A. Continuação da publicação da série Cartas do meu avô, da autoria de J.L. Mendes Gomes, membro do nosso blogue, jurista, reformado da Caixa Geral de Depósitos, ex-Alf Mil da CCAÇ 728, que esteve na região de Tombali (Cachil e Catió) e em Bissau, nos anos de 1964/66. [, Foto à esquerda, com os netos]. As cartas, num total de 13, foram escritas em Berlim, onde vivem os netos, entre 5 de março e 5 de abril de 2012. (*)
B. DÉCIMA PRIMEIRA CARTA > De Novo Para Lisboa (Parte I)
I - A Frustração do CEJ (Centro de Estudos Judiciários)
A actividade que exercia na Caixa, [como jurista,] era muito específica e rotineira. Por outro lado, não me deixava tempo para exercer a advocacia a sério.
Embora, pelo pouco que fiz, deu para conhecer os meandros negros que a envolvem na prática. Pude verificar e constatar, com muita surpresa e desconforto, que para se singrar na advocacia, numa terra pequena como era Aveiro, tinha de se lançar mão de métodos que exigiam o estômago que eu nunca tive.
Era-me muito indigesto ter de comprar por bom preço, se quisesse singrar e não fechar as portas, as boas graças de todo o cortejo de gente que trabalhava atrás dos balcões de serviços públicos, desde as Conservatórias todas, às secções dos tribunais.
Quem lá mandava e geria o curso dos papéis em azul papel selado, salvo raras excepções, eram toda a sorte de escrivães, que ali entravam com a quarta classe ou o 5º ano dos liceus. Vindos do mundo rural.
Cabeçalho do famigerado papel selado, símbolo da burocracia e da arrogância dos burocratas, entretanto extinto em Portugal como forma de cobrança do imposto de selo... Vigorou mais de 3 séculos ... 'Embrulhar alguém em papel selado' era uma expressão, coloquial, corrente, na tropa, no nosso tempo... Era sinónimo de ameaça (por ex,, fazer uma participação) por parte de um superior hierárquico... (LG)
Ao fim de muitos anos, conheciam melhor que os magistrados toda a ladainha processual naqueles calhamaços que eles manipulavam lambendo os dedos e escozipavam à sovela. Do outro lado, era a exacerbada arrogância flatulenta da maioria dos causídicos da praça. Já muito bem instalados, na terra, com forte raizame subterrâneo que chegava a todo o terreno. Irradiavam uma feroz competição onde eu não podia entrar, nem aceitar.
O exercício da magistratura judicial era um espaço que, desde miúdo, me seduzia. Conheci figuras de juízes veneráveis lá na terra onde cresci que me fascinaram. Lembro-me do Dr. Maltês, muito bem. Com suas barbas brancas. Eram pessoas finas, impecáveis, respeitadoras e distantes de todas as influências. Pareciam sacerdotes da Justiça. Ora, como advogado que era, eu tinha a hipótese de ir frequentar o curso de formação de magistrados no Centro de Estudos Judiciários, em Lisboa. Era um direito que tinha e que a entidade patronal não podia impedir. Não tinha nada a perder. Podia optar pelo ordenado de um ou do outro lado. Se gostasse ficava. Se não, voltava ao meu posto de trabalho. A idade que tinha era a adequada. Sentia-me na minha capacidade física máxima para o desafio. Não podia deixar passar o tempo.
Antiga cadeia do Limoeiro, sede do Centro de Estudos Judiciários desde 1979 < Gravagura (aguarelada) do pintor (1858-1947). Cortesia do sítio Rede do Conhecimento da Justiça (LG)
Entrei no CEJ naquele ano. Como Auditor de Justiça. A maioria eram jovens, rapazes e raparigas, saídos das faculdades de direito. Para eles, o CEJ era, sobretudo, uma óptima oportunidade de emprego e de uma boa carreira. Éramos, desde logo considerados da família de magistrados. Muito bem tratados pelos magistrados instrutores. Saídos da carreira prática. As aulas eram muito intensas. Num curto espaço de tempo, os instruendos revisitavam, com o seu sentido prático muito apurado, todas as cadeiras de direito processual. Com provas teóricas e práticas. Exigentíssimas. Numa abordagem tão profunda e imediata, que deixava os advogados-alunos, numa grande dificuldade.
Falo por mim. Habituado a dispor de todo o tempo do mundo para analisar os casos práticos e consultar as fontes, via-me grego para corresponder com suficiência. O direito penal estava-me bastante distante do que era necessário. Sentia que, não obstante, meia dúzia de meses depois, se fosse aprovado, eu estaria à frente duma pessoa para a julgar com toda aquela ferramenta penal que eu não dominava. Comecei a sentir-me cada vez mais desconfortado, à medida que o tempo avançava. Cada sentença que eu tinha de elaborar como exercício prático deixava-me muito embaraçado. Era como se fosse a sério. Ter de aplicar uma pena de prisão...nunca imaginei o que sentiria de facto...Passar o resto da minha vida, aí uns dez a doze anos a exercer uma tarefa tão delicada, surgiu-me claramente como manifestamente impossível. Resolvi desistir. Quando fui comunicá-lo ao director do CEJ, Desembargador A. Leandro (**), este ficou desapontado e lamentou, nestes termos que não esqueço:
- Tenho, temos muita pena, pode crer. A toga de juiz assentava-lhe muito bem...tinha e tem o exacto perfil para o cargo.
Foi o melhor prémio que eu queria tanto ouvir. Por mim, estava ganho o desafio que me tinha posto, contra tudo e todos. Sobretudo a família...Regressei a Aveiro. Cá por dentro, como um vencido. Embora tivesse sido muito bem recebido. Percebi-o quando lhes revelei que já tinha decidido ir para o contencioso central. Ficaram visivelmente desapontados, sobretudo o gerente e os que trabalhavam mais próximos comigo. Não esconderam. Tive pena mas já estava comprometido com o director do contencioso. Por isso, mais uma vez tive de vir para Lisboa. (...)
_________________
Notas do editor:
(*) Último poste da série > 9 de julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10136: Cartas do meu avô (12): Décima carta: a casa das Quintãs, Aveiro (J.L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil, CCAÇ 728, Bissau, Cachil e Catió, 1964/66)
(**) Juiz conselheiro Dr. Armando Acácio Gomes Leandro, diretor do CEJ entre 1990 e 1998...