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domingo, 28 de abril de 2019

Guiné 61/74 - P19725: No 25 de abril eu estava em... (27): Lisboa: naquele dia 25 de Abril de 1974, quinta-feira, tudo estava programado para ser um dia igual a tantos outros (Carlos Pinheiro)

1. Em mensagem do dia 26 de Abril de 2018, o nosso camarada Carlos Pinheiro (ex-1.º Cabo TRMS Op MSG, Centro de Mensagens do STM/QG/CTIG, 1968/70), enviou-nos esta sua memória do 25 de Abril de 1974, quando já na disponibilidade, trabalhava na sede do antigo Crédito Predial Português, na Rua Augusta, em Lisboa.


O meu 25 de Abril de 1974

Trabalhava e morava durante a semana em Lisboa. Era solteiro e bom rapaz. Tinha um quarto em casa de familiar na Avenida 24 de Julho, no n.º 1, mesmo em frente à Estação do Cais do Sodré. Era empregado bancário no Crédito Predial Português, na sua sede, na Rua Augusta. Levantava-me sempre cedo, e dava para ir a pé até ao serviço, uma vez que só entrava às 9 horas.

Naquele dia 25 de Abril de 1974 tudo estava programado para ser um dia igual a tantos outros. Era quinta-feira, mas nesse dia, bem cedo ainda, a vizinha do lado bateu com muita força à porta a dizer que havia uma revolução. Nem tomei banho. Enfiei umas calças, vesti uma camisa e vim para a janela armado com o rádio, que era inseparável desde o 16 de Março, e com os binóculos.

Daquela janela via-se o Tejo todo desde o Terreiro do Paço, desde o Mar da Palha, desde o Seixal até à Trafaria. O rádio, aquele transístor pequeno Sharp, transmitia música portuguesa. Era o Rancho Tá-Mar da Nazaré, lembro-me bem. Pego nos binóculos e vejo nitidamente carros de combate, ali para Santos a descerem a Avenida, apoiados por tropas apeadas. Vêm descendo vagarosamente. A Rádio transmite aquilo que foi para mim, o 1.º Comunicado do Movimento das Forças Armadas a anunciar a movimentação das tropas, a pedir para que as pessoas não saíssem de casa, a pedir às forças de segurança para não se envolverem com os militares, a pedir para que os médicos se dirigissem para os hospitais, etc., etc.

Começo a compreender a situação. Sinto-me encantado mas preocupado com o que podia vir a acontecer. Não sabia ainda se as forças que vinham a descer a avenida se eram a favor ou contra o Movimento. Mesmo descendo vagarosamente a Avenida, os tanques aproximam-se. Com os binóculos que ajudam a ver bem, verifico que alguns eram de Cavalaria 7, ali na Ajuda. Mas alguns eram de Cavalaria 4, de Santa Margarida, que depois do 16 de Março tinham ido reforçar Cavalaria 7, como vim a saber depois.

O Tejo estava cheio de barcos de guerra. Era uma Esquadra da NATO que andava pelo Atlântico em manobras e que dias antes tinha aportado ao Tejo. Curiosamente, esta esquadra só zarpou do Tejo depois da revolução estar consolidada. Vá-se lá saber porquê. Passados que são trinta e seis anos nunca me apercebi que qualquer historiador se tenha debruçado sobre este pormenor que até poderia ter sido... pormaior.

As tropas apeadas tomam posição na Estação do Cais do Sodré. Os comboios vão despejando pessoas na gare. Os barcos de Cacilhas despejam também os seus passageiros. Tudo com ar de admiração. Ninguém sabia o que estava a acontecer. Muitos iam apanhar os autocarros para os seus destinos. Os carros de combate passam e dirigem-se para o Terreiro do Paço. Acabo de me vestir, faço a barba à pressa, como qualquer coisa e vou para a rua para ir para o Banco.

A meio da Rua do Arsenal, oiço alguns tiros. Eu e muita gente que ia na rua entrámos na primeira porta que estava aberta. Alguns foram até ao segundo andar de um prédio escuro,  ali perto do Rei do Bacalhau. Senti bem o cheiro da pólvora que me fez lembrar um célebre dia 13 de Junho de 1969 em Bissau. Como não se ouvissem mais tiros, dei meia volta e resolvi voltar para trás. Aliás a rádio já tinha avisado para as pessoas se manterem calmas, mas em casa.

Antes de subir ao meu quarto andar, fui à mercearia do Coutinho, ali na Travessa dos Remolares, procurar mantimentos. Ali ao lado, nas traseiras do Mercado da Ribeira, na Rua dos Remolares, estava uma coluna enorme de jipes da GNR armados com as Mausers, e se calhar com outro armamento mais pesado mas não à vista, todos de capacete na cabeça e parados. Estavam à espera de ordens. Se calhar, pensei eu, estavam do contra e pretendiam ir reforçar alguma posição, talvez no Carmo, uma vez que a Rua do Alecrim, ali perto lhes daria acesso fácil. Mas não liguei muito. Aliás não podia ligar.

A minha preocupação naquela altura era só os mantimentos e já seriam umas 10,30. Não havia tempo a perder. Na mercearia já não havia pão mas havia vários fregueses. Comprei bolachas de água e sal, um garrafão de água do Luso, daqueles de vidro daquela altura, umas latas de sardinha, de atum e salsichas, velas, fósforos e pilhas para o rádio. O rádio tinha que estar em condições de trabalhar sempre. Em casa ainda havia batatas, arroz, massa e azeite, Tudo aquilo sempre daria para se fazerem umas refeições de subsistência porque em tempo de guerra não se limpam armas.

Mas eu queria telefonar para Torres Novas e para Alcanena. Mas onde, se em casa não havia telefone? A minha tia lá arranjou um almoço catita e lá continuámos a ouvir a rádio com comunicados mais ou menos calmos mas a denotar que nem tudo ainda estava resolvido. Televisão não havia. O reviralho parecia estar prestes a chegar.

Da minha janela privilegiada começo a ver a Esquadra da NATO a zarpar do Tejo. Ficou só uma Fragata, nossa, que também estava integrada na Esquadra mas ficou. Foi essa Fragata que,  ainda de manhã cedo,  teve um papel preponderante na revolução quando não cumpriu a ordem de atirar fogo para o Terreiro do Paço, segundo depois se soube. Se isso tivesse acontecido teria havido uma carnificina. Mas a Fragata também sofreria as consequências das peças de Artilharia da Escola de Vendas Novas que estavam posicionadas no Cristo Rei. Foi melhor assim.

De tarde, a meio da tarde, talvez lá para as 4, procurei ir aos Correios, ali à Praça de D. Luís, para telefonar. Foi nessa altura, soube mais tarde, que houve confrontos junto à sede da PIDE na Rua António Maria Cardoso. Ainda conseguiram matar um popular e ferir mais alguns. Ouvi as balas a assobiar a passar lá muito por cima. Voltei a entrar numa porta que estava aberta e não fui sozinho.
Depois as coisas acalmaram, certamente quando a Marinha conseguiu tomar aquilo de assalto.

Ainda fiz os telefonemas e todos ficámos mais descansados. Quando ia para casa, ali junto, na Praça Duque da Terceira, vejo que a Rua do Alecrim estava cheia de carros de bombeiros certamente para combater algum incêndio que a PIDE pudesse vir a provocar.

Lá fui continuando a ouvir a rádio. Fala-se do Quartel do Carmo. Pensei que os outros GNR talvez estivessem a caminho do seu Quartel-general para reforçar posições. Mas não conseguiram atingir o objectivo uma vez que as tropas do Salgueiro Maia, depois da consolidação do Terreiro do Paço, tinham ido lá para cima onde estava refugiado o Marcelo Caetano.

Depois, depois foi aquilo que já se sabe. À noite, na casa da vizinha do lado, lá vi o Spínola a fazer o seu comunicado ao país,  ladeado pelos restantes membros da Junta de Salvação Nacional.

Foi assim o meu dia 25 de Abril de 1974. Estávamos num país novo.

Carlos Pinheiro
23.04.10 (Passados 36 anos)
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de fevereiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15804: No 25 de abril eu estava em... (26): Turquel, Alcobaça, de férias... Vim logo para Lisboa nesse dia e por aqui permaneci, até regressar a Bissau, em 3 de maio (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74)

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Guiné 61/74 - P19490: Notas de leitura (1149): O litígio entre Portugal e a ONU (1960-1974), por António Duarte Silva; Revista Análise Social, n.º 130, 1995 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Outubro de 2016:

Queridos amigos,
O artigo tem 20 anos, mas ganhou poucas rugas, o que destaca é história diplomática consolidada: o sopro anticolonial que muda de feição e volume em 1960, a diplomacia de Salazar ficará doravante em minoria, mas inicialmente vai resistindo; depois a guerra alastra e surge um interlocutor muitíssimo incómodo, Amílcar Cabral; a partir de Marcello Caetano, a Guiné apresenta-se como um espinho à política de Lisboa, em toda a cena internacional. O pano vai baixar quando a Guiné-Bissau declara a sua independência unilateral, mesmo os mais otimistas sabiam que o destino estava selado.
António Duarte Silva ao longo de cerca de 50 páginas analisa as diferentes fases do conflito, deixa bem claro que aos poucos o Império Colonial Português perdera praticamente todo o apoio.

Um abraço do
Mário


O litígio entre Portugal e a ONU (1960-1974), por António Duarte Silva

Beja Santos

Quando nos debruçamos sobre as realidades da guerra colonial, nem sempre cuidamos dos acontecimentos que ocorrem em simultâneo na frente diplomática. Mesmo antes de eclodir a guerra em Angola, o governo português passou a ser confrontado por incómodas perguntas de cunho anticolonial, chegavam do Palácio de Vidro e foram um barómetro ao longo de 15 anos de litígio de como a posição diplomática portuguesa foi enfraquecendo até ao isolamento quase total. O longo estudo publicado por António Duarte Silva na revista Análise Social, n.º 130, 1995 contextualiza as diferentes fases por que passou tão decisivo litígio. Como diz o autor que distingue seis períodos de litígio, o estudo demonstra como a ONU tentou, primeiro, entre 1961 e 1963 impor-se a Portugal e como este resistiu; de 1964 a 1967 assistiu-se a uma fase de escalada e impasse. Depois da substituição de Salazar, a ONU ensaiou uma via mais moderada, cujo fracasso a levou a tomar medidas sucessivamente mais radicais; após o 25 de Abril, apesar de Portugal ter reconhecido o direito à descolonização e as suas obrigações perante a Carta, a ONU desempenhou um papel secundário e marginal na descolonização portuguesa.

Estamos na paz fria (1956-1960), em 14 de Novembro de 1955 Portugal adere à ONU num cenário de peripécias da Guerra Fria, nesse mesmo dia foram admitidos a Albânia, Bulgária, Cambodja, Ceilão, Finlândia, Hungria, Itália, Jordânia, Laos, Líbia, Nepal, Roménia e Espanha. Em Fevereiro do ano seguinte, o Secretário-Geral enviou ao governo português uma carta perguntando “se administra territórios que entrem na categoria indicada no artigo 73.º da Carta?”. Seis meses depois, o governo português respondia: “Portugal não administra territórios que entrem na categoria indicada no artigo 73.º da Carta”. Começava abertamente o desafio à corrente política mundial, os ventos sopravam anticolonialismo. Salazar não admitia interferências alheias. Perante esta resposta negativa, um conjunto de países subscreveu uma proposta onde se propunha a criação de um comité especial incumbido de estudar esta matéria, além de mais, a Assembleia continuava a considerar as questões relativas ao artigo 73.º como questões importantes, sujeitas à regra da maioria de dois terços, o que descansou Salazar. Mas tudo se vai alterar radicalmente em 1960 com a independência de 18 novos Estados. Na ONU a relação de forças inverte-se, consolida-se uma maioria favorável à descolonização e mesmo os EUA e Reino Unido modificam a sua política, deixando de votar com Portugal.

A política diplomática portuguesa não mais teve descanso, à luz do artigo 73.º, os relatórios sucedem-se aos relatórios sobre autodeterminação, territórios não autónomos, colónias. E no final de 1960, a Assembleia-Geral aprova uma resolução que deixa claro que os territórios sob administração de Portugal eram não autónomos.

De 1961 a 1963 vão chover resoluções na órbita dos acontecimentos de Angola e exige-se a Portugal o reconhecimento imediato do direito dos povos dos seus territórios não autónomos à autodeterminação e independência, com a retirada das forças militares. Começa a luta armada na Guiné e o tom das resoluções endurece: rejeita-se categoricamente o conceito português de províncias ultramarinas; considera-se que a situação nesses territórios perturbava seriamente a paz e a segurança em África; solicitava-se que nenhum Estado facilitasse a repressão ou a ação militar portuguesa naqueles territórios. Salazar responde com o seu discurso de 12 de Agosto de 1963, fecha todas as portas a nível internacional e dramatiza: “nós havemos de chorar os mortos se os vivos os não merecerem”. O isolamento é iniludível, Salazar volta-se para a África do Sul, propõe cooperação. Vão fracassar todas as conversações mediadas pela ONU, mesmo os planos propostos pela administração norte-americana. E no fim do ano 1963 cresce o endurecimento da ONU. Os termos do conflito entre a ONU e Portugal assentavam em três críticas principais: respeito da Carta, observância dos direitos humanos e ameaça à paz e à segurança internacionais. Portugal joga com a sua posição na NATO, mas o cerco diplomático tem vários nomes: o grupo afro-asiático, o bloco comunista, o grupo latino-americano, os europeus que não foram potências coloniais, os EUA, o Reino Unido, a França, a Espanha e a África do Sul. O Brasil de Jânio Quadros e de João Goulart aproximou-se dos Estados afro-asiáticos, os Estados europeus não coloniais apelam a uma descolonização bem-sucedida, a posição dos EUA conhecerá um momento de grande crispação na presidência de Kennedy, doravante terá os seus matizes e até cumplicidades, a RFA e a França não esconderão serem importantes parceiros comerciais portugueses com estreitas relações diplomáticas e militares. Amílcar Cabral, por via da Comissão de Descolonização, traz mais dor de cabeça a Lisboa: denuncia a ajuda militar da NATO, convida a comissão a visitar as regiões libertadas da Guiné-Bissau. A Comissão deixa de falar nos “territórios administrados por Portugal”, passando a referir-se aos “territórios sob dominação portuguesa”. As condenações sucedem-se, a dureza dos termos cresce.

Vai seguir-se um período de moderação na substituição de Salazar por Marcello Caetano, a despeito do governo português não dar qualquer sinal sobre um eventual reconhecimento do direito à autodeterminação, os termos suavizam-se, nas resoluções pede-se a Portugal, repetidamente, que não utilize meios de guerra química contra as populações. Em 22 de Novembro de 1970 o governo português põe-se a jeito, graças ao ataque a Conacri, rapidamente se percebeu que a condenação portuguesa pelo Conselho de Segurança trazia uma nova destabilização: a presença de navios soviéticos nas águas da República da Guiné, a URSS legitimava a sua presença na África Ocidental. Aumentavam os efetivos e as despesas militares, tirando o controlo da guerrilha no Norte de Angola, tudo alastrava na Guiné e em Moçambique.

E assim se chegava ao agravamento do litígio e isolamento português. Em Fevereiro de 1972, durante uma sessão do Conselho de Segurança em Adis-Abeba, Amílcar Cabral implicava maiores responsabilidades para o próprio Conselho, dizendo: “Aquele que não compreendeu a nossa natureza de soldado anónimo das Nações Unidas não compreendeu os princípios desta mesma Organização nem os objectivos da libertação nacional”. E colocou a questão do reconhecimento de representatividade do PAIGC, evocando, pela primeira vez perante a ONU, o problema da admissão da Guiné libertada na ONU. Uma delegação do Comité de Descolonização deslocara-se ao interior da Guiné e produzira um relatório favorável, a resolução daí adveniente foi o de apelar a que Portugal encetasse negociações para dar uma solução ao conflito armado. Em 1973, tudo se altera com a declaração unilateral da independência da Guiné-Bissau e à volta do 25 de Abril de 1974 a ONU preparava-se para receber a nova República.

Depois de um sinuoso processo em que Spínola se confrontou com o MFA e os partidos que sempre reclamavam a autodeterminação e a independência, aprovou-se a lei constitucional 7/77, de 27 de Julho, estava aberto o caminho para o reconhecimento da Guiné-Bissau e para negociações com os movimentos de libertação. Nesta fase da vida diplomática portuguesa procurou-se atrelar o processo da descolonização à ONU, era esta a estratégia de Veiga Simão e Spínola, exceção seria a Guiné-Bissau. Em 17 de Setembro, a Guiné-Bissau foi o 138.º Estado-Membro a ser admitido. Terminava o litígio com a ONU iniciado em 1960. Mário Soares pronunciou o seu primeiro discurso em 23 de Setembro, subordinado ao tema O Novo Portugal e as Nações Unidas. Cerca de um mês depois, Costa Gomes era o primeiro presidente da república portuguesa a intervir na ONU, pôde dirigir-se “a todos os povos do mundo”.

Assembleia Geral da ONU
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Nota do editor

Último poste da série de 8 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19481: Notas de leitura (1148): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (72) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19103: Notas de leitura (1109): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Fevereiro de 2018:

Queridos amigos,
O autor e seguramente a equipa que com ele colaborou em "Livro Negro da Descolonização" procuraram legitimar o princípio da autodeterminação do Ultramar português como a coisa mais lógica do mundo, a despeito do pusilânime Marcello Caetano ter recusado a consulta popular que teria levado à derrota dos movimentos de libertação.
Na Guiné, tudo seria simples, far-se-ia um referendo, até havia a FLING, o Movimento Democrático da Guiné e a Liga Popular dos Guinéus, e havia a temível força africana, muitíssimo superior ao PAIGC, eram favas contadas. E é com este raciocínio simplório em que as unidades militares portuguesas queriam retirar prontamente, em que a pressão internacional para reconhecer a República da Guiné-Bissau na ONU no princípio do Outono era enorme, não merecem uma só palavra, assim se faz História confundindo desejos com realidades. E já não falo nos disparates avançados sobre a situação militar.

Um abraço do
Mário


Livro Negro da Descolonização, por Luiz Aguiar (2)

Beja Santos

Poder-se-á questionar qual o grau de utilidade de aqui se referir um livro intitulado “Livro Negro da Descolonização”, tendo por autor Luiz Aguiar, Editorial Intervenção, 1977, em que se propunha uma tese hoje varrida do esquecimento: em 1974, já não tínhamos colónias, tínhamos territórios autodeterminados que aguardavam uma consulta popular que relegaria para o caixote do lixo da História os movimentos de libertação.

Se se tiver em conta que nesse mesmo ano de 1977 se escreveu um livro intitulado “África - Vitória Traída” em que um conjunto de oficiais-generais dava como demonstrado que tudo estava a correr de feição nas frentes militares até à chegada do MFA, e que no nosso tempo anda um tenente-coronel aviador a procurar legitimar que o Estado Novo se via forçado a combater em parcelas africanas a que tinha direito e que a guerra que desenvolvíamos era indiscutivelmente sustentável, não se podem iludir os diferentes matizes ideológicos dos ramos ultranacionalistas.

Na tese maior de o “Livro Negro da Descolonização”, como praticamente em todos aqueles oriundos da cepa ultranacionalista, nunca cabe uma reflexão sobre o nacionalismo africano e a luta anticolonial, há um completo silêncio sobre o pano de fundo da busca de identidade dos povos coloniais. Mas, reconheça-se, este livro de Luiz Aguiar e seus parceiros de escrita trazia uma modificação da lógica quanto aos deméritos da descolonização: não se escamoteavam os erros do passado, introduzindo uma varinha mágica: a vontade de autodeterminação irmanava nativos e radicados nos territórios chamados “províncias ultramarinas”. É uma tese que reconhece o princípio da autodeterminação que consta da Carta das Nações Unidas o que, veladamente, contraria a tese do Portugal de Minho a Timor. O que se seguiu ao 25 de Abril, diz Luiz Aguiar, foi uma política incapaz que contrariou e impediu que o processo de descolonização, iniciado em 1961, entra-se numa sequência racional, na sua fase derradeira – a autodeterminação de facto, abalando os alicerces a cupidez dos movimentos de libertação.

Mas não se deixa de pôr pessoas no banco dos réus, de Mário Soares a Melo Antunes, movem-se críticas acerbas a Spínola e a Galvão de Melo. Tecem-se considerações simplificadoras do tipo a Guiné foi entregue ao PAIGC através do Acordo de Argel, devia-se ter feito consulta popular, embora não se explicando como depois do reconhecimento da República da Guiné-Bissau e de como se alterara radicalmente o quadro político da Guiné face ao Direito Internacional.

Luiz Aguiar e quem o acompanha nega a existência de áreas libertadas na Guiné, e explana uma reflexão curiosa sobre refugiados:  
“A maior parte dos que buscaram refúgio nos territórios vizinhos não o fez por qualquer solidariedade com o PAIGC, mas, sim, solicitados por laços tribais que não tinham sido afectados de maneira sensível pelas fronteiras convencionais. Verificou-se, após a entrega da Guiné ao PAIGC, que os refugiados, na sua quase totalidade, não quiseram regressar à Guiné. A estes acresceram, porém, muitos outros. Segundo o jornal senegalês Le Soleil, dos 60 mil refugiados que deviam existir no Senegal antes da independência passou-se para 120 mil, de onde se conclui que o êxodo continuou”.
E o autor continua:  
“Com este êxodo de guinéus para os territórios vizinhos – 60 mil para o Senegal e 20 mil para a Guiné Conacri – a população da Guiné portuguesa ficou reduzida a 480 mil habitantes. Quando da chegada do General Spínola, admitia-se que cerca de 10% tivesse aderido ao PAIGC. Pode-se dizer que o PAIGC era um partido sem representatividade significativa na província – e com pouca possibilidade de a vir a adquirir”.
Dá-se como testemunho o doutor Baticã Ferreira que depois do 25 de Abril liderou o Movimento Democrático da Guiné, ele teria pedido às autoridades portuguesas que supervisionassem uma espécie de eleições primárias para saber de que lado se encontrava o povo e o PAIGC teria conseguido apenas cerca de 2% dos votos. E o autor procura uma explicação, a de que a população temia o colonialismo cabo-verdiano:  
“Percorrendo a lista dos dirigentes da actual Guiné, constata-se que o ministro da Economia, Vasco Cabral, é cabo-verdiano, o ministro da Justiça, Fidélis Cabral, é filho de cabo-verdianos, o ministro da Educação, Mário Cabral, é cabo-verdiano, o Procurador-Geral da República, João Cruz Pinto, é cabo-verdiano, o primeiro-ministro, Francisco Mendes, é cabo-verdiano, o ministro da Defesa, é cabo-verdiano. Este domínio pelos cabo-verdianos foi reforçado pelo acesso a posições importantes dos antigos chefes de posto e funcionários ultramarinos naturais de Cabo Verde e que estavam colocados na Guiné, como aconteceu com Fernando Fortes, Alfredo Fortes, Miranda de Lima, Waldemar, Filinto Barros, Coutinho, Telmo, Eduardo Fernandes”.
O leitor pode avaliar o chorrilho de disparates desta lista.

Para Luiz Aguiar, o PAIGC fazia incursões e dispunha de permanência temporária na Guiné. As flagelações eram contra tropas em movimento, o que é de risota, as temíveis flagelações eram ao cair da tarde e durante a noite e em destacamentos fixos. Vem depois a tese mirífica que o PAIGC nunca conseguiu desalojar os soldados portugueses dos seus campos fortificados nas regiões fronteiriças. Quem informou Luiz Aguiar informou mal, foram abandonadas posições por insustentabilidade, recorde-se Mejo, Sangonhá, Cacoca e Gandembel, ali perto do Corredor de Guileje.

Segue-se uma referência à força africana, 20 mil guinéus que constituíam unidades de Comandos, Fuzileiros, Marinheiros, Milícias e Guardas Rurais (?), formando um conjunto aguerrido. Nem uma só referência às companhias de caçadores africanos. O autor questiona se o PAIGC teria prosseguido na sua atividade se não tivesse havido uma transigência por parte dos representantes do Estado português ao subscrever o Acordo de Argel. E responde dizendo que teriam morrido muito menos guinéus de que os milhares que foram fuzilados pelo PAIGC. Os guineenses, diz o autor, sentiam-se bem com a obra de desenvolvimento impulsionado por Spínola: as vias de comunicação, os aeroportos, a assistência médica à população, a infraestrutura do ensino, a preparação técnica.

Porventura para mostrar como a Guiné estava madura para consultas populares e se autodeterminar de vez, o autor dás-nos o rol das associações políticas existentes depois do 25 de Abril: o Movimento Democrático da Guiné, com o Dr. Baticã Ferreira à frente, a FLING (bastante representatividade junto dos guinéus emigrados no Senegal), a Liga Popular dos Guinéus que na apregoada fase de passagem do colonialismo à autodeterminação aceitara colaborar com a Acção Nacional Popular. Diz o autor que tudo implodiu com o Acordo de Argel.

Urgindo pôr termo a esta leitura sobre a descolonização, recorda-se que os autores também falam de Cabo Verde, de S. Tomé e Príncipe, de Timor (é curiosamente o capítulo mais desenvolvido), e de Moçambique. As considerações finais de Luiz Aguiar e parceiros prendem-se com a violação do princípio da autodeterminação violado pelos acordos de descolonização homologados por um vasto número de personalidades, são todos eles os que colaboraram no processo que devem ser responsabilizados. Desta forma vaga e genérica se deixa o leitor ultranacionalista mais do que desorientado. Falamos, é certo, de 1977, hoje tais teses não apoquentam ninguém, como se sabe.
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Notas do editor

Poste anterior de 8 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19082: Notas de leitura (1107): “Livro Negro da Descolonização”, por Luiz Aguiar; Editorial Intervenção, 1977 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 12 de Outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19094: Notas de leitura (1108): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (55) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 24 de abril de 2018

Guiné 61/74 - P18557: Efemérides (274): O 25 de Abril de 1974... visto de Bissau, através de aerogramas enviados por Jorge Gameiro (REP / ACAP / QG / CC) à sua esposa Ana Paula Gameiro e ao seu filhinho Nuno Gameiro... Documentação comprada no OLX, há 5 ou 6 anos (Carlos Mota Ribeiro, Maia) - Parte I






Bissau, 30/4/1974

Minha Paula, meu amor: 

Perdoa-me não te ter escrito ultimamente, mas isto tem andado numa tensão fora de série. Eu ando parvo, quase me custa a acreditar em tudo o que vejo e ouço, ontem pensámos que era o fim com a extinção da D.G.S. [Direção-Geral de Segurança]. Os africanos revoltaram-se, então partiram e despedaçaram tudo, agora já acalmaram, pois todos os detidos foram postos em liberdade. 

E agora não te preocupes, amor, que o problema era só com a D.G.S., queriam devorá-los. Agora, a nós resta-nos aguardar, todos ficamos com uma esperança, por aquilo que está feito até aqui. Uma viva ao gen Spínola e ao nosso Movimento [MFA - Movimento das Forças Armadas],  impõe-se o homem que pode agora realmente mostrar o que era, e que o que realmente fez aqui, foi poderosamente atrofiado pelo Governo então existente.

Daqui para a frente tudo será diferente, verás, amor, pela primeira vez depois de 40 anos se ouve falar em liberdade, a qual sentimos bem dentro de nós, e nos é flagrante [sic]. 

Sindicatos, imprensa, eleições totalmente livres, desaparecimento da inflação, do aumento de custo de vida, será já dentro muito em breve que teremos finalmente bairros modernos com muitas zonas verdes nos arredores de Lisboa, abaixo os caixotes do J. Pimenta, verás, amor, como agora as rendas irão baixar. 

Resta aguardar,  pois tudo o que a Junta de Salvação Nacional se propõe fazer, não é em 2 dias, mas pelo menos já nos podemos congratular pelos nossos filhos, que não conhecerão Portugal minado por um governo fachista [sic].

Por hoje vou terminar, meu amor. Amanhã, agora que isto começa a ficar calmo e acabam as prevenções, já te poderei escrever com mais calma. É verdade, diz ao Carlos que quem está cá comigo é o filho do Mário Pais, uma pessoa que ele conhece muito bem. Beijinhos ao nosso Nuninho, do papá que o adora, do teu Jorge toda a alegria e a certeza de que a nossa vida  a partir de agora ainda será mais facilitada. 

Um milhão de beijos com todo o meu amor. Vitória! Teu, só teu, para sempre. Jorge.



Fotos (e legendas): © Carlos Mota Ribeiro (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


[ Revisão e fixação de texto: Carlos Mota Ribeiro / Luís Graça]




Translation to English

Bissau 30.04.74

My Paula, my love:

Forgive me for not having written to you lately, but this has been going on in an unrelenting tension, I walk silly it almost costs me to believe everything I see and hear, yesterday we thought it was the end, with the extinction of D.G.S. the Africans revolted then left and shattered everything, now they have calmed because all the detainees have already been released, and now do not worry love that the problem was only with the DGS wanted to devour them, now we have to wait , we are all left with a hope, for what is done until a living to General Spinola and our movement is imposed the man who can now really show what he was, and what he has done here has been powerfully atrophied by the government existing, from now on everything will be different you will see love for the first time after 40 years right inside us and it is flagrant. Unions, the press, totally free elections, the disappearance of inflation from the cost of living, it will be very soon that we will finally have modern neighborhoods with many green areas on the outskirts of Lisbon, under the crates of J. Pimenta, you will see love on how now the rents are going to go down, we have to wait for everything that the “Junta de Salvação Nacional” (National Salvation Board) proposes to do, we can congratulate our children, who will not know Portugal undermined by an Fascist Government (Fascist = Dictatorial). For Today I will finish my love tomorrow now that this begins to be calm and ends, the precautions I can already write to you with more calm, it is true tells Carlos that who is here with me is the son of Mário Pais a person whom he knows very well . Kisses to our Daddy's Nuninho who adores your Jorge all the Joy and the certainty that our life from now on will still be made easier.

A million kisses with all my love - Victory - your only yours forever: Jorge


[Translation by Carlos Mota Ribeiro]



Carlos Mota Ribeiro... Foto da sua página no Facebook.
1. Mensagem do nosso leitor, Carlos Mota Ribeiro, engenheiro, residente na Maia, com data de 13 de março último:



Assunto : Guiné - Aerograma de Jorge Gameiro

Caro Luís Graça.,

Sou o filho do [Eduardo] Magalhães Ribeiro, teu colega do Blogue [, nosso coeditor]

Há uns anos atrás comprei meia dúzia de aerogramas, no OLX, de um combatente que esteve na Guiné na altura do 25 de Abril de 74, chamado Jorge Gameiro. Envio-te um deles em anexo para analisares.

Gostaria de identificar o combatente em questão e tentar oferecer os aerogramas ao filho Nuno Gameiro (filho do senhor ). Consegues-me ajudar?

Um grande e forte Abraço.,

Carlos Mota Ribeiro



Guiné > Bissau > Primeiros dias a seguir ao 25 de abril de 1974 > As primeiras manifestações da população local, com cartazes de tipo "abaixo a DGS", "Viva o Spínola"... Foto do álbum  de J. Casimiro Carvalho.

Foto (e legenda): © J. Casimiro Carvalho (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

2. Resposta do editor Luís Graça, com data de 14 de março último:

Carlos: 

Fico muito sensibilizado pelo teu gesto... O Nuno Gameiro, filho do Jorge e da Ana, nunca terá, por certo,  lido este e os outros aerogramas do pai... O exemplar que me mandaste tem interesse documental, pelo local e a data (Bissau, 30/4/1974) e pela referência aos acontecimentos pós-25 de Abril em Bissau...  e à expetativas que gerou, nos militares metropolitanos e na população guineense.

O Jorge Gameiro devia ser um alferes ou furriel miliciano, trabalhava na ACAP - Repartição de Ação Psicológica e Apoio às Populações, do QG (Quartel General), em Bissau [REP/ACAP/QG/CC]. E fala no Movimento [das Forças Armadas]. Era, pelo que se deduz, um tipo "politizado". Pelo tipo de letra, desenhada, e pela referência aos famigerados "caixotes do J. Pimenta", poderia ser arquiteto, ou estudante das Belas Artes... (É uma intuição minha).

O prédio nº 5 da Av Mouzinho de Albuquerque, em Lisboa, existe,  corresponde hoje ao código postal 1170-257. Podes ver no Google Map. Pertence à Junta de Freguesia de Penha de França. Quanto ao apelido, conheço alguns Gameiro, aqui em Lisboa, e no Facebook há vários Nuno Gameiro... 

Este jovem que procuras deve ter 40 e picos anos... Mas não será fácil identificar as pessoas em causa, só lá indo bater à porta... Muito provavelmente o casal já não mora lá, e deve ser da idade dos teus pais. Um deles pode ter morrido, ou então o casal pode ter-se divorciado... E o filho terá seguido a vida dele. É possível até que emigrado, ou esteja a trabalhar no estrangeiro, como já te aconteceu a ti...

A quem é que compraste as cartas ? É difícil saber, podem ter ido parar às mãos de um alfarrabista... Outra hipótes é mandares uma carta para este endereço: tens o código postal...

No prédio, ao lado, no nº 5A, há o Centro Fotográfico Manuel dos Santos & Figueiredo Lda [Avenida Mouzinho Albuquerque 5-A, Lisboa], com o telefone nº 218 145 982, código postal 1170-257 LISBOA...  Descobri nas páginas amarelas... Tomei a liberdade de ligar e atendeu-me o dono do centro fotográfico: está lá desde 1974, instalado uma semana antes do 25 de abril !... Infelizmente não conhece ninguém desta família Gameiro. Expliquei o que procurava... Respondeu-me que tem uma senhora, no seu prédio, no 1º andar com um  nome parecido, Ana Paula ou Ana, viúva, de 60 e tal anos, mas que sempre terá vido aqui, neste prédio, o 5A, e não no 5.

Uma sugestão minha é publicarmos esta documentação no nosso blogue...Pode ser que alguém da família Gameiro ou um amigo nos leiam... Fiz o tratamento do aerograma e transcrevi, acima, o seu conteúdo... Se concordares, publicamos. È uma pena que esta correspondência de guerra vai parar ao caixote do lixo, como acontece na maior parte dos casos... É um testemunho de uma época e de um camarada nosso que soube tranquilizar a jovem esposa, dando-lhe notícias, reconfortantes, do que se estava a passar em Bissau, à data do 25 de Abril.

Um grande abraço, Luis

3. Resposta do Carlos Ribeiro, no dia seguinte, 15 de março de 2018:

Caro Luís Graça.,

Obrigado por teres partilhado a tua análise comigo, fizeste algumas observações que me tinham passado completamente despercebidas. A tua experiencia de vida e cultural é extraordinária, muito obrigado por teres partilhado essas informações e o teu ponto de vista,  comigo,  sobre o assunto.

Em relação aos aerogramas comprei-os a alguém no OLX, já foi há  uns 5 ou 6 anos e não me recordo do nome da pessoa que mos vendeu, lembro-me que os comprei por terem o sentido histórico do 25 de Abril de 74 e os achei muito interessantes.

Como tenho um colega britânico que se interessa pela Revolução dos Cravos, enviei-lhe as fotos dos aerogramas com a tradução em inglês para ele dar uma leitura e compreender o sentimento que alguns jovens tinham naquela época e naqueles dias conturbados.

Quando estava a transcrever o mencionado no aerograma,  fiquei a pensar no Nuninho (Nuno Gameiro) do aerograma e do carinho daquele pai pelo filho. Por isso entrei em contacto contigo para tentar encontrar o tal Nuninho e lhe fazer chegar a meia dúzia de aerogramas que tenho,  enviados pelo seu pai,  da Guiné Portuguesa para a Metrópole.

É claro que apenas lhos vou oferecer, se o Nuno Gameiro quiser esta recordação dos pais, pode nem querer saber deste assunto ou não dar qualquer valor sentimental aos aerogramas, mas como para mim este tipo de itens tem muito valor e são documentos que considero históricos, guardo-os religiosamente na minha coleção particular sobre o Ultramar Português.

Se concordares,  vamos fazer o seguinte: Vou digitalizar os aerogramas e enviar-tos juntamente com a transcrição que fiz para Word, e tu fazes o favor de os publicar no teu Blogue e vamos assim tentar encontrar o Nuninho. Acho que até é um assunto que podes publicar na altura do 25 de Abril, até seria engraçado…

Um grande abraço, Carlos Ribeiro


4. Resposta do LG, na volta do correio:


Carlos: estamos de acordo... Por volta da data do 25A, fazemos um ou mais postes com esses teus aerogramas... Para se perceber melhor a história, o teu interesse por esta documentação,  podes inclusive mandar, para publicação,  a tua versão em inglês...É possível até que a gente, com sorte, localize,  o Nuno Gameiro, que deve ser um pouco mais velho do que tu, não ?...

Talvez um dia destes eu passe por lá, pela rua, e faça uma discreta investigaçãom de qualquer modo já temos a informação, negativa, do vizinho do centro fotográfco... Outra hipótese era mandares uma carta para este endereço...É muito pouco provável que ainda lá morem os pais do Nuno... O que será feito deles ?... As cartas para terem ido parar ao OLX é porque houve uma contecimento de vida dramático: separação / divórico, falecimento de umdos conjuges (, mais provável..).

Concordo contigo: são testemunhos preciosos de uma época, de um país, de duas gerações, a tua e a do Nuno Gameiro, e a nossa, a da heração que fez a guerra e a paz... Quero que a seguir entres para a Tabanca Grande, apresentado pelo teu pai...ou por mim!... Estou muito grato pelo teu gesto de grande nobreza e sensibilidade... E, de resto, há muito que fazes parte desta grande família que é a Tabanca Grande, a cujos encontros anuais, a alguns, já tens vindo com o teu pai.

Um abração, Luís 

5. Nova mensagem de LG ao Carlos, com data de 21 do corrente:

Carlos: avançamos esses aerogramas por altura do 25 de Abril ? Pode ser que o Nuno ou o pai ou a mãe deem sinais de vida... Grande abraço. Luís

PS - Ficaste de me mandar mais aerogramas...


6 Última mensagem do Carlos Ribeiro,  com data de hoje, às 02:04

Voa noite Luís Graça.,

Espero que esteja tudo bem contigo.

Passei os aerogramas ao meu pai para ele digitalizar e os enviar para ti. Ele estava a tratar disso hoje, ou melhor ontem... Visto já serem duas da manhã.

Grande abraço, Carlos Mota Ribeiro

[O Eduardo Magalhães Ribeiro acaba de  nos mandar o 2º aerograma do Jorge Gameiro, que tem data de 6 de maio de 1974, a publicar no nosso blogue, no próximo poste; vamos ter a agradável presença de ambos, em Monte Real, no nosso XIII Encontro Nacional, a realizar em 5 de maio de 2018; até lá, o Eduardo está "intimado" a apresentar o filho à Tabanca Grande: passará a ter lugar, à sombra do nosso poilão, sob o nº 773]
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Nota do editor:

Último poste da série > 15 de abril de  2018 > Guiné 61/74 - P18525: Efemérides (273): No 24º aniversário da Apoiar - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra: "Ter que matar para sobreviver", texto de Mário Gaspar, originalmente publicado no jornal Apoiar, nº 2, jul / set 1996

segunda-feira, 12 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18406: Notas de leitura (1048): “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, autor principal Patrick Chabal, com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company; Londres, 2002 (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Apresentado em 2002 como a primeira investigação histórica abrangente sobre a África Lusófona pós-colonial, a cuidada investigação de Patrick Chabal e a sua equipa é um documento que requer a nossa atenção dado o seu rigor em dois pontos capitais. A construção da Nação-Estado nestes cinco países e uma descrição altamente documentada do processo político, económico e social de cada um deles (no caso vertente da Guiné-Bissau o seu autor foi Joshua Forrest, um autor credenciado e com diferentes e reputados estudos sobre o país).
Continuo a não perceber como é que não houve um editor para uma obra que teria seguramente encontrado milhares e milhares de leitores, desde os estudiosos ao grande público.

Um abraço do
Mário


A História da África Lusófona Pós-colonial:
Uma investigação de leitura obrigatória (2)

Beja Santos

“A History of Postcolonial Lusophone Africa” tem como autor principal Patrick Chabal, nome cimeiro da investigação dos movimentos revolucionários e das repúblicas africanas lusófonas, e conta com a comparticipação de investigadores de grande qualidade, como é o caso de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company, Londres, 2002.

Os regimes das cinco antigas colónias portuguesas de África seguiram caminhos distintos, uns gozaram da integridade nacional outros foram confrontados com guerras civis mas apresentaram afinidades com comportamentos já lamentavelmente conhecidos em quase todos os outros países africanos: autoritarismo e clientelismo dentro do sistema político; inabilidade do Estado para implementar um modelo minimamente harmonioso de desenvolvimento e que contasse com a confiança dos cidadãos; declínio gradual da economia que levou ao exacerbamento das questões do poder na cúspide dirigente. Também nesse contexto haverá que ter em conta a desmotivação das populações com os fracassos económicos, o desligamento entre os partidos únicos e os grupos étnicos, os programas de ajustamento estrutural que veio a significar o fim da mania das grandezas; e, no seu termo, a queda do Muro de Berlim que relançou a discussão dos processos de transição para o multipartidarismo e consagração da economia do mercado.

Os autores detalham com rigor os diferentes processos de transição económica e relevam as dificuldades suplementares vividas em Angola e Moçambique, devastados por guerras aparentemente sem fim à vista. Só a natureza desta investigação justifica a leitura deste livro.

A segunda parte do trabalho assenta em estudos estanques dos cinco países. Competiu a Joshua Forrest a investigação sobre a Guiné-Bissau. O investigador começa por chamar à atenção de como a independência da Guiné-Bissau foi saudada em África e noutros cantos do mundos, traduzia um sucesso militar e estratégico do PAIGC, resultava também do modo como Amílcar Cabral pusera a Guiné-Bissau no mapa internacional e das lutas revolucionárias, fora naquele território que emergira o embrião do MFA, da evolução que passara a ter a guerra a partir de 1973 concluíra-se da inevitabilidade de derrubar o governo e proceder à descolonização. Mas de 1974 a 2000 o PAIGC revelou-se incapaz de realizar os seus objetivos nomeadamente na construção do Estado e do desenvolvimento económico. As suas escolhas beneficiaram elites, caso dos ponteiros que criaram riqueza à custa de financiamentos que não foram restituídos aos cofres do Estado. Veio a demonstrar-se que o PAIGC e a direção política de Luís Cabral não dispunham de uma visão clara sobre as transformações que eram imperativas na administração. O falhanço da industrialização acelerada comprometeu todo o sistema financeiro, a dívida externa passou a ser um garrote; e o partido único que fora uma coqueluche revolucionária dividiu-se em frações, os tecnocratas passaram a ignorar as promessas de Cabral, os heróis do passado foram esquecidos, a despeito do nome de alguns aparecerem nas ruas e em certas instituições. Parecia que a economia estava ao serviço dos habitantes de Bissau. O partido-Estado isolou-se, cometeu erros palmares, caso da revisão constitucional concluída em Novembro de 1980, que deu munição letal aos guineenses contra as elites cabo-verdianas. A seguir, Nino Vieira repetiu em grande estilo os métodos autocráticos que criticou a Luís Cabral e fracionou ainda mais o PAIGC.

Joshua Forrest centra a sua atenção sobre as reformas económicas e os graves erros praticados na política agrária, era como se estivesse a praticar totalmente o oposto que fora preconizado por Amílcar Cabral. Assim que se passou do coletivismo à abertura económica expandiram-se as propriedades designadas por pontas, foram estes novos agricultores os grandes beneficiários do programa de ajustamento estrutural que conduziram ao descalabro financeiro. Quando se chegou à década de 1990 agravara-se a dependência externa e a corrupção era larvar, como uma mancha de óleo alastrara por todos os ministérios. À procura de uma solução mágica, Nino Vieira procurou intensificar as relações com a França e a francofonia, integrou à pressa a Guiné na zona económica da África Ocidental, abandonou-se o peso em substituição do franco CFA. Joshua Forrest detalha como precocemente o PAIGC perdeu o controlo político do Estado, os governadores ignoravam os comités de tabanca e os meios rurais vivam desfasados da condução política de Bissau. Emergiram idiossincrasias ocultistas e espíritos de seita, o autor ilustra com movimentos operados entre Balantas, Manjacos, nomeadamente nas regiões do Oio, do Cacheu, Tombali e Catió, estes poderes obscuros foram progressivamente afrontando e corroendo a construção do Estado pós-colonial.

O isolamento do regime foi rastilho para cimentar o regime despótico de Nino Vieira, são sucessivas as ondas de golpes (ou a sua invenção), deposição de amigos de ontem transformados em inimigos públicos, a corrupção chegou ao negócio das armas e das drogas, um regime caótico entra em deliquescência e desagua num conflito que levou ao afastamento de Nino Vieira e à ascensão de uma Junta Militar – assim se invertiam aparatosamente as instituições do regime em que a soberania assentava no decisor político. Joshua Forrest descreve o conflito no interior do PAIGC para a abertura democrática, as eleições de 1994 deixavam saber que o partido-Estado já não era o que fora, Nino Vieira confrontara-se com um novo demagogo, Kumba Yalá, e ganhará as eleições presidenciais por uma unha negra, com a agravante de constar que à custa de fraudes eleitorais. Como os governos não dispunham de manobra para resolver os problemas de fundo, Nino Vieira ia substituindo os primeiros-ministros, agravando as animosidades que depois se estenderam à esfera militar, antes do conflito de 1998-1999 os combatentes da liberdade da pátria publicaram um manifesto profundamente crítico com o estado dissoluto do regime.

Em jeito de conclusão, Joshua Forrest recapitula as questões primordiais deste quarto de século da independência da Guiné-Bissau: a contradição entre o pensamento de Cabral e a prática política que se seguiu; disseca as sucessivas crises envolvendo a fragilidade do Estado, a incapacidade de se dispor de uma administração eficaz, o regresso do animismo comprovando a ausência do partido-Estado na trama social; a despeito do desfasamento entre o regime e as aspirações populares sobreleva o fenómeno espantoso e mal explicado do suporte popular a Nino Vieira, um césar que pontificou 19 anos a fio; e para além dos erros de política económica é também importante observar que o governo se alheou da vida local e permitiu o regresso insidioso das instituições políticas pré-coloniais.

Não esquecer que este importantíssimo livro na segunda parte também carateriza os processos de Angola, Moçambique, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe.

É leitura obrigatória para quem pretenda dispor de uma grande angular sobre os primeiros 30 anos da história das cinco antigas colónias portuguesas em África.
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Notas do editor

Poste anterior de 5 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18381: Notas de leitura (1046): “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, autor principal Patrick Chabal, com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company; Londres, 2002 (1) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 9 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18395: Notas de leitura (1047): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (25) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 5 de março de 2018

Guiné 61/74 - P18381: Notas de leitura (1046): “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, autor principal Patrick Chabal, com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company; Londres, 2002 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Maio de 2016:

Queridos amigos,
Continuo sem compreender como é que este livro não teve editor em Portugal ou Brasil em 2002, atendendo à investigação original e ao ineditismo do seu esquema básico: uma abordagem abrangente das cinco antigas colónias portuguesas em África.
Acresce que se juntou um naipe de oiro de grandes investigadores: Patrick Chabal, ao tempo professor do King's College em Londres, deve-se-lhe àquela que porventura é a melhor biografia internacional de Amílcar Cabral; David Birmingham, da Universidade de Kent; Joshua Forrest, professor da Universidade de Vermont e que deixa aqui um ensaio notável sobre a Guiné-Bissau; e também Malyn Newitt da Universidade de Londres e Gerard Seibert e Elisa Silva Andrade, investigadores com créditos firmados.
Sem hesitação, leitura recomendada para conhecer no grande ecrã 30 aos de história pós-colonial das cinco colónias portuguesas em África.

Um abraço do
Mário


A História da África Lusófona Pós-colonial: 
Uma investigação de leitura obrigatória (1)

Beja Santos

O livro intitula-se “A History of Postcolonial Lusophone Africa”, o autor principal é Patrick Chabal, nome cimeiro da investigação dos movimentos revolucionários e das repúblicas africanas lusófonas, aparece neste livro com participações de David Birmingham, Joshua Forrest, Malyn Newitt, Gerhard Seibert e Elisa Silva Andrade, Hurst & Company, Londres, 2002.

Logo nos agradecimentos, Chabal recorda a evolução positiva da historiografia sobre os países africanos lusófonos e apresenta este volume que coordena como uma tentativa de fornecer uma visão abrangente das cinco antigas colónias portuguesas em África, e confessa que se utilizou uma abordagem iconoclástica: apresentação da história dos cinco países a partir de dois anos complementares, o que têm de comum e de divergente da restante África, seguindo-se uma enunciação sistemática dos eventos que ocorreram depois da independência com a utilização de fontes de investigadores, oficiais, semioficiais e até jornalísticas; a procura de um contexto histórico rigoroso articulando o período pré-colonial com o pós-colonial; numa tentativa de ultrapassagem de uma visão estreita do foco lusófono, apresenta-se a evolução comparada e igualmente contrastada dos cinco países. O âmbito do estudo centra-se no período entre 1975 e 2000.

Temos em primeiro lugar o fim do Império e chama-se a atenção para uma declaração do MFA feita em 5 de Maio de 1974 em que é proposta uma nova e fraternal cooperação entre Portugal e Guiné, o que parece ilustrar a contradição entre um regime que existia numa solução militar e um estado de espírito dos sublevados que ofereciam uma colaboração desinteressada como forma de reparar os crimes do fascismo e do colonialismo. Recorda-se que o regime de Salazar e de Caetano recusou sempre negociações com os movimentos independentistas, estas só apareceram de forma muito dissimulada no estertor do regime. Estes movimentos anticolonialistas são encarados em três categorias: os vanguardistas, os tradicionalistas e os etno-nacionalistas. Como vanguardistas são invocados o MPLA, o PAIGC e a FRELIMO, não terá sido por acaso que eram todos provenientes de uma geração jovem, de um modo geral com formação universitária ou bases culturais e com uma preparação ideológica da Esquerda do seu tempo. Entre os movimentos tradicionalistas aparecem agrupamentos com brancos, pretos mestiços e indianos e o exemplo escolhido para movimentos etno-nacionalistas são apresentados a FNLA e a UNITA. Estas guerras foram sempre conflitos políticos, resultantes de uma total incapacidade de o regime de Salazar e Caetano se aperceber da insustentabilidade para as razões da potência colonial teimar em ficar em África. O PAIGC aparece como um movimento mais bem-sucedido quanto aos critérios da eficácia da luta anticolonial: preservação da unidade nacional, a despeito do mosaico étnico; enorme capacidade para a mobilização política das populações rurais; submissão da luta armada a objetivos políticos; eficácia para apresentar na cena internacional as chamadas áreas libertadas graças a um bom uso diplomático. É também observado que o espírito de a missão colonial se foi desgastando ao longo dos anos e no fim da guerra o moral das tropas dava sinais de ser crítico.

O estudo prossegue com uma perspetiva histórica da descolonização a partir do momento em que os movimentos de libertação conseguiram uma plataforma de entendimento, a CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas que gerou um elevado espírito de solidariedade e que permitiu a Amílcar Cabral encontrar formas de comunicação verdadeiramente criativas para sensibilizar a opinião pública em muitos países onde dava entrevistas, fazia conferências, distribuía documentos, conversava e justificava a guerrilha dada a inflexibilidade do regime de Salazar e Caetano. Na hora da descolonização, os políticos portugueses foram confrontados com movimentos nacionalistas influenciados pelo marxismo. Todos eles enveredaram, na fase de arranque da vida independente, por nacionalizações, estatização económica, monopólio de comércio externo, contando com a ajuda dos países da Europa Oriental, Cuba, URSS e China.

Pôs-se, obviamente, o problema da unidade nacional e do Estado-Nação, com disparidade de respostas. No que toca à Guiné-Bissau, a unidade Guiné-Cabo Verde resistiu até 1980, Cabo Verde enveredou pela sua via específica de identidade nacional, no caso vertente da Guiné-Bissau nem o tremendo conflito político-militar de 1998-1999 fez minimamente questionar a afloração de conflitos étnicos, nunca se questionou em propriedade nacional mas também nunca se iludiu a fragilidade do Estado, logo patente nos primeiros anos da era de Luís Cabral em que o PAIGC se desentendeu com a questão rural e as expetativas dos agricultores que recusaram sistematicamente vender ao Estado as suas produções, transferindo-as em muitos casos para os países limítrofes. O livro estuda os efeitos da guerra, as especificidades do nacionalismo revolucionário e dedica um importante estudo à construção do Estado-Nação. Nesta aceção, é sequenciada a história da África portuguesa e as sequelas que deixou nos Estados pós-coloniais, comparando-os com os países vizinhos. A construção do socialismo é igualmente analisada com a deteção dos pontos frágeis e dos obstáculos para os quais os partidos vitoriosos se revelaram incapazes de ultrapassar. Esta construção do socialismo tem uma importante análise do contexto histórico nos cinco países. Chama-se à atenção para a inviabilidade de seguir políticas similares em Cabo Verde e na Guiné: Cabo Verde não podia hostilizar as comunidades sediadas nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, para já não esquecer a comunidade cabo-verdiana residente no Senegal; na Guiné-Bissau ensaiou-se um apelo à ajuda internacional dos países socialistas e acenou-se a uma ajuda dos países ocidentais, com os escandinavos e os Países Baixos à frente. Mas é uma leitura estimulante ler toda esta construção da Nação-Estado no xadrez africano, no permanente relacionamento entre os fatores internacionais e as políticas domésticas. Até porque os limites destes nacionalismos surgiram muito cedo quando se verificou que os partidos únicos se revelavam incapazes de conciliar o todo nacional.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2018 > Guiné 61/74 - P18373: Notas de leitura (1045): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (24) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 25 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17283: Efemérides (248): 25 de Abril: Um regime em conspiração (Carlos Matos Gomes, Cor Cav)


"Brigada do Reumático"


1. Mensagem do nosso camarada Carlos Matos Gomes, Coronel Cavalaria Reformado (ex-2.º CMDT Batalhão de Comandos da Guiné, 1972/74), escritor e historiógrafo da guerra colonial, com data de hoje, 25 de Abril de 2017:


Meus caros amigos e amigas.
A propósito de mais um 25 de Abril escrevi um artigo na plataforma Medium sobre o impasse da questão colonial, que conduziu à ruptura violenta dentro do regime do Estado Novo.
O 25 de Abril de 1974 resulta da convicção de todas as instâncias do poder de que a guerra estava perdida - por isso todos conspiravam. São os registos de alguns dos actos dessa conspiração generalizada para resolver o impasse da guerra sem solução que eu reuni. Quando o Presidente da República conspira contra o Primeiro Ministro, quando este conspira contra o Presidente e contra os generais, quando os generais conspiram entre si e com os seus capitães, quando os capitães conspiram contra o governo e os generais não se vive, certamente, um ambiente de vitória. Procuro recolocar os acontecimentos nas circunstâncias da época e não como podiam ter sido.

Um bom dia para todos do
Carlos Matos Gomes

Aqui vai o link para os que tiverem interesse e curiosidade

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2. Com a devida vénia, transcrevemos o artigo do Cor Cav Ref Carlos Matos Gomes

25 de Abril: Um regime em conspiração

A partir do Verão de 1973 o regime que Salazar criara e talhara dos pés à cabeça nos anos 30 do século passado, plasmado na Constituição de 33 e retocado com a integração do Acto Colonial em 1951,  era um ninho de vespas em conspiração total, um jogo de todos contra todos e salve-se quem puder.

A partir do Verão de 1973 todas as fações do regime, todas as personalidades marcantes e todas as instituições conspiram uns com os outros ou contra os outros. A partir do Verão de 1973 todas as fações do regime tinham uma consciência comum: a questão colonial caíra num impasse e era necessário sair dele. O regime assente na ditadura e no colonialismo esgotara-se e chegara ao fim.

É impressionante a lista de acções conspirativas no interior do regime a partir do Verão de 1973:



Guiné > Algures > Maio de 1973 > Costa Gomes, Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, dá início, a 25 de maio de 1973, a uma visita ao Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG), para se inteirar do agravamento da situação militar e analisar medidas a tomar com vista a garantir o espaço de manobra do poder politico em Lisboa. Na foto, vê-se o Gen Costa Gomes à direita de Spínola, falando com milícias guineenses. Foto do francês Pierre Fargeas (técnico que fazia a manutenção dos helis AL III, na BA 12, Bissalanca), gentilmente enviada pelo nosso camarada Jorge Félix (ex-alf mil piloto heli, BA12, Bissalanca, 1968/70).

Foto: © Pierre Fargeas / Jorge Félix (2009). Todos os direitos reservados.
Spínola, que já estava em rutura com Marcelo Caetano, demite-se de governador e comandante-chefe da Guiné. Deixa uma situação militar gravíssima, já tem pronto o rascunho do “Portugal e o Futuro”, que contesta a as políticas de Marcelo Caetano e de Américo Tomás. Em Lisboa, Spínola conspira com Kaúlza de Arriaga, demitido por Marcelo Caetano em termos que jamais haviam sido utilizados nas relações entre o governo e os militares pela sua incapacidade de controlar o agravamento da situação em Moçambique e pelos escândalos dos massacres de populações, que assumiram dimensão internacional. Kaúlza de Arriaga, um dos salazaristas mais intransigentes, regressou a Lisboa para conspirar contra Marcelo Caetano.

Os generais de África, do Exército e da Força Aérea conspiram. Os salazaristas, adeptos da intransigente defesa do ultramar, reunidos à volta de Américo Tomás, organizaram o Congresso dos Combatentes, em Junho, no Porto. Largos sectores de militares dos quadros permanentes reagiram com abaixo-assinados e telegramas de repúdio. Uma atitude reveladora do mal-estar e da conspiração interna que atravessava as patentes intermédias das Forças Armadas.

Os capitães conspiram, aproveitando o pretexto de uns decretos sobre promoções, a primeira reunião é a 18 de Agosto, em Bissau, a 9 de Setembro realiza-se uma outra em Évora, com grande adesão. A conspiração dos quadros intermédios alastra e revela a sua oposição ao regime, tanto na questão das soluções para a guerra, como na ausência de democracia.

A 14 de Setembro, os generais Spínola, Venâncio Deslandes, Kaúlza de Arriaga e Pinto Resende reuniram-se em Lisboa num almoço para discutir a hipótese de substituição de Marcelo Caetano. Estes encontros continuaram com diferentes actores, mas sempre com a presença de Kaúlza de Arriaga. Chegou a ser estabelecido um contacto com a organização dos capitães, que rejeitaram qualquer hipótese de colaboração.

A agitação dos capitães e a forma como o ministro da Defesa, Sá Viana Rebelo, lidou com o assunto, foram a causa, ou o pretexto, para Marcelo Caetano remodelar o governo, transitando Silva Cunha do Ultramar para a Defesa e entrando Rebelo de Sousa para o Ultramar. Esta remodelação, conjugada com a nomeação, ainda em 1972, do engenheiro Santos e Castro para governador de Angola têm sido apontados como fazendo parte de um plano conspirativo de Marcelo Caetano para provocar uma independência unilateral de Angola. Um acto contra os sectores radicais do salazarismo.

Ainda no Verão de 1973, e após substituir Kaúlza de Arriaga, Marcelo Caetano abriu a possibilidade de uma solução política em Moçambique. Em Setembro, o engenheiro Jorge Jardim encontrou-se com Keneth Kaunda, presidente da Zâmbia, para estabelecimento de um primeiro acordo de princípios para resolver a situação de Moçambique, que ficaria conhecido por “Programa de Lusaca”, e que seria apresentado a Marcelo Caetano. O “Programa de Lusaca” era, em resumo, uma proposta de início de negociações entre Portugal e a FRELIMO para uma futura independência de Moçambique. Jorge Jardim apresentou esta versão a Marcelo Caetano seguida de uma outra no início de Fevereiro.

A 17 de Dezembro, numa aula no Instituto de Altos Estudos Militares, o major Carlos Fabião, em nome do movimento dos capitães, denunciou o golpe que Kaúlza de Arriaga estava a preparar, confirmando que não era a intensificação da guerra e o endurecimento do regime que os jovens militares pretendiam.

A conspiração estende-se ao topo da hierarquia do Estado e do regime. A 21 de Janeiro, Américo Tomás reuniu-se na Messe de Monsanto com os ministros militares e com o presidente da Junta Central da Legião Portuguesa, repetindo a reunião em Fevereiro, agora na base do Alfeite, num evidente processo de conspiração contra o chefe do governo.

Ainda em Fevereiro, o general Spínola, vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, publicou o livro “Portugal e o Futuro”, que contrariava as teses do governo sobre a questão colonial e a guerra. Marcelo Caetano faria mais tarde o seguinte comentário no seu livro de memórias, «Depoimento»: “ao fechar o livro tinha compreendido que o golpe de Estado militar, cuja marcha eu pressentia há meses, era agora inevitável”. Dois dias após ter terminado a leitura do livro, Marcelo Caetano convocou os generais Costa Gomes e António de Spínola e convidou-os a tomarem o poder, opção que estes recusaram.

A 28 de Fevereiro, Marcelo Caetano apresentou o pedido de demissão a Américo Tomás, que este não aceitou. Seria um dos três pedidos de demissão de Marcelo Caetano, como viria a revelar mais tarde.

A 11 de Março, Américo Tomás convocou Marcelo Caetano e impôs-lhe a exoneração de Costa Gomes e Spínola. O chefe do governo respondeu que, tendo autorizado a publicação do livro, não tinha moral para aplicar qualquer castigo. Horas depois de ser recebido por Américo Tomás, Marcelo Caetano enviou mais uma vez ao Presidente a sua própria carta de demissão. Américo Tomás respondeu: “já é tarde para qualquer de nós abandonar o cargo”.

A 14 de Março, um numeroso grupo de generais dos três ramos da Forças Armadas, que ficou conhecido pela “Brigada do Reumático”, reuniu-se no átrio do palácio de São Bento para se manifestar de acordo com a política ultramarina do governo. No dia seguinte, os generais Costa Gomes e Spínola, que não participaram na reunião, foram demitidos dos seus cargos.

Em reacção a estes acontecimentos, a 16 de Março, a unidade militar das Caldas da Rainha saiu em direcção a Lisboa, numa tentativa frustrada de levantamento militar, com a participação de militares próximos de Spínola.

Por outro lado, a 26 de Março, um enviado de Marcelo Caetano, o diplomata José Manuel Villas-Boas Vasconcelos Faria, encontrou-se secretamente em Londres com uma delegação do PAIGC, para negociações sobre o problema da Guiné. O ministro dos Negócios Estrangeiros não foi informado. A 4 de Abril, Marcelo Caetano enviou secretamente,  a Paris, Pedro Feytor Pinto, director-geral dos serviços de informação do governo e seu homem de confiança. Feytor Pinto reuniu-se com Jacquers Foccart, Monsieur Afrique, responsável pelas relações com África no Palácio do Eliseu, com o objectivo de conseguir uma terceira via para a questão de África, através de Senghor, do rei Hassan II, de Marrocos, e Félix Houphoet-Boigny, da Costa do Marfim. O governo foi mantido à margem deste encontro. Anteriormente, já Marcelo Caetano tinha desenvolvido outras iniciativas secretas de contactos com o PAIGC, o MPLA e igrejas protestantes, sempre à margem dos membros do governo, do Presidente da República e das Forças Armadas.

O partido do regime, a Acção Nacional Popular, estava dividido em três facções, os salazaristas, reunidos à volta de figuras como Cazal Ribeiro, tendo o patrocínio de Américo Tomás; os marcelistas, que tinham como porta-voz, Guilherme Melo e Castro; e a «Ala Liberal».

As Forças Armadas também estavam divididas entre os adeptos da solução militar, reunidos à volta de Kaúlza de Arriaga e com o apoio de Américo Tomás, os que procuravam soluções políticas para a guerra e uma evolução do regime, reunidos à volta de Spínola e de Costa Gomes, e ainda os capitães, como adeptos de uma ruptura com o regime e com a sua política colonial e de ditadura.

O 25 de Abril de 1974 resultou do confronto e das alianças que se estabeleceram entre estes grupos no interior do regime. Foi um golpe de que saiu vencedora a aliança entre os militares spinolistas e os capitães adeptos da independência das colónias e da democratização do regime. Vindos do interior do anterior regime, transitarão para a nova situação os políticos da «Ala Liberal».

Esta era a situação nas vésperas do 25 de Abri de 1974. Contra os factos, contra a realidade da História, mantêm-se ainda hoje resquícios de saudade da ditadura e do colonialismo que apresentam o golpe de estado do 25 de Abril como uma ação de um grupo de jovens militares, de patentes intermédias, politizados (comunizados) pelos estudantes que prestavam o serviço militar como milicianos e não queriam fazer a guerra.

Uma leitura em que o 25 de Abril é apresentado como a ação de um grupo exterior ao regime, de opositores ao governo de Marcelo Caetano e à política colonial, designada como ultramarina pelo Estado Novo. Para esses irredutíveis, existiria em 1974 uma maioria nacional e patriótica, defensora do Portugal pluricontinental e plurirracial, que foi vencida por uma facção vinda do exterior, o movimento dos capitães, depois Movimento das Forças Armadas.

Esta leitura mantém-se ainda hoje com várias tonalidades, desde a que defende não estar a guerra perdida — como se a recusa de uma parte decisiva das tropas em continuar a combater não materializasse a vitória do inimigo — à que fantasia as glórias e as grandezas de um império que nunca foi politicamente estruturado, nunca foi economicamente viável, nem sequer criou aos portugueses condições de riqueza e bem-estar, impelindo-os à emigração para outras paragens que não o mítico império.
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Nota do editor

Último poste da série de 2 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17099: Efemérides (247): Poema de Maria Amado dedicado a seu pai João Amado, Soldado Auxiliar de Cozinheiro da CCAÇ 3489/BCAÇ 3872), morto em combate faz hoje 45 anos (Maria Amado / Juvenal Amado)

terça-feira, 18 de abril de 2017

Guiné 61/74 - P17255: Agenda cultural (554): "A Voz e os Ouvidos do MFA", documentário realziado por António-Pedro Vasconcelos e Leandro Ferreira, a ser emitido no próximo 25 de abril, às 21h00 na RTP1

1. Mensagem de Teresa Sousa, "assistant executive producer", da Just Up, produtora de audiovisuais (*)
Data_: 13 de abril de 2017
Assunto - Documentário: A Voz e os Ouvidos do MFA

Bom Dia


Informo que o documentário "A Voz e os Ouvidos do MFA" vai ser emitido no próximo dia 25 de Abril, às 21h na RTP1. (**)


A si e a todos os camaradas da Guiné que nos ajudaram com informações o meu muito obrigado!

Bem Hajam!

Teresa Sousa


2. RTP > Programas > "A Voz e os Ouvidos do MFA"

Sinopse >

Docudrama histórico de António-Pedro Vasconcelos e Leandro Ferreira sobre a forma como foi feita a comunicação no 25 de abril de 1974

Docudrama sobre a aquisição de telefones para o Posto de Comando do MFA, assim como a montagem de um cabo de transmissões que teria de ser prolongado do Colégio Militar até ao Posto de Comando (PC), instalado na Pontinha. Normalmente, o Movimento dos Capitães, que culminou com o golpe militar do dia 25 de Abril, é comemorado a partir do momento em que os tanques do capitão Salgueiro Maia entram no Terreiro do Paço, deixando na sombra toda a conspiração que, ao longo de muitos meses, tornou possível o sucesso da operação.

Emissões:

25 Abr 2017 > 21:00 > RTP1

25 Abr 2017 > 22:30 > RTP África

26 Abr 2017 > 01:30 > RTP Internacional


segunda-feira, 6 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17109: Notas de leitura (934): “O Adeus Ao Império, 40 anos de descolonização portuguesa”, organização de Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira, Nova Veja, 2015 (Mário Beja Santos)



Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Dezembro de 2015:

Queridos amigos,
Procede-se a um balanço em torno dos 40 anos de descolonização portuguesa. Antes de se falar na Guiné-Bissau, Guiné e outras parcelas que foram do Império, diferentes investigadores pronunciam-se sobre questões colaterais: o antigo colonialismo tardio do antifascismo português; os partidos nacionalistas africanos no tempo da revolução; o balanço militar em 1974 nos três teatros de operações; visões das forças políticas portuguesas sobre o fim do Império.
Analisados os termos da descolonização, outros dois investigadores debruçam-se sobre retornos e começos: experiências construídas entre Moçambique e Portugal, bem assim como memórias em conflito ou o mal-estar da descolonização.
Para os organizadores é tempo de fazer não apenas um balanço crítico mas, sobretudo, de contribuir, para aumentar a compreensão do fenómeno complexo que foi a descolonização portuguesa.

Um abraço do
Mário


Quando a Guiné se separou do Império

Beja Santos

“O Adeus Ao Império, 40 anos de descolonização portuguesa”, organização de Fernando Rosas, Mário Machaqueiro e Pedro Aires Oliveira, Nova Veja, 2015, é uma leitura irrecusável pelos diferentes registos que acolhe, pela exploração de temas que têm andado ao sabor de polémicas e paixões, o fim do colonialismo que motivou um penoso e duradouro luto imperial. Para os organizadores, os constrangimentos que haviam obstado à criação de uma comunidade pós-colonial para o espaço lusófono – os traumas coloniais, foram caindo graças a três acontecimentos simbólicos, entre 1998 e 2002: a realização da Expo 98, um evento concebido para celebrar uma identidade pós-colonial que não enjeitava a memória dos Descobrimentos; a transferência pacífica e ordenada da administração portuguesa em Macau para a República Popular da China; e o advento da independência Timor-Leste, no termo de um longo processo que mobilizou segmentos significativos da sociedade portuguesa.

Dentre o conjunto de ensaios em que se aborda a descolonização, destaco o trabalho de António Duarte Silva intitulado: “Guiné-Bissau: libertação total e reconhecimento portugueses”. O investigador começa por referir que o MFA local controlava quase todo o aparelho militar e que confirmado o triunfo do 25 de Abril, o núcleo duro demitiu e enviou para Lisboa o Governador e Comandante-Chefe e tornou irreversível o golpe do dia anterior. São factos que muitas vezes descuramos pelo seu significado, e que permitem ver claramente como a Guiné estava madura para a viragem da descolonização. Enquanto o PAIGC se pronunciava a sugerir a abertura imediata de negociações, diferentes comandos de unidades no interior da Guiné apelavam ao pronto cessar-fogo, pediam mesmo autorização para abandonar as posições. A 7 de Maio, Carlos Fabião foi nomeado pela Junta de Salvação Nacional para os cargos de Encarregado de Governo e Comandante-Chefe da Guiné. Mas não se deu esta substituição de governadores, Fabião passará a ser o “delegado da JSN, a quem Spínola lhe deu claras indicações sobre a forma de diretivas: negociar com o PAIGC, mas continuar o esforço defensivo de guerra até a assinatura do acordo de cessar-fogo; dar continuidade ao processo político de autodeterminação e preparar a sua visita à Província. Mal chegado a Bissau, Fabião constatou que tudo mudara: o MFA era poder, constituíra-se como gabinete de Governo. Em Lisboa, preparavam-se as conversações com o PAIGC que começaram ainda à carga, compareceram a delegação portuguesa com Mário Soares à frente e o PAIGC representado por Aristides Pereira e Joaquim Pedro da Silva. Do encontro não resultou qualquer compromisso formal. Seguiram-se conversações em Londres, a argumentação do PAIGC subia de tom: “de potência colonial, Portugal passou a estar na situação de agressor contra o nosso Estado soberano, reconhecido por mais de 80 países no mundo”.

Entre 25 e 31 de Maio, realizaram-se 10 sessões, a meio, Soares e Almeida Bruno deslocaram-se a Lisboa para apresentar um primeiro “protocolo” ou tentativa de acordo. Spínola recusou a proposta de Soares que contemplava o imediato reconhecimento da Guiné-Bissau como república. É durante estas conversações que se verifica que o PAIGC parecia não ter pressa na partida dos portugueses, admitindo um “período de transição” até 6 anos, desde que satisfeitas algumas exigências, a começar pelo reconhecimento da independência. Em Junho reiniciaram-se as conversações com o PAIGC, em Argel, a primeira reunião saldou-se por um fracasso. A atmosfera internacional também era desfavorável às obstinações de Spínola. Em Bissau, o MFA local não desarmava, e numa assembleia, perante cerca de 800 militares, foi aprovada uma moção onde se propunha: o repúdio de qualquer solução local e unilateral; o reconhecimento inequívoco da República da Guiné-Bissau; e o imediato recomeço das negociações com o PAIGC. Ninguém queria já falar em guerra e, o MFA local apresentava o seu plano de descolonização. Reúnem-se o governo de Bissau e o PAIGC na mata do Cantanhês, entre 15 e 18 de Julho. O tema central foi a retração do dispositivo das tropas portuguesas, mas debateram-se outros temas prementes como o problema dos Comandos Africanos e a troca dos prisioneiros de guerra. Nesse mesmo mês de Julho, é aprovada a lei n.º 7/74, a chamada Lei da Descolonização, através da qual Portugal reconhecia o direito dos povos à autodeterminação. E no início de Agosto recomeçaram as conversações entre o governo português e o PAIGC, assim se chegou a um protocolo de acordo bem como foi aprovado um anexo destinado a regular a continuação da retração do dispositivo militar português, a saída progressiva das Forças Armadas e algumas obrigações portuguesas. Os acordos de Argel foram assinados em 26 de Agosto de 1974 e traduziam-se no reconhecimento da nova República, no cessar-fogo, na saída das Forças Armadas até 31 de Outubro. E definiam-se matérias concretas quanto ao anexo: as Forças Armadas portuguesas obrigavam-se a desarmar as forças africanas sob o seu controlo; o governo português pagaria as pensões de sangue, de invalidez e de reforma a que tinham direito quaisquer cidadãos por serviços prestados às Forças Armadas portuguesas; e o governo português participaria também num plano de reintegração na vida civil de tais cidadãos militares.

Em 19 de Outubro, os titulares dos órgãos dirigentes da República da Guiné-Bissau e do PAIGC entraram festivamente em Bissau. Oiçamos os cometários do investigador:
“À data, o PAIGC era uma organização sólida, embora com escassos ‘quadros’, dotada de um aparelho ‘para-estadual’ e de umas forças armadas poderosas. Encontrava-se perante uma conjuntura particularmente favorável, pois beneficiava de amplo apoio e entusiasmo popular e dispunha de ajuda e cooperação multilateral, quer dos partidos comunistas quer dos países ocidentais. Mas a Guiné-Bissau era um dos países mais pobres do mundo e com poucas condições para construir um Estado-Nação. Rapidamente surgiram várias manifestações de fragilidade e de perversão do poder, sobretudo múltiplas medidas repressivas e evidentes sinais de corrupção, a par de provas de incompetência técnica do PAIGC para governar o país. A mobilização dos camponeses e o desenvolvimento rural esvaziaram-se e os recursos concentraram-se em Bissau – que tudo devorou. Em 1980, um golpe semimilitar pôs termo ao projeto histórico da unidade Guiné-Cabo Verde”.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Março de 2017 > Guiné 61/74 - P17094: Notas de leitura (933): “Baía dos Tigres”, por Pedro Rosa Mendes, Publicações Dom Quixote, 1999 (4) (Mário Beja Santos)