1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 3 de Julho de 2012:
Queridos amigos,
Foi graças ao empréstimo de António Duarte Silva que tive acesso a este estudo certamente impar na bibliografia do PAIGC.
Este professor de Uppsala (Suécia) lançou-se numa investigação onde, ao que parece, não teve concorrência: estudou em profundidade a orgânica socioeconómica e social do PAIGC no interior da Guiné e acompanhou de perto o processo eleitoral que desembocou nas eleições para a Assembleia Nacional, em 1972.
Lars Rudebeck irá aparecer mais tarde como investigador no INEP, diferentes trabalhos seus irão aparecer na revista Soronda, hoje acessível porque os seus números foram digitalizados e são uma fonte de conhecimento do maior interesse.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bissau, um estudo de mobilização política
Beja Santos
O leitor e confrade tem interesse em, antes de começar a ler esta recensão, procurar saber mais sobre o currículo de Lars Rudebeck (foto à direita), um cientista de renome internacional que ensinou em Upsala, na Suécia. O professor Lars Rudebeck concluiu à volta de Julho de 1974 este livro (publicado igualmente em 1974), exatamente no tempo em que o presidente da República António de Spínola anunciava a nova era da descolonização, pouco antes da República da Guiné-Bissau ter sido acolhida nas Nações Unidas. Trata-se de um estudo de alto gabarito e singular no panorama de todos os trabalhos efetuados sobre a ideologia, a orgânica e a emergência da ordem social instituída pelo PAIGC, o investigador revela um conhecimento detalhado da realidade guineense, visitou as zonas controladas pelo PAIGC em 1970 e 1972 e conversou com Amílcar Cabral, com quem se correspondeu até ao seu assassinato. Da gama dos diferentes estudos e reportagens efetuados antes ou pouco depois da independência, este goza de uma particularidade: o cientista social e político procedeu junto das populações afetas ao PAIGC a entrevistas diretas nas chamadas áreas libertadas com destaque para Sara-Candjambari, e acompanhou, em 1972, o processo de recenseamento e votação para a Assembleia Nacional.
A investigação compreende essencialmente as seguintes partes: passado e presente da Guiné e de Cabo Verde em relação à luta de libertação; a ideologia e os objetivos nucleares do PAIGC, a vida nos territórios libertados e um punhado de reflexões sobre a essência teórica deste movimento de libertação, justificando, dentro da sociologia política, o significado que o cientista dá para mobilização política.
Dir-se-á quanto ao que nos revela sobre a Guiné e Cabo Verde que as notas históricas estão corretas e olhando para os quadros estatísticos de educação e saúde, por exemplo, fica-se com uma ideia clara sobre as diferenças abissais no desenvolvimento destes dois territórios. O autor nunca questiona se existe ou não uma base de sustentação para a dita unidade Guiné-Cabo Verde, menciona-a como decorrente do ideário do PAIGC. No tocante à Guiné-Bissau, que é o centro do estudo do investigador sueco, ele lança um olhar em concordância com a leitura feita por Cabral quanto às pessoas, as explorações económicas, pega mesmo no memorando que Cabral escreveu aquando da sua primeira visita a Londres para referir a natureza rural do país e como a luta de libertação iria assentar na conscientização dos agricultores. Refere-se às relações internacionais do PAIGC tanto no campo africano, as ajudas recebidas da China, URSS e aliados, e lista os apoios recebidos dos países ocidentais, com destaque para os escandinavos. Explica a evolução da guerra, as políticas de Schulz e Spínola, os acontecimentos de 1973, e, por fim, a independência. Sobre o assassinato de Cabral, toma em consideração os factos enunciados por Aquino de Bragança, publicados em Afrique-Asie, a existência de três grupos conspiradores: o primeiro, constituído por militantes de longa data alegadamente recrutados pelos serviços secretos coloniais, caso de Rafael Barbosa ou Momo Touré; o segundo, incluiria elementos corruptos ou descontentes com a linha política do Partido e que se tinham tornado elementos recrutados pela PIDE; um terceiro, onde se incorporavam peritos contraguerrilha, lançados em Conacri como desertores do exército colonial. Escusado é dizer que estas reflexões no essencial eram infundadas, foram um expediente usado para desviar a questão essencial do contencioso entre guineenses e cabo-verdianos.
O estudo da ideologia é minucioso. Pega no conceito de “a arma da teoria” e comenta como de uma estrutura marxista Cabral faz uma leitura da sociedade e do desenvolvimento na Guiné para distinguir que a libertação não pode ocorrer nem consolidar-se com base nos cânones nas lutas de classe. Cabral acentua que a exploração colonial na Guiné não obedece a um plano imperialista e que a burguesia existente na Guiné em nada tinha a ver com a burguesia dos países em luta contra o imperialismo, mas não deixa de chamar a atenção para as questões tribais que a prática política do PAIGC deverá superar. E debruça-se, a seguir sobre os aspetos concretos da ideologia nas dimensões políticas, económicas, sociais e culturais na prática do PAIGC e como se converteu esta ideologia em ação política, Lars Rudebeck procede a uma análise das “Palavras de ordem gerais” elaboradas por Cabral, analisa-as a partir dos princípios da China Popular, do Vietname e da Argélia. É nestes documentos que Cabral refere a necessidade de desenvolver a agricultura nas regiões libertadas, os guerrilheiros deveriam repartir o seu tempo ajudando os camponeses. O que há de fundamental a reter é que o pensamento de Cabral não se baseava numa cartilha ideológica consistente, os próprios armazéns do povo que se pretendia que organizassem a distribuição de bens de consumo nas áreas libertadas funcionavam como local de troca, para gerar o sentimento de que os libertados ponham os seus meios de produção ao dispor dos outros.
Tomando à letra a verificação do documento “Palavras de ordem gerais”, o cientista analisa os conceitos de centralismo democrático em que Cabral assentava a democracia revolucionária, passando para as considerações sobre a ordem social, passo em revista a orgânica política e administrativa do PAIGC (Conselho Superior da Luta, Comité Executivo da Luta, Conselho de Guerra, Secretariado Permanente, órgãos de topo, e depois disseca a base, a partir dos comités de tabanca até aos comités nacionais, mais tarde as frentes Norte e Sul. É este o nível de orgânica, entre tabancas e regiões que o autor faz entrevistas; segue-se uma análise das organizações militares, do sistema judicial e como foi evoluindo, até 1973, a ideia de Estado separado do Partido. Explica detalhadamente a campanha eleitoral de 1972 e dá os números para eleição da Assembleia Nacional.
O seu estudo conclui uma digressão sobre a organização socioeconómica e cultural do PAIGC, desvela o funcionamento dos armazéns do povo, quais as mercadorias aqui transacionadas, passa depois para os cuidados médicos e de saúde, a rede hospitalar e pessoal médico, quais os postos sanitários e brigadas de saúde e sua localização; refere a política de educação, os conteúdos e como, por via da cooperação, o PAIGC solicitou bolsas em áreas-chave: ciências agronómicas, medicina, economia, direito, várias especialidades na engenharia, e humanidades, e depois dá números dos bolseiros até 1973 e reserva uma última palavra para a posição das mulheres na luta armada e nas áreas libertadas.
As reflexões finais centram-se no conceito de mobilização política que ele associa a um processo político e a mecanismos através dos quais os líderes organizam diferentes apoios para a luta revolucionária, apelando tanto à libertação como à necessidade de lançar as bases de uma satisfação material e ao respeito pela dignidade humana. Dos seus inquéritos, o cientista não esconde que encontrou estruturas autoritárias e profundamente hierarquizadas, baixo nível educativo do povo em geral e casos patentes de inércia social, a despeito de uma capacidade inequivocamente agressiva dos grupos armados.
Em suma, um estudo que devia ser retomado em futuros trabalhos históricos, dado o seu ineditismo e profundidade de análise social.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Agosto de 2012 >
Guiné 63/74 - P10281: Notas de leitura (394): Colectânea "Toda a Memória do Mundo", iniciativa da Câmara Municipal de Cascais, 2006 (Mário Beja Santos)