e render-lhe as honras que merecia esse combatente, que foi um dos primeiros grandes chefes do PAIGC a morrer em combate.


Como  consequência do aprofundamento desta temática, foi possível chegar a novas informações relevantes para a historiografia da "guerra", pelo que este ponto contém novos dados que permitem actualizar as narrativas anteriores [P16613 e P16662].


4.   - VISITA DE AMÍLCAR CABRAL A GAOUAL EM SETEMBRO DE 1965 EM DIA DE TEMPESTADE


A carta de Amílcar Cabral enviada a seu irmão Luís, que decidimos dar conta neste último ponto, tem por objectivo validar o que é normal acontecer no ciclo da "época das chuvas": o dia 13 de Setembro de 1965, 2.ª feira, foi mais um dia de "tempestade" na região do Boé.


Eis o seu conteúdo:
 
"Aí vão algumas sugestões para os teus pupilos e pupilas (dos teus olhos), depois de ter feito uma análise de cada caso, embora breve.


É indispensável que as sarnosas estejam fora da escola. As graúdas para Boké a espera novo estágio. Não descobri ninguém para o (?) feminino. Paciência. Talvez tu.


Afinal vim numa só etapa, por Gaoual. Ganho 1 dia e talvez saia daqui na 4.ª feira [15Set65], porque não há muito que fazer. A não ser que fique no Gabú, como responsável.


Trabalhem muito, como sempre e até breve. Já passaram as angústias, apesar de tudo (falo de problemas pessoais, se a isso ainda temos direito).

►►► AQUI ESTÁ UM TEMPORAL…

Saudades do mano e camarada. Amílcar    

 



Fonte > Citação:
(1965), Sem Título, Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_35080, com a devida vénia.

 

Como complemento ao estudo publicado na Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiental, titulado «Distribuição espacial de valores prováveis de precipitação pluvial para períodos quinzenais, em Guiné-Bissau»: P22106 (15.04.21) aproveito agora para divulgar os «Dados climatéricos observados em Conacri entre 1961-1990».

 


Figura 1 – Distribuição da média meteorológica anual observada em Conacri (República da Guiné), no período de 1961-1990. Na caixa a vermelho, estão referidos os valores e os dias em que se registou pluviosidade, onde encaixam as datas dos dois eventos organizados pelo PAIGC em 1973 (II Congresso e a 1.ª Assembleia Nacional Popular).


Fonte > «Conakry Climate Normals 1961–1990». National Oceanic and Atmospheric Administration, com a devida vénia.

(Continua… com outras análises)


► Fontes consultadas:


Ø Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 7.º Volume; Fichas das Unidades; Tomo II; Guiné; 1.ª edição; Lisboa (2002).


Ø (1) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 05359.000.020. Título: Amílcar Cabral e outros companheiros a caminho do I Congresso do PAIGC. Assunto: Amílcar Cabral e Armando Ramos, entre outros, a bordo de uma canoa, a caminho do I Congresso do PAIGC, em Cassacá. Autor: Luís Cabral. Inscrições: A caminho de Cassacá. Data: 1964. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Fotografias.


Ø (2) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 04606.049.066. Título: Movimento de nacionalistas do PAIGC na zona de fronteira de Lela, região Administrativa de Gaoual. Assunto: Relatório do Comandante da Brigada de Fronteira de Gaoual sobre os movimentos de militantes do PAIGC e das tropas portuguesas na região. Reporta o caso de três nacionalistas que se juntaram ao exército colonial. Data: Sábado, 19 de Novembro de 1966. Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência com o governo da Guiné-Conacri 1960-1966. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.


Ø (3) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 04606.049.065. Assunto: Cópia do relatório de esclarecimento relativo ao Movimento dos Nacionalistas Portugueses (PAIGC) no posto da fronteira de LELA, na região de Gaoual. Remetente: Diallo A. Abdoulaye, Gabinete do Ministro. Destinatário: Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC. Data: Terça, 29 de Novembro de 1966. Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência com o governo da Guiné-Conacri 1960-1966. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.


Ø (4) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 04606.049.064. Assunto: Condolências pela morte de Domingos Ramos, em pleno campo de batalha. Remetente: Diallo Alpha Abdoulaye, pelo Ministro e pelo Secretário-Geral do Ministério dos Negócios da Guiné-Conacri. Destinatário: Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC. Data: Quarta, 23 de Novembro de 1966. Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Correspondência com o governo da Guiné-Conacri 1960-1966. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.


Ø (5) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07061.032.042. Assunto: Sugestões para os pupilos da escola. Gaoual. Remetente: Amílcar Cabral. Destinatário: Luís Cabral. Data: Segunda, 13 de Setembro de 1965. Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.

Ø Outras: as referidas em cada caso.

 

Termino agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

7Mai2021

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Nota do editor:


(*) Postes anteriores da série >


21 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22122: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte II: Missão a Gaoual (Jorge Araújo)

(...) Conforme ficou expresso no P22106 (15Abr21), que serviu de lançamento do projecto de "reconstrução historiográfica do puzzle do Boé" e zonas limítrofes (a que for possível…), seria interessante poder encontrar provas factuais sobre a incógnita, a misteriosa, a obscura ou a enigmática localização onde decorreu a «I Assembleia Nacional Popular», durante a qual teve lugar a «Proclamação Solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973», assim como o da realização do «II Congresso», que legitimou o evento anterior. Enquanto tal não acontecer, estes dois factos continuam a ser considerados como "embustes históricos" (...)

15 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22106: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte I: A variável "clima" (Jorge Araújo)

(...) Estão prestes a completar quarenta e oito anos os dois acontecimentos planeados pelo PAIGC que, do ponto de vista histórico e da dinâmica política da época, acabaram por influenciar as duas dimensões do conflito: a militar e a diplomática, ambas dependentes de diferentes apoios internacionais [OUA e ONU, enquanto decisores supremos], com o propósito de pôr um ponto final no "Império Colonial" de Portugal, através do reconhecimento da independência, neste caso, da dita Província Ultramarina da Guiné.

O sucesso da estratégia supra, concebida pelo ideólogo Amílcar Cabral (1924-1973) antes do seu assassinato em Conacri, ocorrido em 20 de Janeiro de 1973, sábado, passava pela organização de um «Congresso (II)», evento que serviria para legitimar a realização da «I Assembleia Nacional Popular da Guiné-Bissau», durante a qual seria, de modo unilateral, proclamado o nascimento de uma nova Nação / Estado: a República da Guiné-Bissau. (...)

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Guiné 61/74 - P22122: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte II: Missão a Gaoual (Jorge Araújo)


Foto 1 > fonte: Citação:
 (1973), "II Congresso do PAIGC, na Frente Leste" [18 a 23 de Junho de 1973], Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_44115, com a devida vénia.

 


Imagem de satélite do itinerário entre Boké e Gaoual, com 151 kms (google.com; hoje), localidades da República da Guiné, sinalizando-se, ainda, algumas das povoações da região do Boé (Boé, Béli e Lugajole) situadas no Sudeste do território da Guiné [GB].





O nosso coeditor Jorge [Alves] Araújo, ex-Fur Mil Op Esp/Ranger, CART 3494
(Xime e Mansambo, 1972/1974), professor do ensino superior, ainda no ativo. Tem cerca de 290 referências no nosso blogue.


 

GUINÉ: (D)O OUTRO LADO DO COMBATE

UM OUTRO OLHAR SOBRE O "LOCAL MISTERIOSO" DA PROCLAMAÇÃO SOLENE DO ESTADO DA GUINÉ-BISSAU, EM SETEMBRO DE 1973, EM PLENA ÉPOCA DAS CHUVAS

PARTE II

- AS PRIMEIRAS "ACÇÕES" E O ESTUDO DAS ACESSIBILIDADES ('CORREDORES') NA FRONTEIRA DO BOÉ, EM JUNHO DE 1964 -

 


► Continuação do P22106 (I) (15.04.21) (*)


1.   - INTRODUÇÃO


Conforme ficou expresso no P22106 (15Abr21), que serviu de lançamento do projecto de "reconstrução historiográfica do puzzle do Boé" e zonas limítrofes (a que for possível…), seria interessante poder encontrar provas factuais sobre a incógnita, a misteriosa, a obscura ou a enigmática localização onde decorreu a «I Assembleia Nacional Popular», durante a qual teve lugar a «Proclamação Solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de Setembro de 1973», assim como o da realização do «II Congresso», que legitimou o evento anterior. 


Enquanto tal não acontecer, estes dois factos continuam a ser considerados como "embustes históricos", por fazerem parte do "imaginário político e maquiavélico do PAIGC".


Porque nos documentos consultados, relativos ao desenrolar das duas cerimónias, não existem quaisquer referências à variável "clima" (ventos e chuva), o mesmo acontecendo nas imagens das curtíssimas e cirúrgicas reportagens fotográficas a que tivemos acesso, as suspeitas manter-se-ão inalteráveis, uma vez que ambas foram organizadas em "plena época das chuvas".



Por outro lado, ainda que tenhamos procedido à leitura das narrativas que constituem o vasto espólio existente no Blogue, com início no P3911, de 18Fev2009 (já lá vão doze anos!), o objectivo não é repeti-las, embora a elas possamos recorrer, sempre que necessário, como fonte primária de informação. 


O que está implícito neste "desafio de resiliência" é percorrer "outros (novos) caminhos, trilhos ou picadas da Região do Boé", ou com eles relacionados, sinalizados na análise hermenêutica dos documentos disponíveis nos arquivos de Amílcar Cabral (1924-1973), aos quais se adicionam algumas "peças jornalísticas" apoiadas em factos relevantes, e na sua triangulação, por serem as únicas hipóteses que hoje dispomos, pois as outras, as do "terreno", já não são exequíveis.


Como primeiro exemplo do que acabámos de descrever, está o facto de no âmbito das "Comemorações do 42.º Aniversário da Independência da Guiné-Bissau" (1973-2015), o jornalista guineense (creio) Lassana Cassamá, correspondente da VOA – organização internacional de notícias multimédia dos EUA, ter referido que Teodora Inácia Gomes [foto 1], nascida em 13 de Setembro de 1944, em Empada, região de Quinara, militante e dirigente do PAIGC desde 13 de Junho de 1964, ter feito "parte das poucas pessoas que procuraram e encontraram o local da proclamação da Independência Nacional, entre Luís Cabral (1931-2009) e Nino Vieira (1939-2009).


Esta é, naturalmente, uma boa informação!


Fonte:

https://www.voaportugues.com/a/guine-bissau-assinala-42-anos-de-independencia/2972574.html



Depois da (mítica) "Madina do Boé" ter sido indicada como o local da (última) cerimónia, outros foram alvitrados como alternativa ao oficial, todos eles pertencentes à região do Boé, de que são exemplos: "Lugajole", "Vendu-Leidi", "Lela" ou "Malanta"…, como referido no P21554, de 17Nov2020. 


Será que, para além destas, poderemos encontrar outra (s) possibilidade (s)? É esse o objectivo de partida!


Para a sua concretização, foi/está definido um plano de estudo, estruturado por ordem cronológica, de modo a compreender as consequências da actividade operacional das forças beligerantes, e das suas estratégias, bem como das influências produzidas por estas na mobilidade dos diferentes agregados populacionais que foram afectados.


Assim, nesta parte dois, para começar, daremos a conhecer os objectivos das primeiras "acções" da guerrilha, elencadas por Amílcar Cabral, a que deu o nome de «Missão a Gaoual», a realizar em Junho de 1964 (ano e meio depois do início do conflito). 

Esta missão, atribuída a Armando Ramos, incluía a realização de vários estudos nas áreas de fronteira entre as duas Guinés, merecendo destaque, neste âmbito, os relacionados com as acessibilidades – "corredores" de passagem e circulação mais seguros – na região do Boé.


2.   - AS PRIMEIRAS ACÇÕES DA GUERRILHA NA REGIÃO DO BOÉ:

   - EM CADA UM DOS LADOS DA FRONTEIRA

2.1 - Missão a Gaoual


1. – Contacto com o Governador. Expor as razões da visita. Pedir-lhes todo o apoio, no quadro do que ficou estabelecido na reunião que o Secretário-geral teve com ele e outros responsáveis da República da Guiné no Ministério da Defesa Nacional e Segurança.


2. – Colher o maior número de informações em Gaoual mesmo sobre a situação no Boé.


3. – Visitar a fronteira, indo por Koumbia e Ngolé até Lela. De Lela ir a pé até Hancundi, na mata que está próximo da fronteira. Estudar as possibilidades da travessia do rio Féfiné-Senta. Estudar as condições da mata. Estudar o caminho a pé que vai de Lela à fronteira, entrando pelo Boé. Na volta ir a Pato-Kono, perto de Guidali e tomar, a pé ou de jeep, o caminho que segue para Fidibore e Kampoundiny, indo até à fronteira. Estudar esta zona.

 

 


 


Imagem de satélite da região do Boé, sinalizando-se, a vermelho, a linha de fronteira onde deveriam ser identificados os melhores locais para funcionarem como "corredores" ou "portas de entrada".


4. – Obter informações sobre a possibilidade de passagem, a pé ou de carro, entre Neteré (perto do Rio Féfiné) e Tiankouboye (perto de Madina do Boé).

5. – Durante a visita à fronteira, obter o maior número de informações sobre a situação no Boé, sobretudo no que se refere a Béli, Dinguiras, Madina, Dandum. Enviar para dentro do país um ou mais comissários informadores, se possível, os quais devem regressar com urgência, antes do fim da missão.

6. – Regressar a Gaoual. Contactar de novo o Governador e regressar a Conacri.

 


2.2 - Informações que interessa obter - concretamente


● No exterior


a) – Movimento de pessoas entre os dois lados. Se há gente do lado da República da Guiné que dá informação ao inimigo. Se há famílias que vivem dum lado e do outro da fronteira.

b) – Comércio entre os dois lados. Se há gilas que fazem vaivém constantes. Se a gente do lado da República da Guiné está interessada no comércio com a gente do nosso lado.

c) – Gente da nossa terra que vive do lado de cá, permanentemente, tanto em Gaoual como nas outras povoações próximas da fronteira. Ligações entre essa gente e a do interior.

d) – Onde estão os oportunistas. Quantos são exactamente (homens e mulheres). O que estão a fazer. Quem são os chefes.

e) – Se os habitantes das povoações próximas da fronteira, na República da Guiné, são ou não simpatizantes com a nossa luta. Se estão ou não predispostos a ajudar, em caso de necessidade.

  



f) – Possibilidades de alimentação na proximidade da fronteira. Se há arroz e outros alimentos de base.

g) – Natureza e estado das estradas, picadas e caminhos, na República da Guiné, perto da fronteira ou conduzindo à fronteira. Possibilidade real da passagem de jeep e de camião.

h) – Rios presentes no caminho e ao pé da fronteira. Possibilidades de os atravessar.

i) – Natureza do terreno (montes, vales, mato, floresta, etc.).

j) – Condições da mata de Lela [na República da Guiné]. Se é boa para instalar uma base de combatentes.


● Em relação ao interior:


a) – Se há tropas portuguesas no Boé e número exacto ou aproximado, armas de que dispõem, onde estão instaladas. Se fizeram fortes, trincheiras, etc..

b) – Quem é o chefe de Posto em Madina (nome, branco ou africano, etc.). Quem é a autoridade colonial em Béli e em Dandum.

c) – Se os chefes fulas são todos contra nós. Quais os que são contra nós: nome, importância, local onde vivem, posição do povo em relação a eles, etc.. Se as suas tabancas estão fortificadas.

d) – Se os chefes fulas têm armas e gente armada. Quantos homens, que espécies de armas, em que localidades.

e) – Se a jangada de Ché-Che que liga para o Gabú, está a funcionar ou não. Se há outras jangadas no rio Corubal, onde estão instaladas. Se há tropas (portugueses ou fulas) a defender a jangada.

  



Foto 2 > Região do Boé > Estrada (picada) de Ché-Che para Béli (30Jun2018), cinquenta e quatro anos depois da missão ordenada por Amílcar Cabral, em 24Jun1964. Foto do álbum de Patrício Ribeiro – P18862, com a devida vénia.


f) – Estado em que se encontra a estrada entre Contabane (perto do Saltinho) e Madina do Boé. Se a tropa portuguesa vigia ou anda nessa estrada.

g) – Estado da estrada entre Ché-Che (rio Corubal) e Béli e entre Ché-Che e Madina. Estado da estrada entre Béli e a fronteira (Vendu-Leidi). Estado da entrada entre Madina e a fronteira.

h) – Informações sobre número, armamento, presença de soldados africanos, etc., nas tropas inimigas estacionadas em Piche e Gabú-Sare (Nova Lamego).

i) – Possibilidades reais de travessia (onde e por que meios) do rio Féfiné no Boé.

 

 




Foto 3 > Região do Boé > Picada para Dandum (30Jun2018), cinquenta e quatro anos depois da missão ordenada por Amílcar Cabral, em 24Jun1964. Foto do álbum de Patrício Ribeiro – P18863, com a devida vénia.



j) – Situação alimentar no Boé. Se há arroz e outros alimentos de base (milho, milho preto, funcho, etc.). Se a população não tem falta de alimentos e de artigos de primeira necessidade (sal, fósforos, tabaco, açúcar, tecidos, etc.).

l) – Se há comerciantes europeus (ou africanos) em Madina, Béli e Dandum. Quem são e quantos são.

(m) – Situação Política – Se o povo está contente. Se sabe bem da luta. Se há gente que aprova a luta. Se a população paga impostos e a quem paga (aos chefes fulas, ao chefe do Posto?).

n) – Empregados e funcionários africanos no Boé. Quem são, qual a sua posição em relação ao Partido e a luta, estado da família, etc..

 



Fonte: Citação:
(1964), "Missão AR - Missão a Gaoual", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40180 com a devida vénia

(Continua… com outras análises) 

 ► Fontes consultadas:

Ø  (1) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 07061.033.030. Título: Missão AR – Missão a Gaoual. Assunto: Instruções de Amílcar Cabral para Armando Ramos - Missão a Gaoual. Pontos que devem ser discutidos com o Governador de Gaoual e as informações que devem ser aí recolhidas. Missão de reconhecimento à fronteira com a Guiné-Conakry, exterior e interior (Boé). Declaração. Data: Quarta, 24 de Junho de 1964. Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Manuscritos de Amílcar Cabral. Nota de Amílcar Cabral: "Lucette: Arquivar". Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.


Ø  (2) Instituição: Fundação Mário Soares Pasta: 05248.000.048. Título: II Congresso do PAIGC, na Frente Leste (?). Assunto: II Congresso do PAIGC, na Frente Leste: Teodora Inácia Gomes, Arafam Mané, Silvino da Luz [Juvêncio Gomes], José Araújo, Bernardo Vieira (Nino), Aristides Pereira, Luís Cabral, Pedro Pires, Vasco Cabral, Carmen Pereira e Victor Saúde Maria. Data: Segunda, 18 de Junho de 1973 – Sexta, 22 de Junho de 1973. Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral. Tipo Documental: Documentos.


 

Ø  Outras: as referidas em cada caso.

Termino agradecendo a atenção dispensada.

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.

Jorge Araújo.

20Abr2021

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Nota do editor:


(*) Último poste da série > 15  de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22106: Um olhar crítico sobre o Boé: O local 'misterioso' da proclamação solene do Estado da Guiné-Bissau, em 24 de setembro de 1973, em plena época das chuvas - Parte I: A variável "clima" (Jorge Araújo)