Caldas da Rainha > RI 5 > Juramento de bandeira > 1968
Foto: © Abílio Duarte (2016). Todos os direitos reservados. [Edição. L.G.]
1. No dia 23 de abril de 2016, o nosso blogue fez 12 anos. Publicámos o nosso poste nº 1 em 23/4/2004. E depois desse mais de 16 mil. A efeméride não pode passar despercebida.
12 (doze!) anos é idade maior na Net (que nasceu no início dos anos 90 do século passado): com menos disso, já muitos blogues morreram.
12 (doze!) anos é "manga de tempo", dava para fazer 6 (seis!) comissões na Guiné, desde o princípio ao fim da guerra (1961/74).
12 (doze!) anos é cerca de um sétimo da esperança de vida (média) aos 65 anos, em 2012, de alguém, como eu, que tenha nascido em 1947.
Camaradas (e amigos/as):
12 (doze!) anos é "manga de tempo"!... Por isso, o 12º aniversário do nosso blogue merece ser comemorado, por muito cansados que estejamos da guerra, da vida e... do blogue!...
Traduzida em números, a atividade do nosso blogue representa:
(i) 16 mil postes;
(ii) 714 membros inscritos (formalmente na nossa Tabanca Grande, dos quais infelizmente 44 já morreram), oriundos dos mais diversos sítios onde vivem camaradas nossos (e também alguns amigos), da Austrália à América, da Suécia ao Brasil, de Paris ao Mindelo, de Viana do Castelo a Bissau, de Lisboa a Macau;
(iii) 700 álbuns, 59 mil imagens (, incluindo mais de 300 vídeos):
(iv) 63 mil comentários;
(v) 7,8 milhões de visualizaçõs de páginas;
(vi) 11 encontros nacionais, anuais, da Tabanca Grande, desde 2007, com cerca de dois mil inscritos;
(vii) e, sobretudo, muitas memórias e muitos afetos partilhados entre todos nós...
O blogue nasceu em 23/4/2004. E por essa altura eu escrevi, à laia de justificação para passar a dedicar o meu blogue pessoal (Blogue-Fora-Nada) unicamente à Guiné, à experiência (partilhada) da guerra na Guiné (primeiro circunscrita aos anos de 1969/71 e depois alargada, muito rapidamente, ao período de 1963/74):
"Trinta anos e tal anos depois. Para que não digam, os (por)tugas mais novos, que a Guiné nunca existiu. Que a guerra da Guiné nunca existiu. Ou que nunca ouviram falar da guerra colonial (em África). Uma guerra que marcou, se não um povo inteiro, pelo menos toda uma geração. A minha geração.
"Desenterro estes escritos, guardados no sótão da casa e sobretudo no sótão da memória, em homenagem a todos os que derramaram o seu sangue na Guiné, entre meados de 1969 e o 1º trimestre de 1971. Ou que deram o melhor da sua vida, a sua juventude, a sua generosidade, os seus sonhos, as suas ilusões. Pela Pátria, dizia-se então. Ou por nada, o que é pior.
"Há trinta e tal anos... Em homenagem aos que combateram, de um lado e de outro, nos três teatros de operações (Angola, Moçambique e Guiné). Em particular aos meus camaradas, portugueses e guineenses, da Companhia de Caçadores nº 12 (CCAÇ 12). Que se bateram com dignidade, bravura, galhardia e honra (mas também com ética!) na Zona Leste, Setor L1, da Guiné. (...)
"Há trinta e tal anos... Em homenagem também aos que fizeram o 25 de abril de 1974. Foi no meu tempo, na Guiné, entre os milicianos, que o moral das tropas começou a deteriorar-se. Inexoravelmente. E a contaminar os oficiais e os sargentos do quadro, já poucos, velhos e cansados. Por exemplo, em 26 de novembro de 1970, a escassos três meses da minha rendição individual e do meu regresso a casa, mandei impunemente à merda toda a hierarquia militar do aquartelamento de Bambadinca, do tenente-coronel aos majores e capitães, depois de termos sofrido um dos nossos piores reveses militares, a CCAÇ 12 e a CART 2714 [Companhia de Artilharia aquartelada no Xime], no decurso da Operação Abencerragem Candente: seis mortos e nove feridos...
"Tudo aconteceu por grave erro que na altura imputámos ao major, segundo comandante do BART 2917, um militarão de artilharia [, antigo professor da Academia Militar,] que não gozava da simpatia dos alferes e furriéis milicianos. Abreviando razões, o comandante da força, que integrava a fatídica Operação Abencerragem Candente (...), obrigara-nos a repetir o percurso de véspera (25 de novembro de 1970), a caminho da Ponta do Inglês (Região do Xime, na confluência dos Rios Geba e Corubal)... Contra as mais elementares regras de segurança militar! É que na Guiné bichos e homens sabiam que nunca se pisava duas vezes o mesmo trilho e nunca se bebia duas vezes a água do mesmo rio...
"Ainda recordo, com nitidez, as palavras que dirigi, depois do regresso a Bambadinca, na parada, alto e em bom som, frente às instalações do comando do BART 2917, utilizando a mesma linguagem de caserna com que me fizeram soldado à força (...): 'Assassinos, criminosos de guerra, limpo o cu às folhas do RDM [ Regulamento de Disciplina Militar]'...
"Podiam ter-me mandado prender por insubordinação, por grave infracção ao RDM, por crime de lesa-pátria... Não o fizeram, não tiveram coragem de o fazer: pediram apenas ao médico (miliciano) que me desse um Valium 10; o meu capitão, por seu turno, achava que eu andava muito cansado... Diagnóstico: distúrbio emocional, muito frequente na época entre as NT (nossas tropas).
"E no final da comissão fiz-lhes a história dos seus gloriosos feitos em combate. Deram-me um louvor, averbado na minha caderneta militar, pela qualidade e seriedade do meu trabalho ... jornalístico. Dei-lhes a volta e fiz a crónica da guerra, baseado em toda a informação classificada a que tive acesso, para além das minhas próprias memórias, já que também fui um operacional com intensa actividade (...).
"O acesso aos arquivos da CCAÇ 12/CCAÇ 2590 contou, naturalmente, com a cumplicidade de um dos sargentos do quadro. Um alentejano, de origem proletária, que meteu o chico (leia-se: seguiu a vida da tropa), e que me alcunhou carinhosamente de soviético ou camarada Sov, ao que julgo saber por eu ser do contra (...).
"Dezenas de exemplares da história da CCAÇ 12, tirados a stencil, acabaram por ser distribuídos pelos tugas da companhia ( e em particular pelos meus camaradas milicianos), chegando assim à Metropóle, mau grado as instruções do capitão que, aflito e em vésperas de ser promovido a major, a mandara classificar como documento reservado. Onde quer estejas, meu caro Sargento P[iça], vivo ou morto, eu ainda tenho uma dívida de gratidão para contigo! E do meu capitão, então com 37 anos, uma comissão na Índia e três em África, eu só posso dizer que era um bom homem e um bom portuga. "(...)
Camaradas e amigos/as: dou o pontapé de saída, com um texto que fui repescar ao meu já muito rapado baú... Cada um de vocês pode também contribuir, com textos, fotos e outros documentos inéditos (ou reformulados), para animar a Tabanca Grande e festejar os 12 (doze!) anos do nosso blogue. O administrador deste condomínio (que não é fechado!) agradece!... LG
2. Heróis de um guerra que nunca existiu e que, por isso, não vão ficar para a história: o Paranhos, o Pimentel, o Peniche, o Pinto e eu
por Luís Graça (*)
– E no fim quem levou a taça foi o capitão!... Pelo menos, sabemos que chegou a general de duas estrelas, disse-me o Pinto...Paz à sua alma, no caso de já ter morrido! – ouviu-se a voz do Paranhos, à segunda rodada de espumante da Bairrada, com que acompanhávamos o leitão, num restaurante de beira de estrada, ali para os lados da Mealhada, na antiga estrada nacional nº 1.
– Em boa verdade, pouco se soube dele, depois do 25 de abril... Não deu nas vistas, por boas ou más razões. Acho que estava num batalhão, no leste de Angola, na altura do 25 de abril, Ouvi dizer que era coronel, na guarda fiscal ou coisa parecida… Sim, e deve ter chegado a brigadeiro! – opinou o nosso vaguemestre, o Pinto que, depois da tropa, foi dos que continuou a estudar e era agora dono de uma pequena empresa de contabilidade em Coimbra, e um dos organizadores do encontro.
– Deu-me uma porrada, nunca fui à bola com ele! – desculpou-se o Paranhos… Hoje deve estar cheio de graveto…
– Mas, era a vida dele, a carreira dele! – atalhou o ex-alferes Pimentel, transmontano, advogado e autarca, que nada tinha perdido do seu espírito de reverência em relação a todas as hierarquias deste mundo.
– E depois nós éramos milicianos, estávamo-nos nas tintas para as divisas e os galões! – atalhei eu, tentando, sem jeito, deitar água na fervura.
– E, nós, soldados do contingente geral!... Carne para canhão,
porra!– ripostou o Paranhos.
– Estávamos todos metidos no mesmo barco, essa é que essa! – opinou o Pimentel. – E demos o melhor à Pátria, quando a Pátria nos chamou para cumprir o nosso dever.
– Mas mesmo assim havia diferenças, carago! No meio daquela
merda toda – desculpem lá a expressão! – vocês até eram uns fidalgos: tinham patacão, graveto; tinham messe, bar, bebidas estrangeiras; iam matar a malvada a Bafatá; comiam umas garinas, brancas ou verdianas, de vez em quando, em Bissau; vinham de férias, na TAP, à Metrópole…
E lá continuou o reguila, o "corrécio", do Paranhos a vociferar contra os privilegiados dos
tugas de 1ª classe que na guerra tinham messe, com direito a comer de garfo e faca e toalha branca na mesa:
– Olha que nem toalhas de plástico tínhamos na
merda do refeitório!... Nós, os
tugas, de 2º classe... Se é que podíamos chamar àquilo um refeitório, chamávamos-lhe a "manjedoura"...
– Exageras, ó Paranhos! – emendou o Pinto. Até nem se comia mal, pelo menos eu esforcei-me...
– Qual quê!?... E depois alguns dos milicianos que eu conheci, na tropa e na Guiné, se calhar até nem queriam outra vida se não fosse terem de andar com a
puta da canhota no mato!.. Não falo dos chicos, nem vou citar nomes, muito menos quero referir-me à malta da nossa companhia que deu o litro e meio, que foram uns heróis... Mais: alguns milicianos que eu conheci (e vocês também), nunca tinham ganho um tostão na
puta da vida, a não ser a mesada do velho...
– Calma aí e para o baile, ó Paranhos! Estás a ser injusto, ao meter tudo no mesmo saco ! – interrompeu, de chofre, o ex-vaguemestre Pinto – Havia milicianos e milicianos como havia chicos e chicos. Eu não posso queixar-me, que não fui operacional, mas houve vaguemestres que morreram em combate.
– E, se calhar, até cangalheiros, corneteiros e barbeiros, dentro do arame farpado! – ironizou o Paranhos.
– Muitos de nós, furriéis e alferes, já trabalhávamos – comentei eu, ajudando a cortar o fio à meada do discurso torrencial (e potencialmente perigoso) do Paranhos, a quem a segunda garrafa de espumante, barato, começava a abrir as goelas da desinibição e da "inconveniência"... Todos sabíamos que, no passado, ele "tinha mau vinho"...
– Cá o Zé Soldado como eu já era chefe de família e há muito que fossava no duro, antes de ir parar com os quatros costados à Guiné. É bom que não se esqueçam disto, carago!... Quanto ao resto, reconheço que éramos todos iguais,
tugas e
nharros, alferes, furriéis, cabos e soldados, que elas no mato não traziam código postal, não distinguiam nem preto nem branco, de primeira ou de segunda...
– Ou nos ataques ao quartel, que lá também se morria, dizes bem... – acrescentou o Pinto, conciliador.
Vinte anos depois do nosso regresso...
O Paranhos, o nosso cabo Paranhos!... Era com emoção, com alguma emoção, mal contida e disfarçada, que eu voltava a abraçá-lo, ali num restaurante da Mealhada, em 1991, vinte anos depois do nosso regresso, no verão de 1971!... O Paranhos, com o seu inimitável sotaque tripeiro e a franqueza que era timbre da boa gente do Norte!...
Passámos, muito naturalmente, a tratarmo-nos por tu... Tínhamo-nos tornado amigos (ou, talvez melhor, confidentes e cúmplices um do outro, camaradas, no sentido etimológico do termo, já que na tropa não havia nem colegas nem amigos, mas apenas gente que partilhava o mesmo chão, a mesma caserna, o mesmo bivaque, a mesma tenda, o mesmo abrigo, o mesmo beliche, a mesma cama, o mesmo buraco, a mesma viatura e às vezes o mesmo leito de morte!) nessa longa noite em que viajáramos juntos, de comboio, do Campo Militar de Santa Margarida até ao cais de embarque, em Lisboa, no Cais da Rocha Conde de Óbidos.
Entre dois tragos de bagaço de vinho verde tinto, rasca, o Paranhos fora-me contando a sua vida, os seus sonhos, os seus projetos, a mim, seu confidente de circunstância, vizinho de lugar e companheiro de infortúnio, lucidamente deprimido, à medida que o comboio da CP, requisitado pela tropa, galgava as terras banhadas pelo Tejo, pela calada da noite, envergonhadamente, só com as luzes de presença nos carruagens apinhadas de militares e de bagagens. Ao fundo, um acordeão, desafinado e melancólico, ainda nos punha mais deprimidos, a escassas horas de embarcarmos no velho Uíge da carreira colonial.
Do seu longo e pastoso monólogo, retirei algunas notas que assentei no meu diário (ou que guardei na minha memória): para lá do Douro, ficava uma infância pobre, uma adolescência truculenta, uma filha de mãe solteira, um futuro incerto de operário do têxtil ou da ferrugem, já não me recordo bem. Filho de pequenos rendeiros pobres, de Entre Douro e Minho, cedo pegara na trouxa para apanhar o comboio da Linha do Douro e assentar arraiais numa ilha na freguesia de Paranhos, no Porto, razão de ser da alcunha que lhe deram na tropa.
– Em busca de melhores dias, já que em casa o caldo, a broa e o verde tinto mal chegavam para dez bocas.
– Fome... mesmo, a sério ?! – insinuei eu, timidamente.
– Não, meu furriel, você não sabe o que é isso: uma sardinha para três em dia de festa; um bocado de toucinho quando se matava o porco lá pelo Natal; um caldo de água quente, pencas (ou couves, como vocês chamam em Lisboa) e pão de milho esfarelado para aconchegar o estômago; batatas com batatas, quando as havia, castanhas cozidas no tempo delas… Mas um homem habitua-se a tudo... Fome, fome, não. Digamos que passei necessidades... Eu e os meus irmãos e sobretudo os meus pais, para não falar dos pais dos meus pais que já não cheguei a conhecer…
– Tal como dizia o povo, "esta vida não chega a netos, nem a filhos com barba"...– interrompi eu.
E, no Porto, na sua Paranhos, ainda popular e rústica, onde havia grandes quintas até aos anos sessenta e tal, onde se cultivava pencas e milho, numa apinhada “ilha”, em que se juntara gente fugida da miséria dos campos, de Cinfães, Baião e Marco de Canaveses, faria entretanto a sua "universidade da vida": marçano, barbeiro, trolha, biscateiro, futebolista, empregado de café,
chulo de puta fina – “
azeiteiro, como se diz na minha terra”… até descobrir o duro caminho que o levaria aos portões da fábrica, ali para os lados de Massarelos, se bem percebi.
– Ainda tive uma cautela premiada aos 18 anos, que me deu uns contos de réis... Mas tão depressa vieram, como se foram... Sempre tive alguma sorte ao jogo e basto azar nos amores... Mas quanto aos “cães grandes", deixe-me que lhe diga: aprendi a tirar-lhes o boné e a cuspir-lhes na sombra desde o dia em que, descalço, mas já com pelo na venta, e os
tomates inchados, acompanhava o meu velhote na visita anual à Casa do Fidalgo, pelo São Miguel, para acertar a renda: dois terços do vinho, metade do milho, a melhor fruta para a senhora, a viúva de um juiz salazarista que tinha tantas quintas na zona quantos os dedos nas mãos…
Falava do seu velho pai, "pai e patrão" (sic), com ternura contida e com o respeito comovido que lhe mereciam os queridos mortos de que a História não fala. Tinha falecido no princípio do ano de 1969, de cancro no estômago, segundo creio, nas vésperas da ordem da sua mobilização para a Guiné. Portanto, a dor ainda "estava em ferida" e o luto por fazer.
– As alegrias passam, meu furriel. Só as desgraças e as injustiças nunca se perdoam e nem se esquecem.
As tainadas, as bezanas, tudo isso a gente caga e mija... Veja o senhor meu pai, já falecido. Trabalhou uma vida inteira como uma besta de carga para morrer pobre como Job, sem um cantinho a que chamasse seu, como qualquer cabaneiro ou sem abrigo. Mal sabendo ler e escrever!... Fez tropa nos Açores, no tempo da II Guerra Mundial, andou a mourejar nas minas de ferro de Moncorvo, antes de se casar… Ainda pensou nos camiunhos de ferro, mas o que valia um homem sem s 4ª classe ?!... Conheceu muitos fidalgos, como ele chamava aos senhorios ou patrões… Sempre o conheci de chapéu na mão, agradecendo a suas senhorias o grandessíssimo favor de continuar na terra por mais um ano, depois do São Miguel… Viveu uma vida emprestada, viveu por favor dos "cães grandes"... É isso que me revolta, carago. E é por isso que me chamam reguila, "corrécio"… Mas eu digo-lhe: há coisas que um homem nunca esquece por muitos tombos que dê na
puta da vida, por muitas bezanas que apanhe ou por muitas sacanices que faça, ou por muitos coices que dê e leve… E eu já fiz muita
merda, confesso, em quarenta e tal anos de vida que já cá cantam.
A guerra quer nunca existiu
Curiosamente, verificava ali na Mealhada, vinte anos depois de "tudo ter acabado em bem", como dizia o conciliador do Pimentel, que nenhum de nós se desculpava por feito aquela guerra. Para alguns de nós, por ventura para a maior parte de nós,
tugas, agora despidos, desfardados, paisanos, passados à peluda, nus de corpo e alma como no dia em que fomos à inspecção, alcunhados de ex-combatentes do ultramar, últimos guerreiros do império, mal amados como todos os veteranos de guerra, de todas as guerras– "mas vivinhos da costa como o carapau, graças a Deus!" (era o Peniche, o básico, o nosso artista de variedades, com jeito para imitar personagens, e que já então gostava de mascarar-se de mulher) – , tinha sido afinal a primeira e a última grande aventura das nossas vidas cinzentas, um rito de passagem, uma iniciação (entre dolorosa e divertida) à vida adulta. Uma espécie de acidente de percurso. Um pesadelo climatizado. Uma trovoada fantasmagórica numa bela noite de verão tropical. Um abcesso. Um furúnculo. Uma dor de dentes...
– Não fiquei mais homem por ter estado na Guiné! – acrescentou o Paranhos – Mas passei a dar mais valor à camaradagem e à vida, isso sim!
– Eu também! – concordou o Pinto.
– Um parto, meu furrriel, um parto, o nosso segundo parto! – arrematava o Peniche, no meio da galhofa geral.
– É, pá, deixa-te lá de merdas, trata-me por tu, se fazes favor! – atalhei eu, com algum desconforto.
No fundo, parvo, ingénuo ou idealista, talvez eu esperasse ouvir a confissão pública de alguém que, agora, à distância dos acontecimentos e na atmosfera distendida de um restaurante de beira de estrada, conhecido do nosso antigo vaguemestre, quisesse tomar partido e se levantasse para fazer um discurso puro e duro sobre a traição dos capitães de Abril, do Spínola, do Costa Gomes, do Caetano e de todos os gajos que andaram a gozar connosco aqueles anos todos, obrigando-nos a chafurdar na merda e no sangue. Ou então sobre o trágico equívoco que fora a guerra colonial, ceifando vidas, gastando cabedais, hipotecando o futuro. Mas não, nenhum dos presentes levantara o copo para gritar
Viva ou Morra !...Nem nenhum de nós usava a expressão "guerra colonial"... não sei se por pudor, inibição ou tabu. Nem muito menos o Pimentel, que já tinha algum traquejo da política e conhecia as manhas dos cortesãos quando vinham à corte, na capital do reino. Afinal, agora ele era autarca do poder local democrático, e ser autarca em Trás-os-Montes era um posto mais alto do que tenente-coronel na tropa do nosso tempo, na então província portuguesa da Guiné!...
É que todos fazíamos o jogo da cumplicidade, jogo cujas regras tacitamente ninguém estava disposto a violar. Porque o momento era único, era mágico, e todos sabíamos que nunca mais voltaria a repetir-se, apesar das trocas de cartões e de fotos da família, e dos eflúvios do álcool e das promessas de, para o ano, irmos todos, com as nossas "bajudas", comer uma valente feijoada à transmontana e provar a famosa posta mirandesa, para lá do Marão "onde mandam os que lá estão" (assegurava o Pimentel, dos poucos de nós que subira na vida, e que logo se ofereceu para organizar um encontro com todos os mecos da companhia, logo que a malta conseguisse completar a lista dos nomes e moradas).
– Nunca lá pus os
butes, e
bibo no Porto, carago! – ironizou o Paranhos, tripeiro de gema, que continuava, a miúde, a trocar os vês pelos bês, sentindo que ainda lhe achavam alguma graça, os gajos do sul, os "mouros".
No fundo, sabíamos que, na vida, há momentos irrepetíveis, pelo que nem os fantasmas, dolorosos, do passado, nem as paixões, ainda mornas, do presente, nem muito menos as inquietações, impercetíveis, do futuro deveriam perturbar este insólito, fugaz mas ternurento encontro de meia dúzia de ex-combatentes da Guiné, mesmo quando, já no fim do almoço e depois de uma nova rodada de uísques (de uma Old Parr de 1971 que o vago-mestre trouxera de lembrança, "from Sctoland to the Portuguese Armed Forces"), alguém (, creio que o Peniche ou o Pimentel) tivera o mau gosto (ou o azar) de evocar os mortos da companhia...
– Agora é que
foderam tudo! – desabafou o Paranhos, à beira de um ataque de choro.
Nunca conheci nenhuma alma tão sensível como a dele. Ou melhor: nenhum ator, com lágrima tão fácil como a dele... (…)
________
Nota do autor:
(*) Nenhum destes heróis foi condecorado, muito menos o "corrécio" do Paranhos que, apesar de ter levado uma porrada do sacana do 1º sargento, de cavalaria, ainda em Santa Margarida, agravada pelo capitão, era um dos nossos melhores operacionais, um homem de grande generosidade e bravura. Felizmente que nenhum de nós fora condecorado no 10 de junho, muito menos a título póstumo.... Também nenhum destes heróis existiu. Nem poderiam existir: afinal, perdemos, senão a guerra, ou pelo menos o império. E, em boa verdade, esta guerra nunca existiu... Em todo o caso, qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.